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CAPA (Layout): Ary Almeida Normanha
REVISÃO: Maria Tereza Pardo
FICHA CATALOGRÁFICA
[Preparada pelo Centro de Catalogação~-fonte,
Câmara Brasileira do Livro, SP]
L732L
Lins, Osman, 1924-
Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo,
Ática, 1976.
p. (Ensaios, 20)
Bibliografia.
1. Barreto, Lima, 1881-1922 - Crítica e inter-
pretação 2. Espaço e tempo na literatura I. Título.
76-0246
17. e 18.
17.
18.
CDD-869 .9309
-809.933
-809.9338
índices para catálogo sistemático:
1. Espaço no romance: História e crítica 809.933 (17.)
809.9338 (18.)
2. Romances: Literatura brasileira: História e crítica
809.9309 (17. e 18.)
1976
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AZIS SIMÃO, ·da Universidade de São Paulo.
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RODOLFO ILARI, da Universidade de Campinas.
Ruy GALVÃO DE ANDRADA COELHO, da Universidade de São Paulo.
Coordenador: José Adolfo de Granville Ponce
A
Al/redo Bosi
e Antonio Candido
"C'est bien déjà un écrivain de notre
monde, mais qui ne le savait pas encore.
Et qui peut-être n'aimait pas ça du tout.:'
Pierre Daix, falando de Antoine de La Sale.
(Sept Siecles de Roman.)
Capo VII - Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá: temá-
tica; espaço, ambientação e funções do espaço
nesse romance; conclusão.. 111
OBRAS DO AUTOR:
O Visitante, romance. Rio, 1955.
Prêmio Fábio Prado;
Prêmio Coelho Neto (Academia Brasileira de Letras);
Prêmio Especial da A. P. L.
Os Gestos, contos. Rio, 1957.
Prêmio Monteiro Lobato;
Prêmio da Prefeitura de São Paulo.
O Fiel e a Pedra, romance.' Rio, 1961.
Prêmio Mario Sete.
Marinheiro de Primeira Viagem. Rio, 1963.
Lisbela e o Prisioneiro, teatro. Rio, 1964.
Prêmio Nacional de Comédia da Cia. Tônia-Celi-Autran.
Nove, Novena, narrativas. São Paulo, 1966.
Um Mundo Estagnado, ensaio. Recife, 1966.
"Capa-Verde" e o Natal, teatro infantil. São Paulo, 1967.
Guerra do "Cansa-Cavalo", teatro. Petrópolis, 1967.
Prêmio José de Anchieta.
Guerra sem Testemunhas - o Escritor, sua Condição e a Realidade
Social, ensaio. São Paulo, 1969 (incluído nesta coleção).
Avalovara, romance. 1973.
Santa, Automóvel e Soldado, teatro. São Paulo, 1975.
TRADUÇÃO
O Urso Polar e outras novelas, de Henrik Pontoppidan. Rio, 1963.
íNDICE
Escrito depois, para ser lido antes .
Capo I - Lima Barreto: o escritor. Linguagem; temá-
tica; o problema das repercussões biográficas
na obra .
Capo 11 - Lima Barreto: o romancista. Insulamento e
ação nos seus romances .
Capo 111 - Lima Barreto: os romances. Projeções do
tema do insulamento; deslocamento do eixo
dos conflitos; tensão entre personagens e es-
paço .
Capo IV - Espaço romanesco: conceito e possibilidades
Capo V - Espaço romanesco e ambientação. Ambienta-
ção franca; ambientação reflexa; ambientação
oblíqua; ordem e minúcia; a perspectiva ....
Capo VI - Espaço romanesco e suas funções. Relações
personagem/espaço; o espaço-moldura; o es-
paço inútil .
BIBLIOGRAFIA
11
15
31
49
62
77
95
149
ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES
Não poderia dizer, com exatidão, quando li pela primeira
vez Afonso Henriques de Lima Barreto. Mas lembro-me de ter
sido numa fase em que também lia, intensamente, Machado de
Assis. Assim, minha admiração inicial sofreu mais ou menos
as mesmas restrições que obscureciam o julgamento dos seus con-
temporâneos. Para estes, como para mim àquela altura, o padrão
estilístico representado pelo prosador de Dom Casmurro, invali·
dava até certo ponto as realizações menos requintadas, ainda que
esta ausência de requinte - como no caso de Lima Barreto, se-
gundo tudo faz crer - fosse deliberada.
Passaram-se alguns anos até que esse outro grande criador
da nossa Literatur'a assumisse em meu espírito o seu legítimo lugar.
Isto é: para que eu não mais o visse como um escritor menor
do que Machado de Assis e sim diferente dele, com personalidade
e objetivos próprios. Eu viria inclusive a perceber que, sob alguns
aspectos, Lima Barreto, como homem e como ficcionista - se
quisermos insistir na atitude um tanto inócua de os comparar
entre si -, deixa um pouco na sombra o seu genial predecessor.
Admirável, por exemplo, a coragem com que assume a condição
de negro, num país onde atuam, apesar dos disfarces, fortes pre-
conceitos raciais; com que reconhece o desajuste radical entre o
escritor e a sociedade, evidência que Machado de Assis procurou
eludir e amenizar por todos os modos, fundando inclusive a Aca-
demia Brasileira de Letras; com que toma o partido dos mais
fracos, acusa os plutocratas e denuncia o imperialismo ianque,
a ponto de criar-se, muitos anos após a sua morte, "pelo tom
anti-americano de certas passagens", "uma barreira de incom-
preensão" na firma W. M. Jackson Inc., a qual, em conse-
qüência, desistiria de publicar as suas obras, segundo informa
Francisco de Assis Barbosa no "Prefácio" às Recordações do Es-
crivão lsaías Caminha.
Alguns desses traços humanos projetam-se nos livros que es-
creveu, expressão do homem em face do mundo (como se vê
em Machado de Assis) e também do homem brasileiro em face
12 ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES
do seu meio e do seu tempo (O que, a rigor, já não é tão rele-
vante em Machado de Assis). Percebe-se, além disso, nos textos
de Lima Barreto, respostas ante o mundo concreto, mais in-
tensas e diversificadas quc no criador de Quincas Borba, disto
resultandÇ) - fator ponderável no estudo que se segue - uma
inclinação maior pela paisagem; sua concepção da língua, sem
renegar a tradição, é aberta à enérgica contribuição popular, em
harmonia com o interesse que demonstra pela gente obscura; nos
seus romances mais bem realizados, nenhum dos quais, decerto,
alcança o equilíbrio e o apuro formal dos de Machado de Assis,
'insinua-se, reconhecível, o homem solitário dos nossos dias, sinal
de ·uma .Jsensibilidade privilegiada e antecipadora. O que importa,
entretanto, é que Lima Barreto e Machado de Assis, cada um
a seu modo e, às vezes, seguindo caminhos opostos, contribuem
de maneira significativa para a formação do nosso patrimônio
literário.
Este conceito firmar-se-ia em meu espírito à medida que eu.'
me debruçava, com atenção e assiduidade cada vez maiores, sobre
os livros do grande louco e boêmio. Avivou meu interesse, é opor-
tuno lembrar, a leitura de Aldebarã - A Vida de Lima Barreto,
de Francisco de Assis Barbosa. Julguei perceber, lendo a biogra-
fia, que as razões de um certo ostracismo do escritor, cuja noto-
riedade permanece, ainda hoje, aquém da que merece, prendiam-se
a razões extraliterárias. As classes dominantes (e, com elas, am-
plos setores das classes dominadas, que refletem em grande parte
a visão conservadora) são particularmente sensíveis no Brasil aos
que as renegam de maneira ostensiva. Pareceu-me sofrer Lima
Barreto, e creio não enganar-me, o efeito de uma ação difusa, um
processo disfarçado, surdo, de sonegação (muito semelhante, por
sinal, ao que entre nós marginaliza o negro). Acresce que os po-
vos mostram-se sensíveis às idealizações. E Lima Barreto é talvez
o autor brasileiro que nos viu até hoje com maior verdade e luci-
dez.
Por tudo isso e, mais ainda, pela importância que as minhas
leituras revelaram ter na sua obra romanesca o espaço, atraía-me
a idéia de escrever um ensaio a seu respeito, quando livre de certo
trabalho premente e mais ou menos extenso.
Seria executado o projeto, ou, ao menos, seria executado ago-
ra, inexistisse a regra que me persuade a apresentar, como profes-
sor de Literatura Brasileira - ou, mais propriamente, como seu
divulgador -, tese universitária? Não sei. Muitos planos rondam
o escritor ("J'ai du pain sur Ia planche pour cent ans", diz Michel
ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES 13
Butor numa entrevista a Tel Quel) e quantos, dentre eles, são
prorrogados, afastados por outros! Aqui importa sublinhar que, no
presente caso, o ritual universitário constituiu apenas um pretexto:
fez-me optar, dentre várias alternativas, por este ensaio que há
tempos amadurecia e na raiz do qual existe uma admiração literá-
ria juvenil que os anos ampliaram, tornando-a mais racional.
O leitor porventura informado sobre as atividades literárias
do ensaísta e que desconheça os seus escritos, desejará talvez saber
se o une a Lima Barreto alguma identidade de processos. Res-
ponderia que não e que, justamente, as diferenças concorreram
para o meu interesse. Acrescentaria, ao mesmo tempo, que o meu
ilustre antecessor e seu estudioso, apesar das dif~renças, coincidem
em pontos importantes: na paixão e no respeito pela Literatura, a
que ambos se consagram incondicionalmente; no desejo, que ele
cumpriu de maneira tão dramática, de exercer com dignidade o
ofício de escrever; na consciência de uma oposição irredutível en-
tre o escritor e o poder; na tentativa de construir obra pessoal e
identificada com o seu tempo.
A verdadeira razão da minha escolha, entretanto, seja acen~
tuado, deve bem pouco a dessemelhanças ou coincidências. Mo-
vem-me, acima de tudo, o apreço pelo romancista,e o desejo de
contribuir, dentro de minhas possibilidades, para a interpretação, a
compreensão e a valorização da sua obra romanesca. (Apresentei,
bem entendido, no momento oportuno, outras alternativas ao Pro-
fessor Alfredo Bosi, de cuja reação dependeria a opção final.
Grande a minha alegria quando esse erudito e mestre, a quem agra-
deço as sugestões e a atenção concedida ao presente ensaio, incli-
nou-se a favor de Lima Barreto, a quem tanto admira.)
Iniciado o trabalho, ocorreu-me indagar muitas vezes se não
seria um contra-senso preparar tese universitária (precisamente
uma tese de doutorado!) sobre o escritor que mais detestou em
vida os doutores e os títulos. Não encontrei resposta. Só me resta
esperar que o presente texto não tenha saído doutoral, o que
Lima Barreto não merece e não perdoaria. Saberia compreender,
suponho, é provável mesmo que o comovesse (ele, tão sensível,
como o demonstram suas cartas, até a comentadofes obtusos) a
tentativa deste póstero e companheiro, a quem move um interesse
tão grande pela sua obra e pela sua figura, ambas incomuns.
Praticante, como ele, do ofício de narrar, é possível que o
?1c:-r texto não seja sempre tão ortodoxamente abstrato como dese-
JarIa um verdadeiro crítico ou um teórico puro. Poderão, ainda,
esse teórico ou esse crítico, achar que o livro hesita, antes de en-
14 ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES
contrar e enfrentar o seu assunto. Esclareço que o plano do en-
saio busca reconstituir a história das minhas próprias relações com
a obra de Lima Barreto, interessando-me antes pelo autor e seus
livros, centralizando mais tarde o interesse em determinados títu-
los e por fim descobrindo, à força de convívio, traços peculiares e
significativos, como a importância do espaço na sua ficção; e, ain-
da, dentre os escritos mais intensamente analisados, aquele que -
sem ser, admito, o mais importante - concentra em maior grau
traços inconfundíveis do ficcionista e ostenta, no que se refere ao
espaço, aspectos de maior interesse. A aparente hesitação do iní-
cio, portanto, beneficia-se em certa medida de métodos da ficção.
Nota-se ali um desconhecimento, uma busca, mais tarde uma des-
coberta - desconhecimento, busca e descoberta que na verdade
são coisas do passado - e que o texto, com maior ou menor for-
tuna, imita, renova, transmuda, no esforço deliberado de atualizar,
de fazer presente, viva, a pequena aventura particular do amor por
uma obra e do seu estudo. São assim introduzidos, no capítulo de
abertura - onde um personagem que ainda não conhecemos olha
embevecido e solitário o espaço -, temas que as páginas seguintes
desenvolvem. Poderia alguém, acaso, censurar essa pequena intro-
missão do romance no âmbito do ensaio, quando tantas vezes são
os romances invadidos pela monografia e' pelo pens.amento
abstrato?
CAPÍTULO I
LIMA BARRETO: O ESCRITOR
Linguagem. - Temática. - O problema das repercussões
biográficas na obra.
Na triste manhã de Verão, um homem já alquebrado - os
olhos. pouco brilhantes e, mesmo assim, atentos - observa, através
de uma janela do Hospício Nacional de Alienados, a Enseada de
Botafogo brilhando sob o céu fuliginoso e baixo. Estamos em
1920 e o contemplador diante da janela, nascido e vivendo há qua-
se 39 anos no Rio de Janeiro, sabe ser dia de São Sebastião. Os
músculos do rosto pardo por vezes se contraem; tremem um pouco
as extremidades dos dedos bem modelados. Acha-se no Hospício
desde 25 de dezembro, interno como indigente, depois de vagar
toda a noite da véspera nas ruas dos subúrbios, sem dinheiro, pro-
curando uma delegacia: perseguiam-no visões fantásticas e queria
apresentar queixa à polícia. Não é a primeira vez que sofre a ex-
periência do internamento por loucura e ele promete a si mesmo,
com ênfase, que esta será a última. O Hospício, bem entendido,
não lhe parece intolerável; e a falta que lhe faz a sua própria casa
é relativa. Anos antes, chegou mesmo a escrever no Diário que,
sem constância, mantém desde a juventude: "A minha casa me
aborrece". 1 Também as relações com a família não se pode dizer
que sejam das mais estimulantes. Quando, em 1909, envia
um exemplar do seu primeiro livro publicado à irmã, recebe um
bilhete curto e neutro, sem uma expressão, por mais discreta, de
alegria ou de encorajamento: comentário algum sobre a leitura.
Assim, se ele promete a si mesmo não voltar ao Hospício é antes
de tudo por delicadeza: "Estou incomodando muito os outros,
1. In: Diário Intimo. p. 171. Obs.: As edições dos livros de Lima 13arreto
clt~das no ensaio são as da Bibliografia, relacionadas no fim do volume.
Deixaremos de localizar as citações, quando for pequena a sua importância
e quando acompanhadas, no texto, de indicações suficientes.
16 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
inclusive os meus parentes." Caso volte, mata-se, eis o que de-
cide.2
Sua loucura é em geral atribuída à dipsomania. Tal conclusão
será inteiramente verdadeira? Bebe muito e mais de uma vez o la-
menta no Diário. Pode-se, entretanto, supor que as suas crises
tenham origem num conflito violento e sem esperança com o mun-
do, ou, precisamente, com o país onde nasceu, onde vive e onde
vai morrer mais ou menos obscuro. Comprova essa obscuridade
a anotação feita por um médico no Livro de Observações do Hos-
pício: "Indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já
quatro romances editados." 3 Os quatro romances a que tão va-
gamente se refere o médico, classe cuja fatuidade esse louco e dip-
sômano vergasta com freqüência em suas crônicas, são as Recor-
dações do Escrivão [saías Caminha, Triste Fim de Policarpo Qua-
resma, Numa e a Ninfa e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.
Não estaria nisto, no amor desse homem à arte de escrever - e na
injusta ausência de reconhecimento público - a causa dos seus
distúrbios mentais? Ele próprio, comentando esse infortúnio, tem
para o fato uma explicação pouco comum. Lembra-se de haver li-
do O Crime e a Loucura, de Maudsley; e, de Dostoievski, Recor-
dações da Casa dos Mortos. "Pensei amargamente (não sei se foi
só isso) que, se tivesse seguido os conselhos do primeiro e não ti-
vesse lido o segundo, talvez não chegasse até ali; e, por aquela
hora, estaria a indagar, na Rua do Ouvidor, quem seria o novo
ministro da Guerra, a fim de ser promovido na primeira vaga." 4
Atribui - não por ironia - sua insanidade e desamparo à Arte
Literária, de que são símbolo as memórias de prisão do grande
russo. Mas é evidente que, à sanidade sem relevo espiritual, pre-
fere estar desamparado e/louco. Preço algum será demasiadamen-
te alto para a decisão que assumiu de consagrar às letras toda a
sua vida.
Saindo do Hospício, prepara o escritor, nos três anos seguin-
tes, cinco volumes" reunindo, inclusive, artigos publicados em jor-
nais. De todos, apenas um - Histórias e Sonhos - vê publicado.
Morrerá a 01/11/1922, aos 41 anos, deixando uma obra bastante
volumosa e que muitos críticos julgam desigual. Agripino Grieco,
por exemplo, que considera as Recordações do Escrivão [saías Ca-
minha "autêntica obra-prima" e Afonso Henriques de Lima Barre-
to, como romancista, "nosso primeiro criador de almas", diz tex-
2 In: O Cemitério dos Vivos (Diário do Hospício). p. 34.
3 BARRETO, L. Op. cit., p. 265.
4 BARRETO, L. Bagatelas. p. 99.
LINGUAGEM. - TEMÁTICA. • • 17
walmente: "Não insistamos nas fraquezas da Vida e Morte de M.
J. Gonzaga de Sá, romance cheio de homens-abstrações e de pai-
sagens metafísicas." 5
Há uma tendência, entre os que se ocupam de determinado
autor, a estabelecer hierarquias e, por vezes, mediante uma sepa-
ração radical, subjetiva e simplificadora: o "bom" e o "mau". Não
é isto compreender indevidamente o longo e tortuoso combate de
quem lida com as palavras? Seria descabido pretender que inexis-
tem, na obra de um escritor, páginas imaturas e mesmo (por vezes,
só na aparência) desastradas, ao lado de textos impecáveis - e
nem sequer contestaríamos que existe, não raro, em determinada
bibliografia, o livro que obscurece os demais e para o qual parece
ter convergido. todo o gênio do autor. Mas como desconhecer que
não veríamos com a mesma clareza esse livro sem os outros? Como
ignorar que esses outros nos ajudam a melhor compreendê-Io e
foram, além do mais, etapas necessárias à sua realização - ou, se
ulteriores, adendos, pós-escritos, ampliações, ressonâncias? No caso
especial de Lima Barreto, as consideradas desigualdades de nível
são unificadas, por assim dizer, mediante certas características de
ordem literária e humana que atravessam todos os seus livros -
ou, até, todas as suas páginas -, dando-Ihes grande homogeneida-
de. Sua obra tão variada é um bloco coerente e em toda ela reco-
nhecemos, inconfundível, nítida, a personalidade do autor.
Seu instrumento de expressão, por exemplo, obedecendo ri-
gorosamente a certas coordenadas, surge amadurecido e com todas
as virtudes e sestros pessoais - sestros que uma apreciação pouco
analítica recusa simplesmente como erro ou incompetência - des-
de as Recordações do Escrivão [saías Caminha. Inútil buscar, em
Lima Barreto, as frases irisadas de subentendidos e de alusões di-
fusas, tão comuns em Machado de Assis. Por outro lado, jamais
incide no oco ornamentalismo de seu contemporâneo Coelho Neto,
contra quem seguidamente arremete: "O Senhor Coelho Neto é o
sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelec-
tual." 6 "Não posso compreender que a literatura consista no culto
5. In: V~I'Os e Mortos. p. 86. Na sua Evolução da Prosa Brasileira, Agri-
PIno Gneco é bem menos rigoroso: "Gollzaga de Sá constitui-se de diá-
logos e de lances de conto filosófico, explicáveis num leitor de VoItaire
~ue, entanto, permaneceu do seu Brasil e do seu tempo," (p. 132-33).
BARRETO, L. "Histrião ou Literato?" In: Impressões de Leitura. p. 189.
18 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
ao dicionário." 7 Na sua conferência O Destino da Literatura, de-
clara, apoiando-se em Taine, que a Beleza "já não está na forma, no
encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como que-
rem os helenizantes de última hora e dentro de cuja concepção
muitas vezes não cabem as grandes obras modernas, e, mesmo,
algumas antigas. Não é um caráter extrínseco da obra, mas intrín-
seco, perante o qual aquele pouco vale. É a substância da obra,
não são as suas aparências." 8 A palavra como problema, fenô-
meno manifesto já em fins do século anterior no célebre poema de
Mallarmé e cujo monumento, o Ulysses, apareceria no início de
1922, poucos meses antes da morte de Lima Barreto, não domina-
va o seu espírito. "Literatura não era para ele apenas 'expressão',
mas sobretudo 'comunicação', e comunicação militante - 'mili-
tante' é a palavra que ele mesmo emprega - em que o autor se
engaja, tão ostensivamente quanto possível, com suas palavras e o
que elas transportam, a mover, demover, comover, remover e pro-
mover." 9 A escrita é para ele, antes de tudo, um instrumento.
Tem, portanto, uma função mais utilitária que lúdica, sem que isto
signifique - prova-o largamente Antônio Houaiss - desinteresse
pelos problemas expressivos. Apenas, o encargo que ele assume
não será o de renovar a língua e sim o de retemperá-Ia.
Os seus pontos de referência, segundo indicam as alusões fei-
tas em várias oportunidades e a sua prosa mesma, são Machado
de Assis e Coelho Neto. Neste último, o "culto ao dicionário" tem
o ar de uma evasão, um modo hábil de conquistar o aplaUso bené-
volo "dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro". "As cogi-
tações políticas, religiosas, sociais, morais, do seu século, ficaram-
-lhe inteiramente estranhas." 10 Para Lima Barreto, a frase art
nouveau de Coelho Neto seria a expressão do seu oportunismo,
que tanto o fazia orgulhar-se da condenação dum arcebispo do
Chile, como exultar ao v~r que "outra sua obra recebe gabos da
mais alta autoridade eclesiástica do Rio de Janeiro." 11 Uma prosa
em torno da qual vagam tais suspeitas não servirá de modelo a
Lima Barreto, escritor, conquanto atento ao mistério, em luta per-
manente e exacerbada com a realidade circundante. Astrojildo
Pereira, no "Prefácio" à reedição de Bagatelas, diz que a frase de
Lima Barreto "era nele também uma forma de inconformismo e
7 Id., ibid., p. 261.
s Id., ibid., p. 58.
9 HOUAISS, Antônio. "Prefácio." In: BARRETO,L. Vida Urbana. p. 9.
10 BARRETO,L. Impressões de Leitura. p. 75.
11 V. nota anterior.
LINGUAGEM. - TEMÁTICA... 19
t sto contra a ênfase e o formalismo vazio que predominavam
pro, estilo' do tempo." 12 A afirmação, parcialmente válida, não se
no e ... d h' b
l"ca a Machado de ASSIS,cUJo espectro am a oJe pesa so re
ap Iue escrevem no Brasil. Na carta que em janeiro de 1921 - já
os fim portanto, de sua vida - envia Lima Barreto a Austregésilo
no , . , . d f
de Ataíde, faz, nessa carta mumeras vezes CIta a, reparos ortes
a Machado, que escreveria "com medo do Castilho". "Jamais o
imitei e jamais me inspirou." 13 O apuro formal de Machado de
Assis - a ele que, de origem negra, sentia de maneira aguda esse
problema -, a frase afiada e sutil, isto e o esforço, tão bem estu-
dado por Lúcia Miguel Pereira, com que o romancista do Memo-
rial de Aires vai apagando os seus estigmas (a cor, a pobreza, a
obscuridade), nada disto lhe parecia muito inspirador. Assim, a
sua prosa - e seguidamente afirma, a jovens p0lttas que lhe en-
viam livros, ser pouco versado em poesia - é elaborada nitida-
mente como reação àquelas duas figuras tão ~ivei'sas entre si. Ele
que sempre tem uma palavra de compreensão para outros ficcio-
nistas de menor evidência, mostra-se sempre exigente em relação
a Machado de Assis e Coelho Neto. Seus julgamentos fazem-se
mais rigorosos na razão direta do prestígio do escritor. 14
Dado, entretanto, que toda obra literária, quando o seu autor
assume uma posição realmente criadora, é em certo sentido meta-
lingüística, ao menos na medida em que se opõe ou faz alusão a
outras obras, pode-se dizer que o mais claro e o mais importante
discurso de Afonso Henriques de Lima Barreto a respeito dos seus
dois notáveis confrades não pode ser citado: são os seus escri-
tos considerados em bloco. Estes - os romances, as crônicas, os
contos -, vasados numa linguagem indiferente à aprovação de
Castilho, mas não plebéia, pois o escritor respeita a língua que her-
dou e quer mantê-Ia digna, repudiam igualmente a secura e a retó-
rica (que é quase sempre a secura enfeitada e prostituída). Opina,
c?mpreensivo, Oliveira Lima: "A única pecha de que o tenho ou-
VIdo culpar, não me parece absolutamente justa. Refere-se à lin-
guagem, ou melhor ao estilo, julgado menos cuidado e por vezes
~: iERElRA, Astrojildo. "Prefácio." In: BARRETO,L. Bagatelas. p. 12.
14 n:. Correspondência. Tomo 2.°, p. 256-57.
, Incldentalmente, Lima Barreto menciona a literatura "palerma" dos
:cades, _e. dá de passagem a sua versão de Euclides da Cunha, de "alma
a ~a e anda.. e todo ele cheio de um orgulho intelectual desmedido, que
má o.rna~a amda mais seca e mais árida", e cujo estilo seria a "expiessão
Reixlmad de certas qualidades e atributos da Escola Militar. (Coisas do
no o Jambon. p. 274.)
20 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
incorreto, por ser a linguagem simples e propositalmente desata-
viada." 15
A lei que _antes de tudo orienta esses escritos é a orali-
dade, não, bem entendido, a do tartamudo ou a do inculto, mas a
do homem educado, sensível e nada pedante. Entre a elipse que
embeleze a frase e a repetição que infunda ao escrito um ar menos
composto, prefere em geral esta segunda solução, que preservará a
clareza e o natural. As exumações léxicas e mesmo os neologis-
mos, subentende-se, encontram pouco lugar em Lima Barreto.
Nunca, nas muitas páginas que escreve, alusões veladas e sutis: o
alvo é sempre claro e o tiro forte. O autor não quer esconder-se
e não se resguarda atrás de biombos. Um estilo pouco conotativo e
portanto algo espesso, o que redunda, em tese, num certo empobre-
cimento. Tal empobrecimento, aqui, é ilusório - e "a prosa de
ficção em língua portuguesa, em maré de conformismo e academis-
mo, só veio a lucrar com essa descida de tom, que permitiu à rea-
lidade entrar sem máscaras no texto literário." 16 Lima Barreto,
homem do povo, carreia para a nossa prosa - inflada pela imo-
deração de Coelho Neto e sujeita, por outro lado, à apurada, à
exigente disciplina de Machado de Assis - um à vontade vigilante,
um sopro de energia, uma vibração humana e uma solidez que só o
encontro, sempre raro, da inteligência e de certas forças primitivas,
elementares, pode engendrar. Um estilo, em suma, que causaria
decerto grande alegria a Pascal e que ilustra com justeza o que um
dia escreve, farto de artifícios, o grande pensador e matemático:
"Quand on voit le style naturel, on est tout étonné et ravi; car on
s'attendait de voir un auteur, et on trouve un homme." 17
Se encontramos, na obra de Lima Barreto, uma grande unida-
de estilística, um esforço continuado e coerente no sentido de dizer
certas coisas "de uma certa maneira", 18 se entrevemos em cada
página sua o propósito de trazer para a prosa literária brasileira
uma contribuição atenta a tendências que o seu diagnóstico acusa-
va como desvios (ou, em Machado de Assis, ao menos como peri-
gosas), também merece relevo, sob a variedade aparente e que
15 LIMA, Oliveira. "Prefácio." In: BARRETO,L. Policarpo Quaresma. p. 10.
(O artigo foi publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paulo,
edição de 13/11/1919, sob o título de "Policarpo Quaresma".)
16 BOSI, Alfredo. O Pré-Modernismo. p. 95.
17 PASCAL, Blaise. Pensées. Paris, Nelson &1. 1955. p. 56.
18 Falando de Lima Barreto, lembramo-nos inevitavelmente de certas po'
sições de Jean-Paul Sartre: "00 n'est pas écrivain pour avoir choisi de
LINGUAGEM. - TEMÁTICA.. . 21
Visão menos sintética pode interpretar como dispersão, a uni-
uma I d .
d d temática que percorre essas au as escntas quase sempre em
ae I d . d .
. unstâncias adversas, ao ongo e aproxIma amente vmte anos
c~r~cia já em 1900, um relato não concluído, começam em 1903
(Inanotações íntimas, e o "Prefácio" às Recordações do Escrivão
::aias Caminha, divulgadas em 1907 na revista Floreal, trazem a
data de 12/07/1905) e só interrompidas com a morte repentina,
aos 41 anos, na modesta casa de Todos os Santos.
Seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, declara, com auto-
ridade de historiador, que "não será possível proceder-se à revisão
da nossa história republicana, do 15 de novembro ao primeiro 5
de julho", prescindindo da obra de Lima Barreto, que anotou, re-
gistrou, fixou, comentou ou criticou "todos os grandes aconteci-
mentos da vida republicana." 19 Ora, a preocupação - ou a
obsessão - com a nossa realidade não deixa de ser surpreendente
e mesmo paradoxal num escritor que, em várias oportunidades,
proclama-se estranho à idéia de pátria, para ele nada mais que "um
sindicato". 20 Nem sempre, entretanto, as oposições se excluem.
Este homem infenso a fronteiras, sente-se ligado ao povo, é ligado
ao seu povo como talvez não tenha sido nenhum outro escritor do
Brasil - e isto relaciona-se, nele, com um forte amor à Justiça.
Sua visão um tanto maniqueísta do mundo - e quem não partilha,
em certa medida, esse modo de ver? - divide os homens em acei-
tos e recusados. Aqueles, bem entendido, são sempre os nascidos
com privilégios ou os que, cônscios do poder dos senhores, entram
ao seu serviço ou com eles estabelecem alianças indignas. O qua-
dro que conhece e fere-o é o nosso. Por vezes, notadamente du-
rante a Primeira Grande Guerra,. que não se cansa de proclamar
uma maquinação do capitalismo internacional, a objetiva se amplia.
Mesmo então, ao debater em seus artigos a natureza do conflito,
preocupa-o um problema correlato, a participação do Brasil. Este,
portanto, o seu campo de observação e de ação, ele não sonha alte-
rar os destinos do mundo, mas espera ao menos inquietar, no seu
~ire certa ines choses mais pour avoir choisi de les dire d'une certaine
açon." Também: "l'écrivain a choisi de dévoiler le monde et siriguliere-
~e~te l'homme aux autres hommes pour que ceux-ci prennent en face de
l~bJet mis à nu leur entiere responsabilité." (Situations ll. p. 75 e 74.)
. BARBOSA,
Francisco de Assis. "Prefácio." In: BARRETO, L. [saías Ca-
~l~?a. p. 12-13.
• .( pátria me repugna, Avelino, porque a pátria é um sindicato dos
~Oht1cos e dos sindicatos universais, com os seus esculcas em todo o mundo,
n~ra saquear, oprimir, tirar couro e cabelo, dos que acreditam nos homens,
In' t~abalho, na religião e na honestidade." ("Carta a Georgino Avelino."
. ARRETO,L. Correspondência. Tomo 1.0, p. 281.)
22 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
país, os donos do poder e os usuários das posições - e contribuir
para despertar, entre os oprimidos e explorados, entre os recusa-
dos, uma consciência crítica.
Assim, fato, ao mesmo tempo, contraditório e lógico, Lima
Barreto, que considera nociva a idéia de pátria, vem a definir-se
como um dos mais interessados analistas da nossa realidade geo-
gráfica, política e psicológica. Aplica, com intensidade, todos os
seus instrumentos de apreensão e julgamento no estudo do país
que o ignora. Sua obra (onde também entrevemos, é bem verdade,
em certas personagens e situações, o seu perfil) é uma série de fla-
grantes exatos, variados, por vezes comovidos, muitas vezes sar-
cásticos, freqüentemente irados e nos quais reconhecemos o Brasil,
mesmo nos textos deformantes, nas invenções de um grotesco e
truculência que lembram o Voltaire de Candide, como a República
de Bruzundanga, ou o Reino do Jambon, ou os usurpadores dos
"Contos Argelinos". Sucedem-se, nessas enérgicas páginas atentas
ao exterior, lances da Natureza e flagrantes urbanos, políticos
ocupados unicamente com o poder e a evidência, inteiramente
alheios ao país e para quem, governar, ao contrário do que precei-
tuaria Bossuet, é "fazer a vida incômoda e os povos infelizes", 21
ignaros sábios das profissões liberais favorecidos pela lei e inchados
de retórica, militares ungidos de infalibilidade ou nostálgicos de
uma pacata existência civil, todos pouco versados em coisas de
guerra, os proprietários de jornais, dispostos a vender-se seja a
quem for, desfiles e festas oficiais, a vocação principesca da nossa
representação diplomática, voltada para futilidades e empenhada,
com Rio Branco, em projetar no exterior uma imagem retocada do
país ("nossa mania de fachadas", diz, em carta de 1916, a F. L.
de Assis Viana), a mentalidade botafogana que tão bem define em
carta a Oscar Lopes, 22 os magnatas do café e os banqueiros, o
pouco numeroso e tão desdenhoso mundo dos eleitos, fruindo os
seus privilégios, não só distanciados espiritualmente do Brasil, mas
aos quais repugna a condição de brasileiros e mesmo de habitantes
do Trópico, a ponto de ordenarem a pintura, em suas residências,
de motivos arquitetônicos greco-romanos e janelas irreais abrindo
21 BARRETO,L. Bagatelas. p. 65. .
22 "Botafogano, meu caro Oscar, é o brasileiro que não quer ver o BrasIl
tal e qual ele é, que foge à verdade do meio e faz figurino de um outro
cortado em outras terras. De modo que tu, mesmo indo para o SacO do
Alferes, tu que queres fugir à nossa grosseria, à nossa realidade, à nossa
pobreza agrícola, comercial e industrial, és um botafogano." (BARRBTO:
.L.
Correspondência. Torno 1.0, p. 233-34.) Botafogana, portanto, era a pohtlca
de Rio Branco.
LINGUAGEM. - TEMÁTICA. .. 23
amenas pais'agens européias; 23 / e do outro lado, fora dos
~ar~ s imprecisos de Botafogo, as poeirentas ladeiras dos subúr-
h~l ee suas estações ferroviárias, seus trens, os botequins, os ma-
bl~S as feiras livres, os jogos de solo nos quintais com árvores, os
fuas, ntuários de vencimentos ínfimos e os pobres diabos sem em-
serve lh" fI' d . .
o certo, suas mu eres as quals a a ta contmua e meIOs vai
pre~nando a prudência, os artistas da modinha e do verso, enfim a
ensl l' d ' t- h . d
rte sem rega Ias este pais - en ao como oJe - e estratos
paciais nitidamente opostos. Ilustra com clareza tal fenômeno a
~~na em que Isaías. Caminha, ~al chega?~ ~o Ri.o, assi~te a u~
desfile: "Veio por fIm o batalhao. Os oficIais mUlto cheIOSde SI,
arrogantes, apurando a sua elegância militar; e as praças bambas,
moles e trôpegas arrastando o passo sem amor, sem convicção, in- .
diferentemente, passivamente, tendo as carabinas mortíferas com
as baionetas caladas, sobre os ombros, como um instrumento de
castigo. Os oficiais pareceram-me de um país e as praças de
outro." 24
Esta visão dicotômica e um tanto simplista - mas não 'de todo
injusta - da realidade brasileira, faria de Lima Barreto apenas um
panfletário se, coexistindo com o rebelde, com o contestador a
quem muito impressiona a Revolução de Outubro, não houvesse
também um criador cheio de discernimento. 25 Este, atento às
injustiças e ao abismo que separa, no país, botafoganos e suburba-
nos, não incide no erro, tão pouco fecundo, de ver apenas virtudes
nos pobres; sabendo ser o subúrbio "o refúgio dos infelizes", cons-
tata que a "gente pobre é difícil de se suportar mutuamente". 26
Ademais, a sua ficção, povoada de figuras advindas do subúrbio
e de Botafogo, pólos opostos da sociedade que agudamente ana-
lisa, não vai configurar-se como uma ficção de luta de classes. Há
consciência da miséria, mas não consciência de classe nos seus
23 V. REIS FILHO, Nestor Goulart. "O Neoclássico nas Províncias." In:
Qua~ro da Arquitetura no Brasil. Poucas vezes um estudo especializado se
amplia numa compreensão tão justa do contexto em que se opera o fenôme-
no abordado
24 •
25 BARRETO,L. Isaías Caminha. p. 54.
E,m.bora "sem urna compreensão precisa do papel hist6rico da classe
~perana como tal", acentua Astrojildo Pereira no citado "Prefácio" a
ctga[,elas, tinha Lima Barreto "um seguro instinto, senão uma consciência
O~ra da luta que então se definia, a do trabalho contra o capital.
B serva Osmar Pimentel: "Pode mesmo dizer-se que, no caso de Lima
. n:rr;.to, foi o romancista que o defendeu do ide6Iogo." (Artigo publicado
"Pretl~a da Manhã, São Paulo, edição de 12/11/1949. Aparece corno
26 B aclO" na edição de Os Bruzundangas.)
AR.R.ETO, L. Clara dos Anjos. p. 94.
24 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
pobres, e, além Qisso, algumas de suas personagens aparecem como
figuras intermediárias, como é o caso de Lucrécio Barba-de-Bode,
de Numa e a Ninfa, que "não era propriamente político, mas fazia
parte da política e tinha o papel de ligá-Ia às classes popula-
res"; 27 ou Policarpo Quaresma, amigo de Floriano Peixoto e de
Ricardo Coração dos Outros, este um desocupado e autor de mo-
dinhas. O próprio Gonzaga de Sá, de origem fidalga e simples
amanuense da Secretaria dos Cultos, enquadra-se um pouco em
tal categoria. Esbatem-se, com tais figuras, beneficiando o romance
(sem que essas atenuações signifiquem uma atenuação das incom-
patibilidades entre os aceitos e os recusados), as fronteiras que,
nas crônicas e breves ensaios de jornal, vemos tão delineadas.
Lima Barreto alimenta esse painel movimentado, uno e vivo
do Brasil, com atributos dos quais nem sempre poderemos dizer
que sejam literários. Daríamos, mesmo, desse escritor, uma idéia
incompleta - e, quem sabe, imprecisa - se omitíssemos, traçan-
do o seu perfil, certos traços não indispensáveis ao ofício de escre-
ver e que, entretanto, compõem o seu modo de ser, r~percutindo
em tudo que escreveu.
Concede-lhe, o seu país, bem menos do que ele desejava e
esperava quando jovem - bem menos do que merecia. Não dire-
mos, tornando vaga e abs'trata a razão do seu fracasso relativo, um
fracasso que muito nos elucida sobre o quanto existe de surdamente
cruel e de entranhadamente conservador em nossa estrutura sócio-
-cultural, que o combate de Afonso Henriques de Lima Barreto
tenha sido contra a vida: ele bateu-se contra homens e entidades
precisas, jamais conseguindo fazer-se ouvir por aqueles em favor
de quem lutava. A afirmação de que o povo do Brasil raramente
"se deixa infiltrar por idéias úteis e que lhe são favoráveis" 28
não é feita por acaso. Todos os seus livros vendem-se com grande
lentidão, vive e morre pobre, não ascende socialmente, nem se-
quer realiza a viagem que tanto desejou. "Despeço-me de um por
um dos meus sonhos", já registrava em seu Diário, no dia 20 de
abril de 1914, poucas semanas antes de completar 33 anos e de
ter o primeiro acesso de loucura. Por isto escreve Alceu AmorosO
Lima "não ser possível imaginar vida literária e social mais hu-
27 In: Numa e a Ninfa. p. 58-59.
28 In: Bagatelas. p. 42.
LINGUAGEM. - TEMÁTICA. • . 25
. mais apagada, mais adversa" que a sua. 29 Seríamos, po-
mtlde,. 'ustos em ver na incompatibilidade de Lima Barreto com
rém, t!2ade brasileira apenas uma conseqüência da oblíqua cruel-
a ~a 10m que é massacrado, o reflexo do seu ressentimento, a rea-
d~ edc um indivíduo fraudado em suas ambições e por isto odian-
çao '~gativo, mundo e homens. O que se observa, ao contrário, na
âO, v~entação existente, é uma grande cordura em relação aos seus
dOCUstres
pessoais. No Diário do Hospício, ocupa-se mais dos ou-
esa N- b - d .
que de si. ao se o serva, nas cartas que entao expe e, am-
tros . d P d' . F . S h .
madversão por estar I~tern~ .~. e e Jorn~ls. a ranclsco. c ettmo
. diz-lhe não ser precIso vlslta-lo no HOSpICIO.Na entrevista con-
eedida a um repórter de A Folha, em janeiro de 1920, declara que
~ permanência no Hospício lhe "tem sido útil" e confessa ter-se
indignado com o irmão que o internou, mas não tem uma palavra
má ou colérica. 30 Nos artigos que assina em novembro e de-
zembro de 1918 ("Da Minha Cela" e "Carta Aberta"), ambos in-
cluídos em Bagatelas, ocupa-se em descrever o Hospital Central
do Exército, onde se acha internado, comentando a seguir aconte-
cimentos do país, dentre os quais a greve de 18 de novembro. No
primeiro dos mencionados artigos, importante sob vários aspectos,
estuda os internados com objetividade e quando anota serem eles
átonos e completamente destituídos de interesse, não é para maldi-
zer-se de tal companhia e sim para sublinhar que "bem podiam,
pela sua falta de relevo próprio, voltar à sociedade, ir formar mi-
nistérios, câmaras, senados e mesmo um deles ocupar a suprema
magistratura." 31 Encontraremos, em suas páginas íntimas, ex-
pressões de desalento, mas não de autocomiseração. Mesmo as
alusões constantes ao problema da cor ou à adoração nacional pe-
los doutores, embora ligadas a experiências pessoais, voltam-se para
fora, para a sociedade que conhece e sobre a qual testemunha.
Lima Barreto não combate em seu próprio benefício; os precon-
ceitos e as injustiças despertam a sua ira pelo que são, e não pelo
fato de atingirem a ele. Longe de ser - e só isto - um ressenti-
do, é ele um lutador, um escritor consciente das desigualdades, das
degradações de natureza ética ou estética, um ser humano cheio de
fervor, sonhando um mundo menos estúpido e clamando até à
morte - sem meios termos, sem frieza, assumindo posições claras,
COmtruculência, com cólera - a sua verdade. Não é outra, aliás,
29 L
. p. lIMA, Alceu Amoroso. "Prefácio." In: BARRliTO, L. Gonzaga de Sã.
:~ ~n~O Cemitério dos Vivos. p. 257-60.
n: Bagatelas. p. 99-100.
26 CAP. I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
a interpretação de Antônio Houaiss para quem os elementos da
vida de Lima Barreto, "quando não são notações ou conotações
realistas para pequenas particularidades ocasionais da vida de SUas
personagens, nunca foram tomados como peso ponderal da moti-
)lação da obra por força do seu egoísmo ou sequer do seu egocen_
trismo." 32
Trata-se portanto de um homem insatisfeito com o caráter da
sociedade a que pertence e que, com um senso muito agudo da
honra, faz questão de evidenciar as suas incompatibilidades, mes-
mo porque não está disposto a transigir. O Pimpinela Escarlate
que convive com os nobres e os combate ocultamente, não consti~
tuiria para ele um modelo de ação. O seu modelo seria o Don
Quixote, defensór doS. pobres e ofendidos, leitor exaltado, sonha-
úJr de perfeições, franco no falar e no agir, ingênuo, vilipendiado
- e nem sequer lhe faltaram, aproximando-o ainda mais do mo-
delo, o celibato e a loucura. Anda, incansável, pelas ruas do Rio
de Janeiro, convicto de que existe alguma força na sua fragilidade
e arremete sem desânimo contra a estultícia, a arrogância, a insen-
sibilidade, a grosseria, a violência, a opressão. Não: contra os es-
tultos, os arrogantes, os insensíveis, os grosseiros, os opressores,
os violentos.
Por tudo isto, a arma de Lima Barreto não é jamais a ironia
ou a parábola sutil. A parábola, quando existe, é grotesca e as suas
alusões, facilmente reconhecíveis, tornam o modelo ainda mais las-
timável. Como não identificar, nos literatos Samoiedas, "de bons
vestuários e ademanes de encomenda", escritores do seu tempo
que desconheciam nossa realidade e contra os quais clama seguida-
mente? Quando fala do ensino na Bruzundanga, das riquezas da
Bruzundanga, da sua política e dos seus políticos, das eleições, da
sociedade, da força armada, da organização do entusiasmo nesse
país imaginário e impossível, vemos claramente o Brasil e suas ins-
tituições.
A contrapartida desse sarcasmo (voltado sempre para Bota-
fogo e jamais para os subúrbios) é uma grande ternura pelos po-
bres e - fato significativo - pela paisagem, notadamente pelas
paisagens do Rio de Janeiro. "Saturei-me daquela melancolia tan-
gível, que é o sentimento primordial da minha cidade. Vivo nela
32 HOUAISS, Antônio. "Prefácio." In: BARRETO,L. Vida Urbana. p. 10.
Opõem-se, a minha visão e a de Antônio Houaiss, nesse aspecto, à. de
Eugênio Gomes, que fala nos "extravasamentos de ressentido" de LlI~;
Barreto. ("Lima Barreto e Coelho Neto." In: A Literatura no Bras~.
p. 123.) O estudo de Eugênio Gomes, entusiástico em relação a CoeI o
Neto, é de uma incompreensão muito grande em relação a Lima Barreto.
LINGUAGEM. - TEMÁTICA. . . 27
ive em mim!" 33 Nomeia Olívio Montenegro esse "com-
e ela .vo inseparável de todos os outros, que é a cidade do Rio de
anhe1r . d' - b . d
P . o Mas, am a aqUi - acrescenta - nao se a nn o a sua
]ane1ra' senão para os bairros mais pobres." 34 Investigando na
ternura direção, Lúcia Miguel Pereira parece ver mais longe quan-
rnes~neraliza e assinala em Lima Barreto "a sua permeabilidade
?o golicitações da natureza." 35 Hostil, intelectualmente, à no-
a~ sde pátria no sentido político, tocava-o a idéia de uma relação
çao ,. d d
scendental com os cenanos a sua aventura no mun o.
tran Homem de indignações fortes e admirações definitivas, sus-
tível a depressões' e também à alegria de viver, vulnerável a
citxões a idiossincrasias, a idéias fixas, Lima Barreto espanta-nos
~ela va;iedade de interesses e pela argúcia com que nos soube ana-
lisar. (Machado de Assis parece-nos dotado de uma visão privile-
giada para os segredos da arte literária e das almas sem grande-
za.) 36 Lima Barreto, intérprete sagaz do seu país e do seu
povo, viu como ninguém as nossas falhas - e raramente nos ocor-
re malgrado as delimitações precisas do período histórico abrangi-
d~ pelos seus escritos, que cinqüenta anos o separam de nós, tI!! a
constância de muitos dos aspectos que surpreende. Mas, insisti-
mos, suas preocupações, que a época em que viveu não explica,
abrangia outros aspectos ainda não familiares aos nossos homens
de letras, como a rapacidade do capitalismo, a infiltração norte-
-americana na América Latina ou, também, os problemas políticos
e sociais que deveriam suceder à Primeira Grande Guerra.
Aliás, uma curiosidade incansável instigava a sua grande ca-
pacidade de ver e de interpretar, não exagerando quando escreve:
"sou curioso de todas as cousas". 37 Essa curiosidade, bem enten-
dido, abrange o mundo e a arte. Os amigos que viajam para o
33 In: Gonzaga de Sá. p. 40.
:: In: 0. Romance Brasileiro. p. 158.
In: História da Literatura Brasileira - Prosa de Ficção (1870 a 1920).
p. 296.
36 Te~-se assinalado, em Lima Barreto, certas tendências retrógradas ou
saudOSistas. Ridiculariza em vários artigos os movimentos feministas e vê
~a ~~pública brasileira um retrocesso. Mas é significativo que o seu anti-
tmlnlsmo episódico nunca apareça nos romances. Nestes, ao contrário
duma exceção é a conversa entre Augusto Machado e seu amigo - Gonzaga
:: Sã. p. 84-85), a estreiteza da educação feminina, orientada exclusiva-
."ente para o t' A • , • f A •
V . ma nmomo, surge vanas vezes como um enomeno nocIvo.
.p~Ja.se .a personagem Ismênia, em Policarpo Quaresma. Também não se
a e~f aflEmar que abrigue, realmente, tendências monárquicas quem pede
elam l'dao do direito de testar e advoga a redistribuição das terras, pro-
87 B~~ o que a propriedade é social.
!!To, L. Vida Urbana. p. 229.
28 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
estrangeiro tornam-se como extensões da sua fome de mundo e ele
não se contenta com as notícias recebidas: quer ser informado
sobre os espetáculos, sobre os museus, se viram o Escriba Sentado
pede que lhe mandem jornais lidos; vê-se, nas Impressões de Lei~
tura, ser incapaz de ignorar um só livro que lhe venha às mãos
mesmo um estudo orográfico; interessa-se pela agricultura; pela~
narrativas populares; pelas cantigas de roda; pela Filosofia; pelos
movimentos operários; pelos loucos; pelo jogo do bicho e pelas
.relações do nosso povo com os animais; ocupa-se seguidamente de
problemas urbanísticos e arquitetônicos, inclusive de edifícios em
ruínas e, ante as paisagens, não lhe escapam sequer os matizes do
verde; tanto observa os enterros como as mutações da moda. A
lista, muito limitada, apenas ilustra a variedade das suas preocupa-
ções e nela pode-se observar uma constante já insinuada nos pa-
rágrafos anteriores: Lima Barreto, apesar de invadir, com a pró-
pria presença, muitas de suas páginas, é um homem voltado para
fora. Discutível que, na sua obra, "o traço pessoal e íntimo é o
que toma mais vulto", segundo registra Olívio Montenegro no es"'
tudo que dedica, em O Romance Brasileiro, ao escritor carioca,
reiterando páginas adiante o seu ponto de vista: "Assim, falando-
-se da obra de Lima Barreto, o que com mais evidência se impõe
ao crítico é o relevo que nela tem o personagem que nem sempre
aparece com o verdadeiro nome, e se chama Lima Barreto." 38
Compreendo a observação do saudoso crítico pernambucano, aliás
partilhada por outros estudiosos, aos quais fere a constância com
que surgem, nos romances de Lima Barreto, problemas relaciona-
dos com a intolerância racial entre nós e temas onde se reflete a
sua experiência, isto sem mencionar o fato de que idéias suas se-
jam tantas vezes expressas nos diálogos. O escritor é quase sempre
um homem que, ligado aos semelhantes, vê-se condenado, pelo seu
modo pessoal de ver e pela intensidade de suas perquirições, a uma
solidão que não é física e nem mesmo, a rigor, espiritual no senti-
do ordinário do termo. A sua é a solidão da percepção intensa e
do ato de exprimir. Ele fala aos outros homens. Devido, porém,
à própria decisão com que mergulha no âmago das coisas, instau-
ra-se entre ele e os demais uma espécie de nuvem que desfigura a
mensagem. Conhece-se o princípio formulado por Ezra Pound no
capítulo lU do seu ABC da Literatura: "Os bons escritores são
aqueles que mantêm a linguagem eficiente." 89 Tal eficiência,
88 In: O Romance Brasileiro. p. 143 e 149-50.
80 In: ABC da Literatura. Trad. de Augusto de Campos e José Paulo
Paes. São Paulo, Ed. Cultrix, 1970. p. 36.
LINGUAGEM. - TEMÁTICA... 29
. dispensável, pe~e para ~ texto uma a:en~ã? pouco freqüent~, ~i-
1~ '1 e intensa, pOISse destma o texto a lOdlVlduosque, na malOna,
fl~l onhecem uma linguagem limitada, com embriões de força, mas
So~co eficaz. Complementa este quadro uma percepção ineficiente
~o coisas. Talo drama do escritor, mas poucos dentre eles pode-
.a~ como Lima Barreto, repetir, com João Batista, ser "a voz do
n~e ~lama no deserto". Ele é um homem duplamente ferido: pelo
destino e pela História. A morte prematura da mãe e a loucura do
ai enegrecem o pequeno círculo familiar; ocorre, numa esfera
~ais ampla, o insucesso nos estudos; a necessidade de suprir o or-
çamento doméstico lança-o na burocracia, que despreza; publica
com dificuldade, às vezes mediante empréstimos a juros, obras que
não chegam a ser ignoradas mas também não alcançam sequer o
que poderíamos considerar uma popularidade mediana. O artigo
de Jackson de Figueiredo, publicado em 1916, é escrito, em parte,
como protesto ante o "quase absoluto silêncio" que cerca o Triste
Fim de Policarpo Quaresma e o seu autor. 40 Pouco afortunado
na vida familiar, nada conhece Lima Barreto das honrarias não re-
gateadas a outros e com quatro romances publicados é internado
como indigente no Hospício, sem que se registre em seu favor um
movimento coletivo de solidariedade, sendo também rara a presen-
ça de amigos. "Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu, senão
o Senhor Carlos Ventura e o sobrinho." 41 Natural que algo de
uma vida tão cercada de pressões se refletisse na obra e isto ocorre
em verdade. Mas o grau de egotismo que nos seus escritos obser-
vamos está longe do que se projeta, por exemplo, no Diário Inti-
mo, de Amiel. Seu egotismo, em outro grau, recorda o que diz
Montaigne abrindo a primeira edição dos seus Ensaios: "Quero,
porém, que aqui me vejam à minha moda simples, natural e or-
dinária, sem estudo nem artifício; pois sou eu quem eu retrato."
Na realidade, o auto-retrato que promete Montaigne, "sem estudo
nem artifício", constitui uni belo exemplo de tópica exordial, aí
também incluso entre os topoi da modéstia afetada, do que nos dá
tantos exemplos E. R. Curtius no seu conhecido manual sobre a
Idade Média Latina. Como os ensaios de Montaigne, ilusoriamen-
te,centrados no autor e, na realidade, voltados para as coisas e fe-
nomenos circundantes, também a obra do escritor brasileiro (aten-
to, embora, ao misterioso e ao transcendente) é toda ela voltada
para fora, para o mundo imediato e concreto.
40 A r
Ap r 19o publicado em A Lusitana, Rio de Janeiro, edição de 10/06/1916.
41 ~r~ce como "Prefácio" na edição de Feiras e Mafuás.
n. O Cemitério dos Vivos (Diário do Hospício). p. 34.
30 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR
Assim, Afonso Henriques de Lima Barreto, segregado e en-
volvendo, no ~f'11
I')lh~~desperto, avaliador e sensível às mudanças
antf' ~ j..•
úela aberta do Hospício Nacional de Alienados, as monta:
nhas, o mar e o casario sob a manhã nevoenta de janeiro, enquanto
medita outro romance que não chegará a concluir (vive, nesses
dias, tão preso ao personagem-narrador, que se confunde com ele
em seus apontamentos sobre o Hospício de Alienados), é um pou-
co a imagem do seu próprio destino e da sua atitude em face do
mundo. A rigor, ele sempre esteve circunscrito a um determinado
círculo de que o Hospício é a expressão simbólica e extremada: e,
conquanto isolado, nunca arrefeceu o olhar com que examina e
pesa, por intermédio da escrita, a realidade que o rodeia. Sua con-
templação, nessa manhã, nada tem de indiferente e está bem longe
da simples fruição. Mesclam-se, no seu espírito, exaltação, tristeza
e senso crítico. Mais: fanático da escrita, homem para quem "es-
crever era a maneira de ser", na expressão de Antônio Houaiss,
este momento e as reflexões que provoca em seu espírito logo serão
registrados.
CAPÍTULO II
LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
Insulamento e ação nos seus romances.
POUCO propenso a afirmar que Afonso Henriques de Lima
Barreto seja "o nosso primeiro criador de almas" e mesmo duvi-
dando que isso constitua o traço capital de um romancista, diria
ser o romance o setor mais rico e sugestivo na obra desse escritor.
Será talvez verdade que não se possa "aprofundar o conhecimento
e a compreensão da sua obra de ficção sem se conhecer e com-
preender as reflexões e memórias que nos deixou sob a forma de
artigos e crônicas de jornal." 1 Esses artigos e crônicas, alguns
violentos, outros cheios de delicadeza- e quase todos repassados de
humor - revelando Lima Barreto, com lentes de aumento defor-
mantes, absurdos que um tratamento mais comedido deixaria in-
denes -, formam decerto um acervo de grande interasse documen-
tal e literário. Abrigam flagrantes numerosos; variados e vivos da
nossa vida política e mundana no primeiro quartel do século, do
nosso movimento literário - inclusive das províncias - e das
transformações ocorridas na aparência do Rio; como atrativo su-
plementar, revelam o escritor no ato mesmo de reagir e opinar, sem
que a espontaneidade torne a sua expressão tíbia ou insulsa; mos-
tram, nele, um aspecto moral que o gênero romanesco oculta em
~arte: independência de vistas; e, ainda mais importante, possibi-
litam-nos medir com apreciável justeza - e não sem apreensões
-. a debilitação sofrida no país pelo direito e pela capacidade de
opm~r, debilitação que adquire um ar de boas maneiras e de cuja
amphtude quase não nos apercebeIrlos. Eis algumas das razões
pe~asquais se justifica, para o interessado no autor, para o pesqui-
sa Orsocial, para quem trabalha com a palavra escrita ou simples-
~ente para quem. considera saudável a prática de emitir .juízos fran-
sos, o conhecimento dos textos não-ficcionais do ficcionista. Mas,
irim.dúvida, é no romance que se expande e se revela esse espírito
qUieto, "curioso de todas as cousas."
t p
EREIRA, Astrojildo. "Prefácio." In: B"RRETO, L. Bagatelas. p. 13.
32 CAPo II - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
"Lima Barreto, como Machado de Assis - lemos em Lúcia
Miguel Pereira, quando o confronta com Raul Pompéia e Graça
Aranha -, fala exclusivamente em termos de ficção, é através das
suas criaturas que interroga a existência." 2 A proposição lem-
bra em outro registro a sectária assertiva de Agripino Grieco:
prende-se, de um modo menos rígido, às relações do escritor com
as personagens criadas e firma-se no conceito subjacente, conside_
rado óbvio, de que se reconhece o ficcionista pela capacidade de
criar almas. Não falta esse poder a Lima Barreto, embora a au-
sência de vida nas suas personagens - pouco vulneráveis às pai-
xões - tenha induzido Agripino Grieco a condenar in limine, na
sua crítica, o Gonzaga de Sá. Mas se aparece o romance, no con-
junto dessa obra, como o segmento de maior importância, deve-se
a motivos de outra ordem, um dos quais - que a seguir tentare-
mos precisar e identificar - tem escapado aos seus estudiosos.
A elasticidade do gênero romance permite a concentração das
variadas tendências e aptidões que formam a personalidade literá-
ria de Lima Barreto. Encontramos nos seus livros, entremeados à
narrativa ou à maneira de engaste, a crônica, o ensaio, expansões
líricas e até o documento. Este, um dos motivos pelos quais tal
fração da sua obra sobreexcede as demais em interesse quando
a examinamos. Mas o romance não é apenas um gênero maleável,
proteico, aberto, capaz de abrigar e de conciliar outros gêneros
mais simples. Vê-Io assim seria desconhecer a sua faculdade de
iluminar zonas dissimuladas. Tarefa absorvente, na qual se em-
penha o ser total do escritor, vai o romance desmontando as
armaduras que o autor constrói para si mesmo e refletindo, cifrado,
o seu rosto autêntico, por mais oculto que esteja. Robbe-Grillet
não formula um paradoxo ao afirmar que quando se interroga
o romancista a respeito do motivo pelo qual teria escrito, a única
resposta é: "Para tentar saber por que eu desejava escrever." 3
Entretanto, não revelará o romance ainda mais do que isto? Por
mais lúcido e intencional que seja, assume aspectos imprevisíveis,
possibilitando revelações insólitas. Ante a obra acabada, pode o
autor saber por que desejava escrevê-Ia. Impossível ler, porém,
tudo o que nos transmite, até que ponto o desnuda e em qu~
medida age sobre ela a atmosfera do seu tempo. O romance .e
um desvelador de segredos, uma armadilha de espectros. InsI~
nuando-se por entre personagens, observações e fábulas cujo sen-
tido é evidente, entrevemos, na obra romanesca de Lima Barreto,
2 1n: História da Literatura Brasileira. p. 288.
3 1n: Pour un Nouveau Roman. p. 15.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 33
. has meio ocultas, que conferem ambigüidade ao perfil do escritor
11n '",_
os conVIdam a lllvestlgaçao.
e n Bem cedo escolhe Afonso Henriques de Lima Barreto o
mance como a expressão adequada ao seu potencial criador e
~o ariedade de aspectos que tenciona abranger. A edição do Diário
; ;imo abre-se com a introdução do romance iniciado antes dos
~ anos e logo abandonado. Aos 24 anos, em 9 de julho de
1905 refere: "Depois de três meses de interrupção, deu-me von-
tade de escrever, ou continuar a escrever meu livro. Publicá-Io-ei?
Terá mérito? En avant." Tudo faz Supor que se trata do romance
de estréia, editado em 1909, de que a revista Floreal, por ele
criada, divulga em 1907 o início e onde - fato pouco previsível
em obras novelísticas de jovens - inexistem amor e aventura.
"Eu tinha um grande pudor de tratar de amor" _ diria o inter-
nado de O Cemitério dos Vivos. 4 Aliás, em todos os livros de
Lima Barreto, será o amor, quando surge, um tema secundário
ou desfigurado; a aventura, nunca vivida por caracteres infla-
mados, assumirá outros nomes e terá um aspecto sombrio.
Recordações do Escrivão [saías Caminha é o único livro
de Lima Barreto em que a personagem principal narra a história. 1)
Isaías, escrivão de coletoria no interior do Espírito Santo, para
onde se retirou a fim de preservar, no anonimato de uma vida
sem brilho, sua dignidade, desgastada nos anos em que o Rio
de Janeiro massacra o então jovem provinciano e aos poucos
recompensa-o em troca de miúdas concessões (ou então ao azar
das circunstâncias, nunca pelos seus merecimentos), decide regis-
trar suas lembranças. Desenvolve-se a narrativa alternando o tem-
po passado e a vida atual do narrador, num processo que São
Bernardo parece seguir de perto, inclusive quando os supostos
memorialistas, dizendo-se inábeis, falam do seu trabalho de com-
por e manifestam dúvidas sobre os respectivos textos. "Mas; não
é. a ambição literária que me move a procurar esse dom miste-
TlOsopara animar e fazer viver estas pálidas Recordações." (L. B.)
"A
. s peSSoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir
Isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco
se perde. Não pretendo bancar escritor." (G. R.) 'lÁ noite, quan",
do todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me
da mesa e escrevo furiosamente." (L. B.) "Quando os grilos can-
: ~AlUl.ETO, L. O Cemitério dos Vivos. p. 169. .
o lÍlRrocesso seria retomado em O Cemitério dos Vivos, iniciado durante
con ItI'?o internamento do escritor no Hospício e que ele não chega a
c Ulr. Consideraremos adiante esse texto inacabado.
34 CAPo fi - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
tam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo
o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito nume-
rosas - e a folha permanece meio escrita, como estava na vés-
pera." (G. R.) 6 Divergem, nos dois romances, as motivações de
Paulo Honório e Isaías Caminha. O fazendeiro de GraciUano
Ramos escreve na esperança de aquietar o espírito e ver um pouco
mais claro. O mulato Isaías Caminha, para de algum modo mos-
trar que as causas de desastres pessoais como o seu não estão
na carne e no sangue da vítima, mas no exterior: seriam causas
de natureza social, e não psicológica, atávica ou antropológica.
Foge aos nossos propósitos discutir se se trata de um ro-
mance de tese e a validade de tal gênero. Seja co~o for, a his-
tória de Isaías apresenta-se como uma aprendizagem em terra es-
tranha. Curiosamente, e aqui iniciamos o acesso à camada mais
enigmática da obra, Isaías, embora assumindo a narrativa, tem
algo de um narrador invisível: mais contemplado r que atuante,
relaciona-se pouco e esporadicamente com as demais personagens,
nunca chegando essas relações a perturbar ou a modificar os
destinos alheios. As figuras do romance surgem e desaparecem,
morre a mãe de Isaías Caminha, morre o cronista Floc, enlou-
quece Lobo por causa da Gramática, fatos políticos ou individuais
abalam a cidade, mas o narrador em nada interfere.
Dissemos não existir nesse romance amor nem aventura.
Aprofundemos a observação: amor e aventura implicam em en-
volvimento com outros seres - atos predatórios ou salvadores
-=, mas há entre Isaías e os que o cercam, um corte. Quando
ele conversa, é quase sempre sobre temas gerais, também as outras
personagens discutem, mas os diálogos' não têm função dramá-
tica, não impulsionam os acontecimentos e aqui toda comunicação
é falaz, o que se torna ainda mais estranho quando nos ocorre
que toda a segunda parte da obra decorre num jornal. Nas Re-
cordações do Escrivão [saías Caminha, pormenor que o tom fre-
qüentemente panfletário e caricatural do livro encobre, as per-
sonagens nunca se entrelaçam. Contíguos e sós, integram esta
composição anômala e um tanto monstruosa, onde as várias uni-
dades, isoladas - ignorantes ainda da própria solidão -, apenas
se deslocam, modificando o conjunto, sem que haja acréscimoS
ou perdas espirituais nos seus deslocamentos. Lima Barreto inau-
gura na ficção brasileira, sem dar-se conta disto, segundo tudo
6 Respectivamente: BARRETO, L. [saías Caminha. p. 78; RAMOS, Orac!-
liano. São Bemardo. p. 13; BARRETO,L. Op. cit., p. 79; RAMOS, OraC1-
liano. Op. cit., p. 113.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 3S
. dica o tema da incomunicabilidade, tão caro à arte contem-
1Dorân~a,surgindo como um antecipador, um anunciador do nosso
p . - 7
tempo e das nossas cnaçoes.
Vendo-os a essa luz, captamos melhor o alcance de certos
pisódios do romance, dentre eles a loucura de Lobo, o revisor
~e O Globo, em quem o fenômeno do ilhamento faz-se progres-
sivamente, através da linguagem. Submisso à Gramática, regride
historicamente no convívio com a Língua Portuguesa, entendendo-
-se cada vez menos com as pessoas, até ser internado no hospício,
onde vive a ler uma obra doutrinária do século XV e sem a
menor relação com o seu estilo de vida, a Ensynança de Bem Ca-
valgar, de EI-Rei Dom Duarte. "A sua mania era não falar nem
ouvir. Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semana inteira,
pedindo tudo por acenos." 8 O suicídio de Floc relaciona-se igual-
mente com a linguagem e o ilhamento, fatores ressaltados pela
circunstância de ser ele um cronista mundano. Mata-se com um
tiro no ouvido, depois de tentar, inutilmente, redigir mais um
artigo. Não consegue expressar o que deseja (ou não mais iden-
tifica os destinatários do artigo?) e a sua morte é muda: não
deixa uma palavra a ninguém.
Lúcia Miguel Pereira, estudando com grande simpatia e ho-
nestidade esse romance, condena o que lhe parece "a artificiali-
dade da evolução de Isaías, como também o descuido do autor,
crescente à medida que se acentua o tom caricatural", na frieza
com que ele se refere à morte da mãe: "O rapaz, cujas reações
só se explicam por uma grande sensibilidade, mostra-se indife-
rente". 9
Sim, há caricatura nesse livro, mas é incorreto dizer que
o tom caricatural se acentua. A página mesma em que Isaías
se refere à sua mãe, pobre e apagada figura, é rica em notações
líricas sobre o mês de maio e de impiedosas auto-análises: "A
Terra era todo um estojo macio e tépido, feita especialmente
7 :'A história social do homem iniciou-se ao emergir este de um estado de
UnIdade indiferenciada do mundo natural, para adquirir consciência de si
~esrno como de uma entidade separada e distinta da natureza e dos
e~rnens qUe .0 rodeavam." A violência com que Lima Barreto ataca a
o ~Utur~ capitalista faz-nos perguntar se acaso não sentia, obscuramente,
ind'U~ dIZ.o autor da citação acima ao lembrar que o princípio da atividade
trib~!duahsta, Uma das características gerais da economia capitalista, "con-
ilIOdlU para Cortar todos os vínculos existentes entre os indivíduos e deste
1'he ~ separou e isolou cada homem de todos os demais." (FROMM, Erich.
8 BA ear 01 Freedom. p. 49 e 133.)
9 In.RaE:o, ~. [saías Caminha. p. 187.
. }/'st6na da Literatura Brasileira. p. 305.
36 CAPo JI - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
para viver do nOsso corpo. ( ... ) Aquele começo de mês foi
para mim de grande sossego e de muito egoísmo. ( ... ) Vinham
(as observações e as emoções) uma a uma, invadindo-me a per-
sonalidade insidiosamente para saturar-me mais tarde até ao abor-
recimento e ao desgosto de viver." 10 No último passeio com
Loberant e uma italiana à Ilha do Governador, ao fim do livro,
as impressões de Jsaías estão longe da caricatura: "Fomos ser-
vidos em velhos pratos azuis com uns desenhos chineses e as
facas tinham ainda aquele cabo de chifre de outros tempos. A
vista deles, dos pratos velhos e daquelas facas, lembrei-me muito
da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito?" 11 Não,
não há incoerência em Isaías.' Mas uma obra de arte é sempre
vista aos poucos, desvendada aos poucos - e assim nem a sutil
acuidade de Lúcia Miguel Pereira chegou a perceber, há vinte
anos, que, em harmonia com uma lei geral do livro, onde prota-
gonista e figurantes permanecem encerrados em si mesmos, a
indiscutível sensibilidade de Isaías Caminha é um CÍrculo: como
todos, ele está fechado em si mesmo num mundo onde as comu-
nicações foram cortadas. Isaías, atordoado certa vez com o
desencontro entre os seus planos e a realidade, longe de escrever
para casa ou de tentar uma confidência, volta-se para o mar:
"Continuei a olhar o mar fixamente, de costas para os bondes
que passavam." 12 Vai Isaías transitando ante os seres sem se
prender a ninguém e a sua indiferença ante o falecimento da mãe
é inevitável. Ainda não nasceu o autor de L'Etranger, mas Meur-
sault já tem um ancestral: os tempos, capciosamente, engendram
os seus símbolos. "As plumas dos chapéus das senhoras e as
bengalas dos homens - fala ainda Isaías - pareceram-me ser
enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado
por um naufrágio." 13
Em janeiro de 1908, ainda inédito em livro o seu [saías
Caminha, anota Lima Barreto, no Diário, haver escrito "quase
todo" o Gonzaga de Sá no ano anterior. Triste Fim de Policarpo
Quaresma é entretanto o romance que se segue, em ordem de
publicação, à. obra de estréia.
. Isaías Caminha, na época em que escreve suas Recordações,
informa-nos da existência da esposa, a quem sobreviverá, mas
seu estado civil é irrelevante para a estrutura da obra. Só apa-
10 BARRETO, L. Isaías Caminha. p. 164-6-5.
11 Id., ibid., p. 192.
12 Id., ibid., p. 84.
13 Id .• ibid., p. 85.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 37
recem no romance as figuras do passado, embora cheguemos a
ouvir essa mulher chamando-o, invisível; e o casamento de ambos
celebra-se numa espécie de vazio, entre os dois planos temporais
constantes da narrativa. Policarpo Quaresma, celibatário e sem
'preocupações matrimoniais, vive em companhia da irmã. En-
quanto o problema de Isaías Caminha, equacionado em termos
de um confronto com a sociedade, era ainda de ordem pessoal,
policarpo Quaresma é um funcionário correto, metódico, reme-
diado, sem ambições, sem conflitos, sem dilemas existenciais e,
portanto, nada preocupado com a sua pessoa ou o seu destino:
todo ele está voltado (e só isto o converte em personagem de
romance) para uma certa idéia de Brasil. Se o amor à Língua
Portuguesa manifesta o isolamento cada vez mais drástico de
Lobo, levando-o afinal à loucura, isola Policarpo Quaresma, tra-
zendo-lhe conseqüências funestas, um amor cego e desmedido
pelo seu país.
- A princípio, exatamente como Isaías, Policarpo Quaresma
gira no âmbito da sua paixão, fechado em si e na sua idéia fixa:
"vivia imerso no seu sonho" e apenas trocava com as pessoas
"pequenas banalidades, ditos de todo o dia, cousas com que a
sua alma e o seu coração nada tinham que ver." Com o preto
Anastácio, que há trinta anos trabalha para ele e com quem po-
deria falar de si mesmo, conversa "sobre cousas antigas". 14 A
tendência a empregar de maneira neutra o diálogo, isto é, sem
que expresse paixões, revele claramente problemas íntimos ou atue
sobre o interlocutor, volta a aparecer aqui e compõe o modo de
ser do personagem-título. Policarpo Quaresma, isolado, sem an-
gústia ou desespero, no seu embevecimento, lê com zelo e cons-
tância os primeiros cronistas, os viajantes como Jean de Léry e
Saint-Hilaire; dedica-se ao tupi-guarani, toma lições de violão.
Notam-se, no livro, variações importantes de dois temas !un-
damentais: o do ilhamento (meio oculto sob outros, mais fami-
liares e ostensivos); o da inoperância dos atos de cada perso-
nagem sobre o próximo e sobre o meio. Todos, em [saías Ca-
n:inha, cruzam com outros e se vão, sem que o seu destino tenha
SIdo afetado e sem que modifique o de ninguém. Em Policarpo
Quaresma, esses núcleos individuais e· solitários tomam-se mais
c~mplexos: são substituídos. por núcleos domésticos. Existem os
nucleos Policarpo--Adelaide, General Albernaz-família, Vicente
;~lga (e mais tarde o marido de Olga) e ainda, elemento à parte,
UnICo~em liames familiares, Ricardo Coração dos Outros, artista
14 B
ARRETO, L. Policarpo Quaresma. p. 62-63 e 34.
38 CAPo li - LIMA BARJlETO: O ROMANCISTA
do violão e compositor de modinhas. Para unir um núcleo a
outro temos o flébil recurso das visitas, motivação rara e ocasional
em [saías Caminha. Mas a sociabilidade das personagens, em
Policarpo Quaresma, vai cerrando os fios do relato e estabele-
cendo tensões? Não. Repete-se, ao contrário, o fenômeno já
registrado no primeiro fi)mance, onde as personagens se encon-
tram e separam-se senl que nenhuma delas aparente sofrer qual-
quer mudança. As visita~e as reuniões sociais não constituem
ponto de partida para quaIsquer eventos. Acresce que os núcleos
a que chamamos domésticos e que integram a obra são indepen-
dentes: o afastamento deCavalcanti e depois a loucura de Ismênia
(um dos únicos casos etll que um ato vai repercutir sobre outra
personagem), o casaroetntode alga, toda a vida de Ricardo, a
loucura de Quaresma Qperam.:.sesem conexão com os núcleos
restantes e em nada Oi aietam.
Além do mais, va~.a~ãonot~vel do tema que vamos pro-
curando delimitar e ide~ficar, Pohcarpo Quaresma "sentia dentro
de si impulsos imperi1>SO$
d~ agir 15 num esforço que contraria
o seu modo de ser elwvai expenmentar romper o isolamento
e atuar sobre o meiQL
J6 Dirige uma petição ao Congresso Na-
cional, pedindo que se "d~c~eteo tupi-guarani como língua oficial
e nacional do povo bt<lSI1~lrO."
17 A ingênua tentativa de Poli-
carpo Quaresma expre§3n.~ apenas uma reação à estrutura da
obra de estréia, e, co~quentemente, uma mudança radical na
visão do romancista senão viesse a configurar-se como uma in-
fração. A incursão do }er6ino mundo da influência, mundo onde
se procura atuar so~re'indivíduos ou grupos, seu inofensivo e
tímido ensaio no sentJ.d())~e
romper o alvéolo, deflagra uma pressão
tão impiedosa e genenliZadaque o leya ao hospício.
Tendo aÍta, vai Pilt!carpo Quaresma para o campo, com o
objetivo de pôr em ~rl1lca,atendendo aos objetivos satíricos do
livro e que constitmro li) seu primeiro plano, o que primeiro se
oferece ao observado~,msuacrença na fertilidade do solo nacional.
Numa esfera mais prof1lJ}:da,
Policarpo Quaresma, batido pela rea-
ção ao seu ato impl11del1te,.
intensifica no sentido físico o próprio
isolamento. Verifica-selqUiuma conciliação de objetivos: o herói,
ao mesmo tempo queaJ)andona o cenário da sua desastrada ex-
15 BARRETO,L·pp. cia.W13.. .
16 Cf. TODOROV: "UIIJl lII'rahva Ideal começa por uma situação estável
que uma força qualqu:r I'em p:rturbar." (As .Estruturas Narrativas. p.
138.) Possuía Lima BlPlllonoçao clara das leIS que regem tradicional-
mente o relato e quanll> » cbntraria não é decerto por inaptidão.
17 BARRETO,L. PolicarlJOfuaresma. p. 61.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 39
periência, vai empreender uma nova forma de ação, voltada agora
simplesmente para a terra e não mais para a sociedade. Mas
os desastres também não tardam nessa outra conjuntura: a terra
não produz e as saúvas aferroam o lavrador improvisado com
uma violência que evoca a reação geral ao seu infeliz requeri-
mento. 18 Isto, porém, ainda não é tudo. A vinda de Quaresma
para a região, seu retraimento desinteressado, rompendo de
algum modo a neutralidade das suas normas de vida e sendo,
afinal, uma ação, acaba provocando adulações, suspeitas e gestos
agressivos por parte dos que governam a vila cujos estatutos re-
gem o sítio. Todos têm o ar de intrusos, como se ao mesmo
tempo eles tentassem invadir a vida de Quaresma e o romance.
Curiosamente, no mesmo ano em que aparece em livro o Triste
Fim de Policarpo Quaresma (a publicação em folhetins inicia-se
em 1911), edita-se na Inglaterra Victory, de Joseph Conrad.
Antonio Candido, para quem há em Conrad "um sentimento da
ilha que funciona com valor metafórico e alegórico", acrescenta
que a metáfora do ilhamento, no escritor inglês, não se fecha,
sendo "um preâmbulo ao problema decisivo, o ato, cujo meca-
nismo ela desencadeia, como se pode constatar exemplarmente
em Victory". a sueco Axel Heyst, concluindo "que a ação é
algo diabólico, responsável pelo mal na sociedade", retira-se para
uma ilha do Pacífico. "Mas a ilusória solidão abre caminho aos
embates comuns da vida, resultantes do amor, da cobiça, do
ódio." 19 Mecanismo idêntico, portanto, ao que se observa na
reclusão de Quaresma, embora com outra intensidade e em outro
nível de consciência. 20
a mesmo motivo - ensaio de interferência redundando em
desastre - logo irá repetir-se, oc~pando toda a segunda metade
da narrativa. "Na manhã de 6 de setembro de 1893 toda a
armada se revoltou, acrescida com alguns navios mercantes. ( ... )
Floriano era teimoso e não economizava o sangue dos seus com-
patriotas. Convocou a guarda nacional, pôs a força de prontidão
e levou canhões para os morros. Veio o estado de sítio e organi-
18 Atente-se para a circunstância de que o problema da expressão verbal,
relevante nos personagens Lobo e Floc - e, um tanto secundariamente,
em Isaías Caminha enquanto narrador -, é o primeiro a surgir das leituras
e ruminações de Policarpo Quaresma, constituindo a raiz do seu comporta-
. mento ulterior.
J9 CANDIDO,Antonio. Tese e Antítese. p. 62-63.
20 Devemos registrar que, na juventude, Quaresma auxiliou Vicente Coleoni,
que estava à beira da ruína e que, graças à ajuda recebida, acaba enri-
quecendo. Uma exceção, contrariando as leis que rastreamos.
40 CAPo 11 - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
zaram-se batalhões patrióticos" 21 - resume Graciliano Ramos,
evidentemente sem ardor, na "Pequena História da República".
policarpo Quaresma, informado dos acontecimentos, redige um me-
morial a Floriano Peixoto e, indiferente às ponderações da irmã,
que lhe mostra "os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com
a sua idade e superiores à sua força", 22 viaja para o Distrito
Federal, com o objetivo de entregar o memorial e alistar-se. Tudo
o que provoca o seu memorial são estas palavras de Floriano:
"Você, Quaresma, 6 um visionário ... "23 Alistado, 6 ferido, con-
verte-se em carcereiro e, percebendo que o governo, vitorioso, tru-
cida grande número de prisioneiros, comete a transgressão final:
envia ao Presidente uma carta de protesto. Encarceram-no, sendo
a morte o seu fim, não apenas triste, mas lógico e óbvio. Assim
acaba esse livro de raras e veladas confidências, de laços familiares
frágeis, de casamentos sem flama, de interferências vãs ou desastro-
sas _ tudo refletido nas frouxas motivações que unem formalmente
os seus núcleos - e no qual o tema do insulamento constitui um
veio profundo, embora discreto. 24 Bem antes, respondendo a uma
observação de Ricardo Coração dos Outros sobre o pensamento e
as consolações do sonho, dissera Policarpo Quaresma que sonhar
talvez console, mas distancia e "cava abismos entre os homens".
Mas o pensamento e o sonho terão na verdade esse poder desagre-
gador? Ou apenas levam à revelação de abismos já existentes e cuja
amplitude este livro melancólico e sarcástico acentua como por aca-
so?
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, no julgamento do autor
o mais acabado dos seus livros, forma com [saías Caminha e Poli-
carpo Quaresma uma trilogia involuntária da incomunicabilidade e
só virá a público em 1919. Antes disto, havendo-o já escrito, entra
Lima Barreto na fase mais sombria ou mais exasperada da sua
vida. Percebe-se, como num sismógrafo, que começa a minar-lhe
o espírito um sentimento geral de insegurança. A venturas do Dou-
tor Bogóloff, "narrativas humorísticas", aparecem em folhetins e
são interrompidas no segundo fascículo. O que parece desejar ago-
21 RAMOS, Graciliano. "Pequena História da República." In: Alexandre
e Outros Heróis. p. 150.
22 Id., ibid., p. 149.
23 Id., ibid., p. 176.
24 Vemos, na última página da obra, Olga seguir ao encontro de Ricardo.
O fato de que, na linha final desse livro, onde papel tão importante é
concedido ao insulamento espiritual e aos perigos de rompê-Io, um perso-
nagem vá ao encontro de outro, serenamente, ioa como dissonância volun-
tária e estimula-nos à reflexão.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 41
ra, escreve o seu biógrafo, "6 descer ainda mais, mergulhar-se no
cinismo e no deboche, acanalhar-se por completo." 25 Tenta, sem
qualquer êxito, o gênero fescenino e em abril de 1914 desabafa no
Diário: "Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O
maior desalento me invade." :E: um ano em que sua correspondên-
cia, restrita ainda e pouco diversiflcada, mais se reduz. O tema do
isolamento parece repercutir na sua vida ou extremar-se. Ele pró-
prio se apercebe da crise que se intensifica e a 13 de julho registra:
"Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro.
Estarei indo para a loucura?" No dia 18 de agosto, conduzido
num carro de presos, 6 internado pela primeira vez no Hospício,
onde passa perto de dois meses. Ao sair, escreve, em apenas vinte
e cinco dias, por encomenda de Irineu Marinho, sem copiar nem
recopiar sequer um capítulo, 26 o romance Numa e a Ninfa. De-
senvolve, para isto, mantendo inclusive o título, conto publicado
três anos antes na Gazeta da Tarde e trechos inteiros das malogra-
das Aventuras do Doutor Bogóloff. As circunstâncias em que escre-
ve o livro, todas desfavoráveis, levando-o inclusive ao reaproveita-
mento tardio de tema, personagens e situações, pode explicar cer-
tos desvios flagrantes em relação à trilogia a que aludimos.
Limitemo-nos, evitando explicações ou justificativas, a acentuar o
amortecimento de sua percepção das coisas e a intensificação -
aparente, ao menos - de laços entre as personagens, com.a perda
de um traço pessoal, enigmático e cheio de sugestões, patente em
[saías Caminha, Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá. Contudo,
mesmo nesse romance composto sob estímulos artificiais e onde 6
possível - onde se procura mesmo - afetar os destinos alheios,
não no sentido espiritual e sim no que concerne à sobrevivência ou
à carreira, observa João Ribeiro que "todos os personagens desa-
parecem quase subitamente". 27 As separações subsistem entre eles;
e os seus diálogos, quase sem exceção, giram em tomo de assuntos
25 BARBOSA,Francisco de Assis. Aldebarã - A Vida de Lima Barreto.
p. 225-26. José Aderaldo Castello (Método e Interpretação. p. 75-82.)
é um tanto rigoroso na sua crítica a essa biografia. Também não parece
muito tolerante em relação a Lima Barreto: "ele foi vítima do seu próprio
orgulho de desajustado, de vaidoso que esperava o reconhecimento dos
contemporâneos e o seu estímulo, antes de oferecer os elementos necessários
para merecê-Ios." (p. 80.)
26 V. BARRETO,L. Diário Intimo. p. 182: "Eu tinha pressa de entregá-Io,
para ver se o Marinho (Irineu Marinho, então diretor da A Noite) me
pagava logo, mas não foi assim e recebi o dinheiro aos poucos."
27 RIBEIRO, João. Artigo publicado em O Imparcial, Rio de Janeiro, em
edição de 07/05/1917. Aparece como "Prefácio" em Numa e a Ninfa.
p. 12.
'14 CAPo II - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
sas." 33 Interesse nostálgico, especulativo, interesse de amador um
tanto distanciado de tudo e nem de longe -passível de converter-se
em atos, "à vista da obscuridade a que se havia voluntariamente
imposto." 34 Idênticas às de Gonzaga de Sá as predisposições de
Machado, seu imaginário biógrafo. Só ou em companhia do amigo,
contempla as coisas e raciocina sobre elas, num tom talvez um
pouco mais comovido, mas que ressoa como um eco, paráfrase ou
reflexo do que ouve e transcreve. O que vêem e observam Gonza-
ga e Machado lembra uma sonata para dois instrumentos afins.
Esta consonância, quem - sem o saber ou em plena cons-
ciência _ não a deseja ou não a procurou? Os dois amigos, um
velho e um jovem, no romance de Lima Barreto, pareceriam a fe-
liz e efêmera expressão de tal sonho. "Eu, a quem. a convivência
com tão precioso e excepcional superior hierárquico permitira que
se me penetrasse um pouco do seu feitio mental" - confessa Ma-
chado. 35 E um dia, estando com o amigo ante a noite que cai,
expressa-se como se ambos fossem um: "Nós, então, sentimos as
nossas almas inteiramente mergulhadas na sombra e os nossoS cor-
pos a pedir amor. Calamo-nos e olhamos um pouco as estrelas no
céu escuro." 36 "Entre nós havia aquele aperfeiçoamento de comu-
nicação, que Wells tanto encomia nos marcianos: mal emitia um
pensamento, um dos nossos cérebros, ia ele logo ao outro, sem in-
termediário algum, por via telepática." 37
Enganosa e obscura, apesar de tudo, mesmo sem levarmos em
conta certas oposições profundas que distinguem um do outro e
de que ainda falaremos, é esta semelhança de caracteres - e tam-
bém de idéias, pois as discussões entre eles orientam-se, em regra,
no mesmo sentido. Nas conversas que sustêm, limitadas por uma
tácita convenção de pudor, nenhum deles fala de si ao parceiro ou
comete indiscrições. A única pergunta de ordem pessoal que faz
o jovem a Gonzaga refere-se ao seu estado civil:
,,_ Senhor Gonzaga, não é casado?
"- Não.
"- Nem quis casar?
,,_ Duas vezes: uma, com a filha de um visconde, em baile
de um marquês.
"- E a outra?"
83 BARRETO, L. Gonzaga de Sá. p. 64.
84 Id., ibid., p. 50.
M Id., ibid., p. 71.
36 Id., ibid., p. 54.
37 Id., ibid., p. 111.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 4S
Responde o velho que a outra foi a sua lavadeira. 38 Gonza-
ga de Sá, nas últimas páginas do livro, faz confidências a Machado.
Coisa notável: a confidência, ato anormal nesta ficção de seres
ilhados em si mesmos, é interpretada como sinal de fraqueza. "Na
forte compreensão da dignidade de sua pessoa, e no avassalador
orgulho pela sua inteligência, atrozes feridas deviam se ter aberto
nele pela vida toda; e agora, com a decadência de energia que a ve-
lhice acarreta, não mais podia suportar-Ihes' as dores cruéis e ge-
mia." 39 Gonzaga de Sá, dando-se conta de haver excedido, apre-
senta desculpas e promete que não voltará a incorrer na mesma
falta. .
Ressurge ~
portanto neste romance a lei que estabelece entre
as personagens um vácuo intransponível, impermeável, segregador,
isolando-as em si mesmas. Apresentaria tal norma, no romance
agora examinado, uma variação, expressa nas cambiantes corres-
pondências e fusões entre o biografado fictício e seu fictício cronis-
ta: viriam ambos de um molde comum, seriam ambos o mesmo in-
divíduo impreciso, dividido, extraviado num mundo indiferente e
por ve~es reconhecendo-se, num lampejo, fora de si, no outro, sem
que este reconhecimento de modo algum restaure a sua unidade -
mesmo porque, dissimuladas, há graves separações entre eles. Fru-
to de um desespero difuso, do qual a certeza de não encontrar na
Terra vozes solidárias constitui o núcleo (não falará em ninguém
a minha voz, não continuarei em ninguém e não serei a continua-
ção de ninguém), eis que surge neste mundo simbólico uma perso-
nagem e, dividindo-se, sonha ou finge a comunhão, a continuidade.
Mesmo aí, não é bem sucedido: nenhum dos dois se altera no
curso dessas relações - no curso do romance - e, na morte de
Gonzaga de Sá, descrita no início do relato, o que infunde, à sua
ulterior presença, certo caráter fugidio e etéreo, bem podemos ler
que a saída procurada era vã e deserta como todas.
O velho descendente de Estácio de Sá e seu taciturno com-
panheiro atravessam o livro lado a lado, sem jamais trocarem um
abraço e quase nunca uma expressão reveladora, divagando sobre
temas que interessam a ambos - mas sempre exteriores a ambos
, sem que dos seus encontros e diálogos (ou dos seus monólo-
gos?) surja o embrião, por débil que seja, de drama ou de conflito.
A inexistência de ação material não permite que se inscreva
o romance no gênero psicológico: de mo'do algum propensos a agir
(o que torna o livro mais representativo e coerente em relação a
38 Id., ibid., p. 36·37.
39 Id., ibid., p. 150.
46 CAPo li - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
[saías Caminha e Policarpo Quaresma), Gonzaga e Augusto Ma-
chado, amadores da contemplação e da reflexão, não os subjugam
as paixões e o encontro dos dois não provoca mudanças substan-
ciais na visão que têm das coisas.
Nestes livros povoados de figuras insulares, ocupam, portanto,
lugar de relevo, ao longo da amizade que cultivam, triste, nobre,
em surdina, tocada de magia e, apesar de tudo, estéril, os dois sen-
síveis burocratas de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.
Sete anos decorrem entre a redação de Numa e a Ninfa e a de
Clara dos Anjos, concluída no ano da sua morte. Já em 1904 apa-
recem no Diário anotações destinadas ao romance, consta de "His-
tórias e Sonhos", um conto bastante esquemático que podemos
bem considerar uma sinopse do futuro livro (o título é o mesmo) e
o próprio Lima Barreto irrompe sem disfarces, por um instante, nas
últimas páginas de [saías Caminha, para anunciar: "Cinco capítulos
da minha Clara estão na gaveta; o livro há de sair ... " Não cin-
co, mas quatro capítulos correspondentes à primeira redação da
obra completam a edição hoje corrente do seu Diário Intimo.
Ao contrário de todos os outros romances, Clara dos Anjos
não é dominado pelo tema do insulamento. Nele, as personagens
agem, fazem agir as demais e modificam-se entre si. A ação cal-
culada e malévola é mesmo o traço dominante de Cassi Jones, in-
culto Don Juan dos subúrbios, destinado a infelicitar Clara dos
Anjos. A constante que aqui vimos examinando, a ausência de
correntes vitais entre as personagens, fechadas em si mesmas e des-
confiadas da ação, subsistiria apenas na tendência (agora psicoló-
gica e não mais existencial) de Clara dos Anjos a preservar o seu
segredo, voltando-se, numa hora de desespero, para os astros, como
Isaías Caminha se voltava para o mar: "ela apurava o ouvido e
reforçava o seu poder de visão para ver se daquele mistério todo
saía qualquer resposta sobre o seu destino"; 40 e no fato de Marra-
maque, que procura interferir (tardiamente, aliás) no sentido de
afastar de Clara o abominável Cassi Jones, ser assassinado por este.
O castigo pela culpa de agir, reiterativo e nunca pessoal no Triste
Fim de Policarpo Quaresma, teria aqui um instrumento individua-
lizado. Refletir-se-ia ainda a inutilidade da ação na visita vã de
Clara dos Anjos à família do amante. O seccionamento entre o in-
divíduo e a sociedade ressurge no poeta e louco Leonardo Flores.
Também merece atenção um pormenor: na galeria de personagens
que animam os romances de Lima Barreto, é Cassi Jones, tipo
grosseiro e embotado, que "não amava a ninguém e com ninguém
40 BARRETO, L. Clara dos Anjos. p. 150.
INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 47
simpatizava", 41 único para quem agir (ação, bem entendido, de-
gradada e predatória) é o aspecto dominante no seu modo de ser
e o que o justifica como personagem. Mas resta ainda uma per-
gunta a faz~r. Não amar a ninguém e com ninguém simpatizar não
constituirá uma expressão - aguda, agressiva - de insulamento?
Ignora-se a razão pela qual não conclui Lima Barreto o Ce-
mitério dos Vivos, ambientado no Hospício Nacional de Alienados,
onde começa a escrevê-1o. (A 10 de fevereiro de 1920, em carta
a Francisco Schettino, chega a prometer o livro para o fim do mês.)
Constituiria esse romance, segundo nos sugerem as páginas iniciais,
compassivas e cheias de reflexões, um aprofundamento da corren-
te esquiva que vimos rastreando? Ou uma ponte entre as obras
mais antigas e Clara dos Anjos? Inclinamo-nos pela primeira hi-
pótese. A reclusão no Hospício evoca no espírito do romancista
um tema familiar e que o persegue, solerte: o do náufrago atirado
em terra inóspita. Vai então engendrando, à medida que observa o
ambiente e os companheiros de internamento, a história de um ho-
mem ali recluso e que, não sendo realmente louco, transita entre
loucos. Sendo impossível entender-se com eles, dedica-se, neste
isolamento onde repercute, extremado, o de tantas personagens da
sua ficção, a relatar, num tom meditativo e em que se sente o esfor-
ço para decifrar o mistério das coisas, a "história de uma vida sa-
cudida por angústias íntimas e dores silenciosas", 42 assim como as
circunstâncias que o cercam enquanto escreve. Sofre, a persona-
gem que lentamente se forma, leves influências das pessoas com
quem convive, mas não chega a entender a mulher e nunca lhe faz
confidências: "Dos meus planos de vida, dos meus projetos inte-
lectuais, não lhe confidenciava palavra nem dos meus desânimos,
nem dos meus desalentos." 43 Personagem ilhado e, portanto, ca-
racterístico da ficção de Lima Barreto ("Encerrava-me em mim
mesmo e sofria"), 44 exprime claramente, a certa altura, o conflito
do seu criador (em nenhum outro momento, note-se, tão próximo
da figura criada) entre a suspeita diante da ação - suspeita ori-
ginada no esboroamento de um mundo não mais solidário _ e a
decisão de agir, ação a que urge atribuir um valor. A ação, julga,
desde que orientada para o Bem, "seria favorável à nossa reincor-
poração no indistinto, no imperecível"; ao mesmo tempo, acredita
que a imobilidade e a contemplação condicionariam o acesso a nos-
41 ·BARRETO, L. Op. cit., p. 44.
42 BARRETO, L. O Cemitério dos Vivos. p. 140.
43 Id., ibid., p. 164.
44 Id., ibid., p. 165.
48 CAPo 11 - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA
sa "desincorporação", alcançando assim um estado que receia no-
mear sob pena de "limitar o ilimitado". "O sábio é não agir." 45 A
conclusão, conquanto repugne o personagem-narrador (e também,
decerto, seu modelo próximo, o autor), não é a primeira vez que
surge, explícita, nesta obra romanesca. Nove anos antes, vinha à
tona, na carta de Policarpo Quaresma à sua irmã, o mesmo grito
submerso que o escritor, através de uma vida atuante, expressa na
sua própria obra, inclusive nos romances, parece ter procurado
abafar e exorcizar: "O melhor é não agir, Adelaide; e desde que
o meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na
quietude mais absoluta possível, para que do fundo de mim mesmo
ou do mistério das cousas não provoque a minha ação o apareci-
mento de energias estranhas à minha vontade, que mais me façam
sofrer e tirem o doce sabor de viver ... " 46
45 Id., ibid., p. 162.
46 BARRETO,L. Policarpo Quaresma. p. 197.
CAPÍTULO III
LIMA BARRETO: OS ROMANCES
Projeções do tema do insulamento. - Deslocamento do
eixo dos conflitos. - Tensão entre personagens e espaço.
O leitor familiarizado com a imagem de um Lima Barreto es-
critor político, afeito às assertivas corajosas, ligado aos homens,
interessado em depor sobre o seu tempo e assumindo, em face da
sociedade, uma posição atuante, inclinar-se-á, talvez, a recusar o
vulto desvendado em parte pela nossa análise: mais que político,
metafísico; trespassado de dúvidas; transitando no mundo como
um estranho; e, principalmente, desconfiado da ação.
Delineada, entretanto, essa outra face do escritor - estranha,
talvez, aos seus próprios sistemas de pensamento 1 ou por estes re-
primida -, eis que a sua obra, longe de empalidecer, adquire maior
profundidade. Uma pintura onde a restauração, por trás dos ho-
mens e mulheres até então isolados no primeiro plano, mostrasse-
-nos a paisagem distante, com um lago ou um rio.
Decorrência inevitável da desconfiança que cerca a ação nes-
ses romances, singularizando-os (notadamente em [saías Caminha,
Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá), e da mútua dissociação en-
tre suas personagens, é a ausência de conflito dramático. Mesmo
em Numa e a Ninja, onde se percebe com clareza a intenção de
elaborar uma fábula mais enredada, dificilmente pode-se falar em
conflito. 2 Não que faltem razões para isto: a ambição de Numa
1 O romance, "como toda arte, pretende ultrapassar os sistemas de pensa-
mento e não segui-Ios". ROBBE-GRILLET,Alain. Pour un Nouveau Roman.
p. 181.
2 A análise de um romance do século passado (de George Eliot, por
exemplo, várias vezes citada com admiração pelo próprio Lima Barreto),
atenta às mútuas pressões operadas pelas várias personagens, ressaltaria
ainda mais o caráter singular da obra do escritor brasileiro. Em The Mill
on the Floss (existe tradução portuguesa de Cabral do Nascimento - O
Moinho à Beira do Rio) o velho Tulliver, pai das crianças Tom e Maggie,
tem a mania das pendências. Disputando com o advogado Wakem, perde
todos os bens. Reúne-se à família da Sra. Tulliver, os Dodson, para
decidir minuciosamente a atitude a tomar, isto é, para decidir em que
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Lima Barreto e o espaço romanesco

  • 1.
  • 2.
  • 3. CAPA (Layout): Ary Almeida Normanha REVISÃO: Maria Tereza Pardo FICHA CATALOGRÁFICA [Preparada pelo Centro de Catalogação~-fonte, Câmara Brasileira do Livro, SP] L732L Lins, Osman, 1924- Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo, Ática, 1976. p. (Ensaios, 20) Bibliografia. 1. Barreto, Lima, 1881-1922 - Crítica e inter- pretação 2. Espaço e tempo na literatura I. Título. 76-0246 17. e 18. 17. 18. CDD-869 .9309 -809.933 -809.9338 índices para catálogo sistemático: 1. Espaço no romance: História e crítica 809.933 (17.) 809.9338 (18.) 2. Romances: Literatura brasileira: História e crítica 809.9309 (17. e 18.) 1976 Todos os direitos reservados pela Editora Ática SA. R. Barão de Iguape, 110 - Tel.: PBX 278-9322 (50 Ramais) C. Postal 8656 - End. Telegráfico "Bomlivro" - S. Paulo CONSELHO EDITORIAL ALFREDO BOSI, da Universidade de São Paulo. AZIS SIMÃO, ·da Universidade de São Paulo. DUGLAS TEIXEIRA MONTEIRO, da Universidade de São Paulo. FLÁVIO VESPASIANO DI GIORGI, da Pontifícia Universidade Católica. HAQUIRA OSAKABE, da Universidade de Campinas. RODOLFO ILARI, da Universidade de Campinas. Ruy GALVÃO DE ANDRADA COELHO, da Universidade de São Paulo. Coordenador: José Adolfo de Granville Ponce A Al/redo Bosi e Antonio Candido
  • 4. "C'est bien déjà un écrivain de notre monde, mais qui ne le savait pas encore. Et qui peut-être n'aimait pas ça du tout.:' Pierre Daix, falando de Antoine de La Sale. (Sept Siecles de Roman.)
  • 5. Capo VII - Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá: temá- tica; espaço, ambientação e funções do espaço nesse romance; conclusão.. 111 OBRAS DO AUTOR: O Visitante, romance. Rio, 1955. Prêmio Fábio Prado; Prêmio Coelho Neto (Academia Brasileira de Letras); Prêmio Especial da A. P. L. Os Gestos, contos. Rio, 1957. Prêmio Monteiro Lobato; Prêmio da Prefeitura de São Paulo. O Fiel e a Pedra, romance.' Rio, 1961. Prêmio Mario Sete. Marinheiro de Primeira Viagem. Rio, 1963. Lisbela e o Prisioneiro, teatro. Rio, 1964. Prêmio Nacional de Comédia da Cia. Tônia-Celi-Autran. Nove, Novena, narrativas. São Paulo, 1966. Um Mundo Estagnado, ensaio. Recife, 1966. "Capa-Verde" e o Natal, teatro infantil. São Paulo, 1967. Guerra do "Cansa-Cavalo", teatro. Petrópolis, 1967. Prêmio José de Anchieta. Guerra sem Testemunhas - o Escritor, sua Condição e a Realidade Social, ensaio. São Paulo, 1969 (incluído nesta coleção). Avalovara, romance. 1973. Santa, Automóvel e Soldado, teatro. São Paulo, 1975. TRADUÇÃO O Urso Polar e outras novelas, de Henrik Pontoppidan. Rio, 1963. íNDICE Escrito depois, para ser lido antes . Capo I - Lima Barreto: o escritor. Linguagem; temá- tica; o problema das repercussões biográficas na obra . Capo 11 - Lima Barreto: o romancista. Insulamento e ação nos seus romances . Capo 111 - Lima Barreto: os romances. Projeções do tema do insulamento; deslocamento do eixo dos conflitos; tensão entre personagens e es- paço . Capo IV - Espaço romanesco: conceito e possibilidades Capo V - Espaço romanesco e ambientação. Ambienta- ção franca; ambientação reflexa; ambientação oblíqua; ordem e minúcia; a perspectiva .... Capo VI - Espaço romanesco e suas funções. Relações personagem/espaço; o espaço-moldura; o es- paço inútil . BIBLIOGRAFIA 11 15 31 49 62 77 95 149
  • 6. ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES Não poderia dizer, com exatidão, quando li pela primeira vez Afonso Henriques de Lima Barreto. Mas lembro-me de ter sido numa fase em que também lia, intensamente, Machado de Assis. Assim, minha admiração inicial sofreu mais ou menos as mesmas restrições que obscureciam o julgamento dos seus con- temporâneos. Para estes, como para mim àquela altura, o padrão estilístico representado pelo prosador de Dom Casmurro, invali· dava até certo ponto as realizações menos requintadas, ainda que esta ausência de requinte - como no caso de Lima Barreto, se- gundo tudo faz crer - fosse deliberada. Passaram-se alguns anos até que esse outro grande criador da nossa Literatur'a assumisse em meu espírito o seu legítimo lugar. Isto é: para que eu não mais o visse como um escritor menor do que Machado de Assis e sim diferente dele, com personalidade e objetivos próprios. Eu viria inclusive a perceber que, sob alguns aspectos, Lima Barreto, como homem e como ficcionista - se quisermos insistir na atitude um tanto inócua de os comparar entre si -, deixa um pouco na sombra o seu genial predecessor. Admirável, por exemplo, a coragem com que assume a condição de negro, num país onde atuam, apesar dos disfarces, fortes pre- conceitos raciais; com que reconhece o desajuste radical entre o escritor e a sociedade, evidência que Machado de Assis procurou eludir e amenizar por todos os modos, fundando inclusive a Aca- demia Brasileira de Letras; com que toma o partido dos mais fracos, acusa os plutocratas e denuncia o imperialismo ianque, a ponto de criar-se, muitos anos após a sua morte, "pelo tom anti-americano de certas passagens", "uma barreira de incom- preensão" na firma W. M. Jackson Inc., a qual, em conse- qüência, desistiria de publicar as suas obras, segundo informa Francisco de Assis Barbosa no "Prefácio" às Recordações do Es- crivão lsaías Caminha. Alguns desses traços humanos projetam-se nos livros que es- creveu, expressão do homem em face do mundo (como se vê em Machado de Assis) e também do homem brasileiro em face
  • 7. 12 ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES do seu meio e do seu tempo (O que, a rigor, já não é tão rele- vante em Machado de Assis). Percebe-se, além disso, nos textos de Lima Barreto, respostas ante o mundo concreto, mais in- tensas e diversificadas quc no criador de Quincas Borba, disto resultandÇ) - fator ponderável no estudo que se segue - uma inclinação maior pela paisagem; sua concepção da língua, sem renegar a tradição, é aberta à enérgica contribuição popular, em harmonia com o interesse que demonstra pela gente obscura; nos seus romances mais bem realizados, nenhum dos quais, decerto, alcança o equilíbrio e o apuro formal dos de Machado de Assis, 'insinua-se, reconhecível, o homem solitário dos nossos dias, sinal de ·uma .Jsensibilidade privilegiada e antecipadora. O que importa, entretanto, é que Lima Barreto e Machado de Assis, cada um a seu modo e, às vezes, seguindo caminhos opostos, contribuem de maneira significativa para a formação do nosso patrimônio literário. Este conceito firmar-se-ia em meu espírito à medida que eu.' me debruçava, com atenção e assiduidade cada vez maiores, sobre os livros do grande louco e boêmio. Avivou meu interesse, é opor- tuno lembrar, a leitura de Aldebarã - A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa. Julguei perceber, lendo a biogra- fia, que as razões de um certo ostracismo do escritor, cuja noto- riedade permanece, ainda hoje, aquém da que merece, prendiam-se a razões extraliterárias. As classes dominantes (e, com elas, am- plos setores das classes dominadas, que refletem em grande parte a visão conservadora) são particularmente sensíveis no Brasil aos que as renegam de maneira ostensiva. Pareceu-me sofrer Lima Barreto, e creio não enganar-me, o efeito de uma ação difusa, um processo disfarçado, surdo, de sonegação (muito semelhante, por sinal, ao que entre nós marginaliza o negro). Acresce que os po- vos mostram-se sensíveis às idealizações. E Lima Barreto é talvez o autor brasileiro que nos viu até hoje com maior verdade e luci- dez. Por tudo isso e, mais ainda, pela importância que as minhas leituras revelaram ter na sua obra romanesca o espaço, atraía-me a idéia de escrever um ensaio a seu respeito, quando livre de certo trabalho premente e mais ou menos extenso. Seria executado o projeto, ou, ao menos, seria executado ago- ra, inexistisse a regra que me persuade a apresentar, como profes- sor de Literatura Brasileira - ou, mais propriamente, como seu divulgador -, tese universitária? Não sei. Muitos planos rondam o escritor ("J'ai du pain sur Ia planche pour cent ans", diz Michel ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES 13 Butor numa entrevista a Tel Quel) e quantos, dentre eles, são prorrogados, afastados por outros! Aqui importa sublinhar que, no presente caso, o ritual universitário constituiu apenas um pretexto: fez-me optar, dentre várias alternativas, por este ensaio que há tempos amadurecia e na raiz do qual existe uma admiração literá- ria juvenil que os anos ampliaram, tornando-a mais racional. O leitor porventura informado sobre as atividades literárias do ensaísta e que desconheça os seus escritos, desejará talvez saber se o une a Lima Barreto alguma identidade de processos. Res- ponderia que não e que, justamente, as diferenças concorreram para o meu interesse. Acrescentaria, ao mesmo tempo, que o meu ilustre antecessor e seu estudioso, apesar das dif~renças, coincidem em pontos importantes: na paixão e no respeito pela Literatura, a que ambos se consagram incondicionalmente; no desejo, que ele cumpriu de maneira tão dramática, de exercer com dignidade o ofício de escrever; na consciência de uma oposição irredutível en- tre o escritor e o poder; na tentativa de construir obra pessoal e identificada com o seu tempo. A verdadeira razão da minha escolha, entretanto, seja acen~ tuado, deve bem pouco a dessemelhanças ou coincidências. Mo- vem-me, acima de tudo, o apreço pelo romancista,e o desejo de contribuir, dentro de minhas possibilidades, para a interpretação, a compreensão e a valorização da sua obra romanesca. (Apresentei, bem entendido, no momento oportuno, outras alternativas ao Pro- fessor Alfredo Bosi, de cuja reação dependeria a opção final. Grande a minha alegria quando esse erudito e mestre, a quem agra- deço as sugestões e a atenção concedida ao presente ensaio, incli- nou-se a favor de Lima Barreto, a quem tanto admira.) Iniciado o trabalho, ocorreu-me indagar muitas vezes se não seria um contra-senso preparar tese universitária (precisamente uma tese de doutorado!) sobre o escritor que mais detestou em vida os doutores e os títulos. Não encontrei resposta. Só me resta esperar que o presente texto não tenha saído doutoral, o que Lima Barreto não merece e não perdoaria. Saberia compreender, suponho, é provável mesmo que o comovesse (ele, tão sensível, como o demonstram suas cartas, até a comentadofes obtusos) a tentativa deste póstero e companheiro, a quem move um interesse tão grande pela sua obra e pela sua figura, ambas incomuns. Praticante, como ele, do ofício de narrar, é possível que o ?1c:-r texto não seja sempre tão ortodoxamente abstrato como dese- JarIa um verdadeiro crítico ou um teórico puro. Poderão, ainda, esse teórico ou esse crítico, achar que o livro hesita, antes de en-
  • 8. 14 ESCRITO DEPOIS, PARA SER LIDO ANTES contrar e enfrentar o seu assunto. Esclareço que o plano do en- saio busca reconstituir a história das minhas próprias relações com a obra de Lima Barreto, interessando-me antes pelo autor e seus livros, centralizando mais tarde o interesse em determinados títu- los e por fim descobrindo, à força de convívio, traços peculiares e significativos, como a importância do espaço na sua ficção; e, ain- da, dentre os escritos mais intensamente analisados, aquele que - sem ser, admito, o mais importante - concentra em maior grau traços inconfundíveis do ficcionista e ostenta, no que se refere ao espaço, aspectos de maior interesse. A aparente hesitação do iní- cio, portanto, beneficia-se em certa medida de métodos da ficção. Nota-se ali um desconhecimento, uma busca, mais tarde uma des- coberta - desconhecimento, busca e descoberta que na verdade são coisas do passado - e que o texto, com maior ou menor for- tuna, imita, renova, transmuda, no esforço deliberado de atualizar, de fazer presente, viva, a pequena aventura particular do amor por uma obra e do seu estudo. São assim introduzidos, no capítulo de abertura - onde um personagem que ainda não conhecemos olha embevecido e solitário o espaço -, temas que as páginas seguintes desenvolvem. Poderia alguém, acaso, censurar essa pequena intro- missão do romance no âmbito do ensaio, quando tantas vezes são os romances invadidos pela monografia e' pelo pens.amento abstrato? CAPÍTULO I LIMA BARRETO: O ESCRITOR Linguagem. - Temática. - O problema das repercussões biográficas na obra. Na triste manhã de Verão, um homem já alquebrado - os olhos. pouco brilhantes e, mesmo assim, atentos - observa, através de uma janela do Hospício Nacional de Alienados, a Enseada de Botafogo brilhando sob o céu fuliginoso e baixo. Estamos em 1920 e o contemplador diante da janela, nascido e vivendo há qua- se 39 anos no Rio de Janeiro, sabe ser dia de São Sebastião. Os músculos do rosto pardo por vezes se contraem; tremem um pouco as extremidades dos dedos bem modelados. Acha-se no Hospício desde 25 de dezembro, interno como indigente, depois de vagar toda a noite da véspera nas ruas dos subúrbios, sem dinheiro, pro- curando uma delegacia: perseguiam-no visões fantásticas e queria apresentar queixa à polícia. Não é a primeira vez que sofre a ex- periência do internamento por loucura e ele promete a si mesmo, com ênfase, que esta será a última. O Hospício, bem entendido, não lhe parece intolerável; e a falta que lhe faz a sua própria casa é relativa. Anos antes, chegou mesmo a escrever no Diário que, sem constância, mantém desde a juventude: "A minha casa me aborrece". 1 Também as relações com a família não se pode dizer que sejam das mais estimulantes. Quando, em 1909, envia um exemplar do seu primeiro livro publicado à irmã, recebe um bilhete curto e neutro, sem uma expressão, por mais discreta, de alegria ou de encorajamento: comentário algum sobre a leitura. Assim, se ele promete a si mesmo não voltar ao Hospício é antes de tudo por delicadeza: "Estou incomodando muito os outros, 1. In: Diário Intimo. p. 171. Obs.: As edições dos livros de Lima 13arreto clt~das no ensaio são as da Bibliografia, relacionadas no fim do volume. Deixaremos de localizar as citações, quando for pequena a sua importância e quando acompanhadas, no texto, de indicações suficientes.
  • 9. 16 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR inclusive os meus parentes." Caso volte, mata-se, eis o que de- cide.2 Sua loucura é em geral atribuída à dipsomania. Tal conclusão será inteiramente verdadeira? Bebe muito e mais de uma vez o la- menta no Diário. Pode-se, entretanto, supor que as suas crises tenham origem num conflito violento e sem esperança com o mun- do, ou, precisamente, com o país onde nasceu, onde vive e onde vai morrer mais ou menos obscuro. Comprova essa obscuridade a anotação feita por um médico no Livro de Observações do Hos- pício: "Indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já quatro romances editados." 3 Os quatro romances a que tão va- gamente se refere o médico, classe cuja fatuidade esse louco e dip- sômano vergasta com freqüência em suas crônicas, são as Recor- dações do Escrivão [saías Caminha, Triste Fim de Policarpo Qua- resma, Numa e a Ninfa e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Não estaria nisto, no amor desse homem à arte de escrever - e na injusta ausência de reconhecimento público - a causa dos seus distúrbios mentais? Ele próprio, comentando esse infortúnio, tem para o fato uma explicação pouco comum. Lembra-se de haver li- do O Crime e a Loucura, de Maudsley; e, de Dostoievski, Recor- dações da Casa dos Mortos. "Pensei amargamente (não sei se foi só isso) que, se tivesse seguido os conselhos do primeiro e não ti- vesse lido o segundo, talvez não chegasse até ali; e, por aquela hora, estaria a indagar, na Rua do Ouvidor, quem seria o novo ministro da Guerra, a fim de ser promovido na primeira vaga." 4 Atribui - não por ironia - sua insanidade e desamparo à Arte Literária, de que são símbolo as memórias de prisão do grande russo. Mas é evidente que, à sanidade sem relevo espiritual, pre- fere estar desamparado e/louco. Preço algum será demasiadamen- te alto para a decisão que assumiu de consagrar às letras toda a sua vida. Saindo do Hospício, prepara o escritor, nos três anos seguin- tes, cinco volumes" reunindo, inclusive, artigos publicados em jor- nais. De todos, apenas um - Histórias e Sonhos - vê publicado. Morrerá a 01/11/1922, aos 41 anos, deixando uma obra bastante volumosa e que muitos críticos julgam desigual. Agripino Grieco, por exemplo, que considera as Recordações do Escrivão [saías Ca- minha "autêntica obra-prima" e Afonso Henriques de Lima Barre- to, como romancista, "nosso primeiro criador de almas", diz tex- 2 In: O Cemitério dos Vivos (Diário do Hospício). p. 34. 3 BARRETO, L. Op. cit., p. 265. 4 BARRETO, L. Bagatelas. p. 99. LINGUAGEM. - TEMÁTICA. • • 17 walmente: "Não insistamos nas fraquezas da Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, romance cheio de homens-abstrações e de pai- sagens metafísicas." 5 Há uma tendência, entre os que se ocupam de determinado autor, a estabelecer hierarquias e, por vezes, mediante uma sepa- ração radical, subjetiva e simplificadora: o "bom" e o "mau". Não é isto compreender indevidamente o longo e tortuoso combate de quem lida com as palavras? Seria descabido pretender que inexis- tem, na obra de um escritor, páginas imaturas e mesmo (por vezes, só na aparência) desastradas, ao lado de textos impecáveis - e nem sequer contestaríamos que existe, não raro, em determinada bibliografia, o livro que obscurece os demais e para o qual parece ter convergido. todo o gênio do autor. Mas como desconhecer que não veríamos com a mesma clareza esse livro sem os outros? Como ignorar que esses outros nos ajudam a melhor compreendê-Io e foram, além do mais, etapas necessárias à sua realização - ou, se ulteriores, adendos, pós-escritos, ampliações, ressonâncias? No caso especial de Lima Barreto, as consideradas desigualdades de nível são unificadas, por assim dizer, mediante certas características de ordem literária e humana que atravessam todos os seus livros - ou, até, todas as suas páginas -, dando-Ihes grande homogeneida- de. Sua obra tão variada é um bloco coerente e em toda ela reco- nhecemos, inconfundível, nítida, a personalidade do autor. Seu instrumento de expressão, por exemplo, obedecendo ri- gorosamente a certas coordenadas, surge amadurecido e com todas as virtudes e sestros pessoais - sestros que uma apreciação pouco analítica recusa simplesmente como erro ou incompetência - des- de as Recordações do Escrivão [saías Caminha. Inútil buscar, em Lima Barreto, as frases irisadas de subentendidos e de alusões di- fusas, tão comuns em Machado de Assis. Por outro lado, jamais incide no oco ornamentalismo de seu contemporâneo Coelho Neto, contra quem seguidamente arremete: "O Senhor Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelec- tual." 6 "Não posso compreender que a literatura consista no culto 5. In: V~I'Os e Mortos. p. 86. Na sua Evolução da Prosa Brasileira, Agri- PIno Gneco é bem menos rigoroso: "Gollzaga de Sá constitui-se de diá- logos e de lances de conto filosófico, explicáveis num leitor de VoItaire ~ue, entanto, permaneceu do seu Brasil e do seu tempo," (p. 132-33). BARRETO, L. "Histrião ou Literato?" In: Impressões de Leitura. p. 189.
  • 10. 18 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR ao dicionário." 7 Na sua conferência O Destino da Literatura, de- clara, apoiando-se em Taine, que a Beleza "já não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como que- rem os helenizantes de última hora e dentro de cuja concepção muitas vezes não cabem as grandes obras modernas, e, mesmo, algumas antigas. Não é um caráter extrínseco da obra, mas intrín- seco, perante o qual aquele pouco vale. É a substância da obra, não são as suas aparências." 8 A palavra como problema, fenô- meno manifesto já em fins do século anterior no célebre poema de Mallarmé e cujo monumento, o Ulysses, apareceria no início de 1922, poucos meses antes da morte de Lima Barreto, não domina- va o seu espírito. "Literatura não era para ele apenas 'expressão', mas sobretudo 'comunicação', e comunicação militante - 'mili- tante' é a palavra que ele mesmo emprega - em que o autor se engaja, tão ostensivamente quanto possível, com suas palavras e o que elas transportam, a mover, demover, comover, remover e pro- mover." 9 A escrita é para ele, antes de tudo, um instrumento. Tem, portanto, uma função mais utilitária que lúdica, sem que isto signifique - prova-o largamente Antônio Houaiss - desinteresse pelos problemas expressivos. Apenas, o encargo que ele assume não será o de renovar a língua e sim o de retemperá-Ia. Os seus pontos de referência, segundo indicam as alusões fei- tas em várias oportunidades e a sua prosa mesma, são Machado de Assis e Coelho Neto. Neste último, o "culto ao dicionário" tem o ar de uma evasão, um modo hábil de conquistar o aplaUso bené- volo "dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro". "As cogi- tações políticas, religiosas, sociais, morais, do seu século, ficaram- -lhe inteiramente estranhas." 10 Para Lima Barreto, a frase art nouveau de Coelho Neto seria a expressão do seu oportunismo, que tanto o fazia orgulhar-se da condenação dum arcebispo do Chile, como exultar ao v~r que "outra sua obra recebe gabos da mais alta autoridade eclesiástica do Rio de Janeiro." 11 Uma prosa em torno da qual vagam tais suspeitas não servirá de modelo a Lima Barreto, escritor, conquanto atento ao mistério, em luta per- manente e exacerbada com a realidade circundante. Astrojildo Pereira, no "Prefácio" à reedição de Bagatelas, diz que a frase de Lima Barreto "era nele também uma forma de inconformismo e 7 Id., ibid., p. 261. s Id., ibid., p. 58. 9 HOUAISS, Antônio. "Prefácio." In: BARRETO,L. Vida Urbana. p. 9. 10 BARRETO,L. Impressões de Leitura. p. 75. 11 V. nota anterior. LINGUAGEM. - TEMÁTICA... 19 t sto contra a ênfase e o formalismo vazio que predominavam pro, estilo' do tempo." 12 A afirmação, parcialmente válida, não se no e ... d h' b l"ca a Machado de ASSIS,cUJo espectro am a oJe pesa so re ap Iue escrevem no Brasil. Na carta que em janeiro de 1921 - já os fim portanto, de sua vida - envia Lima Barreto a Austregésilo no , . , . d f de Ataíde, faz, nessa carta mumeras vezes CIta a, reparos ortes a Machado, que escreveria "com medo do Castilho". "Jamais o imitei e jamais me inspirou." 13 O apuro formal de Machado de Assis - a ele que, de origem negra, sentia de maneira aguda esse problema -, a frase afiada e sutil, isto e o esforço, tão bem estu- dado por Lúcia Miguel Pereira, com que o romancista do Memo- rial de Aires vai apagando os seus estigmas (a cor, a pobreza, a obscuridade), nada disto lhe parecia muito inspirador. Assim, a sua prosa - e seguidamente afirma, a jovens p0lttas que lhe en- viam livros, ser pouco versado em poesia - é elaborada nitida- mente como reação àquelas duas figuras tão ~ivei'sas entre si. Ele que sempre tem uma palavra de compreensão para outros ficcio- nistas de menor evidência, mostra-se sempre exigente em relação a Machado de Assis e Coelho Neto. Seus julgamentos fazem-se mais rigorosos na razão direta do prestígio do escritor. 14 Dado, entretanto, que toda obra literária, quando o seu autor assume uma posição realmente criadora, é em certo sentido meta- lingüística, ao menos na medida em que se opõe ou faz alusão a outras obras, pode-se dizer que o mais claro e o mais importante discurso de Afonso Henriques de Lima Barreto a respeito dos seus dois notáveis confrades não pode ser citado: são os seus escri- tos considerados em bloco. Estes - os romances, as crônicas, os contos -, vasados numa linguagem indiferente à aprovação de Castilho, mas não plebéia, pois o escritor respeita a língua que her- dou e quer mantê-Ia digna, repudiam igualmente a secura e a retó- rica (que é quase sempre a secura enfeitada e prostituída). Opina, c?mpreensivo, Oliveira Lima: "A única pecha de que o tenho ou- VIdo culpar, não me parece absolutamente justa. Refere-se à lin- guagem, ou melhor ao estilo, julgado menos cuidado e por vezes ~: iERElRA, Astrojildo. "Prefácio." In: BARRETO,L. Bagatelas. p. 12. 14 n:. Correspondência. Tomo 2.°, p. 256-57. , Incldentalmente, Lima Barreto menciona a literatura "palerma" dos :cades, _e. dá de passagem a sua versão de Euclides da Cunha, de "alma a ~a e anda.. e todo ele cheio de um orgulho intelectual desmedido, que má o.rna~a amda mais seca e mais árida", e cujo estilo seria a "expiessão Reixlmad de certas qualidades e atributos da Escola Militar. (Coisas do no o Jambon. p. 274.)
  • 11. 20 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR incorreto, por ser a linguagem simples e propositalmente desata- viada." 15 A lei que _antes de tudo orienta esses escritos é a orali- dade, não, bem entendido, a do tartamudo ou a do inculto, mas a do homem educado, sensível e nada pedante. Entre a elipse que embeleze a frase e a repetição que infunda ao escrito um ar menos composto, prefere em geral esta segunda solução, que preservará a clareza e o natural. As exumações léxicas e mesmo os neologis- mos, subentende-se, encontram pouco lugar em Lima Barreto. Nunca, nas muitas páginas que escreve, alusões veladas e sutis: o alvo é sempre claro e o tiro forte. O autor não quer esconder-se e não se resguarda atrás de biombos. Um estilo pouco conotativo e portanto algo espesso, o que redunda, em tese, num certo empobre- cimento. Tal empobrecimento, aqui, é ilusório - e "a prosa de ficção em língua portuguesa, em maré de conformismo e academis- mo, só veio a lucrar com essa descida de tom, que permitiu à rea- lidade entrar sem máscaras no texto literário." 16 Lima Barreto, homem do povo, carreia para a nossa prosa - inflada pela imo- deração de Coelho Neto e sujeita, por outro lado, à apurada, à exigente disciplina de Machado de Assis - um à vontade vigilante, um sopro de energia, uma vibração humana e uma solidez que só o encontro, sempre raro, da inteligência e de certas forças primitivas, elementares, pode engendrar. Um estilo, em suma, que causaria decerto grande alegria a Pascal e que ilustra com justeza o que um dia escreve, farto de artifícios, o grande pensador e matemático: "Quand on voit le style naturel, on est tout étonné et ravi; car on s'attendait de voir un auteur, et on trouve un homme." 17 Se encontramos, na obra de Lima Barreto, uma grande unida- de estilística, um esforço continuado e coerente no sentido de dizer certas coisas "de uma certa maneira", 18 se entrevemos em cada página sua o propósito de trazer para a prosa literária brasileira uma contribuição atenta a tendências que o seu diagnóstico acusa- va como desvios (ou, em Machado de Assis, ao menos como peri- gosas), também merece relevo, sob a variedade aparente e que 15 LIMA, Oliveira. "Prefácio." In: BARRETO,L. Policarpo Quaresma. p. 10. (O artigo foi publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paulo, edição de 13/11/1919, sob o título de "Policarpo Quaresma".) 16 BOSI, Alfredo. O Pré-Modernismo. p. 95. 17 PASCAL, Blaise. Pensées. Paris, Nelson &1. 1955. p. 56. 18 Falando de Lima Barreto, lembramo-nos inevitavelmente de certas po' sições de Jean-Paul Sartre: "00 n'est pas écrivain pour avoir choisi de LINGUAGEM. - TEMÁTICA.. . 21 Visão menos sintética pode interpretar como dispersão, a uni- uma I d . d d temática que percorre essas au as escntas quase sempre em ae I d . d . . unstâncias adversas, ao ongo e aproxIma amente vmte anos c~r~cia já em 1900, um relato não concluído, começam em 1903 (Inanotações íntimas, e o "Prefácio" às Recordações do Escrivão ::aias Caminha, divulgadas em 1907 na revista Floreal, trazem a data de 12/07/1905) e só interrompidas com a morte repentina, aos 41 anos, na modesta casa de Todos os Santos. Seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, declara, com auto- ridade de historiador, que "não será possível proceder-se à revisão da nossa história republicana, do 15 de novembro ao primeiro 5 de julho", prescindindo da obra de Lima Barreto, que anotou, re- gistrou, fixou, comentou ou criticou "todos os grandes aconteci- mentos da vida republicana." 19 Ora, a preocupação - ou a obsessão - com a nossa realidade não deixa de ser surpreendente e mesmo paradoxal num escritor que, em várias oportunidades, proclama-se estranho à idéia de pátria, para ele nada mais que "um sindicato". 20 Nem sempre, entretanto, as oposições se excluem. Este homem infenso a fronteiras, sente-se ligado ao povo, é ligado ao seu povo como talvez não tenha sido nenhum outro escritor do Brasil - e isto relaciona-se, nele, com um forte amor à Justiça. Sua visão um tanto maniqueísta do mundo - e quem não partilha, em certa medida, esse modo de ver? - divide os homens em acei- tos e recusados. Aqueles, bem entendido, são sempre os nascidos com privilégios ou os que, cônscios do poder dos senhores, entram ao seu serviço ou com eles estabelecem alianças indignas. O qua- dro que conhece e fere-o é o nosso. Por vezes, notadamente du- rante a Primeira Grande Guerra,. que não se cansa de proclamar uma maquinação do capitalismo internacional, a objetiva se amplia. Mesmo então, ao debater em seus artigos a natureza do conflito, preocupa-o um problema correlato, a participação do Brasil. Este, portanto, o seu campo de observação e de ação, ele não sonha alte- rar os destinos do mundo, mas espera ao menos inquietar, no seu ~ire certa ines choses mais pour avoir choisi de les dire d'une certaine açon." Também: "l'écrivain a choisi de dévoiler le monde et siriguliere- ~e~te l'homme aux autres hommes pour que ceux-ci prennent en face de l~bJet mis à nu leur entiere responsabilité." (Situations ll. p. 75 e 74.) . BARBOSA, Francisco de Assis. "Prefácio." In: BARRETO, L. [saías Ca- ~l~?a. p. 12-13. • .( pátria me repugna, Avelino, porque a pátria é um sindicato dos ~Oht1cos e dos sindicatos universais, com os seus esculcas em todo o mundo, n~ra saquear, oprimir, tirar couro e cabelo, dos que acreditam nos homens, In' t~abalho, na religião e na honestidade." ("Carta a Georgino Avelino." . ARRETO,L. Correspondência. Tomo 1.0, p. 281.)
  • 12. 22 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR país, os donos do poder e os usuários das posições - e contribuir para despertar, entre os oprimidos e explorados, entre os recusa- dos, uma consciência crítica. Assim, fato, ao mesmo tempo, contraditório e lógico, Lima Barreto, que considera nociva a idéia de pátria, vem a definir-se como um dos mais interessados analistas da nossa realidade geo- gráfica, política e psicológica. Aplica, com intensidade, todos os seus instrumentos de apreensão e julgamento no estudo do país que o ignora. Sua obra (onde também entrevemos, é bem verdade, em certas personagens e situações, o seu perfil) é uma série de fla- grantes exatos, variados, por vezes comovidos, muitas vezes sar- cásticos, freqüentemente irados e nos quais reconhecemos o Brasil, mesmo nos textos deformantes, nas invenções de um grotesco e truculência que lembram o Voltaire de Candide, como a República de Bruzundanga, ou o Reino do Jambon, ou os usurpadores dos "Contos Argelinos". Sucedem-se, nessas enérgicas páginas atentas ao exterior, lances da Natureza e flagrantes urbanos, políticos ocupados unicamente com o poder e a evidência, inteiramente alheios ao país e para quem, governar, ao contrário do que precei- tuaria Bossuet, é "fazer a vida incômoda e os povos infelizes", 21 ignaros sábios das profissões liberais favorecidos pela lei e inchados de retórica, militares ungidos de infalibilidade ou nostálgicos de uma pacata existência civil, todos pouco versados em coisas de guerra, os proprietários de jornais, dispostos a vender-se seja a quem for, desfiles e festas oficiais, a vocação principesca da nossa representação diplomática, voltada para futilidades e empenhada, com Rio Branco, em projetar no exterior uma imagem retocada do país ("nossa mania de fachadas", diz, em carta de 1916, a F. L. de Assis Viana), a mentalidade botafogana que tão bem define em carta a Oscar Lopes, 22 os magnatas do café e os banqueiros, o pouco numeroso e tão desdenhoso mundo dos eleitos, fruindo os seus privilégios, não só distanciados espiritualmente do Brasil, mas aos quais repugna a condição de brasileiros e mesmo de habitantes do Trópico, a ponto de ordenarem a pintura, em suas residências, de motivos arquitetônicos greco-romanos e janelas irreais abrindo 21 BARRETO,L. Bagatelas. p. 65. . 22 "Botafogano, meu caro Oscar, é o brasileiro que não quer ver o BrasIl tal e qual ele é, que foge à verdade do meio e faz figurino de um outro cortado em outras terras. De modo que tu, mesmo indo para o SacO do Alferes, tu que queres fugir à nossa grosseria, à nossa realidade, à nossa pobreza agrícola, comercial e industrial, és um botafogano." (BARRBTO: .L. Correspondência. Torno 1.0, p. 233-34.) Botafogana, portanto, era a pohtlca de Rio Branco. LINGUAGEM. - TEMÁTICA. .. 23 amenas pais'agens européias; 23 / e do outro lado, fora dos ~ar~ s imprecisos de Botafogo, as poeirentas ladeiras dos subúr- h~l ee suas estações ferroviárias, seus trens, os botequins, os ma- bl~S as feiras livres, os jogos de solo nos quintais com árvores, os fuas, ntuários de vencimentos ínfimos e os pobres diabos sem em- serve lh" fI' d . . o certo, suas mu eres as quals a a ta contmua e meIOs vai pre~nando a prudência, os artistas da modinha e do verso, enfim a ensl l' d ' t- h . d rte sem rega Ias este pais - en ao como oJe - e estratos paciais nitidamente opostos. Ilustra com clareza tal fenômeno a ~~na em que Isaías. Caminha, ~al chega?~ ~o Ri.o, assi~te a u~ desfile: "Veio por fIm o batalhao. Os oficIais mUlto cheIOSde SI, arrogantes, apurando a sua elegância militar; e as praças bambas, moles e trôpegas arrastando o passo sem amor, sem convicção, in- . diferentemente, passivamente, tendo as carabinas mortíferas com as baionetas caladas, sobre os ombros, como um instrumento de castigo. Os oficiais pareceram-me de um país e as praças de outro." 24 Esta visão dicotômica e um tanto simplista - mas não 'de todo injusta - da realidade brasileira, faria de Lima Barreto apenas um panfletário se, coexistindo com o rebelde, com o contestador a quem muito impressiona a Revolução de Outubro, não houvesse também um criador cheio de discernimento. 25 Este, atento às injustiças e ao abismo que separa, no país, botafoganos e suburba- nos, não incide no erro, tão pouco fecundo, de ver apenas virtudes nos pobres; sabendo ser o subúrbio "o refúgio dos infelizes", cons- tata que a "gente pobre é difícil de se suportar mutuamente". 26 Ademais, a sua ficção, povoada de figuras advindas do subúrbio e de Botafogo, pólos opostos da sociedade que agudamente ana- lisa, não vai configurar-se como uma ficção de luta de classes. Há consciência da miséria, mas não consciência de classe nos seus 23 V. REIS FILHO, Nestor Goulart. "O Neoclássico nas Províncias." In: Qua~ro da Arquitetura no Brasil. Poucas vezes um estudo especializado se amplia numa compreensão tão justa do contexto em que se opera o fenôme- no abordado 24 • 25 BARRETO,L. Isaías Caminha. p. 54. E,m.bora "sem urna compreensão precisa do papel hist6rico da classe ~perana como tal", acentua Astrojildo Pereira no citado "Prefácio" a ctga[,elas, tinha Lima Barreto "um seguro instinto, senão uma consciência O~ra da luta que então se definia, a do trabalho contra o capital. B serva Osmar Pimentel: "Pode mesmo dizer-se que, no caso de Lima . n:rr;.to, foi o romancista que o defendeu do ide6Iogo." (Artigo publicado "Pretl~a da Manhã, São Paulo, edição de 12/11/1949. Aparece corno 26 B aclO" na edição de Os Bruzundangas.) AR.R.ETO, L. Clara dos Anjos. p. 94.
  • 13. 24 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR pobres, e, além Qisso, algumas de suas personagens aparecem como figuras intermediárias, como é o caso de Lucrécio Barba-de-Bode, de Numa e a Ninfa, que "não era propriamente político, mas fazia parte da política e tinha o papel de ligá-Ia às classes popula- res"; 27 ou Policarpo Quaresma, amigo de Floriano Peixoto e de Ricardo Coração dos Outros, este um desocupado e autor de mo- dinhas. O próprio Gonzaga de Sá, de origem fidalga e simples amanuense da Secretaria dos Cultos, enquadra-se um pouco em tal categoria. Esbatem-se, com tais figuras, beneficiando o romance (sem que essas atenuações signifiquem uma atenuação das incom- patibilidades entre os aceitos e os recusados), as fronteiras que, nas crônicas e breves ensaios de jornal, vemos tão delineadas. Lima Barreto alimenta esse painel movimentado, uno e vivo do Brasil, com atributos dos quais nem sempre poderemos dizer que sejam literários. Daríamos, mesmo, desse escritor, uma idéia incompleta - e, quem sabe, imprecisa - se omitíssemos, traçan- do o seu perfil, certos traços não indispensáveis ao ofício de escre- ver e que, entretanto, compõem o seu modo de ser, r~percutindo em tudo que escreveu. Concede-lhe, o seu país, bem menos do que ele desejava e esperava quando jovem - bem menos do que merecia. Não dire- mos, tornando vaga e abs'trata a razão do seu fracasso relativo, um fracasso que muito nos elucida sobre o quanto existe de surdamente cruel e de entranhadamente conservador em nossa estrutura sócio- -cultural, que o combate de Afonso Henriques de Lima Barreto tenha sido contra a vida: ele bateu-se contra homens e entidades precisas, jamais conseguindo fazer-se ouvir por aqueles em favor de quem lutava. A afirmação de que o povo do Brasil raramente "se deixa infiltrar por idéias úteis e que lhe são favoráveis" 28 não é feita por acaso. Todos os seus livros vendem-se com grande lentidão, vive e morre pobre, não ascende socialmente, nem se- quer realiza a viagem que tanto desejou. "Despeço-me de um por um dos meus sonhos", já registrava em seu Diário, no dia 20 de abril de 1914, poucas semanas antes de completar 33 anos e de ter o primeiro acesso de loucura. Por isto escreve Alceu AmorosO Lima "não ser possível imaginar vida literária e social mais hu- 27 In: Numa e a Ninfa. p. 58-59. 28 In: Bagatelas. p. 42. LINGUAGEM. - TEMÁTICA. • . 25 . mais apagada, mais adversa" que a sua. 29 Seríamos, po- mtlde,. 'ustos em ver na incompatibilidade de Lima Barreto com rém, t!2ade brasileira apenas uma conseqüência da oblíqua cruel- a ~a 10m que é massacrado, o reflexo do seu ressentimento, a rea- d~ edc um indivíduo fraudado em suas ambições e por isto odian- çao '~gativo, mundo e homens. O que se observa, ao contrário, na âO, v~entação existente, é uma grande cordura em relação aos seus dOCUstres pessoais. No Diário do Hospício, ocupa-se mais dos ou- esa N- b - d . que de si. ao se o serva, nas cartas que entao expe e, am- tros . d P d' . F . S h . madversão por estar I~tern~ .~. e e Jorn~ls. a ranclsco. c ettmo . diz-lhe não ser precIso vlslta-lo no HOSpICIO.Na entrevista con- eedida a um repórter de A Folha, em janeiro de 1920, declara que ~ permanência no Hospício lhe "tem sido útil" e confessa ter-se indignado com o irmão que o internou, mas não tem uma palavra má ou colérica. 30 Nos artigos que assina em novembro e de- zembro de 1918 ("Da Minha Cela" e "Carta Aberta"), ambos in- cluídos em Bagatelas, ocupa-se em descrever o Hospital Central do Exército, onde se acha internado, comentando a seguir aconte- cimentos do país, dentre os quais a greve de 18 de novembro. No primeiro dos mencionados artigos, importante sob vários aspectos, estuda os internados com objetividade e quando anota serem eles átonos e completamente destituídos de interesse, não é para maldi- zer-se de tal companhia e sim para sublinhar que "bem podiam, pela sua falta de relevo próprio, voltar à sociedade, ir formar mi- nistérios, câmaras, senados e mesmo um deles ocupar a suprema magistratura." 31 Encontraremos, em suas páginas íntimas, ex- pressões de desalento, mas não de autocomiseração. Mesmo as alusões constantes ao problema da cor ou à adoração nacional pe- los doutores, embora ligadas a experiências pessoais, voltam-se para fora, para a sociedade que conhece e sobre a qual testemunha. Lima Barreto não combate em seu próprio benefício; os precon- ceitos e as injustiças despertam a sua ira pelo que são, e não pelo fato de atingirem a ele. Longe de ser - e só isto - um ressenti- do, é ele um lutador, um escritor consciente das desigualdades, das degradações de natureza ética ou estética, um ser humano cheio de fervor, sonhando um mundo menos estúpido e clamando até à morte - sem meios termos, sem frieza, assumindo posições claras, COmtruculência, com cólera - a sua verdade. Não é outra, aliás, 29 L . p. lIMA, Alceu Amoroso. "Prefácio." In: BARRliTO, L. Gonzaga de Sã. :~ ~n~O Cemitério dos Vivos. p. 257-60. n: Bagatelas. p. 99-100.
  • 14. 26 CAP. I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR a interpretação de Antônio Houaiss para quem os elementos da vida de Lima Barreto, "quando não são notações ou conotações realistas para pequenas particularidades ocasionais da vida de SUas personagens, nunca foram tomados como peso ponderal da moti- )lação da obra por força do seu egoísmo ou sequer do seu egocen_ trismo." 32 Trata-se portanto de um homem insatisfeito com o caráter da sociedade a que pertence e que, com um senso muito agudo da honra, faz questão de evidenciar as suas incompatibilidades, mes- mo porque não está disposto a transigir. O Pimpinela Escarlate que convive com os nobres e os combate ocultamente, não consti~ tuiria para ele um modelo de ação. O seu modelo seria o Don Quixote, defensór doS. pobres e ofendidos, leitor exaltado, sonha- úJr de perfeições, franco no falar e no agir, ingênuo, vilipendiado - e nem sequer lhe faltaram, aproximando-o ainda mais do mo- delo, o celibato e a loucura. Anda, incansável, pelas ruas do Rio de Janeiro, convicto de que existe alguma força na sua fragilidade e arremete sem desânimo contra a estultícia, a arrogância, a insen- sibilidade, a grosseria, a violência, a opressão. Não: contra os es- tultos, os arrogantes, os insensíveis, os grosseiros, os opressores, os violentos. Por tudo isto, a arma de Lima Barreto não é jamais a ironia ou a parábola sutil. A parábola, quando existe, é grotesca e as suas alusões, facilmente reconhecíveis, tornam o modelo ainda mais las- timável. Como não identificar, nos literatos Samoiedas, "de bons vestuários e ademanes de encomenda", escritores do seu tempo que desconheciam nossa realidade e contra os quais clama seguida- mente? Quando fala do ensino na Bruzundanga, das riquezas da Bruzundanga, da sua política e dos seus políticos, das eleições, da sociedade, da força armada, da organização do entusiasmo nesse país imaginário e impossível, vemos claramente o Brasil e suas ins- tituições. A contrapartida desse sarcasmo (voltado sempre para Bota- fogo e jamais para os subúrbios) é uma grande ternura pelos po- bres e - fato significativo - pela paisagem, notadamente pelas paisagens do Rio de Janeiro. "Saturei-me daquela melancolia tan- gível, que é o sentimento primordial da minha cidade. Vivo nela 32 HOUAISS, Antônio. "Prefácio." In: BARRETO,L. Vida Urbana. p. 10. Opõem-se, a minha visão e a de Antônio Houaiss, nesse aspecto, à. de Eugênio Gomes, que fala nos "extravasamentos de ressentido" de LlI~; Barreto. ("Lima Barreto e Coelho Neto." In: A Literatura no Bras~. p. 123.) O estudo de Eugênio Gomes, entusiástico em relação a CoeI o Neto, é de uma incompreensão muito grande em relação a Lima Barreto. LINGUAGEM. - TEMÁTICA. . . 27 ive em mim!" 33 Nomeia Olívio Montenegro esse "com- e ela .vo inseparável de todos os outros, que é a cidade do Rio de anhe1r . d' - b . d P . o Mas, am a aqUi - acrescenta - nao se a nn o a sua ]ane1ra' senão para os bairros mais pobres." 34 Investigando na ternura direção, Lúcia Miguel Pereira parece ver mais longe quan- rnes~neraliza e assinala em Lima Barreto "a sua permeabilidade ?o golicitações da natureza." 35 Hostil, intelectualmente, à no- a~ sde pátria no sentido político, tocava-o a idéia de uma relação çao ,. d d scendental com os cenanos a sua aventura no mun o. tran Homem de indignações fortes e admirações definitivas, sus- tível a depressões' e também à alegria de viver, vulnerável a citxões a idiossincrasias, a idéias fixas, Lima Barreto espanta-nos ~ela va;iedade de interesses e pela argúcia com que nos soube ana- lisar. (Machado de Assis parece-nos dotado de uma visão privile- giada para os segredos da arte literária e das almas sem grande- za.) 36 Lima Barreto, intérprete sagaz do seu país e do seu povo, viu como ninguém as nossas falhas - e raramente nos ocor- re malgrado as delimitações precisas do período histórico abrangi- d~ pelos seus escritos, que cinqüenta anos o separam de nós, tI!! a constância de muitos dos aspectos que surpreende. Mas, insisti- mos, suas preocupações, que a época em que viveu não explica, abrangia outros aspectos ainda não familiares aos nossos homens de letras, como a rapacidade do capitalismo, a infiltração norte- -americana na América Latina ou, também, os problemas políticos e sociais que deveriam suceder à Primeira Grande Guerra. Aliás, uma curiosidade incansável instigava a sua grande ca- pacidade de ver e de interpretar, não exagerando quando escreve: "sou curioso de todas as cousas". 37 Essa curiosidade, bem enten- dido, abrange o mundo e a arte. Os amigos que viajam para o 33 In: Gonzaga de Sá. p. 40. :: In: 0. Romance Brasileiro. p. 158. In: História da Literatura Brasileira - Prosa de Ficção (1870 a 1920). p. 296. 36 Te~-se assinalado, em Lima Barreto, certas tendências retrógradas ou saudOSistas. Ridiculariza em vários artigos os movimentos feministas e vê ~a ~~pública brasileira um retrocesso. Mas é significativo que o seu anti- tmlnlsmo episódico nunca apareça nos romances. Nestes, ao contrário duma exceção é a conversa entre Augusto Machado e seu amigo - Gonzaga :: Sã. p. 84-85), a estreiteza da educação feminina, orientada exclusiva- ."ente para o t' A • , • f A • V . ma nmomo, surge vanas vezes como um enomeno nocIvo. .p~Ja.se .a personagem Ismênia, em Policarpo Quaresma. Também não se a e~f aflEmar que abrigue, realmente, tendências monárquicas quem pede elam l'dao do direito de testar e advoga a redistribuição das terras, pro- 87 B~~ o que a propriedade é social. !!To, L. Vida Urbana. p. 229.
  • 15. 28 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR estrangeiro tornam-se como extensões da sua fome de mundo e ele não se contenta com as notícias recebidas: quer ser informado sobre os espetáculos, sobre os museus, se viram o Escriba Sentado pede que lhe mandem jornais lidos; vê-se, nas Impressões de Lei~ tura, ser incapaz de ignorar um só livro que lhe venha às mãos mesmo um estudo orográfico; interessa-se pela agricultura; pela~ narrativas populares; pelas cantigas de roda; pela Filosofia; pelos movimentos operários; pelos loucos; pelo jogo do bicho e pelas .relações do nosso povo com os animais; ocupa-se seguidamente de problemas urbanísticos e arquitetônicos, inclusive de edifícios em ruínas e, ante as paisagens, não lhe escapam sequer os matizes do verde; tanto observa os enterros como as mutações da moda. A lista, muito limitada, apenas ilustra a variedade das suas preocupa- ções e nela pode-se observar uma constante já insinuada nos pa- rágrafos anteriores: Lima Barreto, apesar de invadir, com a pró- pria presença, muitas de suas páginas, é um homem voltado para fora. Discutível que, na sua obra, "o traço pessoal e íntimo é o que toma mais vulto", segundo registra Olívio Montenegro no es"' tudo que dedica, em O Romance Brasileiro, ao escritor carioca, reiterando páginas adiante o seu ponto de vista: "Assim, falando- -se da obra de Lima Barreto, o que com mais evidência se impõe ao crítico é o relevo que nela tem o personagem que nem sempre aparece com o verdadeiro nome, e se chama Lima Barreto." 38 Compreendo a observação do saudoso crítico pernambucano, aliás partilhada por outros estudiosos, aos quais fere a constância com que surgem, nos romances de Lima Barreto, problemas relaciona- dos com a intolerância racial entre nós e temas onde se reflete a sua experiência, isto sem mencionar o fato de que idéias suas se- jam tantas vezes expressas nos diálogos. O escritor é quase sempre um homem que, ligado aos semelhantes, vê-se condenado, pelo seu modo pessoal de ver e pela intensidade de suas perquirições, a uma solidão que não é física e nem mesmo, a rigor, espiritual no senti- do ordinário do termo. A sua é a solidão da percepção intensa e do ato de exprimir. Ele fala aos outros homens. Devido, porém, à própria decisão com que mergulha no âmago das coisas, instau- ra-se entre ele e os demais uma espécie de nuvem que desfigura a mensagem. Conhece-se o princípio formulado por Ezra Pound no capítulo lU do seu ABC da Literatura: "Os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente." 89 Tal eficiência, 88 In: O Romance Brasileiro. p. 143 e 149-50. 80 In: ABC da Literatura. Trad. de Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo, Ed. Cultrix, 1970. p. 36. LINGUAGEM. - TEMÁTICA... 29 . dispensável, pe~e para ~ texto uma a:en~ã? pouco freqüent~, ~i- 1~ '1 e intensa, pOISse destma o texto a lOdlVlduosque, na malOna, fl~l onhecem uma linguagem limitada, com embriões de força, mas So~co eficaz. Complementa este quadro uma percepção ineficiente ~o coisas. Talo drama do escritor, mas poucos dentre eles pode- .a~ como Lima Barreto, repetir, com João Batista, ser "a voz do n~e ~lama no deserto". Ele é um homem duplamente ferido: pelo destino e pela História. A morte prematura da mãe e a loucura do ai enegrecem o pequeno círculo familiar; ocorre, numa esfera ~ais ampla, o insucesso nos estudos; a necessidade de suprir o or- çamento doméstico lança-o na burocracia, que despreza; publica com dificuldade, às vezes mediante empréstimos a juros, obras que não chegam a ser ignoradas mas também não alcançam sequer o que poderíamos considerar uma popularidade mediana. O artigo de Jackson de Figueiredo, publicado em 1916, é escrito, em parte, como protesto ante o "quase absoluto silêncio" que cerca o Triste Fim de Policarpo Quaresma e o seu autor. 40 Pouco afortunado na vida familiar, nada conhece Lima Barreto das honrarias não re- gateadas a outros e com quatro romances publicados é internado como indigente no Hospício, sem que se registre em seu favor um movimento coletivo de solidariedade, sendo também rara a presen- ça de amigos. "Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu, senão o Senhor Carlos Ventura e o sobrinho." 41 Natural que algo de uma vida tão cercada de pressões se refletisse na obra e isto ocorre em verdade. Mas o grau de egotismo que nos seus escritos obser- vamos está longe do que se projeta, por exemplo, no Diário Inti- mo, de Amiel. Seu egotismo, em outro grau, recorda o que diz Montaigne abrindo a primeira edição dos seus Ensaios: "Quero, porém, que aqui me vejam à minha moda simples, natural e or- dinária, sem estudo nem artifício; pois sou eu quem eu retrato." Na realidade, o auto-retrato que promete Montaigne, "sem estudo nem artifício", constitui uni belo exemplo de tópica exordial, aí também incluso entre os topoi da modéstia afetada, do que nos dá tantos exemplos E. R. Curtius no seu conhecido manual sobre a Idade Média Latina. Como os ensaios de Montaigne, ilusoriamen- te,centrados no autor e, na realidade, voltados para as coisas e fe- nomenos circundantes, também a obra do escritor brasileiro (aten- to, embora, ao misterioso e ao transcendente) é toda ela voltada para fora, para o mundo imediato e concreto. 40 A r Ap r 19o publicado em A Lusitana, Rio de Janeiro, edição de 10/06/1916. 41 ~r~ce como "Prefácio" na edição de Feiras e Mafuás. n. O Cemitério dos Vivos (Diário do Hospício). p. 34.
  • 16. 30 CAPo I - LIMA BARRETO: O ESCRITOR Assim, Afonso Henriques de Lima Barreto, segregado e en- volvendo, no ~f'11 I')lh~~desperto, avaliador e sensível às mudanças antf' ~ j..• úela aberta do Hospício Nacional de Alienados, as monta: nhas, o mar e o casario sob a manhã nevoenta de janeiro, enquanto medita outro romance que não chegará a concluir (vive, nesses dias, tão preso ao personagem-narrador, que se confunde com ele em seus apontamentos sobre o Hospício de Alienados), é um pou- co a imagem do seu próprio destino e da sua atitude em face do mundo. A rigor, ele sempre esteve circunscrito a um determinado círculo de que o Hospício é a expressão simbólica e extremada: e, conquanto isolado, nunca arrefeceu o olhar com que examina e pesa, por intermédio da escrita, a realidade que o rodeia. Sua con- templação, nessa manhã, nada tem de indiferente e está bem longe da simples fruição. Mesclam-se, no seu espírito, exaltação, tristeza e senso crítico. Mais: fanático da escrita, homem para quem "es- crever era a maneira de ser", na expressão de Antônio Houaiss, este momento e as reflexões que provoca em seu espírito logo serão registrados. CAPÍTULO II LIMA BARRETO: O ROMANCISTA Insulamento e ação nos seus romances. POUCO propenso a afirmar que Afonso Henriques de Lima Barreto seja "o nosso primeiro criador de almas" e mesmo duvi- dando que isso constitua o traço capital de um romancista, diria ser o romance o setor mais rico e sugestivo na obra desse escritor. Será talvez verdade que não se possa "aprofundar o conhecimento e a compreensão da sua obra de ficção sem se conhecer e com- preender as reflexões e memórias que nos deixou sob a forma de artigos e crônicas de jornal." 1 Esses artigos e crônicas, alguns violentos, outros cheios de delicadeza- e quase todos repassados de humor - revelando Lima Barreto, com lentes de aumento defor- mantes, absurdos que um tratamento mais comedido deixaria in- denes -, formam decerto um acervo de grande interasse documen- tal e literário. Abrigam flagrantes numerosos; variados e vivos da nossa vida política e mundana no primeiro quartel do século, do nosso movimento literário - inclusive das províncias - e das transformações ocorridas na aparência do Rio; como atrativo su- plementar, revelam o escritor no ato mesmo de reagir e opinar, sem que a espontaneidade torne a sua expressão tíbia ou insulsa; mos- tram, nele, um aspecto moral que o gênero romanesco oculta em ~arte: independência de vistas; e, ainda mais importante, possibi- litam-nos medir com apreciável justeza - e não sem apreensões -. a debilitação sofrida no país pelo direito e pela capacidade de opm~r, debilitação que adquire um ar de boas maneiras e de cuja amphtude quase não nos apercebeIrlos. Eis algumas das razões pe~asquais se justifica, para o interessado no autor, para o pesqui- sa Orsocial, para quem trabalha com a palavra escrita ou simples- ~ente para quem. considera saudável a prática de emitir .juízos fran- sos, o conhecimento dos textos não-ficcionais do ficcionista. Mas, irim.dúvida, é no romance que se expande e se revela esse espírito qUieto, "curioso de todas as cousas." t p EREIRA, Astrojildo. "Prefácio." In: B"RRETO, L. Bagatelas. p. 13.
  • 17. 32 CAPo II - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA "Lima Barreto, como Machado de Assis - lemos em Lúcia Miguel Pereira, quando o confronta com Raul Pompéia e Graça Aranha -, fala exclusivamente em termos de ficção, é através das suas criaturas que interroga a existência." 2 A proposição lem- bra em outro registro a sectária assertiva de Agripino Grieco: prende-se, de um modo menos rígido, às relações do escritor com as personagens criadas e firma-se no conceito subjacente, conside_ rado óbvio, de que se reconhece o ficcionista pela capacidade de criar almas. Não falta esse poder a Lima Barreto, embora a au- sência de vida nas suas personagens - pouco vulneráveis às pai- xões - tenha induzido Agripino Grieco a condenar in limine, na sua crítica, o Gonzaga de Sá. Mas se aparece o romance, no con- junto dessa obra, como o segmento de maior importância, deve-se a motivos de outra ordem, um dos quais - que a seguir tentare- mos precisar e identificar - tem escapado aos seus estudiosos. A elasticidade do gênero romance permite a concentração das variadas tendências e aptidões que formam a personalidade literá- ria de Lima Barreto. Encontramos nos seus livros, entremeados à narrativa ou à maneira de engaste, a crônica, o ensaio, expansões líricas e até o documento. Este, um dos motivos pelos quais tal fração da sua obra sobreexcede as demais em interesse quando a examinamos. Mas o romance não é apenas um gênero maleável, proteico, aberto, capaz de abrigar e de conciliar outros gêneros mais simples. Vê-Io assim seria desconhecer a sua faculdade de iluminar zonas dissimuladas. Tarefa absorvente, na qual se em- penha o ser total do escritor, vai o romance desmontando as armaduras que o autor constrói para si mesmo e refletindo, cifrado, o seu rosto autêntico, por mais oculto que esteja. Robbe-Grillet não formula um paradoxo ao afirmar que quando se interroga o romancista a respeito do motivo pelo qual teria escrito, a única resposta é: "Para tentar saber por que eu desejava escrever." 3 Entretanto, não revelará o romance ainda mais do que isto? Por mais lúcido e intencional que seja, assume aspectos imprevisíveis, possibilitando revelações insólitas. Ante a obra acabada, pode o autor saber por que desejava escrevê-Ia. Impossível ler, porém, tudo o que nos transmite, até que ponto o desnuda e em qu~ medida age sobre ela a atmosfera do seu tempo. O romance .e um desvelador de segredos, uma armadilha de espectros. InsI~ nuando-se por entre personagens, observações e fábulas cujo sen- tido é evidente, entrevemos, na obra romanesca de Lima Barreto, 2 1n: História da Literatura Brasileira. p. 288. 3 1n: Pour un Nouveau Roman. p. 15. INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 33 . has meio ocultas, que conferem ambigüidade ao perfil do escritor 11n '",_ os conVIdam a lllvestlgaçao. e n Bem cedo escolhe Afonso Henriques de Lima Barreto o mance como a expressão adequada ao seu potencial criador e ~o ariedade de aspectos que tenciona abranger. A edição do Diário ; ;imo abre-se com a introdução do romance iniciado antes dos ~ anos e logo abandonado. Aos 24 anos, em 9 de julho de 1905 refere: "Depois de três meses de interrupção, deu-me von- tade de escrever, ou continuar a escrever meu livro. Publicá-Io-ei? Terá mérito? En avant." Tudo faz Supor que se trata do romance de estréia, editado em 1909, de que a revista Floreal, por ele criada, divulga em 1907 o início e onde - fato pouco previsível em obras novelísticas de jovens - inexistem amor e aventura. "Eu tinha um grande pudor de tratar de amor" _ diria o inter- nado de O Cemitério dos Vivos. 4 Aliás, em todos os livros de Lima Barreto, será o amor, quando surge, um tema secundário ou desfigurado; a aventura, nunca vivida por caracteres infla- mados, assumirá outros nomes e terá um aspecto sombrio. Recordações do Escrivão [saías Caminha é o único livro de Lima Barreto em que a personagem principal narra a história. 1) Isaías, escrivão de coletoria no interior do Espírito Santo, para onde se retirou a fim de preservar, no anonimato de uma vida sem brilho, sua dignidade, desgastada nos anos em que o Rio de Janeiro massacra o então jovem provinciano e aos poucos recompensa-o em troca de miúdas concessões (ou então ao azar das circunstâncias, nunca pelos seus merecimentos), decide regis- trar suas lembranças. Desenvolve-se a narrativa alternando o tem- po passado e a vida atual do narrador, num processo que São Bernardo parece seguir de perto, inclusive quando os supostos memorialistas, dizendo-se inábeis, falam do seu trabalho de com- por e manifestam dúvidas sobre os respectivos textos. "Mas; não é. a ambição literária que me move a procurar esse dom miste- TlOsopara animar e fazer viver estas pálidas Recordações." (L. B.) "A . s peSSoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir Isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor." (G. R.) 'lÁ noite, quan", do todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e escrevo furiosamente." (L. B.) "Quando os grilos can- : ~AlUl.ETO, L. O Cemitério dos Vivos. p. 169. . o lÍlRrocesso seria retomado em O Cemitério dos Vivos, iniciado durante con ItI'?o internamento do escritor no Hospício e que ele não chega a c Ulr. Consideraremos adiante esse texto inacabado.
  • 18. 34 CAPo fi - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA tam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito nume- rosas - e a folha permanece meio escrita, como estava na vés- pera." (G. R.) 6 Divergem, nos dois romances, as motivações de Paulo Honório e Isaías Caminha. O fazendeiro de GraciUano Ramos escreve na esperança de aquietar o espírito e ver um pouco mais claro. O mulato Isaías Caminha, para de algum modo mos- trar que as causas de desastres pessoais como o seu não estão na carne e no sangue da vítima, mas no exterior: seriam causas de natureza social, e não psicológica, atávica ou antropológica. Foge aos nossos propósitos discutir se se trata de um ro- mance de tese e a validade de tal gênero. Seja co~o for, a his- tória de Isaías apresenta-se como uma aprendizagem em terra es- tranha. Curiosamente, e aqui iniciamos o acesso à camada mais enigmática da obra, Isaías, embora assumindo a narrativa, tem algo de um narrador invisível: mais contemplado r que atuante, relaciona-se pouco e esporadicamente com as demais personagens, nunca chegando essas relações a perturbar ou a modificar os destinos alheios. As figuras do romance surgem e desaparecem, morre a mãe de Isaías Caminha, morre o cronista Floc, enlou- quece Lobo por causa da Gramática, fatos políticos ou individuais abalam a cidade, mas o narrador em nada interfere. Dissemos não existir nesse romance amor nem aventura. Aprofundemos a observação: amor e aventura implicam em en- volvimento com outros seres - atos predatórios ou salvadores -=, mas há entre Isaías e os que o cercam, um corte. Quando ele conversa, é quase sempre sobre temas gerais, também as outras personagens discutem, mas os diálogos' não têm função dramá- tica, não impulsionam os acontecimentos e aqui toda comunicação é falaz, o que se torna ainda mais estranho quando nos ocorre que toda a segunda parte da obra decorre num jornal. Nas Re- cordações do Escrivão [saías Caminha, pormenor que o tom fre- qüentemente panfletário e caricatural do livro encobre, as per- sonagens nunca se entrelaçam. Contíguos e sós, integram esta composição anômala e um tanto monstruosa, onde as várias uni- dades, isoladas - ignorantes ainda da própria solidão -, apenas se deslocam, modificando o conjunto, sem que haja acréscimoS ou perdas espirituais nos seus deslocamentos. Lima Barreto inau- gura na ficção brasileira, sem dar-se conta disto, segundo tudo 6 Respectivamente: BARRETO, L. [saías Caminha. p. 78; RAMOS, Orac!- liano. São Bemardo. p. 13; BARRETO,L. Op. cit., p. 79; RAMOS, OraC1- liano. Op. cit., p. 113. INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 3S . dica o tema da incomunicabilidade, tão caro à arte contem- 1Dorân~a,surgindo como um antecipador, um anunciador do nosso p . - 7 tempo e das nossas cnaçoes. Vendo-os a essa luz, captamos melhor o alcance de certos pisódios do romance, dentre eles a loucura de Lobo, o revisor ~e O Globo, em quem o fenômeno do ilhamento faz-se progres- sivamente, através da linguagem. Submisso à Gramática, regride historicamente no convívio com a Língua Portuguesa, entendendo- -se cada vez menos com as pessoas, até ser internado no hospício, onde vive a ler uma obra doutrinária do século XV e sem a menor relação com o seu estilo de vida, a Ensynança de Bem Ca- valgar, de EI-Rei Dom Duarte. "A sua mania era não falar nem ouvir. Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semana inteira, pedindo tudo por acenos." 8 O suicídio de Floc relaciona-se igual- mente com a linguagem e o ilhamento, fatores ressaltados pela circunstância de ser ele um cronista mundano. Mata-se com um tiro no ouvido, depois de tentar, inutilmente, redigir mais um artigo. Não consegue expressar o que deseja (ou não mais iden- tifica os destinatários do artigo?) e a sua morte é muda: não deixa uma palavra a ninguém. Lúcia Miguel Pereira, estudando com grande simpatia e ho- nestidade esse romance, condena o que lhe parece "a artificiali- dade da evolução de Isaías, como também o descuido do autor, crescente à medida que se acentua o tom caricatural", na frieza com que ele se refere à morte da mãe: "O rapaz, cujas reações só se explicam por uma grande sensibilidade, mostra-se indife- rente". 9 Sim, há caricatura nesse livro, mas é incorreto dizer que o tom caricatural se acentua. A página mesma em que Isaías se refere à sua mãe, pobre e apagada figura, é rica em notações líricas sobre o mês de maio e de impiedosas auto-análises: "A Terra era todo um estojo macio e tépido, feita especialmente 7 :'A história social do homem iniciou-se ao emergir este de um estado de UnIdade indiferenciada do mundo natural, para adquirir consciência de si ~esrno como de uma entidade separada e distinta da natureza e dos e~rnens qUe .0 rodeavam." A violência com que Lima Barreto ataca a o ~Utur~ capitalista faz-nos perguntar se acaso não sentia, obscuramente, ind'U~ dIZ.o autor da citação acima ao lembrar que o princípio da atividade trib~!duahsta, Uma das características gerais da economia capitalista, "con- ilIOdlU para Cortar todos os vínculos existentes entre os indivíduos e deste 1'he ~ separou e isolou cada homem de todos os demais." (FROMM, Erich. 8 BA ear 01 Freedom. p. 49 e 133.) 9 In.RaE:o, ~. [saías Caminha. p. 187. . }/'st6na da Literatura Brasileira. p. 305.
  • 19. 36 CAPo JI - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA para viver do nOsso corpo. ( ... ) Aquele começo de mês foi para mim de grande sossego e de muito egoísmo. ( ... ) Vinham (as observações e as emoções) uma a uma, invadindo-me a per- sonalidade insidiosamente para saturar-me mais tarde até ao abor- recimento e ao desgosto de viver." 10 No último passeio com Loberant e uma italiana à Ilha do Governador, ao fim do livro, as impressões de Jsaías estão longe da caricatura: "Fomos ser- vidos em velhos pratos azuis com uns desenhos chineses e as facas tinham ainda aquele cabo de chifre de outros tempos. A vista deles, dos pratos velhos e daquelas facas, lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito?" 11 Não, não há incoerência em Isaías.' Mas uma obra de arte é sempre vista aos poucos, desvendada aos poucos - e assim nem a sutil acuidade de Lúcia Miguel Pereira chegou a perceber, há vinte anos, que, em harmonia com uma lei geral do livro, onde prota- gonista e figurantes permanecem encerrados em si mesmos, a indiscutível sensibilidade de Isaías Caminha é um CÍrculo: como todos, ele está fechado em si mesmo num mundo onde as comu- nicações foram cortadas. Isaías, atordoado certa vez com o desencontro entre os seus planos e a realidade, longe de escrever para casa ou de tentar uma confidência, volta-se para o mar: "Continuei a olhar o mar fixamente, de costas para os bondes que passavam." 12 Vai Isaías transitando ante os seres sem se prender a ninguém e a sua indiferença ante o falecimento da mãe é inevitável. Ainda não nasceu o autor de L'Etranger, mas Meur- sault já tem um ancestral: os tempos, capciosamente, engendram os seus símbolos. "As plumas dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens - fala ainda Isaías - pareceram-me ser enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio." 13 Em janeiro de 1908, ainda inédito em livro o seu [saías Caminha, anota Lima Barreto, no Diário, haver escrito "quase todo" o Gonzaga de Sá no ano anterior. Triste Fim de Policarpo Quaresma é entretanto o romance que se segue, em ordem de publicação, à. obra de estréia. . Isaías Caminha, na época em que escreve suas Recordações, informa-nos da existência da esposa, a quem sobreviverá, mas seu estado civil é irrelevante para a estrutura da obra. Só apa- 10 BARRETO, L. Isaías Caminha. p. 164-6-5. 11 Id., ibid., p. 192. 12 Id., ibid., p. 84. 13 Id .• ibid., p. 85. INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 37 recem no romance as figuras do passado, embora cheguemos a ouvir essa mulher chamando-o, invisível; e o casamento de ambos celebra-se numa espécie de vazio, entre os dois planos temporais constantes da narrativa. Policarpo Quaresma, celibatário e sem 'preocupações matrimoniais, vive em companhia da irmã. En- quanto o problema de Isaías Caminha, equacionado em termos de um confronto com a sociedade, era ainda de ordem pessoal, policarpo Quaresma é um funcionário correto, metódico, reme- diado, sem ambições, sem conflitos, sem dilemas existenciais e, portanto, nada preocupado com a sua pessoa ou o seu destino: todo ele está voltado (e só isto o converte em personagem de romance) para uma certa idéia de Brasil. Se o amor à Língua Portuguesa manifesta o isolamento cada vez mais drástico de Lobo, levando-o afinal à loucura, isola Policarpo Quaresma, tra- zendo-lhe conseqüências funestas, um amor cego e desmedido pelo seu país. - A princípio, exatamente como Isaías, Policarpo Quaresma gira no âmbito da sua paixão, fechado em si e na sua idéia fixa: "vivia imerso no seu sonho" e apenas trocava com as pessoas "pequenas banalidades, ditos de todo o dia, cousas com que a sua alma e o seu coração nada tinham que ver." Com o preto Anastácio, que há trinta anos trabalha para ele e com quem po- deria falar de si mesmo, conversa "sobre cousas antigas". 14 A tendência a empregar de maneira neutra o diálogo, isto é, sem que expresse paixões, revele claramente problemas íntimos ou atue sobre o interlocutor, volta a aparecer aqui e compõe o modo de ser do personagem-título. Policarpo Quaresma, isolado, sem an- gústia ou desespero, no seu embevecimento, lê com zelo e cons- tância os primeiros cronistas, os viajantes como Jean de Léry e Saint-Hilaire; dedica-se ao tupi-guarani, toma lições de violão. Notam-se, no livro, variações importantes de dois temas !un- damentais: o do ilhamento (meio oculto sob outros, mais fami- liares e ostensivos); o da inoperância dos atos de cada perso- nagem sobre o próximo e sobre o meio. Todos, em [saías Ca- n:inha, cruzam com outros e se vão, sem que o seu destino tenha SIdo afetado e sem que modifique o de ninguém. Em Policarpo Quaresma, esses núcleos individuais e· solitários tomam-se mais c~mplexos: são substituídos. por núcleos domésticos. Existem os nucleos Policarpo--Adelaide, General Albernaz-família, Vicente ;~lga (e mais tarde o marido de Olga) e ainda, elemento à parte, UnICo~em liames familiares, Ricardo Coração dos Outros, artista 14 B ARRETO, L. Policarpo Quaresma. p. 62-63 e 34.
  • 20. 38 CAPo li - LIMA BARJlETO: O ROMANCISTA do violão e compositor de modinhas. Para unir um núcleo a outro temos o flébil recurso das visitas, motivação rara e ocasional em [saías Caminha. Mas a sociabilidade das personagens, em Policarpo Quaresma, vai cerrando os fios do relato e estabele- cendo tensões? Não. Repete-se, ao contrário, o fenômeno já registrado no primeiro fi)mance, onde as personagens se encon- tram e separam-se senl que nenhuma delas aparente sofrer qual- quer mudança. As visita~e as reuniões sociais não constituem ponto de partida para quaIsquer eventos. Acresce que os núcleos a que chamamos domésticos e que integram a obra são indepen- dentes: o afastamento deCavalcanti e depois a loucura de Ismênia (um dos únicos casos etll que um ato vai repercutir sobre outra personagem), o casaroetntode alga, toda a vida de Ricardo, a loucura de Quaresma Qperam.:.sesem conexão com os núcleos restantes e em nada Oi aietam. Além do mais, va~.a~ãonot~vel do tema que vamos pro- curando delimitar e ide~ficar, Pohcarpo Quaresma "sentia dentro de si impulsos imperi1>SO$ d~ agir 15 num esforço que contraria o seu modo de ser elwvai expenmentar romper o isolamento e atuar sobre o meiQL J6 Dirige uma petição ao Congresso Na- cional, pedindo que se "d~c~eteo tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo bt<lSI1~lrO." 17 A ingênua tentativa de Poli- carpo Quaresma expre§3n.~ apenas uma reação à estrutura da obra de estréia, e, co~quentemente, uma mudança radical na visão do romancista senão viesse a configurar-se como uma in- fração. A incursão do }er6ino mundo da influência, mundo onde se procura atuar so~re'indivíduos ou grupos, seu inofensivo e tímido ensaio no sentJ.d())~e romper o alvéolo, deflagra uma pressão tão impiedosa e genenliZadaque o leya ao hospício. Tendo aÍta, vai Pilt!carpo Quaresma para o campo, com o objetivo de pôr em ~rl1lca,atendendo aos objetivos satíricos do livro e que constitmro li) seu primeiro plano, o que primeiro se oferece ao observado~,msuacrença na fertilidade do solo nacional. Numa esfera mais prof1lJ}:da, Policarpo Quaresma, batido pela rea- ção ao seu ato impl11del1te,. intensifica no sentido físico o próprio isolamento. Verifica-selqUiuma conciliação de objetivos: o herói, ao mesmo tempo queaJ)andona o cenário da sua desastrada ex- 15 BARRETO,L·pp. cia.W13.. . 16 Cf. TODOROV: "UIIJl lII'rahva Ideal começa por uma situação estável que uma força qualqu:r I'em p:rturbar." (As .Estruturas Narrativas. p. 138.) Possuía Lima BlPlllonoçao clara das leIS que regem tradicional- mente o relato e quanll> » cbntraria não é decerto por inaptidão. 17 BARRETO,L. PolicarlJOfuaresma. p. 61. INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 39 periência, vai empreender uma nova forma de ação, voltada agora simplesmente para a terra e não mais para a sociedade. Mas os desastres também não tardam nessa outra conjuntura: a terra não produz e as saúvas aferroam o lavrador improvisado com uma violência que evoca a reação geral ao seu infeliz requeri- mento. 18 Isto, porém, ainda não é tudo. A vinda de Quaresma para a região, seu retraimento desinteressado, rompendo de algum modo a neutralidade das suas normas de vida e sendo, afinal, uma ação, acaba provocando adulações, suspeitas e gestos agressivos por parte dos que governam a vila cujos estatutos re- gem o sítio. Todos têm o ar de intrusos, como se ao mesmo tempo eles tentassem invadir a vida de Quaresma e o romance. Curiosamente, no mesmo ano em que aparece em livro o Triste Fim de Policarpo Quaresma (a publicação em folhetins inicia-se em 1911), edita-se na Inglaterra Victory, de Joseph Conrad. Antonio Candido, para quem há em Conrad "um sentimento da ilha que funciona com valor metafórico e alegórico", acrescenta que a metáfora do ilhamento, no escritor inglês, não se fecha, sendo "um preâmbulo ao problema decisivo, o ato, cujo meca- nismo ela desencadeia, como se pode constatar exemplarmente em Victory". a sueco Axel Heyst, concluindo "que a ação é algo diabólico, responsável pelo mal na sociedade", retira-se para uma ilha do Pacífico. "Mas a ilusória solidão abre caminho aos embates comuns da vida, resultantes do amor, da cobiça, do ódio." 19 Mecanismo idêntico, portanto, ao que se observa na reclusão de Quaresma, embora com outra intensidade e em outro nível de consciência. 20 a mesmo motivo - ensaio de interferência redundando em desastre - logo irá repetir-se, oc~pando toda a segunda metade da narrativa. "Na manhã de 6 de setembro de 1893 toda a armada se revoltou, acrescida com alguns navios mercantes. ( ... ) Floriano era teimoso e não economizava o sangue dos seus com- patriotas. Convocou a guarda nacional, pôs a força de prontidão e levou canhões para os morros. Veio o estado de sítio e organi- 18 Atente-se para a circunstância de que o problema da expressão verbal, relevante nos personagens Lobo e Floc - e, um tanto secundariamente, em Isaías Caminha enquanto narrador -, é o primeiro a surgir das leituras e ruminações de Policarpo Quaresma, constituindo a raiz do seu comporta- . mento ulterior. J9 CANDIDO,Antonio. Tese e Antítese. p. 62-63. 20 Devemos registrar que, na juventude, Quaresma auxiliou Vicente Coleoni, que estava à beira da ruína e que, graças à ajuda recebida, acaba enri- quecendo. Uma exceção, contrariando as leis que rastreamos.
  • 21. 40 CAPo 11 - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA zaram-se batalhões patrióticos" 21 - resume Graciliano Ramos, evidentemente sem ardor, na "Pequena História da República". policarpo Quaresma, informado dos acontecimentos, redige um me- morial a Floriano Peixoto e, indiferente às ponderações da irmã, que lhe mostra "os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com a sua idade e superiores à sua força", 22 viaja para o Distrito Federal, com o objetivo de entregar o memorial e alistar-se. Tudo o que provoca o seu memorial são estas palavras de Floriano: "Você, Quaresma, 6 um visionário ... "23 Alistado, 6 ferido, con- verte-se em carcereiro e, percebendo que o governo, vitorioso, tru- cida grande número de prisioneiros, comete a transgressão final: envia ao Presidente uma carta de protesto. Encarceram-no, sendo a morte o seu fim, não apenas triste, mas lógico e óbvio. Assim acaba esse livro de raras e veladas confidências, de laços familiares frágeis, de casamentos sem flama, de interferências vãs ou desastro- sas _ tudo refletido nas frouxas motivações que unem formalmente os seus núcleos - e no qual o tema do insulamento constitui um veio profundo, embora discreto. 24 Bem antes, respondendo a uma observação de Ricardo Coração dos Outros sobre o pensamento e as consolações do sonho, dissera Policarpo Quaresma que sonhar talvez console, mas distancia e "cava abismos entre os homens". Mas o pensamento e o sonho terão na verdade esse poder desagre- gador? Ou apenas levam à revelação de abismos já existentes e cuja amplitude este livro melancólico e sarcástico acentua como por aca- so? Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, no julgamento do autor o mais acabado dos seus livros, forma com [saías Caminha e Poli- carpo Quaresma uma trilogia involuntária da incomunicabilidade e só virá a público em 1919. Antes disto, havendo-o já escrito, entra Lima Barreto na fase mais sombria ou mais exasperada da sua vida. Percebe-se, como num sismógrafo, que começa a minar-lhe o espírito um sentimento geral de insegurança. A venturas do Dou- tor Bogóloff, "narrativas humorísticas", aparecem em folhetins e são interrompidas no segundo fascículo. O que parece desejar ago- 21 RAMOS, Graciliano. "Pequena História da República." In: Alexandre e Outros Heróis. p. 150. 22 Id., ibid., p. 149. 23 Id., ibid., p. 176. 24 Vemos, na última página da obra, Olga seguir ao encontro de Ricardo. O fato de que, na linha final desse livro, onde papel tão importante é concedido ao insulamento espiritual e aos perigos de rompê-Io, um perso- nagem vá ao encontro de outro, serenamente, ioa como dissonância volun- tária e estimula-nos à reflexão. INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 41 ra, escreve o seu biógrafo, "6 descer ainda mais, mergulhar-se no cinismo e no deboche, acanalhar-se por completo." 25 Tenta, sem qualquer êxito, o gênero fescenino e em abril de 1914 desabafa no Diário: "Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade." :E: um ano em que sua correspondên- cia, restrita ainda e pouco diversiflcada, mais se reduz. O tema do isolamento parece repercutir na sua vida ou extremar-se. Ele pró- prio se apercebe da crise que se intensifica e a 13 de julho registra: "Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro. Estarei indo para a loucura?" No dia 18 de agosto, conduzido num carro de presos, 6 internado pela primeira vez no Hospício, onde passa perto de dois meses. Ao sair, escreve, em apenas vinte e cinco dias, por encomenda de Irineu Marinho, sem copiar nem recopiar sequer um capítulo, 26 o romance Numa e a Ninfa. De- senvolve, para isto, mantendo inclusive o título, conto publicado três anos antes na Gazeta da Tarde e trechos inteiros das malogra- das Aventuras do Doutor Bogóloff. As circunstâncias em que escre- ve o livro, todas desfavoráveis, levando-o inclusive ao reaproveita- mento tardio de tema, personagens e situações, pode explicar cer- tos desvios flagrantes em relação à trilogia a que aludimos. Limitemo-nos, evitando explicações ou justificativas, a acentuar o amortecimento de sua percepção das coisas e a intensificação - aparente, ao menos - de laços entre as personagens, com.a perda de um traço pessoal, enigmático e cheio de sugestões, patente em [saías Caminha, Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá. Contudo, mesmo nesse romance composto sob estímulos artificiais e onde 6 possível - onde se procura mesmo - afetar os destinos alheios, não no sentido espiritual e sim no que concerne à sobrevivência ou à carreira, observa João Ribeiro que "todos os personagens desa- parecem quase subitamente". 27 As separações subsistem entre eles; e os seus diálogos, quase sem exceção, giram em tomo de assuntos 25 BARBOSA,Francisco de Assis. Aldebarã - A Vida de Lima Barreto. p. 225-26. José Aderaldo Castello (Método e Interpretação. p. 75-82.) é um tanto rigoroso na sua crítica a essa biografia. Também não parece muito tolerante em relação a Lima Barreto: "ele foi vítima do seu próprio orgulho de desajustado, de vaidoso que esperava o reconhecimento dos contemporâneos e o seu estímulo, antes de oferecer os elementos necessários para merecê-Ios." (p. 80.) 26 V. BARRETO,L. Diário Intimo. p. 182: "Eu tinha pressa de entregá-Io, para ver se o Marinho (Irineu Marinho, então diretor da A Noite) me pagava logo, mas não foi assim e recebi o dinheiro aos poucos." 27 RIBEIRO, João. Artigo publicado em O Imparcial, Rio de Janeiro, em edição de 07/05/1917. Aparece como "Prefácio" em Numa e a Ninfa. p. 12.
  • 22. '14 CAPo II - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA sas." 33 Interesse nostálgico, especulativo, interesse de amador um tanto distanciado de tudo e nem de longe -passível de converter-se em atos, "à vista da obscuridade a que se havia voluntariamente imposto." 34 Idênticas às de Gonzaga de Sá as predisposições de Machado, seu imaginário biógrafo. Só ou em companhia do amigo, contempla as coisas e raciocina sobre elas, num tom talvez um pouco mais comovido, mas que ressoa como um eco, paráfrase ou reflexo do que ouve e transcreve. O que vêem e observam Gonza- ga e Machado lembra uma sonata para dois instrumentos afins. Esta consonância, quem - sem o saber ou em plena cons- ciência _ não a deseja ou não a procurou? Os dois amigos, um velho e um jovem, no romance de Lima Barreto, pareceriam a fe- liz e efêmera expressão de tal sonho. "Eu, a quem. a convivência com tão precioso e excepcional superior hierárquico permitira que se me penetrasse um pouco do seu feitio mental" - confessa Ma- chado. 35 E um dia, estando com o amigo ante a noite que cai, expressa-se como se ambos fossem um: "Nós, então, sentimos as nossas almas inteiramente mergulhadas na sombra e os nossoS cor- pos a pedir amor. Calamo-nos e olhamos um pouco as estrelas no céu escuro." 36 "Entre nós havia aquele aperfeiçoamento de comu- nicação, que Wells tanto encomia nos marcianos: mal emitia um pensamento, um dos nossos cérebros, ia ele logo ao outro, sem in- termediário algum, por via telepática." 37 Enganosa e obscura, apesar de tudo, mesmo sem levarmos em conta certas oposições profundas que distinguem um do outro e de que ainda falaremos, é esta semelhança de caracteres - e tam- bém de idéias, pois as discussões entre eles orientam-se, em regra, no mesmo sentido. Nas conversas que sustêm, limitadas por uma tácita convenção de pudor, nenhum deles fala de si ao parceiro ou comete indiscrições. A única pergunta de ordem pessoal que faz o jovem a Gonzaga refere-se ao seu estado civil: ,,_ Senhor Gonzaga, não é casado? "- Não. "- Nem quis casar? ,,_ Duas vezes: uma, com a filha de um visconde, em baile de um marquês. "- E a outra?" 83 BARRETO, L. Gonzaga de Sá. p. 64. 84 Id., ibid., p. 50. M Id., ibid., p. 71. 36 Id., ibid., p. 54. 37 Id., ibid., p. 111. INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 4S Responde o velho que a outra foi a sua lavadeira. 38 Gonza- ga de Sá, nas últimas páginas do livro, faz confidências a Machado. Coisa notável: a confidência, ato anormal nesta ficção de seres ilhados em si mesmos, é interpretada como sinal de fraqueza. "Na forte compreensão da dignidade de sua pessoa, e no avassalador orgulho pela sua inteligência, atrozes feridas deviam se ter aberto nele pela vida toda; e agora, com a decadência de energia que a ve- lhice acarreta, não mais podia suportar-Ihes' as dores cruéis e ge- mia." 39 Gonzaga de Sá, dando-se conta de haver excedido, apre- senta desculpas e promete que não voltará a incorrer na mesma falta. . Ressurge ~ portanto neste romance a lei que estabelece entre as personagens um vácuo intransponível, impermeável, segregador, isolando-as em si mesmas. Apresentaria tal norma, no romance agora examinado, uma variação, expressa nas cambiantes corres- pondências e fusões entre o biografado fictício e seu fictício cronis- ta: viriam ambos de um molde comum, seriam ambos o mesmo in- divíduo impreciso, dividido, extraviado num mundo indiferente e por ve~es reconhecendo-se, num lampejo, fora de si, no outro, sem que este reconhecimento de modo algum restaure a sua unidade - mesmo porque, dissimuladas, há graves separações entre eles. Fru- to de um desespero difuso, do qual a certeza de não encontrar na Terra vozes solidárias constitui o núcleo (não falará em ninguém a minha voz, não continuarei em ninguém e não serei a continua- ção de ninguém), eis que surge neste mundo simbólico uma perso- nagem e, dividindo-se, sonha ou finge a comunhão, a continuidade. Mesmo aí, não é bem sucedido: nenhum dos dois se altera no curso dessas relações - no curso do romance - e, na morte de Gonzaga de Sá, descrita no início do relato, o que infunde, à sua ulterior presença, certo caráter fugidio e etéreo, bem podemos ler que a saída procurada era vã e deserta como todas. O velho descendente de Estácio de Sá e seu taciturno com- panheiro atravessam o livro lado a lado, sem jamais trocarem um abraço e quase nunca uma expressão reveladora, divagando sobre temas que interessam a ambos - mas sempre exteriores a ambos , sem que dos seus encontros e diálogos (ou dos seus monólo- gos?) surja o embrião, por débil que seja, de drama ou de conflito. A inexistência de ação material não permite que se inscreva o romance no gênero psicológico: de mo'do algum propensos a agir (o que torna o livro mais representativo e coerente em relação a 38 Id., ibid., p. 36·37. 39 Id., ibid., p. 150.
  • 23. 46 CAPo li - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA [saías Caminha e Policarpo Quaresma), Gonzaga e Augusto Ma- chado, amadores da contemplação e da reflexão, não os subjugam as paixões e o encontro dos dois não provoca mudanças substan- ciais na visão que têm das coisas. Nestes livros povoados de figuras insulares, ocupam, portanto, lugar de relevo, ao longo da amizade que cultivam, triste, nobre, em surdina, tocada de magia e, apesar de tudo, estéril, os dois sen- síveis burocratas de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Sete anos decorrem entre a redação de Numa e a Ninfa e a de Clara dos Anjos, concluída no ano da sua morte. Já em 1904 apa- recem no Diário anotações destinadas ao romance, consta de "His- tórias e Sonhos", um conto bastante esquemático que podemos bem considerar uma sinopse do futuro livro (o título é o mesmo) e o próprio Lima Barreto irrompe sem disfarces, por um instante, nas últimas páginas de [saías Caminha, para anunciar: "Cinco capítulos da minha Clara estão na gaveta; o livro há de sair ... " Não cin- co, mas quatro capítulos correspondentes à primeira redação da obra completam a edição hoje corrente do seu Diário Intimo. Ao contrário de todos os outros romances, Clara dos Anjos não é dominado pelo tema do insulamento. Nele, as personagens agem, fazem agir as demais e modificam-se entre si. A ação cal- culada e malévola é mesmo o traço dominante de Cassi Jones, in- culto Don Juan dos subúrbios, destinado a infelicitar Clara dos Anjos. A constante que aqui vimos examinando, a ausência de correntes vitais entre as personagens, fechadas em si mesmas e des- confiadas da ação, subsistiria apenas na tendência (agora psicoló- gica e não mais existencial) de Clara dos Anjos a preservar o seu segredo, voltando-se, numa hora de desespero, para os astros, como Isaías Caminha se voltava para o mar: "ela apurava o ouvido e reforçava o seu poder de visão para ver se daquele mistério todo saía qualquer resposta sobre o seu destino"; 40 e no fato de Marra- maque, que procura interferir (tardiamente, aliás) no sentido de afastar de Clara o abominável Cassi Jones, ser assassinado por este. O castigo pela culpa de agir, reiterativo e nunca pessoal no Triste Fim de Policarpo Quaresma, teria aqui um instrumento individua- lizado. Refletir-se-ia ainda a inutilidade da ação na visita vã de Clara dos Anjos à família do amante. O seccionamento entre o in- divíduo e a sociedade ressurge no poeta e louco Leonardo Flores. Também merece atenção um pormenor: na galeria de personagens que animam os romances de Lima Barreto, é Cassi Jones, tipo grosseiro e embotado, que "não amava a ninguém e com ninguém 40 BARRETO, L. Clara dos Anjos. p. 150. INSULAMENTO E AÇÃO NOS SEUS ROMANCES 47 simpatizava", 41 único para quem agir (ação, bem entendido, de- gradada e predatória) é o aspecto dominante no seu modo de ser e o que o justifica como personagem. Mas resta ainda uma per- gunta a faz~r. Não amar a ninguém e com ninguém simpatizar não constituirá uma expressão - aguda, agressiva - de insulamento? Ignora-se a razão pela qual não conclui Lima Barreto o Ce- mitério dos Vivos, ambientado no Hospício Nacional de Alienados, onde começa a escrevê-1o. (A 10 de fevereiro de 1920, em carta a Francisco Schettino, chega a prometer o livro para o fim do mês.) Constituiria esse romance, segundo nos sugerem as páginas iniciais, compassivas e cheias de reflexões, um aprofundamento da corren- te esquiva que vimos rastreando? Ou uma ponte entre as obras mais antigas e Clara dos Anjos? Inclinamo-nos pela primeira hi- pótese. A reclusão no Hospício evoca no espírito do romancista um tema familiar e que o persegue, solerte: o do náufrago atirado em terra inóspita. Vai então engendrando, à medida que observa o ambiente e os companheiros de internamento, a história de um ho- mem ali recluso e que, não sendo realmente louco, transita entre loucos. Sendo impossível entender-se com eles, dedica-se, neste isolamento onde repercute, extremado, o de tantas personagens da sua ficção, a relatar, num tom meditativo e em que se sente o esfor- ço para decifrar o mistério das coisas, a "história de uma vida sa- cudida por angústias íntimas e dores silenciosas", 42 assim como as circunstâncias que o cercam enquanto escreve. Sofre, a persona- gem que lentamente se forma, leves influências das pessoas com quem convive, mas não chega a entender a mulher e nunca lhe faz confidências: "Dos meus planos de vida, dos meus projetos inte- lectuais, não lhe confidenciava palavra nem dos meus desânimos, nem dos meus desalentos." 43 Personagem ilhado e, portanto, ca- racterístico da ficção de Lima Barreto ("Encerrava-me em mim mesmo e sofria"), 44 exprime claramente, a certa altura, o conflito do seu criador (em nenhum outro momento, note-se, tão próximo da figura criada) entre a suspeita diante da ação - suspeita ori- ginada no esboroamento de um mundo não mais solidário _ e a decisão de agir, ação a que urge atribuir um valor. A ação, julga, desde que orientada para o Bem, "seria favorável à nossa reincor- poração no indistinto, no imperecível"; ao mesmo tempo, acredita que a imobilidade e a contemplação condicionariam o acesso a nos- 41 ·BARRETO, L. Op. cit., p. 44. 42 BARRETO, L. O Cemitério dos Vivos. p. 140. 43 Id., ibid., p. 164. 44 Id., ibid., p. 165.
  • 24. 48 CAPo 11 - LIMA BARRETO: O ROMANCISTA sa "desincorporação", alcançando assim um estado que receia no- mear sob pena de "limitar o ilimitado". "O sábio é não agir." 45 A conclusão, conquanto repugne o personagem-narrador (e também, decerto, seu modelo próximo, o autor), não é a primeira vez que surge, explícita, nesta obra romanesca. Nove anos antes, vinha à tona, na carta de Policarpo Quaresma à sua irmã, o mesmo grito submerso que o escritor, através de uma vida atuante, expressa na sua própria obra, inclusive nos romances, parece ter procurado abafar e exorcizar: "O melhor é não agir, Adelaide; e desde que o meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta possível, para que do fundo de mim mesmo ou do mistério das cousas não provoque a minha ação o apareci- mento de energias estranhas à minha vontade, que mais me façam sofrer e tirem o doce sabor de viver ... " 46 45 Id., ibid., p. 162. 46 BARRETO,L. Policarpo Quaresma. p. 197. CAPÍTULO III LIMA BARRETO: OS ROMANCES Projeções do tema do insulamento. - Deslocamento do eixo dos conflitos. - Tensão entre personagens e espaço. O leitor familiarizado com a imagem de um Lima Barreto es- critor político, afeito às assertivas corajosas, ligado aos homens, interessado em depor sobre o seu tempo e assumindo, em face da sociedade, uma posição atuante, inclinar-se-á, talvez, a recusar o vulto desvendado em parte pela nossa análise: mais que político, metafísico; trespassado de dúvidas; transitando no mundo como um estranho; e, principalmente, desconfiado da ação. Delineada, entretanto, essa outra face do escritor - estranha, talvez, aos seus próprios sistemas de pensamento 1 ou por estes re- primida -, eis que a sua obra, longe de empalidecer, adquire maior profundidade. Uma pintura onde a restauração, por trás dos ho- mens e mulheres até então isolados no primeiro plano, mostrasse- -nos a paisagem distante, com um lago ou um rio. Decorrência inevitável da desconfiança que cerca a ação nes- ses romances, singularizando-os (notadamente em [saías Caminha, Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá), e da mútua dissociação en- tre suas personagens, é a ausência de conflito dramático. Mesmo em Numa e a Ninja, onde se percebe com clareza a intenção de elaborar uma fábula mais enredada, dificilmente pode-se falar em conflito. 2 Não que faltem razões para isto: a ambição de Numa 1 O romance, "como toda arte, pretende ultrapassar os sistemas de pensa- mento e não segui-Ios". ROBBE-GRILLET,Alain. Pour un Nouveau Roman. p. 181. 2 A análise de um romance do século passado (de George Eliot, por exemplo, várias vezes citada com admiração pelo próprio Lima Barreto), atenta às mútuas pressões operadas pelas várias personagens, ressaltaria ainda mais o caráter singular da obra do escritor brasileiro. Em The Mill on the Floss (existe tradução portuguesa de Cabral do Nascimento - O Moinho à Beira do Rio) o velho Tulliver, pai das crianças Tom e Maggie, tem a mania das pendências. Disputando com o advogado Wakem, perde todos os bens. Reúne-se à família da Sra. Tulliver, os Dodson, para decidir minuciosamente a atitude a tomar, isto é, para decidir em que