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[O texto a seguir foi retirado do livro Que mundo? Que homem? Que Deus?, de Juan Luis Segundo,
São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 9-40.]
Por que “somar” filosofia & teologia?
Não é suficientemente intrincada a teologia para que se queira somar-lhe as obscuridades ainda
maiores dos sistemas filosóficos? O cristão comum que deseja compreender sua fé — e isso é fazer
“teologia” — deverá levar ainda a pesada carga especulativa desse trabalho e colocar como sua base
essa terra movediça, onde as filosofias aparecem e desaparecem sem, ao que parece, dar um passo
decisivo adiante?
Kant, ao começar a síntese de seu trabalho filosófico — na Crítica da razão pura —, nota,
alarmado, essa diferença entre as filosofias que, incessantemente, se sucedem umas às outras, e as
afirmações, verificações e teorias das ciências que se criam, se mantêm e se corrigem e, assim,
fazem avançar o conhecimento a passos que, mesmo não excluindo erros e retrocessos parciais,
terminam somando-se e dominando campos cada vez mais extensos da natureza. No entanto, o
mesmo Kant, pretendendo remediar tão triste situação, parece que não conseguiu mais do que
multiplicar esses edifícios perecíveis dos sistemas filosóficos, que são abandonados tão rapidamente
como foram construídos...
Isto é tão real que — do ponto de vista da sociologia, pelo menos — se poderia caracterizar um
certo fim da Idade Moderna e talvez o pródromo de uma certa época pós-moderna, relegando a
filosofia a ser apenas um ramo do saber histórico. Quero dizer com isto que, hoje, ensina-se
filosofia muito mais como “história de filosofias” do que como sistematização das conquistas do
conhecimento, em seu mais alto nível. Assim, com algumas honrosas exceções — como Heidegger
— no nível universitário, a filosofia entra, sociologicamente, no círculo (vicioso?) de ter como seu
quase único “mercado” a formação de futuros professores de filosofia. Ninguém parece necessitar
dela como tal.
Ainda no século passado, mesmo que o fenômeno não alcançasse uma unanimidade total,
sistemas filosóficos podiam caracterizar — pelo menos na Europa ou na América do Norte — o
estilo de pensamento de sociedades inteiras. Positivismo, racionalismo, idealismo, pragmatismo
chegaram, dessa maneira, a constituir-se em pautas válidas para compreender fenômenos
característicos de sociedades como a francesa, a alemã, a norte-americana etc. Nessa época,
modelavam políticas, sistemas educativos e outros pontos decisivos da cultura. Sem dúvida, não
deixavam de ser continuidades, mas mantinham verificações visíveis que hoje estão longe de
aparecer na mesma proporção. Atualmente, ninguém se animaria, penso eu, em definir com um
“ismo” qualquer pensamento “reinante”, seja na Alemanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos...
É verdade que, talvez, um olhar mais aprofundado mostre que as coisas não são assim tão
simples. E que o fenômeno tem matizes importantes que ainda não pusemos a descoberto.E vale a
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pena, mesmo numa forma pouco acadêmica, fazer algumas reflexões sobre tais matizes ou
correções.
Especialização das ciências e reflexão filosófica
Recolocando o problema mencionado por Kant, como vimos, poderemos comprovar que as
ciências — primeiro as naturais e depois as do espírito — adquiriram seu status científico e
começaram a caminhar com passos firmes à medida em que se especializaram e, conseqüentemente,
se afastaram da filosofia que antes as englobava.
Aqui, seria possível perguntar pela origem dessa especialização. E, seguindo um pouco mais
fundo na questão, pela origem dessa crescente diferenciação. Talvez, a resposta mais simples que se
possa propiciar — a olhos de bom tanoeiro — é que as ciências foram diferenciando-se e depois
afirmando-se (com seus progressos), na mesma medida em que criaram, cada uma num
determinado campo do saber, instrumentos de medição e de manipulação cada vez mais precisos.
Ou seja, a partir do momento em que se prenderam à medição empírica.
Mesmo que a divisão entre ciências da natureza e ciências do espírito tenha aparecido cada vez
mais claramente como inadequada, serviu ainda durante muito tempo para dividir, grosso modo, os
terrenos onde a ciência reinava incontestavelmente e aqueles onde as disciplinas pertencentes (pelo
menos parcialmente) ao terreno filosófico ainda tinham muito que dizer. Também nos campos do
espírito, o descobrimento de medidas e instrumentos mais precisos e eficazes foram inclinando cada
vez mais para a ciência os conhecimentos sistemáticos, que, em outras épocas, foram filosofia.
Creio não ter sido nenhuma casualidade o fato de que a psicanálise, minada como estava de
hipóteses filosóficas, fosse aceita a modo de uma ciência um pouco especial. A “prática
psicanalítica” tornou isso possível, assimilando o que parecia — e era, segundo o título de uma das
obras de Freud: “metapsicologia” — a solução de problemas.empíricos da psique humana.
Agradando ou não aos puritanos do positivismo, algo que se enfrenta com êxito para com a
experiência, em terrenos tão intrincados e difíceis como os sonhos, as neuroses etc., “merecia” um
rótulo que a resgatasse da areia movediça dos sistemas filosóficos, e lhe permitisse ingressar nas
universidades propriamente ditas, como um (autêntico) saber que transformava a realidade.
Assim, durante a Idade Moderna, os grandiosos avanços das ciências naturais e, em menor grau,
os das ciências do espírito, estiveram em proporção direta com sua diferenciação e especialização.
Ou seja, em proporção inversa com sua (antes suposta) pertença a um saber indiferenciado que fazia
uso de instrumentos tão vagos e grosseiros como os conceitos de Deus, homem, universo, com suas
correspondentes relações causais e finalísticas. O positivismo científico acreditou estar no ponto de
passagem, ou haver passado já, da etapa metafísica (= filosófica) à última (segundo a história
seriada de Comte): a científica.
Dir-se-ia, assim, que esta proporção inversa entre a dimensão das (ou o interesse suscitado pelas)
ciências e da filosofia, respectivamente, acabaria reduzido o campo desta última em algo que não se
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poderia definir ou medir. Em outras palavras, em algo que, ao não estar com o pé firme no
empírico, necessitasse de base sólida para marcar um avanço seguro e sustentável. O último reduto
da filosofia seria, assim, a ontologia. Para designar essa área, prefiro o termo “ontologia” ao de
“metafísica”, usado por Comte, já que “metafísica” — semelhante à “metapsicologia”, da qual fala
Freud — pode, utilmente, designar essa zona dos problemas últimos da própria ciência. Ao
contrário, entende-se normalmente ontologia como a área dos grandes conceitos abstratos: o ser, o
espírito, a matéria, o universo e sua última origem (valha o paradoxo), todos esses elementos que a
ontologia procuraria sistematizar em sua essência e em suas respectivas relações.
E, precisamente, seria essa a filosofia que estaria moribunda, epistemologicamente reduzida a
um estatuto dessas meias ciências que, como a história da astrologia, ajudam a compreender para
onde se orientou, no passado, a curiosidade do espírito humano, à falta de rumos certos. Fora desse
campo histórico e, conseqüentemente, empírico, a filosofia não seria, então, capaz de fixar por si
própria uma linguagem de afirmações verificáveis, única comunicação, que — pareceria —
veiculava uma autêntica informação.
No entanto, essa espécie de caricatura desalentadora daquela que, no princípio, foi a fonte das
ciências, e converteu-se em sua rainha, para depois decair em importância, à medida em que as
ciências se independizavam dela, é uma imagem enganadora ou, se se prefere, uma meia-verdade.
Mesmo que, sociologicamente, não se possa negar grande parte daquilo que os fatos mostram nesse
campo da moderna “divisão do trabalho”, específica da função de conhecer a realidade.
De fato, qual seria, hoje, a situação “epistemológica” — isto é, relativa ao modo e possibilidades
de conhecer — das ciências? A rejeição do filosófico do plano do científico perdeu muito de sua
virulência e — eu diria mais — da incontestável vigência que teve em épocas não muito
longínquas.1
Existe um caso excepcional, que não pode ser passado por alto. Refiro-me ao que se costuma
chamar, mesmo que de um modo bastante ambíguo, de “ciências puras”. Seu tipo seria a
matemática ou a lógica formal. Dir-se-ia que essas “ciências” conseguem o ideal de deixar a
filosofia completamente fora de seu caminho. Mas, na realidade, sua “pureza” consiste apenas no
fato de que não se aplicam à realidade externa ao sujeito que conhece: são ciências que, mais do que
a realidade, exploram as leis do conhecimento, e sua identificação com o próprio fato de conhecer
toma ali o lugar de verificação. Dizia que a ambigüidade latente no estatuto dessas ciências consiste
em que, no fundo, são tão “puras” que acabam sendo a própria “filosofia”. De fato, também aqui a
1
Cito ao acaso, como exemplo recente, a resenha publicada no início de 1989, numa revista
francesa, a propósito do livro La mélodie sécrète, de Trinh Xuan Thuan, professor da
Universidade de Virgínia (Estados Unidos): “‘A existência do ser humano está inscrita na
propriedade de cada átomo, estrela e galáxia do Universo, e em cada lei física que rege o
cosmo’. Isso está escrito num livro que surge nestes dias (Ed. Fayard, Paris) e que vai criar
outro big bang no lanterneau científico; porque é a primeira vez, há muito tempo, que um
cientista de raça pura se dá ao luxo, em pleno centro de uma obra científica, de escrever um
capítulo advogando... a existência de Deus”.
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sociologia tem algo interessante para dizer, pois mostra que isso, que ainda subsiste da investigação
filosófica, tem o mesmo objeto dessas que são chamadas de ciências puras. Não será esta uma das
exceções que confirma a regra?
Por outro lado — e qualquer que seja a resposta que se dê ao problema anterior — pareceria que
todas as ciências (aplicadas), que tiveram a pretensão de libertar-se da filosofia, chegam, mais cedo
ou mais tarde, às zonas onde lhes são questionados problemas claramente filosóficos. É difícil
arrancar dos habituais cientistas essa confissão (de culpabilidade?). Mas ela acaba aparecendo,
muitas vezes implícita, na forma desajeitada com que se trata de fugir do problema. É verdade que
as informações da imprensa, geralmente, não estão redigidas numa linguagem científica e,
provavelmente, não representam com exatidão o que o cientista teria dito. No entanto, não é raro
encontrar frases como estas: “[...] as sondas enviadas a diferentes planetas do sistema solar e as
fotografias que elas fizeram esclarecem muito a incógnita sobre a origem do universo”. De fato, na
literatura, mesmo a científica, são abundantes as expressões sobre essa presumível origem, isto é,
sobre o big bang com o qual o universo que conhecemos teria começado. Uma enorme
concentração de energia inicial teria explodido, lançando a matéria de que estão feitas as galáxias,
com suas estrelas e planetas, em todas as direções do espaço (ainda por fazer). Nosso próprio
sistema solar estaria hoje viajando, numa velocidade fantástica, impulsionado por essa explosão, e
afastando-se de todos os demais elementos oriundos dessa deflagração...
Suponho que haja suficientes maneiras de verificar, por inferência, essas afirmações. Mas que
relação possuem com a origem do universo propriamente dito? Afirmar algo sobre isso seria tão
pouco científico como pretender que se descobriu a “origem” das espécies biológicas ao comprovar
que todas nasceram no mar e depois permaneceram nele ou o abandonaram... O que é pouco
científico, no entanto, não é dizer: até aqui chegou a ciência; mas, sim, é pouco científico dizer que
se descobriu a “origem” de algo, quando subsiste ainda por trás desse algo um visível e até enorme
porquê ou um como, que — contrariamente ao grande postulado científico da racionalidade
universal — se escamoteia.
Como se vê, não se trata de que haja ciências que, por ser da “natureza”, possam prescindir de
perguntas fundamentais. Não existe uma cortante divisão entre essas ciências e as do espírito. A
física, a química, a astronomia, a biologia, ao final dos porquês verificáveis até onde chegou o
conhecimento, colocam outros, para os quais não se têm instrumentos de medição ou técnicas de
manipulação. Antes, esses tais porquês eram matéria da filosofia, que explicitava essas questões a
partir do começo. Para tratá-las, havia métodos sobre cuja validez pode-se discutir muito. Hoje,
depois de assinar a ata de independência da ciência em questão, essas mesmas perguntas, ou outras
semelhantes, surgem ao final das explicitações e mecanismos verificáveis, mesmo que seja pelas
constantes probabilísticas. Muitas vezes, essas questões são silenciosas. O cientista tem vergonha de
Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 5
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perguntar sobre o que se lhe disse que não entra no âmbito de sua ciência.2
E, geralmente, o tabu é
eficaz. Como quando se associa o big bang com a origem e, portanto, com a explicação do
universo.
Mas, outras vezes, o cientista quer ser fiel a um imperativo, que é parte da própria ciência, e
explicar aquilo que ainda não sabe se é uma lei ou o efeito do mero acaso. Ele precisa, então, ir
mais além dos porquês já conhecidos, mesmo que não vislumbre, ainda, como vai verificar o que
descubra ou deduza. Mas, em tais casos, apesar de que não costuma silenciar — como antes — a
filosofia, pratica-a muitas vezes de uma forma que chega aos limites do “amadorismo”. O novo
“objeto” desorienta. E, como era de temer-se, a falta de prática num campo que já não é puramente
científico me anima a afirmar que muitas vezes o homem de ciência faz uma má “filosofia”. Não é
raro o fato de grandes cientistas produzirem uma má filosofia ao término das investigações
realizadas no campo empírico, onde se destacaram.
Epistemologia científica, acaso e teleonomia
Neste momento introdutório, um exemplo poderia, talvez, lustrar o que acabo de afirmar, de
forma tão despreocupada, como poderá pensar o leitor. Ninguém discute os méritos de Jacques
Monod no campo da química genética ou da biologia em geral, méritos pelos quais obteve o prêmio
Nobel. Pois bem, Monod, como outros grandes cientistas, pretende remontar-se, o mais longe
possível, na cadeia dos porquês. Até às margens, se for possível.
Mas não quer que essas origens empurrem a mente além de empírico. Para isso, Monod acredita
ser necessário evitar uma armadilha que, por analogia com certos fenômenos religiosos primitivos,
chama de “animismo”. Epistemologicamente falando, trata-se da tendência que tem o conhecimento
humano de explicar o funcionamento das coisas (ou, no caso menos grave, o comportamento de
seres vivos não humanos) por meio de procedimentos que, a rigor, são válidos apenas para as ações
humanas. Elas são explicadas, assim, por uma “alma” que, para ser preciso, não têm. Monod
descreve, assim, o “animismo”, do qual todo conhecimento, que pretenda ser verdadeiramente
objetivo, deve fugir: “O ponto essencial do animismo (tal como creio defini-lo aqui) consiste numa
projeção da consciência que possui o homem do funcionamento intensamente teleonômico de seu
próprio sistema nervoso central à natureza inanimada”.3
2
G. Bateson escreve (Pasos hacia una ecologia de la mente. Trad. cast. Ed. Carlos Lohlé. Buenos
Aires, 1972. pp. 293-294): Se, há quinze anos, me tivessem perguntando o que eu entendia
pela palavra ‘materialismo’, creio que teria dito que o materialismo é uma teoria sobre a
natureza do universo, e teria aceito como algo evidente a idéia de que essa teoria é amoral, em
algum sentido... Hoje, se me fizessem a mesma pergunta a respeito do significado do
materialismo, responderia que esta palavra, no meu pensamento, representa uma coleção de
regras a respeito de quais perguntas devem ser feitas sobre a natureza do universo” (O original
dessa obra, à qual me referirei com a primeira palavra do título inglês, quando entenda que
seja necessário uma melhor tradução, é Steps to an ecology of mind. Ballantine Books, New
York, 1974 (3).
3
Jacques Monod, El azar y la necesidad. Trad. cast. Ed. Barral, Barcelona, 1970. pp. 41-42.
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Do ponto de vista filosófico, é imprescindível prestar uma atenção decisiva à distinção que se
faz, aqui, entre natureza inanimada e natureza viva (a mesma que entre química inorgânica e
química orgânica). Existe animismo quando se projeta o que é próprio de um ser dotado de “sistema
nervoso central” sobre os seres de uma natureza onde reina o acaso acima de todas as coisas. No
entanto, mesmo que seja perigoso fazê-lo, não é animismo atribuir “finalidades” — Monod parece
temer infringir, aqui, tabu positivista e usa o equivalente grego de finalidade: teleonomia —,
intenções e outras atitudes “antropomórficas” ao seres vivos. De fato, é uma característica essencial
dos seres vivos “a de ser objetos dotados de um projeto, que ao mesmo tempo representam em suas
estruturas e cumprem com suas performances”.4
Não sei se o leitor terá percebido um artifício lógico (ou ilógico), muitas vezes usado por
Monod, manejado aqui ao dizer que os seres vivos são “dotados” de teleonomia. A voz passiva
permite-lhe falar de algo que existe, sem mencionar o problema de sua origem. Na voz ativa, a frase
deveria ter um sujeito para o verbo “dotar”. Ao passo que, na passiva, a frase “parece” ter sentido
ainda, mesmo que não se lhe acrescente o correspondente complemento: “ser dotado por...”.5
Seja como for, Monod encontra-se diante da antinomia de que “o princípio de objetividade”, ao
qual deve sujeitar-se a ciência (para impedir o subjetivismo animista) deveria mostrar uma
“natureza sem projetos”. Mas a característica mais visível dos fenômenos naturais associados à
“vida” é precisamente a teleonomia, ou finalidade, a fonte desses projetos vivos que são todos os
seres animados. A maneira de sair dessa antinomia, própria do neodarwinismo, consiste em fixar a
atenção em outra qualidade dos seres vivos, que, supostamente, é a “invariância”, com a que
qualquer um desses seres se reproduz, formando outro ser igual a si mesmo.
Pois bem, se fosse possível mostrar — e aqui vem Darwin em pessoa — que a teleonomia
procede da invariância e não o inverso, ter-se-ia a vantagem de salvar o princípio de objetividade.6
De fato, pelo menos na aparência, a invariância é uma qualidade impessoal, ou seja, não
antropomórfica (como o seria a teleonomia). A reprodução, a grande qualidade vital, produziria
teleonomia somente quando se encontrasse em luta contra a morte, diante das mudanças externas do
ambiente. Em outras palavras: reprodução ameaçada = teleonomia.
Dessa forma, o mínimo de teleonomia — a luta pela vida ou seleção natural — e de teleonomia
quase totalmente extrínseca fica assegurado, segundo Monod. Se isso não é darwinismo puro, é
porque Darwin não conhecia, como Monod, os agentes e o mecanismo da genética, ou seja, do
4
Ibidem. p. 20.
5
Por exemplo: “...algo tirado do puro acaso” (p. 133); “... acaso captado, conservado, reproduzido
pela maquinaria da invariância, e assim convertido em ordem” (p. 110), onde “pela maquinaria
da invariância” não é o verdadeiro agente, já que a invariância é o resultado de uma ação cujo
sujeito fica ainda escamoteado na expressão.
6
A “seleção natural” pela pressão mortífera do ambiente, dizimando os animais que não
possuem o que no começo foi uma anomalia (genética) explicaria assim, aparentemente, sem
teleonomia, a “sobrevivência dos mais aptos”, expressão cunhada, parece, por Spencer, mas
apropriada por Darwin. Chegar-se-ia, assim, ao que Monod chama “a única (hipótese) aceitável
aos olhos da ciência moderna: que a invariância, necessariamente, precede à teleonomia” (op.
cit., p. 35).
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elemento responsável da invariância.7
Isso, em sua época, levou-o demasiado próximo de um
lamarckianismo (tão errado como animista).
Mas não estaríamos, aqui, diante de uma hipótese de explicação parecida com aquela que atribui
a origem propriamente dita do mundo ao big bang? Porque, de fato, de onde provém a aparição, no
mundo inanimado, sem teleonomia alguma, dessa “necessidade” que, essencialmente, une o ser
vivo à reprodução? Essa, por mais “impessoal” e mecânica que pareça, já encerra — e assim Monod
tem de confessá-lo8
— a teleonomia, na qual se baseia toda comunicação por códigos decifrados.
De fato, a genética é um mecanismo de comunicação e toda comunicação supõe um processo de
percepção, transformação desta em código, recepção e decodificação do código pelo receptor e
transformação da mensagem em orientações sobre como dar forma ao novo ser. Assim, dizer que,
atualmente, o mecanismo central da evolução está explicado, porque se sabe a origem da
invariância genética, é não dizer nada... A não ser que seja atribuído ao acaso.
O acaso diz respeito a uma “indeterminação” ou falta de necessidade entre diversos objetos ou
acontecimentos. O “puro acaso”, perfeito, é um conceito limite. O que o homem realmente pode
experimentar é o acaso delimitado pelo jogo das causalidades. Assim, a existência de uma realidade
dependente do acaso torna-se algo empírico, mesmo que seja apenas nessas imitações (sempre
imperfeitas) do “acaso”, que o homem constrói para finalidades diferentes, normalmente mas não
necessariamente, associadas ao jogo. Além do mais, o acaso é uma hipótese cientificamente muito
convincente para explicar certas anomalias, como, por exemplo, na reprodução genética.
No entanto, gostaria de deixar claro — e deixando de lado outras dificuldades que o conceito de
“puro acaso” possa ter — que o que um cientista não deve fazer é disfarçar com o acaso uma mera
ignorância das causas que produzem certos efeitos. Se digo, por exemplo, que é o acaso que faz
com que as coisas caiam em direção ao centro de gravidade, que para nós, na terra, é o centro do
planeta, não estou diante de uma hipótese científica, mas de uma escapatória indigna do mais
obtuso estudante de física.9
No entanto, não é supérfluo prevenir esse falso uso, pretensamente
científico, do conceito de acaso. E isso por uma razão de tipo filosófico que tem bastante relação
com o que estamos examinando aqui, em relação a Monod.
O positivismo quis construir uma ciência sem “ontologia”. Ou, talvez, poder-se-ia dizer, com a
menor dose possível de metafísica. Daí que, queira ou não, goste ou não goste Monod, a influência
determinante da finalidade na esfera biológica faz com que as perguntas sobre o “para que...” se
acumulem numa escalada que ameaça terminar com o perguntar-se que sentido ou finalidade pode
7
Cf. ibidem.
8
Cf. ibidem. p. 136.
9
Gregory Bateson ironiza sobre essas pseudo-explicações, que, na realidade, não explicam coisa
alguma, e coloca como exemplo o que se pretende explicar com o termo “instinto”,
comparando-o com a explicação dada pelo candidato a médico de por que o ópio faz dormir, na
comédia de Molière Le malade imaginaire (Cf. Bateson, G. Mind and nature. Bantam Books,
New York, 1980. p. 95. Existe tradução castelhana dessa obra publicada em Buenos Aires pela
Ed. Amorrortu, com o título Espíritu y naturaleza).
Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 8
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ter o universo inteiro. E daí à pergunta pelo Criador não há mais que um passo... E este é o
paradoxo: a teoria da evolução biológica, nascida como uma hipótese radicalmente oposta à da
criação, transforma-se, agora, em algo perigosamente próximo dela. De fato, aquilo que, no mundo
“inanimado”, parece estar regido pelo puro acaso, como diz Monod, entra numa “evolução”, onde a
“necessidade” substitui-se ao acaso, colocando diante dos acontecimentos uma flecha indicadora de
uma direção necessária.10
O universo parece, então, aos olhos do cientista, uma mescla desses dois elementos, que também
compõem o título da obra de Monod: O acaso e a necessidade. O acaso tem a enorme vantagem
positivista de não exigir — e mais ainda, a de rejeitar — a pergunta por uma causalidade. O que
surge do acaso não tem outra razão mais suficiente do que o próprio acaso. Daí que, se fosse
possível reduzir ao acaso toda a “necessidade” que cresce com a evolução, esta seria despojada de
seu perigo metafísico. O próprio mundo necessário seria fruto do acaso. E não haveria mais o que
perguntar. Toda a aventura humana não passaria de uma estranha e improbabilíssima mudança de
uma molécula, que começou a se reproduzir e a introduzir a teleonomia e a necessidade de um
mundo, que continua jogando com o acaso às portas da não existência, à qual voltará, mais cedo ou
mais tarde.11
(Assim, o cientista desprende-se do animismo e desperta, depois de um sono milenar,
para um mundo que o guarda, surdo à sua música...)
Mas o leitor vai me permitir resumir e observar novamente o raciocínio de Monod. Ele afirma
algo assim como isto: dada a invariância (não se esqueça de que esta roubou seu primeiro lugar à
teleonomia), que se explica pelo mecanismo conservador da química genética, é preciso explicar
como a invariância varia, pois isso é o que mostra a evolução. É preciso, nas próprias palavras de
Monod, explicar “diferentes tipos de alterações acidentais discretas”.12
Senão, invariância e
evolução seriam termos contraditórios.
Pois bem, eis aqui a explicação:
Dizemos que essas alterações são acidentais, que acontecem ao acaso. E já que constituem a única fonte
possível de modificações do texto genético (invariante por si mesmo), único depositário, por sua vez, das
estruturas hereditárias do organismo, deduz-se, necessariamente, que somente o acaso está na origem de
toda novidade, de toda criação na biosfera.13
10
O que o próprio Monod chama de “ordem”, ou seja, o acaso feito prisioneiro... E, a partir daí,
qualquer forma de falar da origem e da essência dessa “necessidade” terá de ser “animista”. De
fato, do ponto de vista da termodinâmica, estamos diante de um fenômeno de crescimento de
neguentropia e, por sua vez, todo crescimento de neguentropia (mesmo que seja parcial) deve
ser nomeado, fazendo alusão a algo assim como o “demônio de Maxwell” (Cf. J. Monod, op. cit.,
p. 71, e o título do cap. III: “Os demônios de Maxwell”, p. 55).
11
Assim, “o homem necessita, e muito, despertar de seu sono milenar para descobrir sua solidão
total, sua radical marginalidade. Ele sabe agora, como um cigano, que está à margem do
universo onde deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente às esperanças, aos seus
sofrimentos e aos seus crimes” (ibidem, p. 186).
12
Ibidem. p. 125.
13
Ibidem. pp. 125-126; os grifos são do autor.
Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 9
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A partir daqui, Monod entoa um hino a essa que parece ser a mais originária e compreensiva
hipótese:
O puro acaso, o único acaso, liberdade absoluta mas cega, na própria raiz do prodigioso edifício da
evolução: essa noção central da biologia moderna já não é, atualmente, uma hipótese entre outras
possíveis ou, ao menos, concebíveis. É a única concebível... É também, de todas as ciências, a mais
destrutiva de todo antropocentrismo, a mais inaceitável intuitivamente para os seres intensamente
teleonômicos que somos nós (os homens).
De fato, dessa maneira, “o acidente singular... tirado do reino do puro acaso, entra no da
necessidade, (no das) certezas mais implacáveis”.14
Eis aqui a prova que percebo de minha afirmação anterior? Que um grande cientista pode ser um
mau filósofo amador. Vejamos, então, se não. A invariância, mesmo que despojada de toda
conotação subjetiva — ou, talvez, por causa disso — não é capaz de trazer novidade e,
conseqüentemente, nem orientação evolutiva. No entanto, segundo Monod, a teleonomia não
pareceria necessária. Estaríamos diante da estrutura química de uma molécula viva. Nada mais.
Porém, isso não basta. É preciso explicar a aparição da “novidade”. E, segundo ele, a explicação
estaria num fator diferente da pura invariância: o acaso. O que aconteceu, então? Monod parece não
perceber que o próprio conceito de novidade é o mais teleonômico que se possa pensar.
Talvez um exemplo possa ajudar. Para fabricá-lo, inspiro-me numa expressão de outro biólogo,
que — pura coincidência? — recebeu, no mesmo dia e no mesmo campo, o prêmio Nobel: François
Jacob. Ele afirma que, na evolução, a natureza atua como um “bricoleur”.15
Esse conceito, muito
importante, não tem tradução exata. Talvez a mais aproximada seria a formada pelas duas palavras
“inventor artesanal”. Com isso se quer expressar que — diferentemente do inventor científico, que,
dominado pelo término, prevê cada um de seus passos como uma investigação planificada — o
inventor artesanal é alguém que reúne materiais heteróclitos, que não se sabe que relação e uso
podem ter, e que um dia, iluminado por uma intuição, toma um mecanismo daqui, uma peça dali,
outra tirada daquela outra máquina, e com isso “arma” um objeto novo dotado de inesperadas
performances...
Pois bem, inspirado nisso, o exemplo que me ocorre (em relação com a “novidade”) é o da
invenção da roda. Para simplificar, supondo que esse invento tenha sido feito por apenas um
“bricoleur”, o processo pode ter sido o seguinte. Entre mil experiências causais (apresentadas por
um fluxo de acontecimentos aparentemente deixados ao acaso), um dia nosso inventor percebe que
as superfícies convexas, apoiadas contra um solo mais ou menos horizontal, movem-se com mais
facilidade. Para ser mais exatos, balançam-se com menos esforço. Essa experiência fica armazenada
e talvez seja utilizada para a fabricação de certos objetos. Pode passar muito tempo e, entre mil
14
Ibidem. p. 133.
15
Cf., por exemplo,F. Jacob, “Evolution and tinkering”, na obra (de vários autores) Biological
foundations and human nature. A palavra inglesa tinkering é a que, precisamente, traduz o
substantivo francês bricolage.
Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 10
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experiências, aparecerá que os objetos têm forma mais ou menos esférica, não apenas balançam,
mas avançam no espaço, uma e outra vez, com uma facilidade inusitada. Ou seja, “rodam”. Muito
tempo depois, e por causa de algum caso fortuito, nosso inventor experimentará que isso não se
deve à sua forma esférica, mas que se conserva quando se usa apenas uma “faixa” do que seria uma
esfera. Esta possui a mesma facilidade para deslocar-se. Por outro lado, talvez descubra logo que a
translação de um objeto pesado, sobre uma esfera ou uma “fatia” de esfera (colocada e mantida
verticalmente) fica mais fácil também. Com a condição, no entanto, de que não se avance muito,
pois o que ajuda ao movimento do objeto pesado que carrega sobre si vai ficando para trás em
relação a ele...
Mas, continuemos supondo. É muito possível que, durante um longo período de tempo, em que
foi percebendo e notando os fenômenos acima descritos, simultaneamente, faça outra série diferente
de experiências sobre como fazer os objetos girarem. Para abreviar, terá assim descoberto que as
coisas giram mais facilmente e durante mais tempo quando estão apoiadas sobre um ponto, ou
atravessadas por um orifício, situado de tal maneira que o peso seja mais ou menos igual de ambos
os lados. E, de repente, intuitivamente, o inventor relacionará ambas as experiências heterogênicas.
Pensará em duas fatias de esfera com um orifício no “centro” e unidas por um pau que atravessa
ambos os orifícios (e sem estar fixo neles). E eis aí a roda descoberta!
Casualidade? Sorte? Até certo ponto, sim. Mas essa “novidade”, esse “novo” objeto descoberto
depende de certas condições do conhecimento, que talvez o leitor não tenha percebido. Por
exemplo, todos sabemos que chamamos de verdadeiro acaso ao fato de sempre tornar a jogar com o
mesmo número de possibilidades. Se há, por exemplo, um jogo de sorte com cem bolinhas, para
continuar sendo jogo de sorte, depois de cada saída de uma bolinha, é necessário levar de volta a
bolinha para junto das outras. Caso contrário, o acaso se iria terminando e, com ele, essa
possibilidade de novidade, que, como bem diz Monod, o puro acaso oferece.
Mas que acontece em nosso exemplo? Há um seletor de dados, que impede certos dados de
voltar a misturar-se ao acaso. A mente (seja um computador, seja um cérebro humano) tirou um
dado do acaso e tem-no “presente”. Capturou-o. Se esse dado voltasse aos caos inicial e o inventor
o esquecesse, depois de experimentado (como faz com grande parte do resto), jamais existiria o
“invento”. Isto é, a novidade. Em outras palavras, “o puro acaso” (mesmo que seja relativo, como
diz Monod,16
referindo-se ao encontro “casual” de duas ou mais causalidades, por exemplo, a
gravidade e outros fatores que colocam a telha num equilíbrio inestável, e os motivos que me levam
a transitar por esse lugar, no momento em que o equilíbrio se rompe e a telha cai, não cria nenhuma
novidade). Ou, ainda, tudo o que produz é “novidade” que desaparece depois que acontece.
Somente é novidade no caso de ser capturada, quando deixa de ser acaso, porque algo que não é o
acaso tira-o do meramente fortuito e une-o a outros elementos para atuar como uma “causa” atual
ou potencial. Mas, a respeito do acaso, a “novidade” revela-se, então, como antropocêntrica.
16
Op. cit., p. 127.
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Terrivelmente antropocêntrica. O fato de que, hoje, esse número tenha saído numa roleta situada a
cem metros de minha casa não é “novidade”. Ou teria de chamar de novidade a cada um dos
números que saíram. Sim, chamo de novidade a algo cuja influência existe e permanece. E se tivera
que devolver ao acaso tudo o que ele entrega, mesmo se um dia ele pudesse dar-me uma rosa já
feita, que não tivesse eu “descoberto” uma roda; nem assim, ela seria uma novidade. Seria um
acontecimento fortuito a mais, que desapareceria exatamente como apareceu. Uma vez mais, o
“puro acaso”, o “apenas acaso” não é fonte de novidade alguma. Somente pode produzir uma
novidade se é utilizado por uma máquina ou mente humana. Se a natureza “bricola”, é preciso pagar
por isso, com pura lógica.
Por não pagar esse preço, com sua falta de lógica, Monod pode, com toda (aparente)
tranqüilidade, apresentar a teleonomia da evolução.
A invariância do “plano” químico fundamental da célula, evidentemente, só se pode explicar pela
extrema coerência do sistema teleonômico, que, na evolução, jogou, ao mesmo tempo, com o papel de
guia e de freio, e não reteve, nem ampliou, nem integrou (como verdadeiras novidades) mais do que uma
ínfima fração das probabilidades que, em números astronômicos, lhe oferecia a roleta da natureza.17
E pode fazê-lo, porque acreditou mostrar que todo esse aparente edifício teleonômico está
baseado no puro acaso e que desaparecerá com ele. O que nos parecia, em nossa mania
teleonômica, cheio de estranhas promessas, na realidade não era mais. “Nosso número saiu do jogo
de Montecarlo. Que há de estranho em que... sintamos a raridade de nossa condição?”.18
Com o
acaso no começo,
é muito necessário que o homem desperte de seu sono milenar para descobrir sua solidão total, sua
condição radical de forasteiro. Ele sabe agora, como um cigano, que está à margem do universo onde
deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente às suas esperanças, aos seus sofrimentos e aos seus
crimes.19
Assim, o pecado lógico de uma contradição — a de supor uma necessidade surgindo do puro
acaso — paga o preço de uma negativa voluntária. Teme-se o encontro com Deus, ao dobrar
qualquer esquina, quando se admite uma teleonomia global para o universo. Nisso, talvez, os
cristãos que acreditam ter provas físicas da existência de um Deus pessoal (provas de um valor
semelhante às que a ciência obtém para apoiar algumas de suas hipóteses) têm não pequena culpa.
Aqui não se pretende tal coisa. Crer num Deus pessoal, que deixa no universo os rastros de seus
valores, é uma aposta. Aposta tal como a que, acima da lógica, chama a outra aposta contrária —
que estejamos diante de um universo surdo às nossas esperanças, sofrimentos e crimes — a
“desesperação” de um agnosticismo elevado a dogma.
17
Ibidem. pp. 136-137.
18
Ibidem. p. 160.
19
Ibidem. p. 186.
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O que pretendemos, de fato, e poderá ser visto nos capítulos seguintes, é que, ao admitir como
nossa aposta esse Deus, não podemos deixar de lado, hoje, não, certamente, as falsas conclusões de
uma pretensa ciência — o cientificismo -, mas as orientações e categorias que a mesma ciência,
quando é consciente de seus limites, assinala a nosso pensamento. Atualmente, por exemplo,
sabemos que, se Deus criou um mundo como o nosso, tanto o acaso como certas “mensagens”
básicas de todos os seres vivos — e mesmo dos inertes — têm de passar ao pensamento teológico.
Hoje, já não se pode mais fazer teologia com o que um pensador tão grande como Tomás de Aquino
sabia do universo criado, ou com a simples e grandiosa mitologia do javista.
A teologia e o pensamento científico de hoje
Penso que, hoje, na Igreja católica, nenhum teólogo se negaria — mesmo que tenha sido difícil, e
recente, chegar a esse consenso — a assinar a última frase do parágrafo anterior. Casos como o de
Galileu — talvez menos clamorosos, mas muito mais abundantes do que se pensa — mostraram
como a teologia saiu enriquecida e mais amadurecida daqueles que, num passado, foram tidos como
conflitos (insolúveis) com as descobertas científicas e com as grandes hipóteses delas surgidas.
No entanto, não negar o princípio não quer dizer que se tenham aproveitado os conflitos
passados com a ciência, ou os avanços dessa última para repensar e aprofundar o dogma cristão. No
momento em que escrevo isto, as mudanças (mesmo tendo sido “boas”) nos dogmas sustentados,
invariavelmente, durante séculos (por falta das categorias de pensamentos correspondentes)
ameaçariam, parece, se não a ortodoxia, pelo menos uma unidade ou uniformidade na fé que,
segundo as tendências atuais, a Igreja deveria possuir para defender-se de tendências centrífugas ou
ataques externos. Assim, pois, as modificações sugeridas pelos teólogos, geralmente, não são bem-
vindas.
Neste item, talvez seja suficiente um exemplo. Tanto mais quanto está ligado, como se pode ver,
ao exemplo apresentado no item anterior, a propósito de uma (má) filosofia da ciência.
A exegese católica sabe que a doutrina agostiniana sobre o pecado original assimilado com o
pecado de Adão não pode, a rigor, basear-se na narração bíblica de Gênesis. Quando muito — coisa
discutível —, poderia basear-se em Paulo, que considera Adão como o “inaugurador” de um pecado
que — Paulo não diz como — passa dele a todos os homens. Quanto à narrativa do pecado de Adão
no Gênesis, como todos sabem, é atribuída ao cronista real chamado javista. Pois bem, por razões
impostas ou por própria vocação, esse autor caracteriza-se por prestar uma destacada atenção às
narrativas chamadas “etiológicas”, ou seja, àquelas que versam sobre a origem de estruturas sociais,
lugares ou costumes em destaque, etc., existentes na época em que escreve.
A narração do pecado de Adão é também etiológica. Cabe, então, perguntar-se sobre o que é isso
cuja origem se narra aí. Um primeiro indício nos é dado pela continuidade entre a criação do
universo, a estadia fugaz do homem no Jardim do Éden, e as características da terra, na qual
“aterriza” — vale a redundância — quando é expulso do jardim. Um segundo indício é o louvor que
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a obra criadora de cada dia arranca, por assim dizer, do criador e que culmina ao fim do sexto dia:
“[...] Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). É verdade que a primeira
narrativa da criação, em sete dias, pertence ao sacerdotal, que escreve em meados do século VI a.C.,
longe cinco séculos do javista. Mas, o compilador, seja quem tenha sido, não pôde passar por alto a
bondade do que saiu das mãos, ou melhor, da Palavra de Deus, e colocou, assim, bem próximas a
narração da origem de um universo “muito bom” e a descrição de uma terra desequilibrada e
rebelde.
Em todo caso, para voltar ao javista, a bondade do criado aparece também, dessa vez de maneira
crescente, em sua narração. Ela é muito mais antropocêntrica, e a bondade da criação parece estar,
aí, sempre ligada ao bem-estar do homem. Assim, ele é colocado, desde o começo, num “jardim”
com “toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer” (Gn 2,9). E quando Yahweh
percebe que algo não está bem, nesse quadro idílico — a solidão do homem -, dedica-se a buscar
uma “ajuda adequada” para ele, criando a mulher, pela qual o homem deixará tudo para formar uma
unidade total com ela. E este é, poderíamos dizer, o terceiro indício. Ou mais do que um indício:
sinal eloqüente da origem que se procura encontrar ou esclarecer. De fato, em seguida a essa
descrição, vem a apresentação da serpente e de seu plano, cuja execução ocupa o terceiro capítulo.
Ao final dele, o quadro que a vida humana nos oferece é completamente diferente; é mais,
absolutamente oposto à prévia descrição da obra criadora: o homem será devolvido ao pó da terra
do qual foi formado (Deus retira-lhe, assim, seu espírito vital); o solo da terra será maldito,
produzirá espinhos e abrolhos; o homem deverá tirar dele o seu sustento, com fadiga e suor; a
mulher será dominada pelo homem; o parto de seus filhos se fará com dor; e, finalmente, a relação
entre o homem e a mulher estará sujeita a uma vergonha que a tornará difícil.
Se, pois, esta é uma narração etiológica, sua intenção não pode ser mais clara
(independentemente de sua polivalência simbólica):20
que pode ter acontecido entre uma criação
que, procedente de Deus, somente podia ser boa, e muito boa, e, por outro lado, a terra e a
existência nela, que o homem conhece como inevitável e penosa? Não existe, no javismo, um deus
do mal. Assim, ao não mediar essa narração, teríamos de concluir que Deus não criou bem, ou não
com boas intenções, as coisas do universo que estão relacionadas ao homem.
A narrativa do pecado de Adão no javista não explica, pois, por que cada homem seria pecador
por nascimento, por que não poderia ir ao céu sem antes levantar a hipoteca do pecado que teria
contraído em Adão, por que estaria de inimizade com Deus e necessitado de redenção; nem, muito
menos ainda, por que estaria inclinado ao mal, a partir de seu nascimento. Explica, sim, por que
uma criação, que o homem recebe das mãos de Deus, sem que haja intervenção de ninguém mais do
que ele e o próprio homem que a recebe, contenha tantas imperfeições e dor.
20
Por exemplo, a relação com o culto à serpente e a promessa de “saber (fazer) o bem e o mal”
sugerem que esse pecado — tentativa simiesca de igualar-se a Deus — era o pecado
sincretista de exercer a mágica própria das religiões cananéias dos arredores.
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Se Paulo — assim como Agostinho, a Reforma e a Contra-Reforma — tivesse tido, em sua
época, os instrumentos exegéticos que o cristão, intérprete da Bíblia, deve empregar hoje, segundo a
Divino afflante Spiritu (de Pio XII), não poderia ter escrito, como o fez, o capítulo quinto de
Romanos, onde atribui a Adão uma certa causalidade (mais do que exemplar) no fato de que o
pecado afete, de um modo decisivo, a relação de todos os homens com Deus, desde o princípio até o
fim da humanidade. Não significa que este último não seja verdade, mas apenas que não é, em boa
exegese, algo presente na narrativa do javista.
Reduzida à sua própria intenção, essa narração trata de solucionar apenas um problema: como
surgem, na existência do homem recém-criado, tantas coisas imperfeitas e dolorosas. O causador
delas é Deus, ou é o homem. Não pode ser Deus. Logo...
Se não tivéssemos outros dados além da mencionada narração do pecado adâmico, poderíamos
dizer que estamos, aí, diante de um conteúdo teológico fundamental: as imperfeições e sofrimentos
que a condição humana leva consigo não procedem de que Deus os tenha infligido ao homem,
desde o primeiro — Adão — até o último. Por outro lado, a imagem literária e o nível de
conhecimentos da época, que envolvem essa certeza central, manifestam-se na narrativa de um
pecado humano que teria sido transmitido a toda a raça dos homens.
Paulo, na Carta aos Romanos, teria acrescentado a isso que não somente imperfeições e
sofrimentos se aderiam à condição humana, mas também uma relação inextrincável com o pecado.
Que Adão seja aquele que, dessa maneira, nos constitui a todos “pecadores” seria uma afirmação
teológica própria dele (autor inspirado) e que, na busca de uma base bíblica, apóia-se, mesmo não
tendo o rigor da exegese atual, na narração do Gênesis. Vale, digamos, a fortiori, mesmo que não se
possa atribuir tal conseqüência à própria narrativa do javista.
No entanto, a adição que Paulo teria feito não está isenta de graves dificuldades. O pecado é um
ato humano e não pode transmitir-se como se contrai uma doença. Ninguém pode pecar pelo outro.
Nem constituir pecador a outro, com os atos que faz. É verdade que Paulo diz que “todos pecaram”,
mas a força de seu argumento está em que ninguém pode escapar dessa afirmação, porque todos
descendem do mesmo pai pecador: Adão. Daí que a teologia se viu obrigada a fazer uma distinção
quimérica: o pecado adâmico em nós não seria um pecado pessoal. Não obstante, como, para entrar
no céu, se exige que esse pecado seja perdoado, é necessário dizer que se trata de um pecado real.
Mas como pode um pecado que não é pessoalmente meu tornar-se um pecado realmente meu, a
ponto de impedir-me a união com Deus? A distinção apenas consegue ocultar pela metade a
contradição.
Por outro lado, não é possível negar que tanto a afirmação do javista como a de Paulo encontram
um eco em nossa experiência. Primeiramente, a título de problemas reais, dos quais não é possível
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fugir. E depois, a título de elementos antropológicos, com os quais é preciso contar, numa análise
plausível do que é a existência humana.21
O que eu pretendo aqui, sem ter o tempo, nem os elementos para desenvolvê-lo, é que as
categorias de explicações, que procedem da filosofia da ciência e, especialmente, das que se
propõem a explicar a evolução biológica, podem servir, ao mesmo tempo, para explicar melhor —
sem contradições — e para tirar conclusões mais valiosas dessas afirmações do javista e de Paulo.
Conservando o que poderíamos chamar de idéia fundamental, podem, como a própria Igreja pede,
prescindir de tipos de pensamento fixistas, que foram superados e que não permitem perceber toda a
plausibilidade do que os autores inspirados, na realidade, quiseram consignar por escrito (mesmo
que lhes faltasse o instrumento intelectual adequado na cultura que conheciam).22
Apenas para que o leitor compreenda a que me refiro com esse exemplo, tentarei resumir,
brevemente, o que um pensamento surgido dessa extensão filosófica das experiências científicas —
a teoria da evolução — pode explicar melhor no caso do javista e de Paulo. Em primeiro lugar,
explicará melhor como uma criação recém-saída das mãos de Deus, fresca e intacta, encaminhada
para ser material da criação humana, começa com o desencadeamento de forças primitivas da vida,
que, olhadas a partir do hoje humano, pareceriam imperfeições e sofrimentos, que deveriam ser
castigo de algo ou, então, resultado de uma maldade incompreensível do próprio Deus, que teria
podido evitá-las (não esqueçamos que o homem de hoje, mesmo ciente dos argumentos da teoria
evolutiva, mantém um pensamento fixista para seu uso diário...). A criação, em sua viagem até o
homem, não para pisá-lo, mas para ir tornando cada vez mais importantes, decisivos e propriamente
criativos, a liberdade e os projetos de amor dos homens, ao fazê-los cada vez mais interdependentes,
de alguma maneira aumenta a dose de dor com a qual os homens devem defrontar-se no mundo
criado. Forçosamente. Por acaso, amar não é tornar-se dependente de uma pessoa que, quanto mais
amada, mais pode causarnos uma dor maior? Se não existisse a dor, e se cada um de nós não a
pudéssemos evitar aos demais, por meio de projetos de injustiça, solidariedade e amor, cada um de
21
Não se trata de uma casualidade o fato de que um homem tão afastado do pensamento cristão,
como S. Freud, fale das origens infantis do desejo em termos de “pecado” ou, se se prefere, de
“imoralidade”: o “perverso polimorfo”. É verdade que seu interesse vai sublinhar mais o adjetivo
do que o substantivo (adjetivado), uma vez que lhe interessa mostrar as diferentes e
disfarçadas formas que toma a libido na primeira etapa da infância. Mas, mesmo assim, o
qualitativo de “perverso” faz alusão a que essa criança, considerada “inocente” (pelo sentido
comum, não pela teologia), conhece apenas os limites impostos desde fora para seus desejos. É
ainda um gesto egoísta total. Somente mais tarde a “realidade” ensina-lhe a fazer rodeios cada
vez maiores em busca de satisfações mais seguras, e é nesses rodeios onde encontra e começa
a respeitar e depois a amar de verdade outras pessoas, solidarizando-se com elas.
22
Indico ao leitor, curioso de saber como e quando é válida e mesmo necessária a reformulação e
reforma das fórmulas dogmáticas, a instrução Mysterium Ecclesiae, da Congregação (Romana)
para a Doutrina da Fé, onde se lê (entre outros motivos para essas necessárias reformulações):
“Acontece... não poucas vezes, que uma verdade dogmática expressa-se primeiramente de
modo incompleto, mas não falso; e, mais tarde, vista num contexto mais amplo da fé e dos
acontecimentos humanos, expressa-se mais perfeita e plenamente”. A instrução, escrita sob o
pontificado de Paulo VI, traz a assinatura do cardeal prefeito F. Seper. O grifo é meu, pois de
todas as razões dadas ali, esta é a que leva em conta, positivamente, a contribuição do
progresso científico ao “aperfeiçoamento” da verdade dogmática.
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nós caminharia independente e indiferente a todos os demais... Então, não é preciso imaginar um
desvio do plano divino em cada dor que a natureza nos inflige, nem dirigir perguntas angustiantes a
um mundo cruel.
Por outro lado, o que Paulo diz viria a resumir-se nisto: o homem, filho de Deus, herdeiro do
mundo, é um criador que deve criar, num mundo já feito. Não tem, como Deus, a capacidade de
criar instrumentos conforme a medida de seus projetos; de usar — não de criar — “a lei” que a
Palavra de Deus colocou nos meios que lhe proporcionaram o seu próprio ser, sua mente, sua
linguagem, sua genética e sua constituição biológica, a sociedade em que vive, a classe, a nação e
até a Igreja à qual pertence. Cada um desses supostos “instrumentos” do homem têm, na realidade,
seu mecanismo e suas leis próprias e sempre é mais fácil submeter a liberdade a essas leis e
mecanismos do que impor nossas decisões sobre instrumentos tão poderosos e que parecem ignorar
nossa liberdade.23
Somente uma vigilância crítica constante sobre nossa tendência a renunciar, diante do esforço
que significa a criação, e a deixar-nos levar por qualquer dessas leis instrumentais, unida a um
entusiasmo, levado até à doação da vida pelos projetos de justiça, amor e solidariedade que
planejamos, podem ajudar-nos a criar amor sobre nossos pecados. De fato, na medida em que
olhamos para trás em nossas vidas, vemos a escravidão como mais “original” do que os nossos
projetos de amor (cf. Rm 5,6-9). Exatamente como, na evolução, o infra-humano ou o inumano
precedem cada conquista dessa lei que a atravessa por inteiro, segundo Teilhard: a lei do amor. O
Éden não é nossa pré-história; é a nossa meta-história. Não nos diz adeus a partir do passado, mas
nos chama “ansiosamente” a partir de um futuro último de nossa história (cf. Rm 8,19-22).
Não sei se este resumo condensado de um ponto dogmático, tocado pela vara mágica de um
pensamento que não podia existir no tempo do javista, nem no de Paulo, poderá dar ao leitor,
mesmo que não compreenda todo o processo de pensamento que leva até à hipótese proposta, uma
idéia de como uma melhor categoria de pensamento ajuda a compreensão de um dogma que, de
outro modo, se torna difícil em sua expressão e entendimento.
O que creio que já deve ficar, a priori, claro é que não é forçar um pensamento velho do dois ou
três mil anos ou aplicar-lhe novas e melhores categorias, tiradas — por exemplo — da filosofia da
ciência.24
23
Cf., a esse respeito, minha exegese da segunda parte do capítulo VII de Romanos sobre o
pecado na antropologia paulina, em El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret, Ed. Cristiandad,
Madri, 1982, t. II/1, pp. 475ss.
24
Digo “filosofia da ciência” com o conhecimento de que a evolução, atualmente, é mais do que
uma hipótese. Os dados proporcionais por muitas ciências não deixam lugar a dúvidas acerca
de quais espécies de animais foram evoluindo, desde a vida unicelular mais primitiva e
simples. Sobre isso não há dúvidas. O que ainda não está, ao que parece, suficientemente
esclarecido (apesar do otimismo assinalado por Monod na obra já citada) são os mecanismos
que, irreversivelmente, levam a natureza a uma especialização crescente das espécies e a
conjuntos orgânicos e ecológicos que, em interdependência, combinam elementos cada vez
mais complexos e ricos. Assim, hipóteses “metafóricas”, tais como a de uma natureza
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Revelação de Deus e desenvolvimento do homem
Neste ponto, há algo que constitui um paradoxo, ao qual chegamos no item anterior. Pareceria
que a teologia católica, pelo menos aquela que admitiu as recentes orientações da exegese bíblica,
estivesse disposta a incorporar à teologia pensamentos que, para comodidade do leitor, poderiam
colocar-se na categoria da “filosofia da ciência”, mais do que categorias filosóficas propriamente
ditas. Certamente, no passado não foi assim e assim o prova o caso de Galileu e, o mais recente, da
relutância em admitir uma criação de Deus em termos evolutivos, compreendendo também o
homem.
Não obstante, penso que é fácil explicar esse paradoxo, ao qual me referia e é inegável,
atualmente. Creio ser fácil explicá-lo, pelo menos em seus aspectos mais superficiais e óbvios. As
incursões feitas pelos cientistas no plano da filosofia, a propósito da ciência que praticam,
comumente, não ultrapassam um plano que a teologia julga relativamente “exterior” a seus
interesses e perigos. Desde que, já de entrada, se concorde no princípio da diferença de gêneros
literários na Bíblia, hoje não se teme, como outrora, que um dado procedente da ciência se choque
frontalmente com a revelação. Já foram superadas as barreiras entre ciência e fé que por longo
tempo estiveram na moda.
Por outro lado, ainda é muito freqüente que a atenção dada à evolução e a seus mecanismos não
seja traduzida numa antropologia diferente, em âmbito do homem cotidiano. Qualquer um pode
fazer uma piada a respeito de que o homem descende do macaco; mas o sentido comum (ou a sua
falta) continua dominado, na maneira fixista com que se fala do homem e se manipula sua história.
Não existe, por exemplo, uma preocupação determinante pela “ecologia da mente”, como começa a
abrir caminho a preocupação pela ecologia do universo químico-biológico, constantemente violada
por essa doença (fixista) do homem moderno: sua “propositivitis”.
Uma semelhante exterioridade (real ou pressuposta) permite que se usem, “até os umbrais da
teologia”,25
as ciências que diretamente dizem respeito ao humano, como são as que versam sobre a
linguagem e as estruturas da narração ou do discurso.
Pois bem, o que acabo de dizer sobre a filosofia da ciência e seu possível impacto no plano
teológico não pode valer da mesma forma que a filosofia tout court. De fato, esta versa, pelo menos
“bricoleuse”, ou uma “mente” universal, lutam, sem estarem muito de acordo, com hipóteses
contrárias — como aquela de Monod — de um mundo surdo às esperanças ou aos
sofrimentos humanos. Há autores que parecem combinar (de forma não demasiado lógica)
esses dois tipos de hipóteses (cf. G. Bateson, Mind..., cit., p. 47 e nota, por um lado; e pp.
163ss., por outro). Em outras palavras, no tocante a essas hipóteses subordinadas para
explicar a evolução, parece que ainda estamos no plano da filosofia da ciência e não no da
“mera” ciência, no sentido ordinário da palavra.
25
A expressão é usada por G. Gutiérrez para indicar como a teologia da libertação usa métodos
das ciências sociais, mas apenas para preparar melhor o “material” — podemos dizê-lo assim,
com uma velha terminologia escolástica — sobre o qual se fará teologia.
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no princípio, sobre o mesmo objeto (metafísico) que a teologia. E assim como pode ser sua
“ancilla” (= escrava), também pode ser sua rival.
Certamente, é verdade que seria provavelmente bastante difícil assistir, nos dias de hoje —
refiro-me ao mundo católico —, a uma polêmica tão forte e, muitas vezes, tão amarga, como a que,
no princípio do século, dividiu Barth e Bultmann no campo protestante. E, precisamente, o seu
conteúdo foi a licitude do uso, pela teologia, da categoria de “autenticidade”, tirada (bem ou mal) da
fenomenologia de Heidegger e aplicada à interpretação teológica da Bíblia. Ou de formulações
dogmáticas, de uma ou outra maneira, dela derivadas.
Perguntará o leitor por que sustento que uma tal polêmica seria, hoje, difícil, no campo católico.
Não pretendo que se tenha resolvido, de maneira mais convincente, o problema de então. Mas, sim,
que existem duas poderosas razões para que não seja questionado, em princípio, como decisivo.
A primeira é que a teologia católica esteve acostumada, durante muitos séculos, a usar a filosofia
como serva: ancilla theologiae. Primeiro, os Padres da Igreja utilizaram o platonismo ou o
neoplatonismo de sua época. Depois, a partir da Idade Média, as grandes sínteses teológicas,
especialmente sob a influência de santo Tomás, incorporaram, com maior ou menor riqueza, a
filosofia de Aristóteles à explicação do dogma cristão. E essa incorporação esteve depois, durante
séculos, firmada na certeza de que a filosofia que assim servia de escrava à teologia era,
precisamente, uma filosofia “perene”. É claro que esse costume de usar a filosofia como “serva” em
teologia não significa estar preparado para aceitar que qualquer filosofia, prudentemente expurgada
de erros, possa oferecer semelhante serviço. Quem lê, sem piscar, como santo Tomás usa
Aristóteles, se escandalizará de que Maréchal use Kant, ou de que a teologia da libertação use Marx
(um homem muito mais próximo do cristianismo do que Aristóteles).
A segunda e principal razão para que não se aceite a radical rejeição de Barth, dirigida ao uso de
uma categoria heideggeriana de pensamento, vai mais ao fundo da questão. Barth pretendia que
quem faz passar a compreensão da escritura pelo crivo de uma determinada categoria filosófica se
faz surdo à Palavra de Deus e escuta somente o que essa categoria humana deixa passar. Essa
negativa de Barth foi comumente rejeitada por razões epistemológicas. A primeira, de caráter
negativo, é que é ilusório pretender que se possa ir escutar a Palavra de Deus sem limitações
humanas. Por acaso, alguém, que conhece as sutilezas da sintaxe de um idioma, estaria, assim,
opondo uma limitação humana à palavra divina? E aproximando-nos um pouco mais do cerne da
questão: por acaso, quem tem uma linha de conduta — com as experiências determinadas que elas
lhe oferecem — estaria, com isso, reduzindo a Palavra de Deus aos limites desse determinado
caminho empírico? Numa palavra: seria melhor ir escutar essa Palavra sem aplicar-lhe
conhecimento humano algum, seja a gramática, ou os gêneros literários, ou experiências vitais de
valores e crises? Pelo contrário, não será melhor aprofundar e enriquecer a problemática que
levamos à audição da Palavra divina?
Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 19
Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture
A epistemologia e a sociologia do conhecimento nos deram provas fidedignas de que não existe
uma escuta total, pura, neutra. Todo conhecer começa com um mundo de valores e experiências de
sentido determinados. Toda interpretação é circular (ou espiral). Não se trata de que não tenha força
alguma aquilo que nos é dito e que sempre estejamos ouvindo tudo e só aquilo que queremos ouvir.
Mas, sim, é certo: há más interpretações, porque nossa preparação para ouvir ainda não chegou, por
exemplo, ao nível problemático da resposta que se veicula na palavra de nosso interlocutor.
Finalmente, sobretudo depois do Vaticano II, a teologia da revelação tem insistido em que a
“revelação” de Deus é um ato no qual, de maneira especial, atuam em comum tanto Deus como o
homem. A concepção de uma revelação que passaria como a luz através do cristal não honra a
Deus, nem respeita o homem.26
Isso não quer dizer que o “revelado” esteja desarmado diante de
qualquer aproximação interpretativa. Não o está e a prova, a triste prova, permanece diante de
nossos olhos. O evangelho do Reino de Deus foi lido, durante cinco séculos, diante da miséria e
opressão da maioria dos habitantes da América Latina, sem ter suscitado o compromisso cristão de
mudar essa situação injusta e inumana. Mas bastou que houvesse uma conversão na atitude de
leitura — a opção pelos pobres — para que o texto mostrasse como já não era mais possível uma
leitura, deixando de lado as passagens mais claras, significativas e profundas dessa mesma
revelação evangélica.
Nada pode, então, poupar-nos de passar por uma prévia opção hermenêutica diante da Palavra de
Deus. Mas, uma vez que ela esteja feita, já não será este ou aquele sistema filosófico que vai guiar
nossa compreensão, mas será a própria revelação que terá de julgar quais as categorias de
pensamento e de linguagem podem expressar melhor aquilo que pode surgir dessa colaboração
Deus-homem num processo de revelação. É esse dia de hoje que nos constitui, como dizia Rahner,
irrepetíveis e únicos diante de Deus: estar diante de problemas que somente nós poderemos
enfrentar e resolver.
Por isso mesmo as categorias de pensamento que vou propor para a teologia, nos capítulos
seguintes, não procederão da ingênua crença de que tais filosofias durarão mais do que outras ou
serão “perenes”, mas da experiência de que são capazes, hoje, de dar mais força, raízes e riqueza à
mensagem que Deus quis comunicar a nossas existências.
26
Cf. G. Moran, Theology of revelation; A. Torres Queiruga, La revelación de Dios en la realización
del hombre; ou a minha, O dogma que liberta.

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Por que somar filosofia e teologia

  • 1. Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture [O texto a seguir foi retirado do livro Que mundo? Que homem? Que Deus?, de Juan Luis Segundo, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 9-40.] Por que “somar” filosofia & teologia? Não é suficientemente intrincada a teologia para que se queira somar-lhe as obscuridades ainda maiores dos sistemas filosóficos? O cristão comum que deseja compreender sua fé — e isso é fazer “teologia” — deverá levar ainda a pesada carga especulativa desse trabalho e colocar como sua base essa terra movediça, onde as filosofias aparecem e desaparecem sem, ao que parece, dar um passo decisivo adiante? Kant, ao começar a síntese de seu trabalho filosófico — na Crítica da razão pura —, nota, alarmado, essa diferença entre as filosofias que, incessantemente, se sucedem umas às outras, e as afirmações, verificações e teorias das ciências que se criam, se mantêm e se corrigem e, assim, fazem avançar o conhecimento a passos que, mesmo não excluindo erros e retrocessos parciais, terminam somando-se e dominando campos cada vez mais extensos da natureza. No entanto, o mesmo Kant, pretendendo remediar tão triste situação, parece que não conseguiu mais do que multiplicar esses edifícios perecíveis dos sistemas filosóficos, que são abandonados tão rapidamente como foram construídos... Isto é tão real que — do ponto de vista da sociologia, pelo menos — se poderia caracterizar um certo fim da Idade Moderna e talvez o pródromo de uma certa época pós-moderna, relegando a filosofia a ser apenas um ramo do saber histórico. Quero dizer com isto que, hoje, ensina-se filosofia muito mais como “história de filosofias” do que como sistematização das conquistas do conhecimento, em seu mais alto nível. Assim, com algumas honrosas exceções — como Heidegger — no nível universitário, a filosofia entra, sociologicamente, no círculo (vicioso?) de ter como seu quase único “mercado” a formação de futuros professores de filosofia. Ninguém parece necessitar dela como tal. Ainda no século passado, mesmo que o fenômeno não alcançasse uma unanimidade total, sistemas filosóficos podiam caracterizar — pelo menos na Europa ou na América do Norte — o estilo de pensamento de sociedades inteiras. Positivismo, racionalismo, idealismo, pragmatismo chegaram, dessa maneira, a constituir-se em pautas válidas para compreender fenômenos característicos de sociedades como a francesa, a alemã, a norte-americana etc. Nessa época, modelavam políticas, sistemas educativos e outros pontos decisivos da cultura. Sem dúvida, não deixavam de ser continuidades, mas mantinham verificações visíveis que hoje estão longe de aparecer na mesma proporção. Atualmente, ninguém se animaria, penso eu, em definir com um “ismo” qualquer pensamento “reinante”, seja na Alemanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos... É verdade que, talvez, um olhar mais aprofundado mostre que as coisas não são assim tão simples. E que o fenômeno tem matizes importantes que ainda não pusemos a descoberto.E vale a
  • 2. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 2 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture pena, mesmo numa forma pouco acadêmica, fazer algumas reflexões sobre tais matizes ou correções. Especialização das ciências e reflexão filosófica Recolocando o problema mencionado por Kant, como vimos, poderemos comprovar que as ciências — primeiro as naturais e depois as do espírito — adquiriram seu status científico e começaram a caminhar com passos firmes à medida em que se especializaram e, conseqüentemente, se afastaram da filosofia que antes as englobava. Aqui, seria possível perguntar pela origem dessa especialização. E, seguindo um pouco mais fundo na questão, pela origem dessa crescente diferenciação. Talvez, a resposta mais simples que se possa propiciar — a olhos de bom tanoeiro — é que as ciências foram diferenciando-se e depois afirmando-se (com seus progressos), na mesma medida em que criaram, cada uma num determinado campo do saber, instrumentos de medição e de manipulação cada vez mais precisos. Ou seja, a partir do momento em que se prenderam à medição empírica. Mesmo que a divisão entre ciências da natureza e ciências do espírito tenha aparecido cada vez mais claramente como inadequada, serviu ainda durante muito tempo para dividir, grosso modo, os terrenos onde a ciência reinava incontestavelmente e aqueles onde as disciplinas pertencentes (pelo menos parcialmente) ao terreno filosófico ainda tinham muito que dizer. Também nos campos do espírito, o descobrimento de medidas e instrumentos mais precisos e eficazes foram inclinando cada vez mais para a ciência os conhecimentos sistemáticos, que, em outras épocas, foram filosofia. Creio não ter sido nenhuma casualidade o fato de que a psicanálise, minada como estava de hipóteses filosóficas, fosse aceita a modo de uma ciência um pouco especial. A “prática psicanalítica” tornou isso possível, assimilando o que parecia — e era, segundo o título de uma das obras de Freud: “metapsicologia” — a solução de problemas.empíricos da psique humana. Agradando ou não aos puritanos do positivismo, algo que se enfrenta com êxito para com a experiência, em terrenos tão intrincados e difíceis como os sonhos, as neuroses etc., “merecia” um rótulo que a resgatasse da areia movediça dos sistemas filosóficos, e lhe permitisse ingressar nas universidades propriamente ditas, como um (autêntico) saber que transformava a realidade. Assim, durante a Idade Moderna, os grandiosos avanços das ciências naturais e, em menor grau, os das ciências do espírito, estiveram em proporção direta com sua diferenciação e especialização. Ou seja, em proporção inversa com sua (antes suposta) pertença a um saber indiferenciado que fazia uso de instrumentos tão vagos e grosseiros como os conceitos de Deus, homem, universo, com suas correspondentes relações causais e finalísticas. O positivismo científico acreditou estar no ponto de passagem, ou haver passado já, da etapa metafísica (= filosófica) à última (segundo a história seriada de Comte): a científica. Dir-se-ia, assim, que esta proporção inversa entre a dimensão das (ou o interesse suscitado pelas) ciências e da filosofia, respectivamente, acabaria reduzido o campo desta última em algo que não se
  • 3. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 3 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture poderia definir ou medir. Em outras palavras, em algo que, ao não estar com o pé firme no empírico, necessitasse de base sólida para marcar um avanço seguro e sustentável. O último reduto da filosofia seria, assim, a ontologia. Para designar essa área, prefiro o termo “ontologia” ao de “metafísica”, usado por Comte, já que “metafísica” — semelhante à “metapsicologia”, da qual fala Freud — pode, utilmente, designar essa zona dos problemas últimos da própria ciência. Ao contrário, entende-se normalmente ontologia como a área dos grandes conceitos abstratos: o ser, o espírito, a matéria, o universo e sua última origem (valha o paradoxo), todos esses elementos que a ontologia procuraria sistematizar em sua essência e em suas respectivas relações. E, precisamente, seria essa a filosofia que estaria moribunda, epistemologicamente reduzida a um estatuto dessas meias ciências que, como a história da astrologia, ajudam a compreender para onde se orientou, no passado, a curiosidade do espírito humano, à falta de rumos certos. Fora desse campo histórico e, conseqüentemente, empírico, a filosofia não seria, então, capaz de fixar por si própria uma linguagem de afirmações verificáveis, única comunicação, que — pareceria — veiculava uma autêntica informação. No entanto, essa espécie de caricatura desalentadora daquela que, no princípio, foi a fonte das ciências, e converteu-se em sua rainha, para depois decair em importância, à medida em que as ciências se independizavam dela, é uma imagem enganadora ou, se se prefere, uma meia-verdade. Mesmo que, sociologicamente, não se possa negar grande parte daquilo que os fatos mostram nesse campo da moderna “divisão do trabalho”, específica da função de conhecer a realidade. De fato, qual seria, hoje, a situação “epistemológica” — isto é, relativa ao modo e possibilidades de conhecer — das ciências? A rejeição do filosófico do plano do científico perdeu muito de sua virulência e — eu diria mais — da incontestável vigência que teve em épocas não muito longínquas.1 Existe um caso excepcional, que não pode ser passado por alto. Refiro-me ao que se costuma chamar, mesmo que de um modo bastante ambíguo, de “ciências puras”. Seu tipo seria a matemática ou a lógica formal. Dir-se-ia que essas “ciências” conseguem o ideal de deixar a filosofia completamente fora de seu caminho. Mas, na realidade, sua “pureza” consiste apenas no fato de que não se aplicam à realidade externa ao sujeito que conhece: são ciências que, mais do que a realidade, exploram as leis do conhecimento, e sua identificação com o próprio fato de conhecer toma ali o lugar de verificação. Dizia que a ambigüidade latente no estatuto dessas ciências consiste em que, no fundo, são tão “puras” que acabam sendo a própria “filosofia”. De fato, também aqui a 1 Cito ao acaso, como exemplo recente, a resenha publicada no início de 1989, numa revista francesa, a propósito do livro La mélodie sécrète, de Trinh Xuan Thuan, professor da Universidade de Virgínia (Estados Unidos): “‘A existência do ser humano está inscrita na propriedade de cada átomo, estrela e galáxia do Universo, e em cada lei física que rege o cosmo’. Isso está escrito num livro que surge nestes dias (Ed. Fayard, Paris) e que vai criar outro big bang no lanterneau científico; porque é a primeira vez, há muito tempo, que um cientista de raça pura se dá ao luxo, em pleno centro de uma obra científica, de escrever um capítulo advogando... a existência de Deus”.
  • 4. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 4 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture sociologia tem algo interessante para dizer, pois mostra que isso, que ainda subsiste da investigação filosófica, tem o mesmo objeto dessas que são chamadas de ciências puras. Não será esta uma das exceções que confirma a regra? Por outro lado — e qualquer que seja a resposta que se dê ao problema anterior — pareceria que todas as ciências (aplicadas), que tiveram a pretensão de libertar-se da filosofia, chegam, mais cedo ou mais tarde, às zonas onde lhes são questionados problemas claramente filosóficos. É difícil arrancar dos habituais cientistas essa confissão (de culpabilidade?). Mas ela acaba aparecendo, muitas vezes implícita, na forma desajeitada com que se trata de fugir do problema. É verdade que as informações da imprensa, geralmente, não estão redigidas numa linguagem científica e, provavelmente, não representam com exatidão o que o cientista teria dito. No entanto, não é raro encontrar frases como estas: “[...] as sondas enviadas a diferentes planetas do sistema solar e as fotografias que elas fizeram esclarecem muito a incógnita sobre a origem do universo”. De fato, na literatura, mesmo a científica, são abundantes as expressões sobre essa presumível origem, isto é, sobre o big bang com o qual o universo que conhecemos teria começado. Uma enorme concentração de energia inicial teria explodido, lançando a matéria de que estão feitas as galáxias, com suas estrelas e planetas, em todas as direções do espaço (ainda por fazer). Nosso próprio sistema solar estaria hoje viajando, numa velocidade fantástica, impulsionado por essa explosão, e afastando-se de todos os demais elementos oriundos dessa deflagração... Suponho que haja suficientes maneiras de verificar, por inferência, essas afirmações. Mas que relação possuem com a origem do universo propriamente dito? Afirmar algo sobre isso seria tão pouco científico como pretender que se descobriu a “origem” das espécies biológicas ao comprovar que todas nasceram no mar e depois permaneceram nele ou o abandonaram... O que é pouco científico, no entanto, não é dizer: até aqui chegou a ciência; mas, sim, é pouco científico dizer que se descobriu a “origem” de algo, quando subsiste ainda por trás desse algo um visível e até enorme porquê ou um como, que — contrariamente ao grande postulado científico da racionalidade universal — se escamoteia. Como se vê, não se trata de que haja ciências que, por ser da “natureza”, possam prescindir de perguntas fundamentais. Não existe uma cortante divisão entre essas ciências e as do espírito. A física, a química, a astronomia, a biologia, ao final dos porquês verificáveis até onde chegou o conhecimento, colocam outros, para os quais não se têm instrumentos de medição ou técnicas de manipulação. Antes, esses tais porquês eram matéria da filosofia, que explicitava essas questões a partir do começo. Para tratá-las, havia métodos sobre cuja validez pode-se discutir muito. Hoje, depois de assinar a ata de independência da ciência em questão, essas mesmas perguntas, ou outras semelhantes, surgem ao final das explicitações e mecanismos verificáveis, mesmo que seja pelas constantes probabilísticas. Muitas vezes, essas questões são silenciosas. O cientista tem vergonha de
  • 5. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 5 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture perguntar sobre o que se lhe disse que não entra no âmbito de sua ciência.2 E, geralmente, o tabu é eficaz. Como quando se associa o big bang com a origem e, portanto, com a explicação do universo. Mas, outras vezes, o cientista quer ser fiel a um imperativo, que é parte da própria ciência, e explicar aquilo que ainda não sabe se é uma lei ou o efeito do mero acaso. Ele precisa, então, ir mais além dos porquês já conhecidos, mesmo que não vislumbre, ainda, como vai verificar o que descubra ou deduza. Mas, em tais casos, apesar de que não costuma silenciar — como antes — a filosofia, pratica-a muitas vezes de uma forma que chega aos limites do “amadorismo”. O novo “objeto” desorienta. E, como era de temer-se, a falta de prática num campo que já não é puramente científico me anima a afirmar que muitas vezes o homem de ciência faz uma má “filosofia”. Não é raro o fato de grandes cientistas produzirem uma má filosofia ao término das investigações realizadas no campo empírico, onde se destacaram. Epistemologia científica, acaso e teleonomia Neste momento introdutório, um exemplo poderia, talvez, lustrar o que acabo de afirmar, de forma tão despreocupada, como poderá pensar o leitor. Ninguém discute os méritos de Jacques Monod no campo da química genética ou da biologia em geral, méritos pelos quais obteve o prêmio Nobel. Pois bem, Monod, como outros grandes cientistas, pretende remontar-se, o mais longe possível, na cadeia dos porquês. Até às margens, se for possível. Mas não quer que essas origens empurrem a mente além de empírico. Para isso, Monod acredita ser necessário evitar uma armadilha que, por analogia com certos fenômenos religiosos primitivos, chama de “animismo”. Epistemologicamente falando, trata-se da tendência que tem o conhecimento humano de explicar o funcionamento das coisas (ou, no caso menos grave, o comportamento de seres vivos não humanos) por meio de procedimentos que, a rigor, são válidos apenas para as ações humanas. Elas são explicadas, assim, por uma “alma” que, para ser preciso, não têm. Monod descreve, assim, o “animismo”, do qual todo conhecimento, que pretenda ser verdadeiramente objetivo, deve fugir: “O ponto essencial do animismo (tal como creio defini-lo aqui) consiste numa projeção da consciência que possui o homem do funcionamento intensamente teleonômico de seu próprio sistema nervoso central à natureza inanimada”.3 2 G. Bateson escreve (Pasos hacia una ecologia de la mente. Trad. cast. Ed. Carlos Lohlé. Buenos Aires, 1972. pp. 293-294): Se, há quinze anos, me tivessem perguntando o que eu entendia pela palavra ‘materialismo’, creio que teria dito que o materialismo é uma teoria sobre a natureza do universo, e teria aceito como algo evidente a idéia de que essa teoria é amoral, em algum sentido... Hoje, se me fizessem a mesma pergunta a respeito do significado do materialismo, responderia que esta palavra, no meu pensamento, representa uma coleção de regras a respeito de quais perguntas devem ser feitas sobre a natureza do universo” (O original dessa obra, à qual me referirei com a primeira palavra do título inglês, quando entenda que seja necessário uma melhor tradução, é Steps to an ecology of mind. Ballantine Books, New York, 1974 (3). 3 Jacques Monod, El azar y la necesidad. Trad. cast. Ed. Barral, Barcelona, 1970. pp. 41-42.
  • 6. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 6 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture Do ponto de vista filosófico, é imprescindível prestar uma atenção decisiva à distinção que se faz, aqui, entre natureza inanimada e natureza viva (a mesma que entre química inorgânica e química orgânica). Existe animismo quando se projeta o que é próprio de um ser dotado de “sistema nervoso central” sobre os seres de uma natureza onde reina o acaso acima de todas as coisas. No entanto, mesmo que seja perigoso fazê-lo, não é animismo atribuir “finalidades” — Monod parece temer infringir, aqui, tabu positivista e usa o equivalente grego de finalidade: teleonomia —, intenções e outras atitudes “antropomórficas” ao seres vivos. De fato, é uma característica essencial dos seres vivos “a de ser objetos dotados de um projeto, que ao mesmo tempo representam em suas estruturas e cumprem com suas performances”.4 Não sei se o leitor terá percebido um artifício lógico (ou ilógico), muitas vezes usado por Monod, manejado aqui ao dizer que os seres vivos são “dotados” de teleonomia. A voz passiva permite-lhe falar de algo que existe, sem mencionar o problema de sua origem. Na voz ativa, a frase deveria ter um sujeito para o verbo “dotar”. Ao passo que, na passiva, a frase “parece” ter sentido ainda, mesmo que não se lhe acrescente o correspondente complemento: “ser dotado por...”.5 Seja como for, Monod encontra-se diante da antinomia de que “o princípio de objetividade”, ao qual deve sujeitar-se a ciência (para impedir o subjetivismo animista) deveria mostrar uma “natureza sem projetos”. Mas a característica mais visível dos fenômenos naturais associados à “vida” é precisamente a teleonomia, ou finalidade, a fonte desses projetos vivos que são todos os seres animados. A maneira de sair dessa antinomia, própria do neodarwinismo, consiste em fixar a atenção em outra qualidade dos seres vivos, que, supostamente, é a “invariância”, com a que qualquer um desses seres se reproduz, formando outro ser igual a si mesmo. Pois bem, se fosse possível mostrar — e aqui vem Darwin em pessoa — que a teleonomia procede da invariância e não o inverso, ter-se-ia a vantagem de salvar o princípio de objetividade.6 De fato, pelo menos na aparência, a invariância é uma qualidade impessoal, ou seja, não antropomórfica (como o seria a teleonomia). A reprodução, a grande qualidade vital, produziria teleonomia somente quando se encontrasse em luta contra a morte, diante das mudanças externas do ambiente. Em outras palavras: reprodução ameaçada = teleonomia. Dessa forma, o mínimo de teleonomia — a luta pela vida ou seleção natural — e de teleonomia quase totalmente extrínseca fica assegurado, segundo Monod. Se isso não é darwinismo puro, é porque Darwin não conhecia, como Monod, os agentes e o mecanismo da genética, ou seja, do 4 Ibidem. p. 20. 5 Por exemplo: “...algo tirado do puro acaso” (p. 133); “... acaso captado, conservado, reproduzido pela maquinaria da invariância, e assim convertido em ordem” (p. 110), onde “pela maquinaria da invariância” não é o verdadeiro agente, já que a invariância é o resultado de uma ação cujo sujeito fica ainda escamoteado na expressão. 6 A “seleção natural” pela pressão mortífera do ambiente, dizimando os animais que não possuem o que no começo foi uma anomalia (genética) explicaria assim, aparentemente, sem teleonomia, a “sobrevivência dos mais aptos”, expressão cunhada, parece, por Spencer, mas apropriada por Darwin. Chegar-se-ia, assim, ao que Monod chama “a única (hipótese) aceitável aos olhos da ciência moderna: que a invariância, necessariamente, precede à teleonomia” (op. cit., p. 35).
  • 7. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 7 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture elemento responsável da invariância.7 Isso, em sua época, levou-o demasiado próximo de um lamarckianismo (tão errado como animista). Mas não estaríamos, aqui, diante de uma hipótese de explicação parecida com aquela que atribui a origem propriamente dita do mundo ao big bang? Porque, de fato, de onde provém a aparição, no mundo inanimado, sem teleonomia alguma, dessa “necessidade” que, essencialmente, une o ser vivo à reprodução? Essa, por mais “impessoal” e mecânica que pareça, já encerra — e assim Monod tem de confessá-lo8 — a teleonomia, na qual se baseia toda comunicação por códigos decifrados. De fato, a genética é um mecanismo de comunicação e toda comunicação supõe um processo de percepção, transformação desta em código, recepção e decodificação do código pelo receptor e transformação da mensagem em orientações sobre como dar forma ao novo ser. Assim, dizer que, atualmente, o mecanismo central da evolução está explicado, porque se sabe a origem da invariância genética, é não dizer nada... A não ser que seja atribuído ao acaso. O acaso diz respeito a uma “indeterminação” ou falta de necessidade entre diversos objetos ou acontecimentos. O “puro acaso”, perfeito, é um conceito limite. O que o homem realmente pode experimentar é o acaso delimitado pelo jogo das causalidades. Assim, a existência de uma realidade dependente do acaso torna-se algo empírico, mesmo que seja apenas nessas imitações (sempre imperfeitas) do “acaso”, que o homem constrói para finalidades diferentes, normalmente mas não necessariamente, associadas ao jogo. Além do mais, o acaso é uma hipótese cientificamente muito convincente para explicar certas anomalias, como, por exemplo, na reprodução genética. No entanto, gostaria de deixar claro — e deixando de lado outras dificuldades que o conceito de “puro acaso” possa ter — que o que um cientista não deve fazer é disfarçar com o acaso uma mera ignorância das causas que produzem certos efeitos. Se digo, por exemplo, que é o acaso que faz com que as coisas caiam em direção ao centro de gravidade, que para nós, na terra, é o centro do planeta, não estou diante de uma hipótese científica, mas de uma escapatória indigna do mais obtuso estudante de física.9 No entanto, não é supérfluo prevenir esse falso uso, pretensamente científico, do conceito de acaso. E isso por uma razão de tipo filosófico que tem bastante relação com o que estamos examinando aqui, em relação a Monod. O positivismo quis construir uma ciência sem “ontologia”. Ou, talvez, poder-se-ia dizer, com a menor dose possível de metafísica. Daí que, queira ou não, goste ou não goste Monod, a influência determinante da finalidade na esfera biológica faz com que as perguntas sobre o “para que...” se acumulem numa escalada que ameaça terminar com o perguntar-se que sentido ou finalidade pode 7 Cf. ibidem. 8 Cf. ibidem. p. 136. 9 Gregory Bateson ironiza sobre essas pseudo-explicações, que, na realidade, não explicam coisa alguma, e coloca como exemplo o que se pretende explicar com o termo “instinto”, comparando-o com a explicação dada pelo candidato a médico de por que o ópio faz dormir, na comédia de Molière Le malade imaginaire (Cf. Bateson, G. Mind and nature. Bantam Books, New York, 1980. p. 95. Existe tradução castelhana dessa obra publicada em Buenos Aires pela Ed. Amorrortu, com o título Espíritu y naturaleza).
  • 8. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 8 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture ter o universo inteiro. E daí à pergunta pelo Criador não há mais que um passo... E este é o paradoxo: a teoria da evolução biológica, nascida como uma hipótese radicalmente oposta à da criação, transforma-se, agora, em algo perigosamente próximo dela. De fato, aquilo que, no mundo “inanimado”, parece estar regido pelo puro acaso, como diz Monod, entra numa “evolução”, onde a “necessidade” substitui-se ao acaso, colocando diante dos acontecimentos uma flecha indicadora de uma direção necessária.10 O universo parece, então, aos olhos do cientista, uma mescla desses dois elementos, que também compõem o título da obra de Monod: O acaso e a necessidade. O acaso tem a enorme vantagem positivista de não exigir — e mais ainda, a de rejeitar — a pergunta por uma causalidade. O que surge do acaso não tem outra razão mais suficiente do que o próprio acaso. Daí que, se fosse possível reduzir ao acaso toda a “necessidade” que cresce com a evolução, esta seria despojada de seu perigo metafísico. O próprio mundo necessário seria fruto do acaso. E não haveria mais o que perguntar. Toda a aventura humana não passaria de uma estranha e improbabilíssima mudança de uma molécula, que começou a se reproduzir e a introduzir a teleonomia e a necessidade de um mundo, que continua jogando com o acaso às portas da não existência, à qual voltará, mais cedo ou mais tarde.11 (Assim, o cientista desprende-se do animismo e desperta, depois de um sono milenar, para um mundo que o guarda, surdo à sua música...) Mas o leitor vai me permitir resumir e observar novamente o raciocínio de Monod. Ele afirma algo assim como isto: dada a invariância (não se esqueça de que esta roubou seu primeiro lugar à teleonomia), que se explica pelo mecanismo conservador da química genética, é preciso explicar como a invariância varia, pois isso é o que mostra a evolução. É preciso, nas próprias palavras de Monod, explicar “diferentes tipos de alterações acidentais discretas”.12 Senão, invariância e evolução seriam termos contraditórios. Pois bem, eis aqui a explicação: Dizemos que essas alterações são acidentais, que acontecem ao acaso. E já que constituem a única fonte possível de modificações do texto genético (invariante por si mesmo), único depositário, por sua vez, das estruturas hereditárias do organismo, deduz-se, necessariamente, que somente o acaso está na origem de toda novidade, de toda criação na biosfera.13 10 O que o próprio Monod chama de “ordem”, ou seja, o acaso feito prisioneiro... E, a partir daí, qualquer forma de falar da origem e da essência dessa “necessidade” terá de ser “animista”. De fato, do ponto de vista da termodinâmica, estamos diante de um fenômeno de crescimento de neguentropia e, por sua vez, todo crescimento de neguentropia (mesmo que seja parcial) deve ser nomeado, fazendo alusão a algo assim como o “demônio de Maxwell” (Cf. J. Monod, op. cit., p. 71, e o título do cap. III: “Os demônios de Maxwell”, p. 55). 11 Assim, “o homem necessita, e muito, despertar de seu sono milenar para descobrir sua solidão total, sua radical marginalidade. Ele sabe agora, como um cigano, que está à margem do universo onde deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente às esperanças, aos seus sofrimentos e aos seus crimes” (ibidem, p. 186). 12 Ibidem. p. 125. 13 Ibidem. pp. 125-126; os grifos são do autor.
  • 9. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 9 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture A partir daqui, Monod entoa um hino a essa que parece ser a mais originária e compreensiva hipótese: O puro acaso, o único acaso, liberdade absoluta mas cega, na própria raiz do prodigioso edifício da evolução: essa noção central da biologia moderna já não é, atualmente, uma hipótese entre outras possíveis ou, ao menos, concebíveis. É a única concebível... É também, de todas as ciências, a mais destrutiva de todo antropocentrismo, a mais inaceitável intuitivamente para os seres intensamente teleonômicos que somos nós (os homens). De fato, dessa maneira, “o acidente singular... tirado do reino do puro acaso, entra no da necessidade, (no das) certezas mais implacáveis”.14 Eis aqui a prova que percebo de minha afirmação anterior? Que um grande cientista pode ser um mau filósofo amador. Vejamos, então, se não. A invariância, mesmo que despojada de toda conotação subjetiva — ou, talvez, por causa disso — não é capaz de trazer novidade e, conseqüentemente, nem orientação evolutiva. No entanto, segundo Monod, a teleonomia não pareceria necessária. Estaríamos diante da estrutura química de uma molécula viva. Nada mais. Porém, isso não basta. É preciso explicar a aparição da “novidade”. E, segundo ele, a explicação estaria num fator diferente da pura invariância: o acaso. O que aconteceu, então? Monod parece não perceber que o próprio conceito de novidade é o mais teleonômico que se possa pensar. Talvez um exemplo possa ajudar. Para fabricá-lo, inspiro-me numa expressão de outro biólogo, que — pura coincidência? — recebeu, no mesmo dia e no mesmo campo, o prêmio Nobel: François Jacob. Ele afirma que, na evolução, a natureza atua como um “bricoleur”.15 Esse conceito, muito importante, não tem tradução exata. Talvez a mais aproximada seria a formada pelas duas palavras “inventor artesanal”. Com isso se quer expressar que — diferentemente do inventor científico, que, dominado pelo término, prevê cada um de seus passos como uma investigação planificada — o inventor artesanal é alguém que reúne materiais heteróclitos, que não se sabe que relação e uso podem ter, e que um dia, iluminado por uma intuição, toma um mecanismo daqui, uma peça dali, outra tirada daquela outra máquina, e com isso “arma” um objeto novo dotado de inesperadas performances... Pois bem, inspirado nisso, o exemplo que me ocorre (em relação com a “novidade”) é o da invenção da roda. Para simplificar, supondo que esse invento tenha sido feito por apenas um “bricoleur”, o processo pode ter sido o seguinte. Entre mil experiências causais (apresentadas por um fluxo de acontecimentos aparentemente deixados ao acaso), um dia nosso inventor percebe que as superfícies convexas, apoiadas contra um solo mais ou menos horizontal, movem-se com mais facilidade. Para ser mais exatos, balançam-se com menos esforço. Essa experiência fica armazenada e talvez seja utilizada para a fabricação de certos objetos. Pode passar muito tempo e, entre mil 14 Ibidem. p. 133. 15 Cf., por exemplo,F. Jacob, “Evolution and tinkering”, na obra (de vários autores) Biological foundations and human nature. A palavra inglesa tinkering é a que, precisamente, traduz o substantivo francês bricolage.
  • 10. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 10 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture experiências, aparecerá que os objetos têm forma mais ou menos esférica, não apenas balançam, mas avançam no espaço, uma e outra vez, com uma facilidade inusitada. Ou seja, “rodam”. Muito tempo depois, e por causa de algum caso fortuito, nosso inventor experimentará que isso não se deve à sua forma esférica, mas que se conserva quando se usa apenas uma “faixa” do que seria uma esfera. Esta possui a mesma facilidade para deslocar-se. Por outro lado, talvez descubra logo que a translação de um objeto pesado, sobre uma esfera ou uma “fatia” de esfera (colocada e mantida verticalmente) fica mais fácil também. Com a condição, no entanto, de que não se avance muito, pois o que ajuda ao movimento do objeto pesado que carrega sobre si vai ficando para trás em relação a ele... Mas, continuemos supondo. É muito possível que, durante um longo período de tempo, em que foi percebendo e notando os fenômenos acima descritos, simultaneamente, faça outra série diferente de experiências sobre como fazer os objetos girarem. Para abreviar, terá assim descoberto que as coisas giram mais facilmente e durante mais tempo quando estão apoiadas sobre um ponto, ou atravessadas por um orifício, situado de tal maneira que o peso seja mais ou menos igual de ambos os lados. E, de repente, intuitivamente, o inventor relacionará ambas as experiências heterogênicas. Pensará em duas fatias de esfera com um orifício no “centro” e unidas por um pau que atravessa ambos os orifícios (e sem estar fixo neles). E eis aí a roda descoberta! Casualidade? Sorte? Até certo ponto, sim. Mas essa “novidade”, esse “novo” objeto descoberto depende de certas condições do conhecimento, que talvez o leitor não tenha percebido. Por exemplo, todos sabemos que chamamos de verdadeiro acaso ao fato de sempre tornar a jogar com o mesmo número de possibilidades. Se há, por exemplo, um jogo de sorte com cem bolinhas, para continuar sendo jogo de sorte, depois de cada saída de uma bolinha, é necessário levar de volta a bolinha para junto das outras. Caso contrário, o acaso se iria terminando e, com ele, essa possibilidade de novidade, que, como bem diz Monod, o puro acaso oferece. Mas que acontece em nosso exemplo? Há um seletor de dados, que impede certos dados de voltar a misturar-se ao acaso. A mente (seja um computador, seja um cérebro humano) tirou um dado do acaso e tem-no “presente”. Capturou-o. Se esse dado voltasse aos caos inicial e o inventor o esquecesse, depois de experimentado (como faz com grande parte do resto), jamais existiria o “invento”. Isto é, a novidade. Em outras palavras, “o puro acaso” (mesmo que seja relativo, como diz Monod,16 referindo-se ao encontro “casual” de duas ou mais causalidades, por exemplo, a gravidade e outros fatores que colocam a telha num equilíbrio inestável, e os motivos que me levam a transitar por esse lugar, no momento em que o equilíbrio se rompe e a telha cai, não cria nenhuma novidade). Ou, ainda, tudo o que produz é “novidade” que desaparece depois que acontece. Somente é novidade no caso de ser capturada, quando deixa de ser acaso, porque algo que não é o acaso tira-o do meramente fortuito e une-o a outros elementos para atuar como uma “causa” atual ou potencial. Mas, a respeito do acaso, a “novidade” revela-se, então, como antropocêntrica. 16 Op. cit., p. 127.
  • 11. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 11 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture Terrivelmente antropocêntrica. O fato de que, hoje, esse número tenha saído numa roleta situada a cem metros de minha casa não é “novidade”. Ou teria de chamar de novidade a cada um dos números que saíram. Sim, chamo de novidade a algo cuja influência existe e permanece. E se tivera que devolver ao acaso tudo o que ele entrega, mesmo se um dia ele pudesse dar-me uma rosa já feita, que não tivesse eu “descoberto” uma roda; nem assim, ela seria uma novidade. Seria um acontecimento fortuito a mais, que desapareceria exatamente como apareceu. Uma vez mais, o “puro acaso”, o “apenas acaso” não é fonte de novidade alguma. Somente pode produzir uma novidade se é utilizado por uma máquina ou mente humana. Se a natureza “bricola”, é preciso pagar por isso, com pura lógica. Por não pagar esse preço, com sua falta de lógica, Monod pode, com toda (aparente) tranqüilidade, apresentar a teleonomia da evolução. A invariância do “plano” químico fundamental da célula, evidentemente, só se pode explicar pela extrema coerência do sistema teleonômico, que, na evolução, jogou, ao mesmo tempo, com o papel de guia e de freio, e não reteve, nem ampliou, nem integrou (como verdadeiras novidades) mais do que uma ínfima fração das probabilidades que, em números astronômicos, lhe oferecia a roleta da natureza.17 E pode fazê-lo, porque acreditou mostrar que todo esse aparente edifício teleonômico está baseado no puro acaso e que desaparecerá com ele. O que nos parecia, em nossa mania teleonômica, cheio de estranhas promessas, na realidade não era mais. “Nosso número saiu do jogo de Montecarlo. Que há de estranho em que... sintamos a raridade de nossa condição?”.18 Com o acaso no começo, é muito necessário que o homem desperte de seu sono milenar para descobrir sua solidão total, sua condição radical de forasteiro. Ele sabe agora, como um cigano, que está à margem do universo onde deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente às suas esperanças, aos seus sofrimentos e aos seus crimes.19 Assim, o pecado lógico de uma contradição — a de supor uma necessidade surgindo do puro acaso — paga o preço de uma negativa voluntária. Teme-se o encontro com Deus, ao dobrar qualquer esquina, quando se admite uma teleonomia global para o universo. Nisso, talvez, os cristãos que acreditam ter provas físicas da existência de um Deus pessoal (provas de um valor semelhante às que a ciência obtém para apoiar algumas de suas hipóteses) têm não pequena culpa. Aqui não se pretende tal coisa. Crer num Deus pessoal, que deixa no universo os rastros de seus valores, é uma aposta. Aposta tal como a que, acima da lógica, chama a outra aposta contrária — que estejamos diante de um universo surdo às nossas esperanças, sofrimentos e crimes — a “desesperação” de um agnosticismo elevado a dogma. 17 Ibidem. pp. 136-137. 18 Ibidem. p. 160. 19 Ibidem. p. 186.
  • 12. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 12 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture O que pretendemos, de fato, e poderá ser visto nos capítulos seguintes, é que, ao admitir como nossa aposta esse Deus, não podemos deixar de lado, hoje, não, certamente, as falsas conclusões de uma pretensa ciência — o cientificismo -, mas as orientações e categorias que a mesma ciência, quando é consciente de seus limites, assinala a nosso pensamento. Atualmente, por exemplo, sabemos que, se Deus criou um mundo como o nosso, tanto o acaso como certas “mensagens” básicas de todos os seres vivos — e mesmo dos inertes — têm de passar ao pensamento teológico. Hoje, já não se pode mais fazer teologia com o que um pensador tão grande como Tomás de Aquino sabia do universo criado, ou com a simples e grandiosa mitologia do javista. A teologia e o pensamento científico de hoje Penso que, hoje, na Igreja católica, nenhum teólogo se negaria — mesmo que tenha sido difícil, e recente, chegar a esse consenso — a assinar a última frase do parágrafo anterior. Casos como o de Galileu — talvez menos clamorosos, mas muito mais abundantes do que se pensa — mostraram como a teologia saiu enriquecida e mais amadurecida daqueles que, num passado, foram tidos como conflitos (insolúveis) com as descobertas científicas e com as grandes hipóteses delas surgidas. No entanto, não negar o princípio não quer dizer que se tenham aproveitado os conflitos passados com a ciência, ou os avanços dessa última para repensar e aprofundar o dogma cristão. No momento em que escrevo isto, as mudanças (mesmo tendo sido “boas”) nos dogmas sustentados, invariavelmente, durante séculos (por falta das categorias de pensamentos correspondentes) ameaçariam, parece, se não a ortodoxia, pelo menos uma unidade ou uniformidade na fé que, segundo as tendências atuais, a Igreja deveria possuir para defender-se de tendências centrífugas ou ataques externos. Assim, pois, as modificações sugeridas pelos teólogos, geralmente, não são bem- vindas. Neste item, talvez seja suficiente um exemplo. Tanto mais quanto está ligado, como se pode ver, ao exemplo apresentado no item anterior, a propósito de uma (má) filosofia da ciência. A exegese católica sabe que a doutrina agostiniana sobre o pecado original assimilado com o pecado de Adão não pode, a rigor, basear-se na narração bíblica de Gênesis. Quando muito — coisa discutível —, poderia basear-se em Paulo, que considera Adão como o “inaugurador” de um pecado que — Paulo não diz como — passa dele a todos os homens. Quanto à narrativa do pecado de Adão no Gênesis, como todos sabem, é atribuída ao cronista real chamado javista. Pois bem, por razões impostas ou por própria vocação, esse autor caracteriza-se por prestar uma destacada atenção às narrativas chamadas “etiológicas”, ou seja, àquelas que versam sobre a origem de estruturas sociais, lugares ou costumes em destaque, etc., existentes na época em que escreve. A narração do pecado de Adão é também etiológica. Cabe, então, perguntar-se sobre o que é isso cuja origem se narra aí. Um primeiro indício nos é dado pela continuidade entre a criação do universo, a estadia fugaz do homem no Jardim do Éden, e as características da terra, na qual “aterriza” — vale a redundância — quando é expulso do jardim. Um segundo indício é o louvor que
  • 13. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 13 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture a obra criadora de cada dia arranca, por assim dizer, do criador e que culmina ao fim do sexto dia: “[...] Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). É verdade que a primeira narrativa da criação, em sete dias, pertence ao sacerdotal, que escreve em meados do século VI a.C., longe cinco séculos do javista. Mas, o compilador, seja quem tenha sido, não pôde passar por alto a bondade do que saiu das mãos, ou melhor, da Palavra de Deus, e colocou, assim, bem próximas a narração da origem de um universo “muito bom” e a descrição de uma terra desequilibrada e rebelde. Em todo caso, para voltar ao javista, a bondade do criado aparece também, dessa vez de maneira crescente, em sua narração. Ela é muito mais antropocêntrica, e a bondade da criação parece estar, aí, sempre ligada ao bem-estar do homem. Assim, ele é colocado, desde o começo, num “jardim” com “toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer” (Gn 2,9). E quando Yahweh percebe que algo não está bem, nesse quadro idílico — a solidão do homem -, dedica-se a buscar uma “ajuda adequada” para ele, criando a mulher, pela qual o homem deixará tudo para formar uma unidade total com ela. E este é, poderíamos dizer, o terceiro indício. Ou mais do que um indício: sinal eloqüente da origem que se procura encontrar ou esclarecer. De fato, em seguida a essa descrição, vem a apresentação da serpente e de seu plano, cuja execução ocupa o terceiro capítulo. Ao final dele, o quadro que a vida humana nos oferece é completamente diferente; é mais, absolutamente oposto à prévia descrição da obra criadora: o homem será devolvido ao pó da terra do qual foi formado (Deus retira-lhe, assim, seu espírito vital); o solo da terra será maldito, produzirá espinhos e abrolhos; o homem deverá tirar dele o seu sustento, com fadiga e suor; a mulher será dominada pelo homem; o parto de seus filhos se fará com dor; e, finalmente, a relação entre o homem e a mulher estará sujeita a uma vergonha que a tornará difícil. Se, pois, esta é uma narração etiológica, sua intenção não pode ser mais clara (independentemente de sua polivalência simbólica):20 que pode ter acontecido entre uma criação que, procedente de Deus, somente podia ser boa, e muito boa, e, por outro lado, a terra e a existência nela, que o homem conhece como inevitável e penosa? Não existe, no javismo, um deus do mal. Assim, ao não mediar essa narração, teríamos de concluir que Deus não criou bem, ou não com boas intenções, as coisas do universo que estão relacionadas ao homem. A narrativa do pecado de Adão no javista não explica, pois, por que cada homem seria pecador por nascimento, por que não poderia ir ao céu sem antes levantar a hipoteca do pecado que teria contraído em Adão, por que estaria de inimizade com Deus e necessitado de redenção; nem, muito menos ainda, por que estaria inclinado ao mal, a partir de seu nascimento. Explica, sim, por que uma criação, que o homem recebe das mãos de Deus, sem que haja intervenção de ninguém mais do que ele e o próprio homem que a recebe, contenha tantas imperfeições e dor. 20 Por exemplo, a relação com o culto à serpente e a promessa de “saber (fazer) o bem e o mal” sugerem que esse pecado — tentativa simiesca de igualar-se a Deus — era o pecado sincretista de exercer a mágica própria das religiões cananéias dos arredores.
  • 14. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 14 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture Se Paulo — assim como Agostinho, a Reforma e a Contra-Reforma — tivesse tido, em sua época, os instrumentos exegéticos que o cristão, intérprete da Bíblia, deve empregar hoje, segundo a Divino afflante Spiritu (de Pio XII), não poderia ter escrito, como o fez, o capítulo quinto de Romanos, onde atribui a Adão uma certa causalidade (mais do que exemplar) no fato de que o pecado afete, de um modo decisivo, a relação de todos os homens com Deus, desde o princípio até o fim da humanidade. Não significa que este último não seja verdade, mas apenas que não é, em boa exegese, algo presente na narrativa do javista. Reduzida à sua própria intenção, essa narração trata de solucionar apenas um problema: como surgem, na existência do homem recém-criado, tantas coisas imperfeitas e dolorosas. O causador delas é Deus, ou é o homem. Não pode ser Deus. Logo... Se não tivéssemos outros dados além da mencionada narração do pecado adâmico, poderíamos dizer que estamos, aí, diante de um conteúdo teológico fundamental: as imperfeições e sofrimentos que a condição humana leva consigo não procedem de que Deus os tenha infligido ao homem, desde o primeiro — Adão — até o último. Por outro lado, a imagem literária e o nível de conhecimentos da época, que envolvem essa certeza central, manifestam-se na narrativa de um pecado humano que teria sido transmitido a toda a raça dos homens. Paulo, na Carta aos Romanos, teria acrescentado a isso que não somente imperfeições e sofrimentos se aderiam à condição humana, mas também uma relação inextrincável com o pecado. Que Adão seja aquele que, dessa maneira, nos constitui a todos “pecadores” seria uma afirmação teológica própria dele (autor inspirado) e que, na busca de uma base bíblica, apóia-se, mesmo não tendo o rigor da exegese atual, na narração do Gênesis. Vale, digamos, a fortiori, mesmo que não se possa atribuir tal conseqüência à própria narrativa do javista. No entanto, a adição que Paulo teria feito não está isenta de graves dificuldades. O pecado é um ato humano e não pode transmitir-se como se contrai uma doença. Ninguém pode pecar pelo outro. Nem constituir pecador a outro, com os atos que faz. É verdade que Paulo diz que “todos pecaram”, mas a força de seu argumento está em que ninguém pode escapar dessa afirmação, porque todos descendem do mesmo pai pecador: Adão. Daí que a teologia se viu obrigada a fazer uma distinção quimérica: o pecado adâmico em nós não seria um pecado pessoal. Não obstante, como, para entrar no céu, se exige que esse pecado seja perdoado, é necessário dizer que se trata de um pecado real. Mas como pode um pecado que não é pessoalmente meu tornar-se um pecado realmente meu, a ponto de impedir-me a união com Deus? A distinção apenas consegue ocultar pela metade a contradição. Por outro lado, não é possível negar que tanto a afirmação do javista como a de Paulo encontram um eco em nossa experiência. Primeiramente, a título de problemas reais, dos quais não é possível
  • 15. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 15 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture fugir. E depois, a título de elementos antropológicos, com os quais é preciso contar, numa análise plausível do que é a existência humana.21 O que eu pretendo aqui, sem ter o tempo, nem os elementos para desenvolvê-lo, é que as categorias de explicações, que procedem da filosofia da ciência e, especialmente, das que se propõem a explicar a evolução biológica, podem servir, ao mesmo tempo, para explicar melhor — sem contradições — e para tirar conclusões mais valiosas dessas afirmações do javista e de Paulo. Conservando o que poderíamos chamar de idéia fundamental, podem, como a própria Igreja pede, prescindir de tipos de pensamento fixistas, que foram superados e que não permitem perceber toda a plausibilidade do que os autores inspirados, na realidade, quiseram consignar por escrito (mesmo que lhes faltasse o instrumento intelectual adequado na cultura que conheciam).22 Apenas para que o leitor compreenda a que me refiro com esse exemplo, tentarei resumir, brevemente, o que um pensamento surgido dessa extensão filosófica das experiências científicas — a teoria da evolução — pode explicar melhor no caso do javista e de Paulo. Em primeiro lugar, explicará melhor como uma criação recém-saída das mãos de Deus, fresca e intacta, encaminhada para ser material da criação humana, começa com o desencadeamento de forças primitivas da vida, que, olhadas a partir do hoje humano, pareceriam imperfeições e sofrimentos, que deveriam ser castigo de algo ou, então, resultado de uma maldade incompreensível do próprio Deus, que teria podido evitá-las (não esqueçamos que o homem de hoje, mesmo ciente dos argumentos da teoria evolutiva, mantém um pensamento fixista para seu uso diário...). A criação, em sua viagem até o homem, não para pisá-lo, mas para ir tornando cada vez mais importantes, decisivos e propriamente criativos, a liberdade e os projetos de amor dos homens, ao fazê-los cada vez mais interdependentes, de alguma maneira aumenta a dose de dor com a qual os homens devem defrontar-se no mundo criado. Forçosamente. Por acaso, amar não é tornar-se dependente de uma pessoa que, quanto mais amada, mais pode causarnos uma dor maior? Se não existisse a dor, e se cada um de nós não a pudéssemos evitar aos demais, por meio de projetos de injustiça, solidariedade e amor, cada um de 21 Não se trata de uma casualidade o fato de que um homem tão afastado do pensamento cristão, como S. Freud, fale das origens infantis do desejo em termos de “pecado” ou, se se prefere, de “imoralidade”: o “perverso polimorfo”. É verdade que seu interesse vai sublinhar mais o adjetivo do que o substantivo (adjetivado), uma vez que lhe interessa mostrar as diferentes e disfarçadas formas que toma a libido na primeira etapa da infância. Mas, mesmo assim, o qualitativo de “perverso” faz alusão a que essa criança, considerada “inocente” (pelo sentido comum, não pela teologia), conhece apenas os limites impostos desde fora para seus desejos. É ainda um gesto egoísta total. Somente mais tarde a “realidade” ensina-lhe a fazer rodeios cada vez maiores em busca de satisfações mais seguras, e é nesses rodeios onde encontra e começa a respeitar e depois a amar de verdade outras pessoas, solidarizando-se com elas. 22 Indico ao leitor, curioso de saber como e quando é válida e mesmo necessária a reformulação e reforma das fórmulas dogmáticas, a instrução Mysterium Ecclesiae, da Congregação (Romana) para a Doutrina da Fé, onde se lê (entre outros motivos para essas necessárias reformulações): “Acontece... não poucas vezes, que uma verdade dogmática expressa-se primeiramente de modo incompleto, mas não falso; e, mais tarde, vista num contexto mais amplo da fé e dos acontecimentos humanos, expressa-se mais perfeita e plenamente”. A instrução, escrita sob o pontificado de Paulo VI, traz a assinatura do cardeal prefeito F. Seper. O grifo é meu, pois de todas as razões dadas ali, esta é a que leva em conta, positivamente, a contribuição do progresso científico ao “aperfeiçoamento” da verdade dogmática.
  • 16. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 16 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture nós caminharia independente e indiferente a todos os demais... Então, não é preciso imaginar um desvio do plano divino em cada dor que a natureza nos inflige, nem dirigir perguntas angustiantes a um mundo cruel. Por outro lado, o que Paulo diz viria a resumir-se nisto: o homem, filho de Deus, herdeiro do mundo, é um criador que deve criar, num mundo já feito. Não tem, como Deus, a capacidade de criar instrumentos conforme a medida de seus projetos; de usar — não de criar — “a lei” que a Palavra de Deus colocou nos meios que lhe proporcionaram o seu próprio ser, sua mente, sua linguagem, sua genética e sua constituição biológica, a sociedade em que vive, a classe, a nação e até a Igreja à qual pertence. Cada um desses supostos “instrumentos” do homem têm, na realidade, seu mecanismo e suas leis próprias e sempre é mais fácil submeter a liberdade a essas leis e mecanismos do que impor nossas decisões sobre instrumentos tão poderosos e que parecem ignorar nossa liberdade.23 Somente uma vigilância crítica constante sobre nossa tendência a renunciar, diante do esforço que significa a criação, e a deixar-nos levar por qualquer dessas leis instrumentais, unida a um entusiasmo, levado até à doação da vida pelos projetos de justiça, amor e solidariedade que planejamos, podem ajudar-nos a criar amor sobre nossos pecados. De fato, na medida em que olhamos para trás em nossas vidas, vemos a escravidão como mais “original” do que os nossos projetos de amor (cf. Rm 5,6-9). Exatamente como, na evolução, o infra-humano ou o inumano precedem cada conquista dessa lei que a atravessa por inteiro, segundo Teilhard: a lei do amor. O Éden não é nossa pré-história; é a nossa meta-história. Não nos diz adeus a partir do passado, mas nos chama “ansiosamente” a partir de um futuro último de nossa história (cf. Rm 8,19-22). Não sei se este resumo condensado de um ponto dogmático, tocado pela vara mágica de um pensamento que não podia existir no tempo do javista, nem no de Paulo, poderá dar ao leitor, mesmo que não compreenda todo o processo de pensamento que leva até à hipótese proposta, uma idéia de como uma melhor categoria de pensamento ajuda a compreensão de um dogma que, de outro modo, se torna difícil em sua expressão e entendimento. O que creio que já deve ficar, a priori, claro é que não é forçar um pensamento velho do dois ou três mil anos ou aplicar-lhe novas e melhores categorias, tiradas — por exemplo — da filosofia da ciência.24 23 Cf., a esse respeito, minha exegese da segunda parte do capítulo VII de Romanos sobre o pecado na antropologia paulina, em El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret, Ed. Cristiandad, Madri, 1982, t. II/1, pp. 475ss. 24 Digo “filosofia da ciência” com o conhecimento de que a evolução, atualmente, é mais do que uma hipótese. Os dados proporcionais por muitas ciências não deixam lugar a dúvidas acerca de quais espécies de animais foram evoluindo, desde a vida unicelular mais primitiva e simples. Sobre isso não há dúvidas. O que ainda não está, ao que parece, suficientemente esclarecido (apesar do otimismo assinalado por Monod na obra já citada) são os mecanismos que, irreversivelmente, levam a natureza a uma especialização crescente das espécies e a conjuntos orgânicos e ecológicos que, em interdependência, combinam elementos cada vez mais complexos e ricos. Assim, hipóteses “metafóricas”, tais como a de uma natureza
  • 17. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 17 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture Revelação de Deus e desenvolvimento do homem Neste ponto, há algo que constitui um paradoxo, ao qual chegamos no item anterior. Pareceria que a teologia católica, pelo menos aquela que admitiu as recentes orientações da exegese bíblica, estivesse disposta a incorporar à teologia pensamentos que, para comodidade do leitor, poderiam colocar-se na categoria da “filosofia da ciência”, mais do que categorias filosóficas propriamente ditas. Certamente, no passado não foi assim e assim o prova o caso de Galileu e, o mais recente, da relutância em admitir uma criação de Deus em termos evolutivos, compreendendo também o homem. Não obstante, penso que é fácil explicar esse paradoxo, ao qual me referia e é inegável, atualmente. Creio ser fácil explicá-lo, pelo menos em seus aspectos mais superficiais e óbvios. As incursões feitas pelos cientistas no plano da filosofia, a propósito da ciência que praticam, comumente, não ultrapassam um plano que a teologia julga relativamente “exterior” a seus interesses e perigos. Desde que, já de entrada, se concorde no princípio da diferença de gêneros literários na Bíblia, hoje não se teme, como outrora, que um dado procedente da ciência se choque frontalmente com a revelação. Já foram superadas as barreiras entre ciência e fé que por longo tempo estiveram na moda. Por outro lado, ainda é muito freqüente que a atenção dada à evolução e a seus mecanismos não seja traduzida numa antropologia diferente, em âmbito do homem cotidiano. Qualquer um pode fazer uma piada a respeito de que o homem descende do macaco; mas o sentido comum (ou a sua falta) continua dominado, na maneira fixista com que se fala do homem e se manipula sua história. Não existe, por exemplo, uma preocupação determinante pela “ecologia da mente”, como começa a abrir caminho a preocupação pela ecologia do universo químico-biológico, constantemente violada por essa doença (fixista) do homem moderno: sua “propositivitis”. Uma semelhante exterioridade (real ou pressuposta) permite que se usem, “até os umbrais da teologia”,25 as ciências que diretamente dizem respeito ao humano, como são as que versam sobre a linguagem e as estruturas da narração ou do discurso. Pois bem, o que acabo de dizer sobre a filosofia da ciência e seu possível impacto no plano teológico não pode valer da mesma forma que a filosofia tout court. De fato, esta versa, pelo menos “bricoleuse”, ou uma “mente” universal, lutam, sem estarem muito de acordo, com hipóteses contrárias — como aquela de Monod — de um mundo surdo às esperanças ou aos sofrimentos humanos. Há autores que parecem combinar (de forma não demasiado lógica) esses dois tipos de hipóteses (cf. G. Bateson, Mind..., cit., p. 47 e nota, por um lado; e pp. 163ss., por outro). Em outras palavras, no tocante a essas hipóteses subordinadas para explicar a evolução, parece que ainda estamos no plano da filosofia da ciência e não no da “mera” ciência, no sentido ordinário da palavra. 25 A expressão é usada por G. Gutiérrez para indicar como a teologia da libertação usa métodos das ciências sociais, mas apenas para preparar melhor o “material” — podemos dizê-lo assim, com uma velha terminologia escolástica — sobre o qual se fará teologia.
  • 18. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 18 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture no princípio, sobre o mesmo objeto (metafísico) que a teologia. E assim como pode ser sua “ancilla” (= escrava), também pode ser sua rival. Certamente, é verdade que seria provavelmente bastante difícil assistir, nos dias de hoje — refiro-me ao mundo católico —, a uma polêmica tão forte e, muitas vezes, tão amarga, como a que, no princípio do século, dividiu Barth e Bultmann no campo protestante. E, precisamente, o seu conteúdo foi a licitude do uso, pela teologia, da categoria de “autenticidade”, tirada (bem ou mal) da fenomenologia de Heidegger e aplicada à interpretação teológica da Bíblia. Ou de formulações dogmáticas, de uma ou outra maneira, dela derivadas. Perguntará o leitor por que sustento que uma tal polêmica seria, hoje, difícil, no campo católico. Não pretendo que se tenha resolvido, de maneira mais convincente, o problema de então. Mas, sim, que existem duas poderosas razões para que não seja questionado, em princípio, como decisivo. A primeira é que a teologia católica esteve acostumada, durante muitos séculos, a usar a filosofia como serva: ancilla theologiae. Primeiro, os Padres da Igreja utilizaram o platonismo ou o neoplatonismo de sua época. Depois, a partir da Idade Média, as grandes sínteses teológicas, especialmente sob a influência de santo Tomás, incorporaram, com maior ou menor riqueza, a filosofia de Aristóteles à explicação do dogma cristão. E essa incorporação esteve depois, durante séculos, firmada na certeza de que a filosofia que assim servia de escrava à teologia era, precisamente, uma filosofia “perene”. É claro que esse costume de usar a filosofia como “serva” em teologia não significa estar preparado para aceitar que qualquer filosofia, prudentemente expurgada de erros, possa oferecer semelhante serviço. Quem lê, sem piscar, como santo Tomás usa Aristóteles, se escandalizará de que Maréchal use Kant, ou de que a teologia da libertação use Marx (um homem muito mais próximo do cristianismo do que Aristóteles). A segunda e principal razão para que não se aceite a radical rejeição de Barth, dirigida ao uso de uma categoria heideggeriana de pensamento, vai mais ao fundo da questão. Barth pretendia que quem faz passar a compreensão da escritura pelo crivo de uma determinada categoria filosófica se faz surdo à Palavra de Deus e escuta somente o que essa categoria humana deixa passar. Essa negativa de Barth foi comumente rejeitada por razões epistemológicas. A primeira, de caráter negativo, é que é ilusório pretender que se possa ir escutar a Palavra de Deus sem limitações humanas. Por acaso, alguém, que conhece as sutilezas da sintaxe de um idioma, estaria, assim, opondo uma limitação humana à palavra divina? E aproximando-nos um pouco mais do cerne da questão: por acaso, quem tem uma linha de conduta — com as experiências determinadas que elas lhe oferecem — estaria, com isso, reduzindo a Palavra de Deus aos limites desse determinado caminho empírico? Numa palavra: seria melhor ir escutar essa Palavra sem aplicar-lhe conhecimento humano algum, seja a gramática, ou os gêneros literários, ou experiências vitais de valores e crises? Pelo contrário, não será melhor aprofundar e enriquecer a problemática que levamos à audição da Palavra divina?
  • 19. Editição n. 5 – Mai / Jun 2006 19 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura / Journal of Theology & Culture A epistemologia e a sociologia do conhecimento nos deram provas fidedignas de que não existe uma escuta total, pura, neutra. Todo conhecer começa com um mundo de valores e experiências de sentido determinados. Toda interpretação é circular (ou espiral). Não se trata de que não tenha força alguma aquilo que nos é dito e que sempre estejamos ouvindo tudo e só aquilo que queremos ouvir. Mas, sim, é certo: há más interpretações, porque nossa preparação para ouvir ainda não chegou, por exemplo, ao nível problemático da resposta que se veicula na palavra de nosso interlocutor. Finalmente, sobretudo depois do Vaticano II, a teologia da revelação tem insistido em que a “revelação” de Deus é um ato no qual, de maneira especial, atuam em comum tanto Deus como o homem. A concepção de uma revelação que passaria como a luz através do cristal não honra a Deus, nem respeita o homem.26 Isso não quer dizer que o “revelado” esteja desarmado diante de qualquer aproximação interpretativa. Não o está e a prova, a triste prova, permanece diante de nossos olhos. O evangelho do Reino de Deus foi lido, durante cinco séculos, diante da miséria e opressão da maioria dos habitantes da América Latina, sem ter suscitado o compromisso cristão de mudar essa situação injusta e inumana. Mas bastou que houvesse uma conversão na atitude de leitura — a opção pelos pobres — para que o texto mostrasse como já não era mais possível uma leitura, deixando de lado as passagens mais claras, significativas e profundas dessa mesma revelação evangélica. Nada pode, então, poupar-nos de passar por uma prévia opção hermenêutica diante da Palavra de Deus. Mas, uma vez que ela esteja feita, já não será este ou aquele sistema filosófico que vai guiar nossa compreensão, mas será a própria revelação que terá de julgar quais as categorias de pensamento e de linguagem podem expressar melhor aquilo que pode surgir dessa colaboração Deus-homem num processo de revelação. É esse dia de hoje que nos constitui, como dizia Rahner, irrepetíveis e únicos diante de Deus: estar diante de problemas que somente nós poderemos enfrentar e resolver. Por isso mesmo as categorias de pensamento que vou propor para a teologia, nos capítulos seguintes, não procederão da ingênua crença de que tais filosofias durarão mais do que outras ou serão “perenes”, mas da experiência de que são capazes, hoje, de dar mais força, raízes e riqueza à mensagem que Deus quis comunicar a nossas existências. 26 Cf. G. Moran, Theology of revelation; A. Torres Queiruga, La revelación de Dios en la realización del hombre; ou a minha, O dogma que liberta.