1) O escritor Reni Adriano, vencedor do Prêmio Minas Gerais de Literatura na categoria ficção com o livro Lugar, defende a experimentação linguística e um espaço para novas vozes e estilos literários.
2) Seu livro Lugar é definido por ele como uma "relação minha com o livro" que brinca com a condição da palavra como suporte da realidade através de um "curto-circuito".
3) Reni Adriano cita a influência do escritor chileno José Donoso e das poetas H
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Entrevista Estado de Minas
1. ESTADO DE MINAS//PENSAR
6. S Á B A D O , 6 D E M A R Ç O D E 2 0 1 0
ENTREVISTA/RENI ADRIANO
GANHADOR DO PRÊMIO MINAS GERAIS DE LITERATURA NA CATEGORIA FICÇÃO COM O
LIVRO LUGAR, O ESCRITOR RENI ADRIANO DEFENDE ESPAÇO PARA NOVAS VOZES E ESTILOS
CAMINHO
INTERIOR MARIA TEREZA CORREIA/EM/D.A PRESS - 8/7/09
Mineiro de Santa Luzia, criado na zo- do por tudo isso, por que eu haveria
de responder literariamente com
na rural de Raul Soares, Reni Adriano uma linguagem típica da metrópole?
vive em São Paulo desde os 9 anos. Para na verdade reproduzi-la enquan-
to penso que a estou negando? Se a
Graduado em filosofia pela USP, no linguagem não for deslocada do obje-
to em que ela normalmente se reco-
ano passado ele foi o vencedor, na ca- nhece, ela fracassa como crítica ou
tegoria ficção, do Prêmio Minas Ge- proposição de realidades novas. E,
quando fujo do ambiente urbano,
rais de Literatura, da Secretaria de Es- não é em favor do âmbito rural. Va-
lho-me de um e de outro para, na
tado da Cultura, com o romance Lu- busca daquele substrato, flertar com
gar. O livro, que acaba de sair pela Edi- um universo na verdade mítico, fun-
dador de ambas as formas culturais.
tora Tinta Negra, do Rio de Janeiro, É nessa hora que descubro que sou
bem menos aculturado do que eu
marca a estreia do escritor de 28 anos pensava. E se não trouxesse em mim
na literatura. Antes, havia publicado tanto a metrópole como o “rincão”,
não seria desse modo meu trabalho
alguns contos em alguns jornais, an- com a palavra.
tologias e revistas eletrônicas. “Ter re- Você disse que o chileno José Donoso, com
cebido o prêmio, do ponto de vista li- o romance O obsceno pássaro da noite, te-
ve grande influência na sua escrita. Que
terário, significou também a minha li- outros autores estão presentes em sua me-
E
mória literária?
bertação, pois, sendo a minha escrita De influência consciente, só posso ci-
diferente de tudo que a minha gera- tar Donoso. Me lembro exatamente
do dia em que, relendo O obsceno
ção anda fazendo por aí, achei que po- pássaro da noite, eu, ainda um mole-
que, chorava doidamente e me dizia:
dia não haver espaço para mim”, dis- “Por que eu não escrevi este livro?”.
se o escritor, em conversa com Carlos Até então, eu estava tentando imitar
Caio Fernando Abreu, que venerava.
Herculano Lopes. Depois desse dia, me descobri desam-
parado, entendi o que queria dizer a
xperimentação linguística, prosa poéti- busca de uma voz própria. E eu que-
ca, uma sombra de surrealismo. Como ria ter minha voz própria, mas la-
você define Lugar, se é que um livro po- mentava não ser José Donoso – que,
de ser definido? aliás, nunca ousei imitar, nem como
exercício. Em relação a Donoso, sem-
“
Para mim, este livro se define pelo
próprio título. Reconheço sob a defi- pre me limitei a bater cabeça e adorar.
nição de Lugar isso que o livro é. Con- Creio que foi a partir daí que me tor-
tudo, não ajuda muito. É uma relação Somente numa cidade grande uma nei insuportavelmente solitário, ten-
tando descobrir minha própria escri-
minha com o livro e não vale para me
posicionar publicamente sobre ele. Is- pessoa refere-se a si mesma como eu com ta. Quem também me marcou mui-
so é muito difícil. Mas vou tentar. Ex- to, sem me esquecer de Clarice Lis-
perimentação linguística é a palavra tanta certeza, mesmo desconfiando de pector, foi Hilda Hilst, a poeta que
de ordem para mim, quando me pro- mais admiro. Quando li Alcoólicas, fi-
ponho a escrever. Se o texto não põe que não sabemos quem somos” quei muito comovido e só sosseguei
em risco a relação com a palavra, é depois de decorar O livro do desejo
porque não precisa ser escrito. Lugar inteiro, e grande parte de Cantares. Eu
é, como eu o assimilo, um romance em que as persona- que conheci. E mais: transitando por regiões mais remo- declamava Hilda diariamente, para mim mesmo e para
gens são, na verdade, a própria linguagem voltando-se tas, percebemos que o Brasil se constitui de tempos histó- os amigos, nas ruas, nos bares, nas festas, nos ônibus. Che-
contra si mesma e atentando contra a sua própria condi- ricos distintos, mas simultâneos. O arcaico e o pós-mo- guei a escrever uma carta para ela, mas não tive coragem
ção de suporte da realidade. Por isso, a palavra é terra, é derno convivem mesmo nas grandes cidades brasileiras, de enviar. Quando ela morreu, fiquei com remorso, pois
cobra, é carne e os corpos e as relações vão se atrofiando mas nas zonas afastadas experimentamos melhor o as- sabia que ela ansiava por leitores.
num não dizer insuportável. Assim é que se revela este pecto “primitivo” da nossa cultura. E esse “primitivismo”
outro dado que parece flertar com o surrealismo, mas não nada tem que ver com a diferenciação entre a cultura eru- Fazendo uma visita ao seu blog (reniadriano.blogspot.com)
é. Em vez de propor, por exemplo, pelo recurso imagéti- dita e a popular, por exemplo. Nem se trata de desquali- me deparei com uma frase na qual você diz que, “ se Lugar é
co, uma passagem fantástica, onírica,o que poderia ser ficar o brasileiro do campo. Me refiro a qualquer coisa de estranho, o próximo livro será estranhíssimo”. Que estranha-
fantástico é, na verdade, um curto-circuito nesse suporte originário, a um âmbito que resguarda a profundidade do mento é esse?
de realidade, que é a palavra – e as bestialidades por aí en- que somos. Nesses rincões brasileiros, parece que o mun- Na verdade, eu disse isso em resposta a uma pergunta de
trevistas apontam para o retorno a um tipo de caos. Eu do ainda não foi inventado, tudo está sendo criado, cada muita má-fé que me foi feita por um jornalista. Eu que-
acho Lugar um livro absurdo, porque parece negar obsti- palavra que se pronuncia é um espanto diante do mundo. ria só ser malcriado mesmo, embora com propriedade,
nadamente o poder de representação da palavra. É um jeito muito autêntico, aliás, de viver a nossa cultura, acho. O próximo livro está em gestação, ainda não encon-
pois sabemos que o Brasil ainda não foi inventado; trava- trei a forma, e o argumento ainda está um tanto obscuro.
Mas nele existe a herança da oralidade, que permite essa sensa- mos ainda lutas terríveis na busca de uma resposta para O que posso dizer é que será um romance sobre o perdão.
ção concreta da palavra, não acha? o que, afinal de contas, somos. As grandes cidades, de or- O ambiente tem qualquer coisa de aldeia, mas aldeia mes-
É um dizer que jamais define a coisa apontada, é um no- dinário, nos levam ao esquecimento disso. A nossa lin- mo, não aquela geografia impossível de Lugar. E continua
mear que, quando nomeia, na verdade es- guagem é múltipla e continua se inven- aquela obstinação em romper com a representação da pa-
tá perguntando como se chama. Sem fa- tando diariamente em diferentes localida- lavra, mas agora de forma muito mais consciente e bem
lar na diferença do próprio sujeito: so- des do nosso território, todos sabemos menos exagerada. Com Lugar eu almejava o paroxismo
“
mente numa cidade grande uma pessoa disso. Então, não faz sentido padronizar a do meu próprio projeto literário, como que para colocar
refere-se a si mesma como eu com tanta língua, viciar a escrita com uma pretensa à prova o próprio projeto, ver se eu era mesmo capaz de
certeza, mesmo desconfiando de que não supremacia da dicção urbana. sustentá-lo. Mas, será, sim, “estranhíssimo”, o próximo li-
sabemos quem somos – a linguagem aí vro, porque irei insistir, obstinadamente, na singularida-
permite esse tipo de cinismo. Quem vive Nesse sentido, como a sua vivência no campo, de. A narrativa será mais dilatada, quase preguiçosa, e pe-
a cultura oral não pode fazer isso, porque durante a infância, influenciou sua linguagem? lo gosto mesmo de narrar. A palavra, que também se pre-
é detentor de uma linguagem que duvi- Não se trata Na medida que me torna consciente des- tende a protagonista do livro, intimamente ligada aos cor-
da da representação e, portando, o sujei- se aspecto múltiplo, sobre o qual falei. Mi- pos e gestos das personagens, será mais letárgica, e bem
to só se reconhece , não quando fala de si de desqualificar nhas personagens não falam como o ho- menos dependente do dizer das próprias personagens.
mesmo, mas quando age. mem do campo, nem pretendo que o es- Estou me esforçando para encontrar um tom mais farses-
o brasileiro paço em que se passa a história seja Minas co, chistoso, e para isso tenho meditado em elementos
Na contramão da literatura atual, de tendên- Gerais, não é isso. Procurei tão somente circenses e teatrais.
cia mais urbana, você escreveu uma história do campo. me valer de uma linguagem que, uma vez
passada nos rincões. Como ela surgiu, partiu experimentando o pensamento erudito e Sendo um autor jovem, o que significou para você ganhar o Prê-
de fatos reais? O fato de ter nascido em San- Me refiro a mesmo o dia a dia associado aos grandes mio Minas Gerais de Literatura?
ta Luzia influenciou? centros urbanos, me pareceu infinita- Minha escrita é muito diferente do que a minha gera-
De Santa Luzia eu não tenho lembranças. qualquer coisa mente mais rica – e precisamente porque ção anda fazendo, então eu pensava que podia não ha-
Ou, talvez, a de um gato me arranhando posta em confronto com a linguagem ur- ver espaço para mim. Inclusive não tinha vontade de
no quintal, quando eu nem falava direito. de originário, a bana, que não pretendo desqualificar, pois publicar livros. Mas, quando escrevi Lugar, pensei: “Di-
Fui criado na zona rural de Raul Soares, na eu jamais poderia abordar os rincões co- ferente ou não, vou responder por isso! Estou pronto
Zona da Mata, até os 9 anos, quando vim um âmbito que mo abordo, se não tivesse a linguagem ur- para fazê-lo”. Ganhar o prêmio, que tinha um júri for-
definitivamente para São Paulo. Me sur- bana e o conhecimento formal. Sou um tíssimo (Cristóvão Tezza, Marcelino Freire e Luiz Ruffa-
preendi quando, adulto, me dei conta de resguarda a rapaz urbano, sujeito às tendências da tí- to), me mostrou que havia espaço, sim, para o meu tra-
que tudo o que precisava para escrever pica vida paulistana: a efervescência cul- balho. Então, assumi de vez a publicação da minha pro-
estava depositado nas lembranças de Mi- profundidade tural vertiginosa, as baladas, a violência sa e até blog estou fazendo. Mas o desafio de escrever
nas: as coisas que vivi aí, as histórias que gratuita, a diversidade, o estresse, a soli- continua sendo o mesmo. Sigo obstinado, buscando a
ouvi e os tipos singularíssimos da região, do que somos” dão, os desencontros. Mas, uma vez afeta- forma para o próximo livro.