Reportagem para a revista Monet sobre como filmes estadunidenses contemporâneos ainda reproduzem a fórmula dos "bons contra os maus".
Report for Monet magazine about how current American cinema keeps using the old "good versus evil" formula.
1. d ez embro+ Mone t+535 2+ Monet+ d ez embro
por José Gabriel Navarro
foto Scott McDermott/Corbis Outline
Produções como Argo
e AHoraMaisEscura
conquistaram público e
premiações importantes
ao retratar conflitos
reais dos EUA no Oriente
Médio,mas sem se livrar
da fórmula“os caras
bons contra os ruins”
Imagem
semelhan ça
Q
ualadiferençaentreavacaeo11desetembro?”,
perguntou um engenheiro canadense pelo Twitter ao jorna-
lista Glenn Greenwald, que vem divulgando as revelações
do ex-analista de inteligência americana Edward Snowden
sobre as bisbilhotagens dos EUA em outras nações via tele-
fone e internet. A resposta chegou no mesmo tweet: “Você para de tirar
leite da vaca depois de 12 anos”.
O trauma emocional do atentado é ligado a um medo anterior, do co-
munismo. À época do episódio, que matou 2.996 pessoas, o sistema de
defesa dos Estados Unidos só estava pronto para reagir a um ataque da
União Soviética, desfeita dez anos antes. Isso não impediu a então con-
selheira de segurança de George W. Bush, Condoleezza Rice, de contar
à BBC: “Liguei para o presidente Putin [da Rússia] e disse: ‘Senhor
presidente, nossas forças estão em alerta’. Ele disse: ‘Eu sei, nós vimos.
Mas não se preocupe com a gente. Podemos ajudar em alguma coisa?’.
Nesse momento, eu entendi que a Guerra Fria havia acabado”.
Criador e criatura –
O ex-agente da CIA Tony
Mendez (em pé)eBen Affleck,
que o interpretou em Argo
e
A HORA MAIS ESCURA i dia 6,sexta,22h,HBO,71 e 571 (HD)
ARGO i dia 14,sábado,22h,HBO,71 e 571 (HD)
2. fotos:divulgação
5 4 +Monet+d ez embro d ez embro+ Mone t+ 55
Assim é na política internacional, assim é no cinema. No sé-
culo passado, comunistas logo substituíram nazistas como vi-
lões nos filmes em inglês. Agora se vive a era da ameaça que
vem do Oriente Médio. É uma conjuntura que se repete e faz
sucesso porque lida com sentimentos de verdade, caros a um
povo ameaçado pelas brigas compradas por seus governantes já
há mais de 200 anos. Dois vencedores do Oscar deste ano repro-
duzem essa fórmula, ainda que o façam por vias distintas.
Argo, estrelado e dirigido por Ben Affleck, tem acentuadas cur-
vas dramáticas e algumas cenas de ação extremas para recriar
uma façanha da inteligência estadunidense em 1980. A CIA fin-
giu que ia gravar um filme no Irã para resgatar seis funcionários
da embaixada dos EUA, tomada pela população um ano após a
Revolução Iraniana. Perseguidos em toda Teerã, eles se refugia-
ram na casa do embaixador canadense e escaparam fingindo-se
de profissionais de Hollywood, capitaneados por um agente se-
creto, o protagonista Tony Mendez, cujo livro The Master of Dis-
guise serviu de ponto de partida para o roteiro.
A Hora Mais Escura reforça por que Kathryn Bigelow se tor-
nou a primeira mulher a receber o Oscar de Melhor Direção em
2009, por Guerra ao Terror. A personagem principal do novo
filme, uma agente obcecada por encontrar Osama bin Laden,
é vivida por Jessica Chastain, vencedora de um Globo de Ouro
por essa atuação. Inspirada em uma mulher real, a protagonista
é árida, como os filmes e a direção de Bigelow são. Seu estilo
documental e hiperrealista – com a marca do namorado da di-
retora, o jornalista Mark Boal, que assina o roteiro – lhe rendeu
honrarias da própria CIA no fim de outubro último.
Ambas as produções foram exitosas nas bilhete-
rias e reconhecidas por suas virtudes. A Hora Mais
Escura levou o Oscar de Melhor Edição de Som.
Argo ficou com Melhor Roteiro Adaptado, Melhor
Edição e – de forma surpreendente, já que não ha-
via sido indicado a Melhor Diretor, quebrando um
tabu na história da Academia – a cobiçada estatueta
mais importante da noite: Melhor Filme. No entan-
to, as críticas à ótica predominante nesses longas-
metragens não foram poucas.
“O que me aborreceu [em Argo] foi a raiva e a des-
confiança retratadas no filme. Aparecemos gritando
o tempo todo”, afirma a escritora iraniana Sahar De-
lijani, nascida em 1983, mesmo ano em que os pais
foram detidos por agitação política contra a revolu-
ção. Ela passou os primeiros 45 dias de vida numa
prisão. Não lhe interessa glorificar o regime vigente
na terra persa, como se vê em seu romance de estreia,
Filhos do Jacarandá, publicado no Brasil pela Globo
Livros – a obra é baseada em tragédias da vida pessoal
de Delijani, que estudou nos EUA e vive na Itália.
“Hollywood tem longo histórico em retratar outros
países sem considerar necessário passar algum tem-
po conhecendo-os realmente, por isso [Argo] fica su-
perficial e distante da verdade. Acredito que foi nisso
que o filme falhou, nos mostrando como mulheres e
homens que perderam a humanidade e não são nada
além de corpos vazios e raivosos.”
O realismo perfeccionista de A Hora Mais Escura carece de
sustância no mesmo quesito. Pende, como se poderia esperar,
para um lado, torna simplório o comportamento dos paquista-
neses e enriquece a complexidade das ações norte-americanas à
caça do então líder da al-Qaeda.
Lourival Sant’Anna, repórter especial do jornal O Estado de S.
Paulo, já correspondeu a partir de mais de 60 países, boa parte deles
em guerra ou recém-saídos de uma. Acaba de fazer um curso de do-
cumentário e tem restrições a filmes de ficção de Hollywood sobre
os conflitos da América.“Émuito estereotipado, não consigo ver até
o final, é desconcertante, porque tenho intimidade com os temas”,
diz.Elefalacomavisãodequemjáconversoucomnativosemterri-
tório sitiado sem colete à prova de balas e que define como pode ser
a sensação de estar em território sitiado: com silêncio e um suspiro.
Dificuldade
Mas o Brasil faria diferente? Fôssemos nós o polo cinematográ-
fico do continente americano, seriam outras as cores usadas para
pintar aqueles estrangeiros de algum modo em conflito conos-
co? “Muitas vezes, quando volto de coberturas internacionais e
encontro amigos, vizinhos”, conta Sant’Anna, “me perguntam
‘como é que está lá’ e me demoro, pensando no que falar, mas
as próprias pessoas começam a falar entre si, elas respondem.
Elas não querem ouvir, acreditam que já sabem”. As ideias pre-
concebidas são resistentes a uma observação mais atenta, deta-
lhista e complexa. Haveria equilíbrio para relatar em tela grande
a prisão dos brasileiros corintianos na Bolívia em fevereiro deste
ano, acusados de matar o adolescente Kevin Espada,
durante uma partida valendo pela Copa Libertadores,
na cidade de Oruro? Um exemplo mais bélico e distan-
te também desafiaria os cineastas brazucas: a Guerra
do Paraguai (1864-1870), a maior da América do Sul.
Brasil, Argentina e Uruguai sucumbiram aos interes-
ses da Inglaterra e dizimaram um país sem saída para
o mar, que ainda hoje segue longe de se recuperar
cem por cento em termos financeiros e morais.
É possível que certa banalização da violência por
aqui tenha nos impossibilitado de enxergá-la com a
clareza e a frequência recomendáveis. Um estudante
de biologia de Nazaré, em Israel, Elias Abo Sine, fi-
cou chocado ao saber que a imprensa brasileira vira e
mexe compara o número de mortos em conflitos no
Oriente Médio com os saldos fatais da bandidagem
no Rio de Janeiro. “Vocês deveriam comparar a cri-
minalidade brasileira com a dos Estados Unidos, não
com um país em guerra permanente. É como compa-
rar a força de uma pessoa comum com a de uma sem
braço”, comenta o rapaz de 25 anos.
De fato, soa grotesco se equiparar a qualquer nação
repleta de tanques comandados por gente que fala ou-
tro idioma e usa, em alguns casos, até outro alfabeto.
No final das contas, fica a impressão de que a ficção
travestida de realidade pode nos envolver – por mui-
tas vezes, completamente – e a realidade seria dura
demais para duas horas e pouco de entretenimento.
Realidades – Em Argo
(à esq.), os americanos
perseguidos caminham
assustados entre iranianos.
Em A Hora Mais Escura, a
performance espartana de
Jessica Chastain lhe rendeu
um Globo de Ouro