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O Nativismo e o Fim do Pampa no Rio Grande do Sul
Relato fictício sobre passagens reais.
Chego em São Borja em um sábado de Janeiro. É bem cedo, há poucas pessoas nas
ruas e os estabelecimentos estão todos fechados. A avenida em frente à rodoviária é de quatro
vias, com um extenso canteiro central, onde vejo passarem duas bicicletas e um senhor de
chinelos e chapéu, levando uma sacola de pão, sobre a fachada de uma casa de muros baixos
onde uma senhora varre o piso do pátio. Depois ficam o som de um ou dois galos, passarinhos,
e eventualmente um ronco distante de motor. Ainda ambientado com a atmosfera do centro
de Porto Alegre, fazia força pra conferir alguns contatos, pois viajara com o celular descarregao
e não tinha podido avisar meu horário de chegada.
Peço licença ao dono do armazém ao lado dos boxes pra deixar o aparelho conectado
por meia hora, e saio de bicicleta pra dar uma olhada nas ruas. Pra dentro do bairro as ruas são
de terra vermelha, as casas quase todas de madeira, sem calçadas pavimentadas,
desmontadas, cobertas de capim, pedaços de velhas carcaças de carros e de maquinários do
campo, pilhas de lixo, e alguns cães e galinhas soltas.
De volta à estação faço algumas chamadas pra pegar a orientação do lugar aonde
encontraria meus companheiros, e pego o fluxo da avenida principal, pra descobrir para onde
a cidade cresce. Já na segunda esquina, em uma roda de meninos alguém reclama as glórias de
uma certa canção nativista, pra descrédito dos outros. Um deles segurava um celular
sintonizado em uma rádio local, centrando a conversa na fala de jeito amaneirado do locutor.
Mesmo assim dois deles se entreolharam e riram, enquanto um terceiro cuspia no chão. Tive
tempo de lembrar aquelas conversas comuns de se ver ainda na região da grande Porto
Alegre, entre conhecidos de Sapucaia, Esteio ou Gravataí, embora com outra diversidade ao
redor. Pessoas dialogando com o imaginário folclórico, discutindo naturalmente na rua, no
colégio ou no trabalho, e, assim como eu, encontrando um certo desconforto tanto em
assimilá-lo quanto em negá-lo. E eu já imaginava que na região da fronteira com o Uruguay e
Argentina encontraria o mesmo debate intensificado, entre um número menor de identidades
possíveis, embora em um espectro mais profundo de desdobramentos.
Sigo pedalando, pensando no que me parecer ser um gesto típico de uma identidade
regional de larga memória e que, já quase costumeiramente, a todo momento se contesta e se
reivindica. Passando pelo centro da cidade, na praça central, lembro do comentário de um
amigo sobre a “praça dos bugius”, pois na copa daqueles altos plátanos e cibipirunas haveria
uma familia deles. O nome da praça é 15 de Novembro, relacionado à proclamação da
república, e é pontuada com uma estátua do presidente da revolução de 1930, de raízes locais,
Getúlio Vargas.
São Borja é a “cidade dos presidentes”, dizem comumente as pessoas. Além de
Getúlio, ali também nasceu João Goulart, e uma série se outras grandes figuras da história
local, em grande parte e injustamente menos conhecidas. Obviamente colocar os bugius no
nome da praça seria uma forma de burlar o projeto estatal e reaver a posse da terra a seus
donos ancestrais. É parte do sentimento de que algo se perdeu na região que já foi núcleo do
regionalismo gaúcho, bilingue e sem fronteiras, e, posteriormente, da idealização da fronteira
máxima do estado atual, seja na época do império, seja entre os presidentes.
De peito estufado, Getúlio hostenta uma vaga idéia identitária, ligada a nacionalismos
e ufanismos antigos, frequentemente celebrado em meio a um sem fim de dúvidas e
reticências. O que é ser brasileiro e gaúcho? Me pergunto como sempre.
Chego à casa que me foi dada de referência, e sou instruido com a maior boa vontade,
com uma postura e entonação que desmonstram um senso de amizade e dever construído em
amplo referencial gauchesco. Expressões de origem castelhana, honradez com ecos do tempo
dos patriotas revolucionários, valores afirmados e lembrados tanto por apreço quanto por
resistência. Eu sabia que essas e outras questões me apareceriam, estando em posição
suscetível a reverberar questões fortemente consideradas na região.
Em outro canto da cidade, já integrado com a rapazeada, encontro o tempo dos
galpões e das charretes fechado por tempo indeterminado, guardado em um museu que, não
fosse pelo esforço de um literato local, não existiria. Ouvindo as explicações dos meu
companheiros e guias, entre galderismos espontâneos e burlescos, chegam-me em mãos os
versos do poeta Aparício Rillo, referência resistente em meio vozes cada vez mais antigas.
Lendo-o narrar figuras esquecidas, gaúchos páreas, andarilhos, cantores da natureza, lembro
do dia em que vi a estátua de Jayme Caetano Braun, imensamente maior que a de Getúlio, na
entrada da cidade cercana de São Luís Gonzaga. Não por acaso, pensei, estes homens
carregariam não sei que verdade, que tarda a morrer, e encontram ouvidos em discursos que
sempre tentam divisar alicerses, com a impressão de nunca encontrá-lo efetivamente. É de
raíz gaúcha a espora, o cavalo, o chimarrão, simplesmente? Uma pergunta antiga. Isso seria
uma caricatura, diriam os ex-nativistas e todas as pessoas que conservam um espírito
regionalista depurado. Então o que há de específico e original a ser conservado, além dos
hábitos simbólicos e das metáforas poéticas? Eu era parte desse questionamento.
O tempo nas proximidades da fronteira é outro em relação à capital. As referencias
culturais cruzam por distâncias maiores no horizonte, nem tão permeadas pela variedade
cosmopolita, o que as tornam menos desgatadas e mais vivas, recorrentes, ainda atuais. Eu
que nunca havia estado ali, aos poucos passo a admirar o esforço constante de aproximação e
resgate, pelo convívio, dos meus companheiros. Imagens fragmentas de uma honra e
liberdade esquecidas se filtram e se sintetizam em um tal gaúcho esquecido, hoje em dia
provavelmente apreensivo, ou mesmo inseguro, magoado. E, a passeio, no instante em que
vamos chegando à beira do rio Uruguay, uma outra imagem se impõe a mim como definitiva,
como se passasse justamente pra dizer o que faltava: Um velho, elegante, de lenço, camisa,
botas e chapéu, arrasta o corpo de cabeça gaicha, de olhar apático, por margens tomadas de
lixo. É alguém que conserva uma certa nobreza que já não pode advogar, uma nostalgia muda
que cala um tempo que já não sabe se persiste ou simplesmente resta em meio aos entulhos
do chão. Com certeza é a aparição mais próxima possível dos versos das canções de outrora,
celebrando o fulgor das cheias e o encontro de diferetes ritmos e idiomas, e no entanto uma
figura hoje igualmente inconciliável.
Na sequencia, depois de alguns passeios, tomamos a estrada com nossas bicicletas.
Pedalamos à noite, nos afastando da cidade, e pouco a pouco adentrando regiões menos
habitadas, acostmando-se apenas pelo ruído distante das casas à beira da estrada, de animais,
e os carros cada vez menos frequentes. Eu ainda penso. Certos conhecidos de Porto Alegre
facilmente encontrariam ocasião pra anunciar que o tempo da bombacha acabou, que o
tradicionalismo nasceu das especulações teóricas de migrantes, nos setores acadêmico da
capital, e só pôde representar a elite que a cunhou. E ante esses comentários eu, em silêncio,
pensaria que algo maior sempre acaba por nos escapar. Quando criança, investigando o rádio
em pleno centro da capital do estado, praticamente ignorante de tradicionalismos, me
comoviam o timbre de vozes testemunhas de um outro ar, os versos impregnados de um outro
céu, e os violões lentos e expansivos, generosos, indissociáveis da imagem de um horizonte
aberto. Certamente é difícil tentar definir o que é ser dessa terra, vasculhando uma história de
atravessamentos culturais initerruptos, percebendo aos poucos que toda identidade
construída tende a se diversificar em outras. Mas é sobretudo fácil sentir-se aparentado de
algo maior quando se ouve sobre o tempo em que ainda se vivia à beira da mata, quando
ainda se convivia com o semblante índio, carregando em si mesmo, como expressão viva, em
cores e traços, do que é comungar a ascendência de uma mesma terra. Uma pergunta, simples
e óbvia, que costumava me fazer nos parques de Porto Alegre, neste instante se sobrepunha à
imagem do céu aberto. Como pode ser possível se imaginar em sociedade sem incluir os
animais, as plantas, o ciclo das estações, o fluxo dos elementos? E é precisamente aí, pensei,
no âmbito indefinível, nos termos que se perderam ou não tiveram tempo de serem cunhados,
que, na nostalgia de tantas pessoas, conserva-se a memória tátil, indizível, de dias frescos,
passos silenciados na acústica do campo, e toda referência que se pode ter de um homem
aproximado da natureza. Justamente nesse local e nessas circunstâncias, o homem que
convive com uma natureza singular, de cores, sons e contornos únicos, auto-referenciada em
um número sem fim de relações entre seus seres habitantes, sob o contrastes de movimentos
políticos e econômicos de lugares distantes, descobre sua cultura como o desdobramento de
um potencial natural regional, e se torna capaz, de forma similar aos índios, considerar uma
própria identidade telúrica. No decorrer do tempo, intuitivamente, mesmo o colonizador,
mesmo o imigrante, mesmo o negro encontraram aqui tal harmonia de crepúsculos, de
chilreios, que quiseram fazer parte da fundação de um telurismo que levantou sementes índias
e abraçou todas as áreas da cultura, sob o argumento da comunhão e gratidão à terra. Foi
preciso um espaço pra que isso acontecesse. Foi preciso uma natureza em evidência, mais
livre, mais palpável.
É verdade que o nativismo ergueu bandeiras e cercas divisórias, à moda colonial. Os
centros tradicionalistas, fundações além fronteira da poesia do pampa, aqui se fragilizaram e
se dissociaram de seus “hermanos”. A um só tempo ansiosos por uma identidade nacional e
rancorosos por se sentirem incompreendidos em um Brasil deconhecido, inventaram
pequenos tabús, enrijeceram linguagens, proibiram “castelhanismos” em seus festivais. E
posteriormente só lhes restou engolir à seco o tempo em que os “gringos” italianos e alemães
ainda não haviam ocupado toda a terra com soja e arroz, deixando quantidades antes
inimagináveis de concreto e fumaça a embotar os sentidos.
Todas essas coisas ficavam mais visíveis do que nunca enquanto pedalávamos na
lentidão das estradas, observando apenas o vento, o cheiro do campo e alguns vagalumes na
noite. E se afirmariam ainda mais nos dias seguintes. Percebia as cercas novas, que já não são
poucas e baixas, o mato que não abraça mais as antigas casas de pedra, e a lida do dia que já
não conhece os tais horizontes quase infinitos e transitáveis, a não ser por lavouras, entre uma
ou outra máquina colheitadeira. No dia seguinte, levantado o acampamento em uma clareira à
beira da estrada, calibramos os pneus em um posto de gasolina ao lado de uma cooperativa.
Vendo alguns caminhoneiros esperando as pesagens de seus caminhões, pergunto-lhes o que
levavam de carga. Arroz, arroz, soja e arroz. Há muito soja nas outras regiões, mas por ali a
maioria das lavouras é de arroz. O resto dos campos sabe-se que é ocupado pela indústria da
celulose, basicamente feitas do plantio de eucalipto e da acácia negra, e da agropecuária.
Há alguns metros do posto, ao lado de um trevo, a cidade começa a crescer, e, no
balcão de um bolicho antigo, vejo uma segunda imagem que me marcaria. Um galdério deita o
rosto atrás de uma garrafa de canha, com a rosto tão desfigurado quanto a fachada do lugar,
em frente à auto-estrada. Alheio, com uma expressão apagada da vergonha de outros dias,
olha de soslaio, como uma figura hébria e injustificável que nunca se aliena completamente, e
tampouco se sustenta. Entre alguns homens que conversam à volta, o resquício fragmentado
em ícones mais breves, a bota, a bombacha, ou simplesmente o ‘tchê’ soltado ao acaso como
cumprimento ou saudação, remetem a valores plurais. Para além de simples hábitos, a
identificação retiscente do testemunho de homens que de alguma foram mais, quando os
rostos eram mais habituados a singrarem um vento com cheiro de erva, e os rios molhavam as
mãos de qualquer um, com seus nomes índios. Na época das carroças viajava-se acompanhado
por grilos, espiado por corujas, e anunciado por quero-queros. Tempo ainda recorrentemente
invocado na imagem dos cavalos, que, à frente das carroças, dos caminhos e dos sonhos,
faziam os homens senti-los como irmãos de inspirações.
Sempre ao norte, pedalando lomba acima, já na altura das “missões”, cidades
herdeiras das coloniais Missões Jesuíticas, ouço o despreso e desaprovação de alguns
companheiros, pelo fato de as cidades terem hoje uma população fazendeira e comerciante
majoritariamente italiana e alemã, dona de propriedades que rodeiam o parque arqueológico
da catedral de São Miguel, onde se guarda cercado de grades uma desgastada porém não
menos majestosa catedral guaranítica, famosa entre cartões postais, ainda que obra central de
uma vila inteira, cujas evidências se desgastam enterrada ou desperdiçadas pelo tempo e o
(des)interesse imobiliário.
Continuo pensando que o regionalismo é o único resquício cultural de uma verdade
que está se perdendo no tempo, como uma saudades muda e mal pronunciada. O rancor de
um paisano mal compreendido, a vontade de teimar até perder o próprio sentido, ou ainda o
ímpeto de esquecer tudo e escapar, de assumir um cotidiano de fugas distraidamente
desesperadas, em shoppings sufocantes e boates intransitáveis, no itinerário de pedreiros,
motoristas e prostitutas emigrados à capital, são caminhos óbvios de se imaginar entre os
desertos de soja, de uma economia cada vez mais mecanicizada, e com fortes sinais de
estagnação. Neste momento sou obrigado a reconhecer a impossibilidade de ter sentido
nuances tão simples da região da fronteira durante todos esses anos, morando na capital e
lendo a vasta bibliografia que se pode ter ao alcance das mãos. Tento lembrar quase sem
forças o número de vezes que tive a certeza de que nossa pobreza cultural é uma pobreza
natural, vegetal, mineral, e preferi esquecer, julgando se tratar de uma realidade insondável ao
meu pensamento já limitado de sentidos, cercado de paredes e ruídos, e sem condições de me
deslocar. Que fácil é desaperceber de tudo o que já não acontece em meio aos motores, as
serras elétricas, o ar impregnado, a liberdade paga.
Levantado acampamento, dois dias antes do fim do meu percurso em companhia dos
meus amigos, eu já estava familiarizado com o silêncio, impregnado com o ar puro, de forma
que, quando chegou o momento de ir embora, tive a senção de mais me desculpar do que
honrar pelos compromissos que me esperavam em Porto Alegre. Eu havia me programado
para acompanhá-los por poucos tempo, mas decididamente já não queria ir, e parecia uma
ofensa fazê-lo. Resignado, dou adeus a meus mestres ciclistas, observando se afastarem,
reparando uma última vez na admiração e curiosidade que despertam nas vizinhanças, já que
o simples fato de andarem lentamente, a céu aberto, os tornava dignos de uma familiaridade
universal, tão ou mais forte que grande parte dos próprios moradores. Íam-se em direção a
Derrubadas, município suficientemente jovem a ponto de conservar seu nome de orígem,
sugestivo, onde o último pedaço de mata nativa da região se conserva em uma humilde
reserva, por conta do salto de Yucumã, no rio Uruguay. Depois, para além, apenas a fronteira
com a província de Misiones na Argentina, onde a vegetação ainda é preservada na maior
parte do território, e não por acaso o folclore ainda se renova, evolui, e concebe novos
paradigmas, embora sobre isso muito pouco se saiba.
Em Derrubadas estão os últimos fazendeiros, todos voltados para o centro do estado,
de costas ao campo, de frente para o Brasil. E seria este um exemplo da rasão principal da
resistência e da contradição do nosso folclore, contrafeito, entrincheirado, em comparação
aos países vizinhos. Algo no tempo fez os antigos cantadores se sentirem contra a parede,
cercados, buscando uma forma de lutar por raízes cada vez mais difíceis de se evocar. Afinal
podemos esquecer as esporas, podemos rir da milonga, mas, jamais poderiam certos homens
antigos esquecerem do tempo em que a mata ainda era grande parte das histórias, as furnas
testemunhas de confabulações, e os pássaros companheiros celebradores do que já não se
sabe ver tão facilmente, e em cuja memória se guarda a impressão de nunca ter sentido os
próprios traços tão nitidamente. Não poderia alguém esquecer do quanto pode sentir mais
intensamente a vida na proximidade da mesma. Vão-se as canções, aguardam as certezas.
À noite, na rodoviária da cidade mais próxima, entrar em um ônibus de vidros negros
era como entrar em um monstro frio, emudecido ao ponto de ser capaz de apenas soltar um
berro indefinido. Voltava enfim impregnado das antigas figuras galdérias, além de outras novas
e habilidosamente inventivas, ainda capazes de ver algo mais nessa terra. No caminho para
casa eu seria mais um a carregar a mesma ausência surda, a mesma nobreza deslocada
daquele senhor à beira do rio. Ainda me surpreenderia ver pela janela do ônibus um último
horizonte aberto entre capões solitários, uma última casa de joão de barro em um poste, e um
insólito cavalo puchando uma charrete entre caminhões, imensamente abatido, em plena
rodovia. Na entrada de Porto Alegre, Paixão Cortes, instituidor do nativismo como movimento
entre os meios culturais da cidade grande, ficou de estátua a contemplar um viaduto,
paralisado em seu afã de se fazer entender entre metáforas de mates e boleadeiras, como um
monumento que a cidade em grande parte ignora, ri, ou sente como referência difusa de uma
doçura sutil, diluída em sensações de verde e ar puro, em memórias cada vez mais distantes.
Eu olharia do ônibus, sestroso, inconsolável, como quem perscruta o caminho de uma elite
que dominou o campo, eliminou os galpões, as conversas à fogueira, e governou o país,
renovando a certeza de que a modernidade não apenas nos leva adiante, mas engole valores
universais, mais voraz que nossa própria memória.
Todo telurismo evoca razões na natureza, e essa memória na região do pampa ainda
serve para reafirmá-las em um cenário contemporâneo. Mas definitivamente, a descrição
desse cenário hoje só pode dever ao saudosismo. Segundo uma pesquisa feita pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dos 40% restantes do bioma pampa original no
estado, apenas 1% está contido em reservas. Cada vez mais, já não se trata de apenas amar e
preservar a terra, criar ícones, assim como já não nos cabe apenas resgatar a poesia de uma
plenitude imersa em localismos. Trata-se antes de reabrir espaços, liberar campos inteiros, e
recomeçar. Um novo telurismo só pode existir como uma onda reflorestadora, com a
consciência de que de fato foi historicamente amordaçado, mas que não por isso precisa se
resignar, se culpar ou se defender, mas antes encontrar uma postura renovada que se dedique
a buscar novas afirmações dos mesmos valores, em um horizonte que tende a se estreitar. É
preciso um novo enfoque, uma nova passagem, pois, aqui, o pampa está pra acabar.
Gracias Nandico, Guiga, Sancho, Mococa, Patalin, Aranha e todos com quem cruzamos...
João Zabaleta

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O Fim do Pampa e o Nativismo no RS

  • 1. O Nativismo e o Fim do Pampa no Rio Grande do Sul Relato fictício sobre passagens reais. Chego em São Borja em um sábado de Janeiro. É bem cedo, há poucas pessoas nas ruas e os estabelecimentos estão todos fechados. A avenida em frente à rodoviária é de quatro vias, com um extenso canteiro central, onde vejo passarem duas bicicletas e um senhor de chinelos e chapéu, levando uma sacola de pão, sobre a fachada de uma casa de muros baixos onde uma senhora varre o piso do pátio. Depois ficam o som de um ou dois galos, passarinhos, e eventualmente um ronco distante de motor. Ainda ambientado com a atmosfera do centro de Porto Alegre, fazia força pra conferir alguns contatos, pois viajara com o celular descarregao e não tinha podido avisar meu horário de chegada. Peço licença ao dono do armazém ao lado dos boxes pra deixar o aparelho conectado por meia hora, e saio de bicicleta pra dar uma olhada nas ruas. Pra dentro do bairro as ruas são de terra vermelha, as casas quase todas de madeira, sem calçadas pavimentadas, desmontadas, cobertas de capim, pedaços de velhas carcaças de carros e de maquinários do campo, pilhas de lixo, e alguns cães e galinhas soltas. De volta à estação faço algumas chamadas pra pegar a orientação do lugar aonde encontraria meus companheiros, e pego o fluxo da avenida principal, pra descobrir para onde a cidade cresce. Já na segunda esquina, em uma roda de meninos alguém reclama as glórias de uma certa canção nativista, pra descrédito dos outros. Um deles segurava um celular sintonizado em uma rádio local, centrando a conversa na fala de jeito amaneirado do locutor. Mesmo assim dois deles se entreolharam e riram, enquanto um terceiro cuspia no chão. Tive tempo de lembrar aquelas conversas comuns de se ver ainda na região da grande Porto Alegre, entre conhecidos de Sapucaia, Esteio ou Gravataí, embora com outra diversidade ao redor. Pessoas dialogando com o imaginário folclórico, discutindo naturalmente na rua, no colégio ou no trabalho, e, assim como eu, encontrando um certo desconforto tanto em assimilá-lo quanto em negá-lo. E eu já imaginava que na região da fronteira com o Uruguay e Argentina encontraria o mesmo debate intensificado, entre um número menor de identidades possíveis, embora em um espectro mais profundo de desdobramentos. Sigo pedalando, pensando no que me parecer ser um gesto típico de uma identidade regional de larga memória e que, já quase costumeiramente, a todo momento se contesta e se reivindica. Passando pelo centro da cidade, na praça central, lembro do comentário de um amigo sobre a “praça dos bugius”, pois na copa daqueles altos plátanos e cibipirunas haveria uma familia deles. O nome da praça é 15 de Novembro, relacionado à proclamação da república, e é pontuada com uma estátua do presidente da revolução de 1930, de raízes locais, Getúlio Vargas. São Borja é a “cidade dos presidentes”, dizem comumente as pessoas. Além de Getúlio, ali também nasceu João Goulart, e uma série se outras grandes figuras da história local, em grande parte e injustamente menos conhecidas. Obviamente colocar os bugius no nome da praça seria uma forma de burlar o projeto estatal e reaver a posse da terra a seus donos ancestrais. É parte do sentimento de que algo se perdeu na região que já foi núcleo do regionalismo gaúcho, bilingue e sem fronteiras, e, posteriormente, da idealização da fronteira máxima do estado atual, seja na época do império, seja entre os presidentes. De peito estufado, Getúlio hostenta uma vaga idéia identitária, ligada a nacionalismos
  • 2. e ufanismos antigos, frequentemente celebrado em meio a um sem fim de dúvidas e reticências. O que é ser brasileiro e gaúcho? Me pergunto como sempre. Chego à casa que me foi dada de referência, e sou instruido com a maior boa vontade, com uma postura e entonação que desmonstram um senso de amizade e dever construído em amplo referencial gauchesco. Expressões de origem castelhana, honradez com ecos do tempo dos patriotas revolucionários, valores afirmados e lembrados tanto por apreço quanto por resistência. Eu sabia que essas e outras questões me apareceriam, estando em posição suscetível a reverberar questões fortemente consideradas na região. Em outro canto da cidade, já integrado com a rapazeada, encontro o tempo dos galpões e das charretes fechado por tempo indeterminado, guardado em um museu que, não fosse pelo esforço de um literato local, não existiria. Ouvindo as explicações dos meu companheiros e guias, entre galderismos espontâneos e burlescos, chegam-me em mãos os versos do poeta Aparício Rillo, referência resistente em meio vozes cada vez mais antigas. Lendo-o narrar figuras esquecidas, gaúchos páreas, andarilhos, cantores da natureza, lembro do dia em que vi a estátua de Jayme Caetano Braun, imensamente maior que a de Getúlio, na entrada da cidade cercana de São Luís Gonzaga. Não por acaso, pensei, estes homens carregariam não sei que verdade, que tarda a morrer, e encontram ouvidos em discursos que sempre tentam divisar alicerses, com a impressão de nunca encontrá-lo efetivamente. É de raíz gaúcha a espora, o cavalo, o chimarrão, simplesmente? Uma pergunta antiga. Isso seria uma caricatura, diriam os ex-nativistas e todas as pessoas que conservam um espírito regionalista depurado. Então o que há de específico e original a ser conservado, além dos hábitos simbólicos e das metáforas poéticas? Eu era parte desse questionamento. O tempo nas proximidades da fronteira é outro em relação à capital. As referencias culturais cruzam por distâncias maiores no horizonte, nem tão permeadas pela variedade cosmopolita, o que as tornam menos desgatadas e mais vivas, recorrentes, ainda atuais. Eu que nunca havia estado ali, aos poucos passo a admirar o esforço constante de aproximação e resgate, pelo convívio, dos meus companheiros. Imagens fragmentas de uma honra e liberdade esquecidas se filtram e se sintetizam em um tal gaúcho esquecido, hoje em dia provavelmente apreensivo, ou mesmo inseguro, magoado. E, a passeio, no instante em que vamos chegando à beira do rio Uruguay, uma outra imagem se impõe a mim como definitiva, como se passasse justamente pra dizer o que faltava: Um velho, elegante, de lenço, camisa, botas e chapéu, arrasta o corpo de cabeça gaicha, de olhar apático, por margens tomadas de lixo. É alguém que conserva uma certa nobreza que já não pode advogar, uma nostalgia muda que cala um tempo que já não sabe se persiste ou simplesmente resta em meio aos entulhos do chão. Com certeza é a aparição mais próxima possível dos versos das canções de outrora, celebrando o fulgor das cheias e o encontro de diferetes ritmos e idiomas, e no entanto uma figura hoje igualmente inconciliável. Na sequencia, depois de alguns passeios, tomamos a estrada com nossas bicicletas. Pedalamos à noite, nos afastando da cidade, e pouco a pouco adentrando regiões menos habitadas, acostmando-se apenas pelo ruído distante das casas à beira da estrada, de animais, e os carros cada vez menos frequentes. Eu ainda penso. Certos conhecidos de Porto Alegre facilmente encontrariam ocasião pra anunciar que o tempo da bombacha acabou, que o tradicionalismo nasceu das especulações teóricas de migrantes, nos setores acadêmico da capital, e só pôde representar a elite que a cunhou. E ante esses comentários eu, em silêncio, pensaria que algo maior sempre acaba por nos escapar. Quando criança, investigando o rádio em pleno centro da capital do estado, praticamente ignorante de tradicionalismos, me comoviam o timbre de vozes testemunhas de um outro ar, os versos impregnados de um outro céu, e os violões lentos e expansivos, generosos, indissociáveis da imagem de um horizonte
  • 3. aberto. Certamente é difícil tentar definir o que é ser dessa terra, vasculhando uma história de atravessamentos culturais initerruptos, percebendo aos poucos que toda identidade construída tende a se diversificar em outras. Mas é sobretudo fácil sentir-se aparentado de algo maior quando se ouve sobre o tempo em que ainda se vivia à beira da mata, quando ainda se convivia com o semblante índio, carregando em si mesmo, como expressão viva, em cores e traços, do que é comungar a ascendência de uma mesma terra. Uma pergunta, simples e óbvia, que costumava me fazer nos parques de Porto Alegre, neste instante se sobrepunha à imagem do céu aberto. Como pode ser possível se imaginar em sociedade sem incluir os animais, as plantas, o ciclo das estações, o fluxo dos elementos? E é precisamente aí, pensei, no âmbito indefinível, nos termos que se perderam ou não tiveram tempo de serem cunhados, que, na nostalgia de tantas pessoas, conserva-se a memória tátil, indizível, de dias frescos, passos silenciados na acústica do campo, e toda referência que se pode ter de um homem aproximado da natureza. Justamente nesse local e nessas circunstâncias, o homem que convive com uma natureza singular, de cores, sons e contornos únicos, auto-referenciada em um número sem fim de relações entre seus seres habitantes, sob o contrastes de movimentos políticos e econômicos de lugares distantes, descobre sua cultura como o desdobramento de um potencial natural regional, e se torna capaz, de forma similar aos índios, considerar uma própria identidade telúrica. No decorrer do tempo, intuitivamente, mesmo o colonizador, mesmo o imigrante, mesmo o negro encontraram aqui tal harmonia de crepúsculos, de chilreios, que quiseram fazer parte da fundação de um telurismo que levantou sementes índias e abraçou todas as áreas da cultura, sob o argumento da comunhão e gratidão à terra. Foi preciso um espaço pra que isso acontecesse. Foi preciso uma natureza em evidência, mais livre, mais palpável. É verdade que o nativismo ergueu bandeiras e cercas divisórias, à moda colonial. Os centros tradicionalistas, fundações além fronteira da poesia do pampa, aqui se fragilizaram e se dissociaram de seus “hermanos”. A um só tempo ansiosos por uma identidade nacional e rancorosos por se sentirem incompreendidos em um Brasil deconhecido, inventaram pequenos tabús, enrijeceram linguagens, proibiram “castelhanismos” em seus festivais. E posteriormente só lhes restou engolir à seco o tempo em que os “gringos” italianos e alemães ainda não haviam ocupado toda a terra com soja e arroz, deixando quantidades antes inimagináveis de concreto e fumaça a embotar os sentidos. Todas essas coisas ficavam mais visíveis do que nunca enquanto pedalávamos na lentidão das estradas, observando apenas o vento, o cheiro do campo e alguns vagalumes na noite. E se afirmariam ainda mais nos dias seguintes. Percebia as cercas novas, que já não são poucas e baixas, o mato que não abraça mais as antigas casas de pedra, e a lida do dia que já não conhece os tais horizontes quase infinitos e transitáveis, a não ser por lavouras, entre uma ou outra máquina colheitadeira. No dia seguinte, levantado o acampamento em uma clareira à beira da estrada, calibramos os pneus em um posto de gasolina ao lado de uma cooperativa. Vendo alguns caminhoneiros esperando as pesagens de seus caminhões, pergunto-lhes o que levavam de carga. Arroz, arroz, soja e arroz. Há muito soja nas outras regiões, mas por ali a maioria das lavouras é de arroz. O resto dos campos sabe-se que é ocupado pela indústria da celulose, basicamente feitas do plantio de eucalipto e da acácia negra, e da agropecuária. Há alguns metros do posto, ao lado de um trevo, a cidade começa a crescer, e, no balcão de um bolicho antigo, vejo uma segunda imagem que me marcaria. Um galdério deita o rosto atrás de uma garrafa de canha, com a rosto tão desfigurado quanto a fachada do lugar, em frente à auto-estrada. Alheio, com uma expressão apagada da vergonha de outros dias, olha de soslaio, como uma figura hébria e injustificável que nunca se aliena completamente, e tampouco se sustenta. Entre alguns homens que conversam à volta, o resquício fragmentado em ícones mais breves, a bota, a bombacha, ou simplesmente o ‘tchê’ soltado ao acaso como
  • 4. cumprimento ou saudação, remetem a valores plurais. Para além de simples hábitos, a identificação retiscente do testemunho de homens que de alguma foram mais, quando os rostos eram mais habituados a singrarem um vento com cheiro de erva, e os rios molhavam as mãos de qualquer um, com seus nomes índios. Na época das carroças viajava-se acompanhado por grilos, espiado por corujas, e anunciado por quero-queros. Tempo ainda recorrentemente invocado na imagem dos cavalos, que, à frente das carroças, dos caminhos e dos sonhos, faziam os homens senti-los como irmãos de inspirações. Sempre ao norte, pedalando lomba acima, já na altura das “missões”, cidades herdeiras das coloniais Missões Jesuíticas, ouço o despreso e desaprovação de alguns companheiros, pelo fato de as cidades terem hoje uma população fazendeira e comerciante majoritariamente italiana e alemã, dona de propriedades que rodeiam o parque arqueológico da catedral de São Miguel, onde se guarda cercado de grades uma desgastada porém não menos majestosa catedral guaranítica, famosa entre cartões postais, ainda que obra central de uma vila inteira, cujas evidências se desgastam enterrada ou desperdiçadas pelo tempo e o (des)interesse imobiliário. Continuo pensando que o regionalismo é o único resquício cultural de uma verdade que está se perdendo no tempo, como uma saudades muda e mal pronunciada. O rancor de um paisano mal compreendido, a vontade de teimar até perder o próprio sentido, ou ainda o ímpeto de esquecer tudo e escapar, de assumir um cotidiano de fugas distraidamente desesperadas, em shoppings sufocantes e boates intransitáveis, no itinerário de pedreiros, motoristas e prostitutas emigrados à capital, são caminhos óbvios de se imaginar entre os desertos de soja, de uma economia cada vez mais mecanicizada, e com fortes sinais de estagnação. Neste momento sou obrigado a reconhecer a impossibilidade de ter sentido nuances tão simples da região da fronteira durante todos esses anos, morando na capital e lendo a vasta bibliografia que se pode ter ao alcance das mãos. Tento lembrar quase sem forças o número de vezes que tive a certeza de que nossa pobreza cultural é uma pobreza natural, vegetal, mineral, e preferi esquecer, julgando se tratar de uma realidade insondável ao meu pensamento já limitado de sentidos, cercado de paredes e ruídos, e sem condições de me deslocar. Que fácil é desaperceber de tudo o que já não acontece em meio aos motores, as serras elétricas, o ar impregnado, a liberdade paga. Levantado acampamento, dois dias antes do fim do meu percurso em companhia dos meus amigos, eu já estava familiarizado com o silêncio, impregnado com o ar puro, de forma que, quando chegou o momento de ir embora, tive a senção de mais me desculpar do que honrar pelos compromissos que me esperavam em Porto Alegre. Eu havia me programado para acompanhá-los por poucos tempo, mas decididamente já não queria ir, e parecia uma ofensa fazê-lo. Resignado, dou adeus a meus mestres ciclistas, observando se afastarem, reparando uma última vez na admiração e curiosidade que despertam nas vizinhanças, já que o simples fato de andarem lentamente, a céu aberto, os tornava dignos de uma familiaridade universal, tão ou mais forte que grande parte dos próprios moradores. Íam-se em direção a Derrubadas, município suficientemente jovem a ponto de conservar seu nome de orígem, sugestivo, onde o último pedaço de mata nativa da região se conserva em uma humilde reserva, por conta do salto de Yucumã, no rio Uruguay. Depois, para além, apenas a fronteira com a província de Misiones na Argentina, onde a vegetação ainda é preservada na maior parte do território, e não por acaso o folclore ainda se renova, evolui, e concebe novos paradigmas, embora sobre isso muito pouco se saiba. Em Derrubadas estão os últimos fazendeiros, todos voltados para o centro do estado, de costas ao campo, de frente para o Brasil. E seria este um exemplo da rasão principal da resistência e da contradição do nosso folclore, contrafeito, entrincheirado, em comparação
  • 5. aos países vizinhos. Algo no tempo fez os antigos cantadores se sentirem contra a parede, cercados, buscando uma forma de lutar por raízes cada vez mais difíceis de se evocar. Afinal podemos esquecer as esporas, podemos rir da milonga, mas, jamais poderiam certos homens antigos esquecerem do tempo em que a mata ainda era grande parte das histórias, as furnas testemunhas de confabulações, e os pássaros companheiros celebradores do que já não se sabe ver tão facilmente, e em cuja memória se guarda a impressão de nunca ter sentido os próprios traços tão nitidamente. Não poderia alguém esquecer do quanto pode sentir mais intensamente a vida na proximidade da mesma. Vão-se as canções, aguardam as certezas. À noite, na rodoviária da cidade mais próxima, entrar em um ônibus de vidros negros era como entrar em um monstro frio, emudecido ao ponto de ser capaz de apenas soltar um berro indefinido. Voltava enfim impregnado das antigas figuras galdérias, além de outras novas e habilidosamente inventivas, ainda capazes de ver algo mais nessa terra. No caminho para casa eu seria mais um a carregar a mesma ausência surda, a mesma nobreza deslocada daquele senhor à beira do rio. Ainda me surpreenderia ver pela janela do ônibus um último horizonte aberto entre capões solitários, uma última casa de joão de barro em um poste, e um insólito cavalo puchando uma charrete entre caminhões, imensamente abatido, em plena rodovia. Na entrada de Porto Alegre, Paixão Cortes, instituidor do nativismo como movimento entre os meios culturais da cidade grande, ficou de estátua a contemplar um viaduto, paralisado em seu afã de se fazer entender entre metáforas de mates e boleadeiras, como um monumento que a cidade em grande parte ignora, ri, ou sente como referência difusa de uma doçura sutil, diluída em sensações de verde e ar puro, em memórias cada vez mais distantes. Eu olharia do ônibus, sestroso, inconsolável, como quem perscruta o caminho de uma elite que dominou o campo, eliminou os galpões, as conversas à fogueira, e governou o país, renovando a certeza de que a modernidade não apenas nos leva adiante, mas engole valores universais, mais voraz que nossa própria memória. Todo telurismo evoca razões na natureza, e essa memória na região do pampa ainda serve para reafirmá-las em um cenário contemporâneo. Mas definitivamente, a descrição desse cenário hoje só pode dever ao saudosismo. Segundo uma pesquisa feita pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dos 40% restantes do bioma pampa original no estado, apenas 1% está contido em reservas. Cada vez mais, já não se trata de apenas amar e preservar a terra, criar ícones, assim como já não nos cabe apenas resgatar a poesia de uma plenitude imersa em localismos. Trata-se antes de reabrir espaços, liberar campos inteiros, e recomeçar. Um novo telurismo só pode existir como uma onda reflorestadora, com a consciência de que de fato foi historicamente amordaçado, mas que não por isso precisa se resignar, se culpar ou se defender, mas antes encontrar uma postura renovada que se dedique a buscar novas afirmações dos mesmos valores, em um horizonte que tende a se estreitar. É preciso um novo enfoque, uma nova passagem, pois, aqui, o pampa está pra acabar. Gracias Nandico, Guiga, Sancho, Mococa, Patalin, Aranha e todos com quem cruzamos... João Zabaleta