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“E nem pensem em dizer-lhes que por vezes se sucedem cidades diferentes sobre
o mesmo chão e sob o mesmo nome, nascem e morrem sem se terem conhecido,
incomunicáveis entre si.” (CALVINO, 2002:33)
“Raramente o olho se detém sobre alguma coisa, e só quando a reconhece pelo
sinal de outra coisa: uma pegada na areia indica a passagem do tigre, um pântano
anuncia um veio de água, a flor do hibisco o fim do Inverno. (…) Finalmente a
viagem conduz à cidade de Tamara. Entra-se nela por ruas pejadas de letreiros
que sobressaem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de
coisas que significam outras coisas: a tenaz indica a casa do arranca-dentes, a
garrafa a taverna, a alabarda o corpo da guarda, a balança romana a ervanária.
(…) Outros sinais avisam do que num lugar é proibido (…) Da porta dos templos
vêem-se as estátuas dos deuses, representados cada um com os seus atributos
(…) Se um edifício não tiver nenhum letreiro ou figura, a sua própria forma e o
lugar que ocupa na ordem da cidade bastam para indicar a sua função (…) O olhar
percorre as ruas como páginas escritas: a cidade diz tudo o que devemos pensar,
faz-nos repetir o seu discurso, e enquanto julgamos visitar Tamara limitamo-nos a
registar os nomes com que ela se define a si mesma e todas as suas partes.
Como realmente é a cidade sob este denso invólucro de sinais, o que ela contém
ou oculta, o homem sai de Tamara sem tê-lo sabido. (CALVINO, 1972:17/18)”
para o final – cidade actual/cidade romana
“Assim o viajante ao chegar vê duas cidades: uma direita sobre o lago e uma
reflectida de pernas para o ar. (…) Os habitantes de Valdrada sabem que todos os
seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a sua imagem especular, a que
pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de
se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento. (…) O espelho
ora aumenta o valor às coisas, ora o nega. Nem tudo o que parece valer muito por
cima do espelho consegue resistir quando espelhado. (…) As duas Valdradas
vivem uma para a outra, olhando-se continuamente nos olhos, mas não se amam.
(CALVINO, 1972:55/56)”
“Marco Polo imaginava responder (ou Kublai imaginava a sua resposta) que quanto
mais se perdia em bairros desconhecidos de cidades longínquas, mais
compreendia as outras cidades que tinham atravessado para chegar até lá, e
voltava a percorrer as etapas das suas viagens, e aprendia a conhecer o porto de
que havia zarpado, e os lugares familiares da sua juventude, e os arredores da
casa, e uma praceta de Veneza onde corria em criança.
Nesta altura Kublai Kan interrompia-o ou imaginava interrompê-lo, ou Marco Polo
imaginava que era interrompido, com uma pergunta como: - Caminhas sempre de
cabeça virada para trás? - ou: - O que vês está sempre nas tuas costas? ou
melhor: - A tua viagem só se faz no passado?
Tudo para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava ou
imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que aquilo
que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se
tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na
sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário
realizado, digamos não o passado próximo a que cada dia que passa acrescenta
um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante
reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não
somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não
possuídos. (CALVINO, 1972:30)”
(...) cidade que quem a viu uma vez nunca mais pode esquecer. Mas não por ela
deixar como outras cidades memoráveis uma imagem fora do comum nas
recordações. Zora tem a propriedade de ficar na memória ponto por ponto, na
sucessão das ruas, e das casas ao longo das ruas, e das portas e das janelas das
casas, embora não apresentando nelas belezas ou raridades particulares. O seu
segredo é o modo como a vista percorre figuras que se sucedem como numa
partitura musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota. (...) Entre
todas as noções e todos os pontos do itinerário poderá estabelecer um nexo de
afinidades ou de contrastes que sirva de mnemónica, de referência instantânea
para a sua memória.(…) Mas foi inutilmente que parti em viagem para visitar a
cidade: obrigada a permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser
recordada, Zora estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a.
(CALVINO, 2002: 19/20)
O que torna Árgia diferente das outras cidades é que em vez de ar tem terra. As
ruas estão completamente cobertas de terra, as salas cheias de argila até ao
tecto, sobre as escadas assenta outra escada em negativo, por cima dos telhados
das casas pairam camadas de terreno rochoso como céus com nuvens.
(CALVINO, 1972:129)
O que distingue Argia das outras cidades é que no lugar do ar existe terra. As ruas são
completamente aterradas, os quartos são cheios de argila até o teto, sobre as escadas pousam
outras escadas em negativo, sobre os telhados das casas premem camadas de terreno rochoso
como céus enevoados. Não sabemos se os habitantes podem andar pela cidade alargando as
galerias das minhocas e as fendas em que se insinuam raízes: a umidade abate os corpos e tira toda
a sua força; convém permanecerem parados e deitados, de tão escuro. De Argia, daqui de cima, não
se vê nada; há quem diga: "Está lá em baixo" e é preciso acreditar; os lugares são desertos. À noite,
encostando o ouvido no solo, às vezes ouve-se uma porta que bate...

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  • 1. “E nem pensem em dizer-lhes que por vezes se sucedem cidades diferentes sobre o mesmo chão e sob o mesmo nome, nascem e morrem sem se terem conhecido, incomunicáveis entre si.” (CALVINO, 2002:33) “Raramente o olho se detém sobre alguma coisa, e só quando a reconhece pelo sinal de outra coisa: uma pegada na areia indica a passagem do tigre, um pântano anuncia um veio de água, a flor do hibisco o fim do Inverno. (…) Finalmente a viagem conduz à cidade de Tamara. Entra-se nela por ruas pejadas de letreiros que sobressaem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas: a tenaz indica a casa do arranca-dentes, a garrafa a taverna, a alabarda o corpo da guarda, a balança romana a ervanária. (…) Outros sinais avisam do que num lugar é proibido (…) Da porta dos templos vêem-se as estátuas dos deuses, representados cada um com os seus atributos (…) Se um edifício não tiver nenhum letreiro ou figura, a sua própria forma e o lugar que ocupa na ordem da cidade bastam para indicar a sua função (…) O olhar percorre as ruas como páginas escritas: a cidade diz tudo o que devemos pensar, faz-nos repetir o seu discurso, e enquanto julgamos visitar Tamara limitamo-nos a registar os nomes com que ela se define a si mesma e todas as suas partes. Como realmente é a cidade sob este denso invólucro de sinais, o que ela contém ou oculta, o homem sai de Tamara sem tê-lo sabido. (CALVINO, 1972:17/18)” para o final – cidade actual/cidade romana “Assim o viajante ao chegar vê duas cidades: uma direita sobre o lago e uma reflectida de pernas para o ar. (…) Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a sua imagem especular, a que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento. (…) O espelho ora aumenta o valor às coisas, ora o nega. Nem tudo o que parece valer muito por cima do espelho consegue resistir quando espelhado. (…) As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se continuamente nos olhos, mas não se amam. (CALVINO, 1972:55/56)” “Marco Polo imaginava responder (ou Kublai imaginava a sua resposta) que quanto mais se perdia em bairros desconhecidos de cidades longínquas, mais
  • 2. compreendia as outras cidades que tinham atravessado para chegar até lá, e voltava a percorrer as etapas das suas viagens, e aprendia a conhecer o porto de que havia zarpado, e os lugares familiares da sua juventude, e os arredores da casa, e uma praceta de Veneza onde corria em criança. Nesta altura Kublai Kan interrompia-o ou imaginava interrompê-lo, ou Marco Polo imaginava que era interrompido, com uma pergunta como: - Caminhas sempre de cabeça virada para trás? - ou: - O que vês está sempre nas tuas costas? ou melhor: - A tua viagem só se faz no passado? Tudo para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava ou imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que aquilo que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, digamos não o passado próximo a que cada dia que passa acrescenta um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos. (CALVINO, 1972:30)” (...) cidade que quem a viu uma vez nunca mais pode esquecer. Mas não por ela deixar como outras cidades memoráveis uma imagem fora do comum nas recordações. Zora tem a propriedade de ficar na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas, e das casas ao longo das ruas, e das portas e das janelas das casas, embora não apresentando nelas belezas ou raridades particulares. O seu segredo é o modo como a vista percorre figuras que se sucedem como numa partitura musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota. (...) Entre todas as noções e todos os pontos do itinerário poderá estabelecer um nexo de afinidades ou de contrastes que sirva de mnemónica, de referência instantânea para a sua memória.(…) Mas foi inutilmente que parti em viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, Zora estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a. (CALVINO, 2002: 19/20) O que torna Árgia diferente das outras cidades é que em vez de ar tem terra. As ruas estão completamente cobertas de terra, as salas cheias de argila até ao tecto, sobre as escadas assenta outra escada em negativo, por cima dos telhados das casas pairam camadas de terreno rochoso como céus com nuvens.
  • 3. (CALVINO, 1972:129) O que distingue Argia das outras cidades é que no lugar do ar existe terra. As ruas são completamente aterradas, os quartos são cheios de argila até o teto, sobre as escadas pousam outras escadas em negativo, sobre os telhados das casas premem camadas de terreno rochoso como céus enevoados. Não sabemos se os habitantes podem andar pela cidade alargando as galerias das minhocas e as fendas em que se insinuam raízes: a umidade abate os corpos e tira toda a sua força; convém permanecerem parados e deitados, de tão escuro. De Argia, daqui de cima, não se vê nada; há quem diga: "Está lá em baixo" e é preciso acreditar; os lugares são desertos. À noite, encostando o ouvido no solo, às vezes ouve-se uma porta que bate...