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O Ético e o estético no curta-metragem 10 CENTAVOS
                                                 Jean Carlos Dourado de Alcântara1
                                                                    PPGEL-UFMT

        Este texto tem como proposta fazer uma análise do curta-metragem 10
Centavos, do diretor Cesar Fernando de Olveira, estabelecendo umarelação entre a
obra em tela e os aspectos éticos e estéticos presentes no ato criador, descritos por
Bakhtinem Questões de Literatura e de Estética: teoria do romance. Embora toda a
obra bakhtiniana seja voltada para a linguagem verbal, ela possui um potencial
teórico muito poderoso para compreendermos a linguagem imagética, inclusive a
utilizada pelo cinema. Essa capacidade de renovação das teorias, oferecendo novos
sentidos e aplicabilidades a cada nova leitura é mencionada por ele ao dizer que “as
grandes obras em seu processo de vida post mortem se enriquecem com novos
significados, novos sentidos; é como se estas obras superassem o que foram na
época de sua criação. (...) O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade.
Os tempos posteriores o libertam dessa prisão” (Bakhtin, 364, apud Medeiros). Além
disso, Rojo (2003) lembra-nos que o filósofo russo se aproxima bastante do conceito
mais amplo de texto – estendido às várias linguagens – que estásendo adotando
aqui: “se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de
signos, a ciência das artes (o cinema, portanto) opera com textos.” (p. 307).Com
isso, nos sentimos autorizados a utilizar as reflexões de Bakhtin nessa análise
fílmica, dando temporalidade dialógica à sua obra.
        Feitas tais considerações, vamos ao filme.Produzido em Salvador, em 2007,
ele retrata um dia na vida de um menino pobre, com idade em torno de 12 anos, que
vive no subúrbio de Salvador e passa o dia cuidando de carros no Centro Histórico
da cidade. Até a hora do almoço consegue juntar R$ 3,20, vai a um restaurante por
quilo e ao pesar o prato percebe que faltam 10 centavos para inteirar o total de R$
3,30; após alguma negociação, o caixa permite que ele acerte os 10 centavos mais
tarde. No final do dia, com apenas algumas moedas no bolso, volta ao restaurante,
compra 30 centavos de pão, paga os 10 centavos que estava devendo, separa o
valor da condução e leva o restante para sua mãe. Esse curta recebeu, entre outros,
o Prêmio UNICEF no Festival Internacional de Cine Documental e Curta-metragem
de Bilbao, em 2008.Dentro de uma perspectiva discursiva, esse prêmio já é fator de
produção de sentido à obra, porque permite ao leitor fazer algumas inferências, uma
vez que o signo ideológico UNICEF estabelece relações valorativas, pois está
associado à ideia de combate ao trabalho infantil.
        O filme começa com uma imagem desfocada da personagem principal, e na
medida em que vai se aproximando da câmera, o seu rosto entra em foco. Esse
recurso da linguagem cinematográfica é utilizado para desviar ou chamar a atenção
do telespectador para algum aspecto. Neste caso, o diretor enfatiza a invisibilidade
dessas crianças diante da sociedade e do poder público; por outro lado,concede

1
 Membro do Grupo de Pesquisa RELENDO BAKHTIN (REBAK), do Programa de Pós-graduação em Estudos de
Linguagem – MeEL, da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT.
visibilidade a esses rostos com o seu olhar, por meio de sua câmera. Outro fato que
merece destaque é que nenhuma personagem no filme é chamada pelo nome, eles
utilizam formas de tratamento como tio, tia, moleque, garoto, menino. Tal escolha
do autor cria um efeito de superficialidade nas relações, denunciando o
descompromisso, o desinteresse, principalmente pelas crianças que vivem em
condições de risco. O ato ético do autor de mostrar essa realidade por meio da arte
é perpassado por uma ideologia na perspectiva bakhtiniana, aquela que não domina,
mas liberta; que não escamoteia, mas denuncia, enfim uma voz dissonante da
ideologia oficial que adota o discurso da indiferença, na medida em que não
reconhece essa realidade.
         Segundo Bakhtin (1993), a obra de arte só é compreendida na sua relação
com o mundo, ao tempo em que o contemplador assume uma posição valorativa da
realidade. Assim, para o autor, a arte se vincula à vida, e, por conseguinte, ao ato
ético, fazendo do objeto estético uma totalidade que faça sentido. Desvincular o
processo criativo da realidade, segundo ele, é impossível. O autor do curta10
Centavos toma como parâmetro para sua criação estética a realidade concreta, isto
é, a estória de milhares de garotos que, diante da pobreza extrema, precisam
abandonar a escola para ajudar no sustento da família. E ao dar acabamento
estético ao ato enunciativo, o autor atua de forma responsiva sobre os interlocutores
da obra, graças ao tratamento artístico dado pela sua câmera ao real, que vai
resultar na materialidade do enunciado. Mas não é só o lado artístico do diretor que
sensibiliza, que dá sentido, nem tampouco só a estória em si, mas o imbricamento
dessas duas instâncias combinado com a posição axiológica do autor. Posição essa
que reflete sua concepção em relação à vida, ao mundo e à sociedade, isto é, seu
posicionamento ético diante de um fato e do mundo,o que faz do seu ato enunciativo
irrepetível, único.
         Para compreendermos melhor essa questão da irrepetibilidade, o “não álibi na
existência”, o que faz do estar no mundo uma missão, uma responsabilidade,sugiro
uma análise comparativa com o curta Picolé, Pintinho e Pipa, de Gustavo Melo,
produzido em 2006. O filme conta a estória de Pedrinho, moradorde uma favela
carioca, onde uma kombi, de tempos em tempos, cruza as ruas da comunidade
oferecendo os itens que dão nome à obra em troca de coisas velhas, como garrafas,
bacias e baldes. Ao passo que a criança do filme10 Centavos busca viver com
dignidade, fazendo questão de honrar seus compromissos, embora viva uma
situação de total desamparo familiar e social, Pedrinho passa o dia correndo com
amigos, pregando peças nos moradores, desrespeitando os adultos, realizando
pequenos furtos de garrafa e outros objetos para trocar com pipas, picolés e
pintinho.Nesse último, o diretor aborda o tema da pobreza cercado de humor,
brincadeiras e alegria. Apresenta os fatos de modo a criar um efeito de sentido que
ameniza os delitos de Pedrinho, filiando-se ao discurso que criança tem que ser
livre, que não deve ser responsabilizada por seus atos, tenta mostrar que os efeitos
da pobreza podem ser superados com a alegria descompromissada de ser criança,
reduzindo a carga negativa do tema pobreza.
Por outro lado, em 10 Centavos, o autor realça a seriedade do tema,
adotando o sentido mais realístico do assunto pobreza. Denuncia a miséria ainda
existente nopaís, mas que vem sendo apagada, ou escamoteada pela ideologia
dominante. As duas obrasmantêm uma relação dialógica,na medida em que
apresentam discursos que se contrapõem, produzindo sentidos diferenciados sobre
o mesmo fato social.Os dois filmes retratam a pobreza e seus efeitos na infância das
crianças, nas periferias das grandes cidades brasileiras, assim como em várias
outras produções artísticas. Mas o que há de novo nas obras mencionadas que as
torna singulares? Exatamente o olhar valorativo dos artistas, que vai ser direcionado
segundo sua maneira de ver o mundo, baseado em suas relações e interações que
os constituíram como sujeitos ao longo de sua existência, processo contínuo,
sempre inacabado, que só termina com a morte. Na outra ponta, os telespectadores,
interlocutores ativos, ao entrecruzarem essas duas visões de mundo, que não se
anulam, mas convivem, darão sua própria interpretação, adequando, refletindo e
refratando, respondendo aos discursos com os quais entram em contato, passando
a fazer parte dessa relação que forma uma “teia infinita de enunciados”.
        Num próximo trabalho, pretendo explorar mais a questão dos recursos da
linguagem cinematográfica, como enquadramento, trilha sonora, fotografia e luz,
utilizados pelos autores para dar contorno e “materialidade” visual aos seus
discursos. Pretendo também demonstrar como o conceito de exotopia / excedente
de visão (o “meu ver em relação ao ver do outro fora de mim se dá a partir do eu
para os outros”), possui espaço privilegiado na linguagem cinematográfica para se
realizar, na medida em que o jogo de câmeras provoca essa desterritorialização
proposta por Bakhtin, marcando a visão do autor em relação às personagens, dele
em relação ao telespectador, dos personagens em relação aos outros personagens,
e quando a câmera se coloca no lugar do próprio telespectador,trabalhando a favor
da produção de significação sempre num processo de interação.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M.M.. [1975]. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São
Paulo: UNESP/Hucitec, 1996.
MEDEIROS, Sérgio A. Leal “Ato estético e devir ético em Bakhtin: Filosofia e Cinema”
Disponível em  http://conversasbakhtinianas.blogspot.com.br/2009/10. Acesso em
03/09/2012.
PICOLÉ Pintinho e Pipa. Produção de Gustavo Melo, 2006. Disponível em
http://portacurtas.org.br/filme/?name=picole_pintinho_e_pipa. Acesso em 01/09/2012.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009
SOBRAL, Adail “Ético e Estético na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas”.
BRAIT, Beth, (Org.) Bakhtin Conceitos-chave. São Paulo: Cotexto, 2007
10 CENTAVOS. Produção de Fernando Oliveira, 2007. Disponível                      em
http://portacurtas.org.br/busca/?termo=10%20centavos. Acesso em 01/09/2012.

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Análise do curta 10 Centavos sob a ótica ética e estética bakhtiniana

  • 1. O Ético e o estético no curta-metragem 10 CENTAVOS Jean Carlos Dourado de Alcântara1 PPGEL-UFMT Este texto tem como proposta fazer uma análise do curta-metragem 10 Centavos, do diretor Cesar Fernando de Olveira, estabelecendo umarelação entre a obra em tela e os aspectos éticos e estéticos presentes no ato criador, descritos por Bakhtinem Questões de Literatura e de Estética: teoria do romance. Embora toda a obra bakhtiniana seja voltada para a linguagem verbal, ela possui um potencial teórico muito poderoso para compreendermos a linguagem imagética, inclusive a utilizada pelo cinema. Essa capacidade de renovação das teorias, oferecendo novos sentidos e aplicabilidades a cada nova leitura é mencionada por ele ao dizer que “as grandes obras em seu processo de vida post mortem se enriquecem com novos significados, novos sentidos; é como se estas obras superassem o que foram na época de sua criação. (...) O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão” (Bakhtin, 364, apud Medeiros). Além disso, Rojo (2003) lembra-nos que o filósofo russo se aproxima bastante do conceito mais amplo de texto – estendido às várias linguagens – que estásendo adotando aqui: “se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos, a ciência das artes (o cinema, portanto) opera com textos.” (p. 307).Com isso, nos sentimos autorizados a utilizar as reflexões de Bakhtin nessa análise fílmica, dando temporalidade dialógica à sua obra. Feitas tais considerações, vamos ao filme.Produzido em Salvador, em 2007, ele retrata um dia na vida de um menino pobre, com idade em torno de 12 anos, que vive no subúrbio de Salvador e passa o dia cuidando de carros no Centro Histórico da cidade. Até a hora do almoço consegue juntar R$ 3,20, vai a um restaurante por quilo e ao pesar o prato percebe que faltam 10 centavos para inteirar o total de R$ 3,30; após alguma negociação, o caixa permite que ele acerte os 10 centavos mais tarde. No final do dia, com apenas algumas moedas no bolso, volta ao restaurante, compra 30 centavos de pão, paga os 10 centavos que estava devendo, separa o valor da condução e leva o restante para sua mãe. Esse curta recebeu, entre outros, o Prêmio UNICEF no Festival Internacional de Cine Documental e Curta-metragem de Bilbao, em 2008.Dentro de uma perspectiva discursiva, esse prêmio já é fator de produção de sentido à obra, porque permite ao leitor fazer algumas inferências, uma vez que o signo ideológico UNICEF estabelece relações valorativas, pois está associado à ideia de combate ao trabalho infantil. O filme começa com uma imagem desfocada da personagem principal, e na medida em que vai se aproximando da câmera, o seu rosto entra em foco. Esse recurso da linguagem cinematográfica é utilizado para desviar ou chamar a atenção do telespectador para algum aspecto. Neste caso, o diretor enfatiza a invisibilidade dessas crianças diante da sociedade e do poder público; por outro lado,concede 1 Membro do Grupo de Pesquisa RELENDO BAKHTIN (REBAK), do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem – MeEL, da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT.
  • 2. visibilidade a esses rostos com o seu olhar, por meio de sua câmera. Outro fato que merece destaque é que nenhuma personagem no filme é chamada pelo nome, eles utilizam formas de tratamento como tio, tia, moleque, garoto, menino. Tal escolha do autor cria um efeito de superficialidade nas relações, denunciando o descompromisso, o desinteresse, principalmente pelas crianças que vivem em condições de risco. O ato ético do autor de mostrar essa realidade por meio da arte é perpassado por uma ideologia na perspectiva bakhtiniana, aquela que não domina, mas liberta; que não escamoteia, mas denuncia, enfim uma voz dissonante da ideologia oficial que adota o discurso da indiferença, na medida em que não reconhece essa realidade. Segundo Bakhtin (1993), a obra de arte só é compreendida na sua relação com o mundo, ao tempo em que o contemplador assume uma posição valorativa da realidade. Assim, para o autor, a arte se vincula à vida, e, por conseguinte, ao ato ético, fazendo do objeto estético uma totalidade que faça sentido. Desvincular o processo criativo da realidade, segundo ele, é impossível. O autor do curta10 Centavos toma como parâmetro para sua criação estética a realidade concreta, isto é, a estória de milhares de garotos que, diante da pobreza extrema, precisam abandonar a escola para ajudar no sustento da família. E ao dar acabamento estético ao ato enunciativo, o autor atua de forma responsiva sobre os interlocutores da obra, graças ao tratamento artístico dado pela sua câmera ao real, que vai resultar na materialidade do enunciado. Mas não é só o lado artístico do diretor que sensibiliza, que dá sentido, nem tampouco só a estória em si, mas o imbricamento dessas duas instâncias combinado com a posição axiológica do autor. Posição essa que reflete sua concepção em relação à vida, ao mundo e à sociedade, isto é, seu posicionamento ético diante de um fato e do mundo,o que faz do seu ato enunciativo irrepetível, único. Para compreendermos melhor essa questão da irrepetibilidade, o “não álibi na existência”, o que faz do estar no mundo uma missão, uma responsabilidade,sugiro uma análise comparativa com o curta Picolé, Pintinho e Pipa, de Gustavo Melo, produzido em 2006. O filme conta a estória de Pedrinho, moradorde uma favela carioca, onde uma kombi, de tempos em tempos, cruza as ruas da comunidade oferecendo os itens que dão nome à obra em troca de coisas velhas, como garrafas, bacias e baldes. Ao passo que a criança do filme10 Centavos busca viver com dignidade, fazendo questão de honrar seus compromissos, embora viva uma situação de total desamparo familiar e social, Pedrinho passa o dia correndo com amigos, pregando peças nos moradores, desrespeitando os adultos, realizando pequenos furtos de garrafa e outros objetos para trocar com pipas, picolés e pintinho.Nesse último, o diretor aborda o tema da pobreza cercado de humor, brincadeiras e alegria. Apresenta os fatos de modo a criar um efeito de sentido que ameniza os delitos de Pedrinho, filiando-se ao discurso que criança tem que ser livre, que não deve ser responsabilizada por seus atos, tenta mostrar que os efeitos da pobreza podem ser superados com a alegria descompromissada de ser criança, reduzindo a carga negativa do tema pobreza.
  • 3. Por outro lado, em 10 Centavos, o autor realça a seriedade do tema, adotando o sentido mais realístico do assunto pobreza. Denuncia a miséria ainda existente nopaís, mas que vem sendo apagada, ou escamoteada pela ideologia dominante. As duas obrasmantêm uma relação dialógica,na medida em que apresentam discursos que se contrapõem, produzindo sentidos diferenciados sobre o mesmo fato social.Os dois filmes retratam a pobreza e seus efeitos na infância das crianças, nas periferias das grandes cidades brasileiras, assim como em várias outras produções artísticas. Mas o que há de novo nas obras mencionadas que as torna singulares? Exatamente o olhar valorativo dos artistas, que vai ser direcionado segundo sua maneira de ver o mundo, baseado em suas relações e interações que os constituíram como sujeitos ao longo de sua existência, processo contínuo, sempre inacabado, que só termina com a morte. Na outra ponta, os telespectadores, interlocutores ativos, ao entrecruzarem essas duas visões de mundo, que não se anulam, mas convivem, darão sua própria interpretação, adequando, refletindo e refratando, respondendo aos discursos com os quais entram em contato, passando a fazer parte dessa relação que forma uma “teia infinita de enunciados”. Num próximo trabalho, pretendo explorar mais a questão dos recursos da linguagem cinematográfica, como enquadramento, trilha sonora, fotografia e luz, utilizados pelos autores para dar contorno e “materialidade” visual aos seus discursos. Pretendo também demonstrar como o conceito de exotopia / excedente de visão (o “meu ver em relação ao ver do outro fora de mim se dá a partir do eu para os outros”), possui espaço privilegiado na linguagem cinematográfica para se realizar, na medida em que o jogo de câmeras provoca essa desterritorialização proposta por Bakhtin, marcando a visão do autor em relação às personagens, dele em relação ao telespectador, dos personagens em relação aos outros personagens, e quando a câmera se coloca no lugar do próprio telespectador,trabalhando a favor da produção de significação sempre num processo de interação. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M.M.. [1975]. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP/Hucitec, 1996. MEDEIROS, Sérgio A. Leal “Ato estético e devir ético em Bakhtin: Filosofia e Cinema” Disponível em http://conversasbakhtinianas.blogspot.com.br/2009/10. Acesso em 03/09/2012. PICOLÉ Pintinho e Pipa. Produção de Gustavo Melo, 2006. Disponível em http://portacurtas.org.br/filme/?name=picole_pintinho_e_pipa. Acesso em 01/09/2012. ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009 SOBRAL, Adail “Ético e Estético na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas”. BRAIT, Beth, (Org.) Bakhtin Conceitos-chave. São Paulo: Cotexto, 2007 10 CENTAVOS. Produção de Fernando Oliveira, 2007. Disponível em http://portacurtas.org.br/busca/?termo=10%20centavos. Acesso em 01/09/2012.