Álvaro Nascimento é jornalista (UFF, 1979), Especialista em Nova Ordem Informativa Internacional (Universidade de Havana, Cuba, 1986) e em Informação em Saúde (Ensp/Fiocruz, 1992); Mestre (2003) e Doutor (2007) em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Uerj. Foi repórter e redator da Rádio JB, Tribuna da Imprensa, O Globo; e repórter, redator, editor e coordenador do Programa Reunião, Análise e Difusão de Informação sobre Saúde (Radis) da Fundação Oswaldo Cruz. Hoje é responsável pela página eletrônica do Centro Colaborador em Vigilância Sanitária (Cecovisa), da Ensp/Fiocruz.
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Entrevista Alvaro Nascimento
1. Propaganda &
Automedicação
Entrevista com Álvaro Nascimento
1. Há quanto tempo você se dedica ao tema propaganda de medicamentos?
Álvaro Nascimento – De forma mais organizada, isto é, com método e orientação acadêmicos, desde 2001,
quando entrei para o Mestrado no Instituto de Medicina Social da Uerj. Minha dissertação, defendida em
2003, analisava o modelo regulador da propaganda de medicamentos no Brasil - consubstanciado na
Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 102/2000 da Anvisa - e descrevia suas fragilidades. No Doutorado,
que fiz no mesmo IMS/Uerj a partir de 2004, aprofundei estes estudos. Minha Tese, defendida em
dezembro de 2007, faz uma análise teórico-conceitual do que é marketing, propaganda, medicamento,
regulação e manipulação; analisa dez exemplos de ação do marketing farmacêutico; discute modelos
reguladores de propaganda em vigor no mundo e propõe um modelo alternativo para o Brasil. Tanto a
dissertação como minha tese estão dispostas na Internet, na página eletrônica do Centro Colaborador em
Vigilância Sanitária (Cecovisa) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz:
www.ensp.fiocruz.br/visa.
2. De onde partiu seu interesse nesse campo?
Álvaro Nascimento – Minha graduação é em jornalismo, pela UFF. Trabalhei dez anos como jornalista antes
de vir para a Fiocruz, onde vim editar o Programa Radis (Reunião, Análise e Difusão de Informação sobre
Saúde), da Escola Nacional de Saúde Pública, a Ensp. A área de Vigilância Sanitária, e em particular a da
Assistência Farmacêutica, sempre me interessaram muito, por sua diversidade, pelos enormes interesses
envolvidos e por ser decisiva na prevenção, promoção e na qualidade da assistência à saúde. No âmbito da
Assistência Farmacêutica, sempre me chamou a atenção a forma como o medicamento foi passando a ser
tratado pela indústria, pelas empresas de mídia - incluindo os meios de comunicação e as agências de
publicidade – e pelo comércio varejista. Ele deixou de ser encarado como um elemento nobre no interior
de determinado processo terapêutico para ser transformado em uma mercadoria como qualquer outra. O
seu consumo passou a ser largamente estimulado, independente dos riscos que isso traz, que não são
poucos. Creio que meu interesse pelo campo da propaganda de medicamentos nasce da junção de minha
formação profissional na área da Comunicação com a bagagem que a saúde pública me trouxe quando
venho para a Fiocruz, em 1987.
3. A seu ver, qual a relevância do tema na atualidade e o seu impacto para a sociedade?
Álvaro Nascimento – O uso irracional, incorreto, abusivo e perigoso de medicamentos faz com que ele
seja, há mais de dez anos, o principal agente de intoxicação humana oficialmente registrado no Sistema
Único de Saúde (SUS). Para se ter idéia da magnitude do problema, mesmo retirando as tentativas de
suicídio deste número, os medicamentos seguem na liderança das intoxicações humanas. Os números
nacionais disponíveis são de 2007. Foram 34.028 casos de intoxicação humana por medicamentos. Se
retirarmos os 15.119 casos de tentativas de suicídio, teremos 18.909 casos de intoxicação por
medicamentos, considerando exclusivamente as pessoas que buscaram no medicamento uma forma de
prevenir e tratar doenças ou recuperar a saúde. Se dividirmos pelos 365 dias do ano, são quase 52 casos
por dia, ou seja, um caso oficialmente registrado a cada 30 minutos. E há de se considerar a possibilidade
de que este número seja mais assustador, por quatro razões básicas. A primeira diz respeito ao fato de que
2. Propaganda &
Automedicação
há uma subnotificação importante neste sistema. Imagine-se no lugar de um médico, em geral de uma
emergência, do SUS, com uma fila de pacientes para atender, que se preste ao trabalho de, frente a
determinado caso de intoxicação por medicamento, reservar tempo para ir até um computador e
preencher uma ficha de registro de intoxicação. Nem todos fazem isso, infelizmente. Além disso, deve-se
considerar que 40 milhões de brasileiros têm plano de saúde privado e não recorrem ao SUS quando
necessitam de algum tipo de atendimento. E a rede privada praticamente não notifica este tipo de
agravo. Soma-se a isto, o fato de que são justamente estes 40 milhões de brasileiros, que têm maior poder
aquisitivo, os maiores consumidores de medicamentos. Finalmente, há o fato de que, devido à
dificuldade de acesso ao sistema de saúde público, apenas os casos mais graves são registrados, pois só
uma intoxicação por medicamento importante leva alguém a enfrentar estas dificuldades para ser
atendido no SUS. Os casos menos graves sequer chegam ao SUS. Estas questões indicam que o número de
casos deva ser ainda maior. Obviamente que não se pode considerar que todos os casos de intoxicação
humana por medicamento sejam resultado da propaganda farmacêutica, mas sem nenhuma dúvida de
que a prática abusiva da publicidade aumenta em muito o seu consumo irracional e perigoso por parte da
população. A influência que a propaganda de medicamentos tem junto à população está mais do que
comprovada e não é à toa que se gastam bilhões de reais anualmente com ela. Em pesquisa realizada pelo
Procon de São Paulo, por exemplo, diante da pergunta "Você acha que a publicidade de medicamentos
induz à automedicação?", nada menos que 63,33% dos entrevistados disseram que sim. Claro que esta
também é uma característica cultural da população brasileira. Mas essa cultura não caiu do céu. Ela foi e é
estimulada diariamente, há décadas, com vistas a elevar o consumo de produtos farmacêuticos,
desconsiderando o perigo dessa prática. E deve-se considerar os números da monitoração da propaganda
da própria Anvisa, segundo os quais mais de 90% da propaganda farmacêutica, captada por ela em 19
diferentes pontos do País, é irregular. Enfim, a propaganda não traz informação de qualidade, mas se
constitui em risco sanitário concreto.
4. Em um dos seus artigos, você trabalha com a questão da regulamentação da propaganda de
medicamentos. Afinal, você acredita que é possível regular a propaganda de medicamentos no Brasil?
Álvaro Nascimento – Não só acredito como considero que esta é uma ação urgente, uma obrigação de
autoridades que se digam sanitárias. Não só acredito como enviamos um conjunto de 19 proposições à
Consulta Pública realizada pela Anvisa com o objetivo de alterar o modelo regulador brasileiro. Não só
acredito como continuo defendendo alterações no novo modelo, baseado na RDC 96/2008, que
infelizmente mantém todas as fragilidades do modelo anterior. Resumidamente, estas fragilidades estão
centradas em quatro graves aspectos, a serem superados. Primeiro, a monitoração patrocinada pela
Anvisa só atua após a regulamentação ser ferida, quando a propaganda está há mais de um mês no ar. Com
isso, o risco sanitário já se estabeleceu. Segundo, as multas são irrisórias e não chegam a 1% do que é
investido anualmente pela indústria em marketing farmacêutico. Terceiro, não há nenhum mecanismo
realmente eficaz que impeça que mesmo o valor irrisório da multa seja incluído no preço do medicamento
e pago pelo próprio consumidor. Quarto, a frase que acompanha os anúncios de medicamentos - "Ao
persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado" – na verdade estimula o uso incorreto, porque te
induz a somente procurar o médico após ter tomado o primeiro medicamento. O que é efetivamente dito
a cada anúncio é o seguinte: compre primeiro, tente sozinho, e caso os sintomas persistam, procure um
médico. Não é á toa que esta exigência do modelo regulador é uma das mais respeitadas pelo marketing
farmacêutico. Na verdade, a frase estimula pelo menos o primeiro o consumo.
3. Propaganda &
Automedicação
5. O que falta para a consolidação de um sistema que você considere ético e socialmente responsável?
Álvaro Nascimento – Entre as 19 propostas que enviamos à Consulta Pública - elaboradas na Oficina de
Trabalho sobre Regulação da Propaganda de Medicamentos, realizada durante dois dias na Ensp/Fiocruz -,
apoiadas por mais de 130 especialistas e 123 instituições da área da saúde e de defesa do consumidor, uma
se destacada, tanto devido a seu efeito saneador na área da propaganda de medicamentos como pelo fato
dela já ter sido adotada com sucesso em vários países, como os da União Européia, Austrália, México,
Equador e outros. É o estatuto da “anuência prévia” de toda a propaganda farmacêutica, que passaria a
ser analisada pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária antes de sua disseminação. O setor regulado -
incluindo não só a indústria farmacêutica, mas também os meios de comunicação, as agências de
publicidade e o mercado varejista – infelizmente se colocam veementemente contra. Eles sabem que 90%
de sua publicidade de medicamentos hoje veiculada passariam a ser vetadas. Mas claro que eles
argumentam com algo mais, digamos, socialmente defensável. Argumentam que isto representaria uma
censura à sua liberdade de manifestação. Cheguei a ouvir de um membro do setor regulado, numa das
reuniões da Câmara Setorial de Propaganda da Anvisa, que a anuência prévia defendida por nós
representaria o retorno da censura dos tempos da ditadura militar. Refutei o argumento perguntando a
ele se a França poderia ser considerada uma ditadura, assim como o Reino Unido, a Suíça, a Espanha, a
Austrália, o México, já que em todos estes países o estatuto da anuência prévia existe há anos.
Obviamente que o argumento do setor regulado era de uma fragilidade que demonstra o quanto ele se
desespera frente a um maior controle de uma prática que lhe traz enormes lucros, mas representa um
risco constante à sociedade.
6. Como você vê a questão da interdisciplinaridade entre a Comunicação e a Saúde?
Álvaro Nascimento – Parodiando o slogan da maior rede de televisão do Brasil, diria que Comunicação e
Saúde têm “tudo a ver”. O fato positivo é que, nos últimos anos, o distanciamento entre estas duas áreas
de conhecimento diminuiu muito. Quem imaginaria, décadas atrás, que o controle social e democrático
dos meios de comunicação seria um ponto discutido numa Conferência Nacional de Vigilância Sanitária,
na ótica de que eles são uma concessão pública? Ou que a saúde seria tema da Conferência Nacional de
Comunicação? Pois hoje se convive com isso como algo normal, creio que tanto pelas práticas como pelas
teorias acadêmicas desenvolvidas nas duas áreas. E esta interdisciplinaridade não para nelas, mas chega à
Filosofia, à História e muitas outras. Veja o meu exemplo: um jornalista de formação que fez Mestrado e
Doutorado em Saúde Coletiva. Não fui o primeiro e nem serei o último. Comunicação e Saúde têm vários
pontos de interseção e já se contam às centenas tanto os trabalhos acadêmicos que versam sobre isso
como, no dia-a-dia, o sistema de saúde tem sentido cada vez mais necessidade de interagir com a
comunicação, não de forma que poderíamos chamar de utilitarista, como mero instrumento de
viabilização de mensagens a serem consumidas pela sociedade, mas como elemento primordial de
participação e controle social, elaboração de políticas e construção de alternativas aos modelos vigentes.
Nossa contribuição a uma maior regulação da propaganda de medicamentos é apenas um exemplo dessa
relação, entre muitos outros.