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O MOSAICO
DOS RAROS
Contos da Literatura
Jovem do Amapá

ORGANIZAÇÃO: MARVIN CROSS
O MOSAICO DOS
RAROS
Organização: Marvin Cross

MACAPÁ-AP/ FEVEREIRO, 2014
Com

Tiago Quingosta
Marvin Cross
Prsni Nascimento
MK Santos
Rodrigo Mergulhão
Genniffer Moreira
Samila Lages
Lara Utzig
Rodrigo Ferreira
ENTENDENDO O MOSAICO DOS RAROS
Um mosaico pode ser definido como várias peças unidas, que podem
ser de diferentes materiais (pedras, plástico, papel etc.), a fim de formar um
todo, uma figura, caracterizando-se, portanto, como uma obra mosaica. São
diferentes pedaços que vão se embutindo uns aos outros a fim de formarem
algo único.
Este livro é um mosaico. Sua proposta foi de abordar as diferentes
expressões artísticas para servirem de pano de fundo a cada história aqui
contada. Muitas dessas artes são mais do que pano de fundo, mas
componentes cruciais nos contos reunidos neste e-book organizado por
mim e com participação ilustre de escritores jovens da seara literária que
vem explodindo no Amapá.
É um mosaico de textos raros, feitos sob encomenda (literalmente!!),
obedecendo a um desafio proposto que consistia em cada autor ficar
encarregado de uma arte específica, como o conto intrigante de MK Santos,
que trata da arte arquitetônica, ou a surreal narrativa de Rodrigo
Mergulhão, incumbido de elaborar um conto com o tema “Cinema”. Nas
próximas páginas, você está convidado a se divertir, se emocionar, refletir e
até mesmo se arrepiar com as obras carinhosamente preparadas para seu
precioso momento de leitura. Ficamos honrados em contribuir com isso,
muito mais se você curtir nossos textos e recomendar a seus amigos que
façam o download deste material.

Um grande abraço e boa leitura!!
Marvin Cross,
Organizador da coletânea e um dos contistas
FOTOGRAFIA

Conto: Sobre Gavetas (por Tiago Quingosta)
Hoje é um dia especial. Não era essa a palavra que deveria
ter empregado... Hoje é um dia “peculiar” soaria melhor, soaria
menos festivo. Dia de abrir aquela velha gaveta, cheia de
fotografias e recordações. Uma gaveta empoeirada, mas que nem
por isso perde o seu valor. Ela está empoeirada porque precisa
estar incólume, longe da intervenção humana para conservar...
Frágeis recordações. Se eu fosse uma gaveta me sentiria honrada
em proteger tantas memórias, algumas felizes, algumas tristes,
mas memórias, frutos de vidas vividas... Ou traços de vidas perdi-das...

Eu também tenho minhas gavetas na memória, recordações
que ecoam e que sempre pedem para serem revisitadas. Embora
as gavetas encontrem-se abarrotadas de lembranças alegres, há
tantas tristezas quanto neurônios em mim, embora não saiba
quantos neurônios eu possua. No entanto, de uma coisa tenho
certeza, aquelas fotografias guardadas lá embaixo são uma
tentativa de estender emoções, esticá-las e tentar voltar; ocorre
que a vida não volta. Eu, pelo menos, nunca vi uma rosa velha
voltar ao esplendor dos seus nove meses. Existem conservantes e
não milagres para as rosas, assim como para nós.
Pois bem, porque hoje é hoje, decidi abrir aquela gaveta
que fica dentro de uma antiga câmara escura na qual revelávamos
nossas fotografias. Atualmente não passa de um depósito, cuja
porta está coberta de rosas, bem na parte de trás do meu jardim,
este último mais parece um labirinto de tanto que os teixos e
arbustos cresceram pela propriedade.

Andei diante dos Hibiscos, Cravos, Orquídeas, Rosas,
Girassóis, Azaleias, e quase esqueci qual o meu objetivo. Como o
jardim destoa da casa! A casa é tão monocromática, fria, grande,
escura. Pergunto-me qual o porquê de continuar aqui. O jardim
Dela deve ser a razão, o refúgio que procuramos. Não sei o que
me espera em outros lugares, por isso a isolação. Isolação irmã da
solidão.

Eu já tive muitos amigos, todavia, depois do que houve,
decidi que evitar pessoas evitaria, por sua vez, lembranças
desagradáveis, obviamente a minha doença piorou. Descobri que
para essa tristeza ainda não há cura.

Talvez eu cultive agora mais lembranças do que flores. E
lembranças consomem a maior parte da minha energia mental.

Faz um tempinho que ela se foi, foi morar com Deus, a
minha filha... Meu casamento já estava fadado ao fracasso mesmo
antes, então eu saberia que acabaria só. Nunca imaginei que
naquele jardim, havia uma parte que estava morrendo, um solo
limoso e desprovido de luz tomava conta, e plantas estranhas
iriam aparecer, elas insistem em brotar até agora, como a
Beladona e seus doces, negros e Mortais frutos.

Procurei ocupar-me... Decidi que iria arrumar toda aquela
bagunça do depósito, pois tempo tinha de sobra, tempo é tudo o
que eu tenho agora... Porque o resto da minha família mora
longe... E apenas uma vez ao ano vem me visitar. Encontrei
aquela nossa velha Polaroid ― que eu nunca gostei muito de
usar―, algumas pelúcias e outras coisas. Depois que tudo ficou
limpo, sentei-me no tapete, agora limpo, e trouxe a gavetinha para
perto. Nem me interessei pelo móvel, eu precisava da gaveta.

Passei a olhar os nossos álbuns de fotografias, um a um,
chorei, parei de olhar, voltei a olhar, sorri, passei os dedos sobre
as fotos para tentar sentir os momentos, sentir o toque das tuas
mãozinhas, minha filha... Fotos têm esse poder sobre mim, mais
do que poesias, mais do que canções, fotos são minha metonímia
real, minha certeza de que estou viva.

Como num passe de mágica, um pequenino raio de sol
atravessou o jardim e invadiu o depósito em direção ao móvel da
gavetinha. Foi quando notei que havia um papel dobrado, bem no
seu fundo, no local de onde tirei a gaveta...
T E A T R O

Conto: Carmem e a chuva (por Marvin Cross)
Os últimos raios de sol se delineavam no céu, apesar de ainda ser
pouco mais de duas da tarde. No entanto, já se aguardava a chuva
que desde cedo se insinuava. O último botão da camisa foi
abotoado, o último fio de cabelo foi penteado e algumas gotas de
perfume foram salpicadas nos pulsos e pescoço. Ele ainda se
lembrava do perfume favorito dela.

Josué nunca se reconhecera tão ávido por um encontro. Ou,
naquele caso em particular, um reencontro. Após tantos anos de
saudade e espera, agarrado a uma promessa que nem mesmo fora
feita, mas que em seu coração ele sentia como quem está ciente da
respiração. Embora tingido de um cinza deprimente, o céu parecia
estar etiquetado com o nome dela: Carmem.

Josué já não era mais aquele adolescente sonhador dos tempos em
que foi colega de Carmem na oficina de teatro de Horácio
Padilha, o saudoso mestre das artes cênicas falecido há dezessete
meses. Batendo à porta dos trinta, Josué sabia que aquele
reencontro com Carmem tinha tudo para dar errado: ela deixara a
cidade em busca de ventos novos, aprimorar-se na arte dramática,
aplicar-se com esmero e total entrega ao sonho de ser uma atriz
além da extensão daquela pequena cidade. Josué continuara ali,
alimentando a ambição e o sonho de também ser um grande ator e
pisar em grades palcos, entreter numerosas plateias. Mas seu
grande erro foi justamente ter continuado ali.

Então, muitos anos depois do último (e também primeiro) beijo
entre eles, eis que Carmem pareceu ressurgir, como quem aparece
de um desses sonhos que se tem por muitas e muitas noites, como
se esses sonhos tivessem sido meros prenúncios de um retorno.
Ela resolveu que era hora de fazer uma visita, pôr os pés naquele
lugar onde seu sonho nasceu e deu os primeiros passos. Josué foi
a única pessoa com quem ela marcou uma espécie de encontro.
Ela chegou primeiro ao Café Primavera. Escolheu uma mesa ao ar
livre, numa área coberta por um toldo, para poder fumar à
vontade. Acompanhou o exato momento em que Josué apareceu.
Empertigou-se um pouco à frente e seu rosto desenhou um misto
de alegria com saudade. Os olhos de Josué a fulminaram com
uma grata satisfação. Inesquecível amor adolescente.
O pobre Josué estava um tanto molhado, pois a chuva começou a
desabar num ímpeto por volta de uns vinte passos antes do Café.
Carmem e chuva: uma perfeita combinação para as costumeiras
tardes de tédio daquela cidade. Era bom se ver livre das tardes
costumeiras, pensou aquele jovem homem, de certa forma
ancorado num turbilhão de expectativas.
— Tu estás mais magro— avaliou Carmem, com uma certa
dificuldade para encontrar a primeira coisa a dizer.
Josué riu sem jeito, gaguejando sutilmente ao tentar explicar que
andava tendo uma rotina puxada por conta do teatro.
— E tu agora fumas— observou ele, talvez também com
dificuldade em dizer algo.

O (re)encontro foi regado a muita conversa sobre o que aconteceu
no hiato de treze anos. Josué se sentiu desprezível diante das
narrativas inacabáveis de Carmem, claramente alguém com muito
mais coisas para contar do que ele. Carmem simplesmente
desistira do teatro. Para ele, aquilo era mais que absurdo!! Mas
tudo bem, afinal, ela ainda era Carmem. A inolvidável e marcante
Carmem. Ela prosseguiu relatando sua frustração com a carreira
de atriz, depois de meia dúzia de espetáculos encenados na
capital, de como os produtores de seu grupo teatral a exploravam
e cobravam tanto dela, e de como, paralelo a tudo isso, ela tomou
interesse por outras áreas, indo parar, inclusive, na faculdade de
Agronomia. Josué nem tinha uma ideia clara do que fazia um
agrônomo.
Carmem se casou duas vezes nos últimos treze anos, sofreu dois
abortos espontâneos, foi abandonada pelo último marido e assim
começou a fumar. Ela, realmente, não lembrava tanto aquela
garota de faces arredondadas e um sorriso que, ao se abrir, parecia
desvelar um roseiral sob o sol crepuscular. Carmem retornou com
a bagagem cheia de histórias e desilusões, como roupas
amarrotadas numa trouxa para lavar.

Josué se sentia falando com outra pessoa. A Carmem de
antigamente teria comentado algo sobre seu perfume no exato
segundo em que ele a cumprimentou. Enquanto ela falava, Josué
podia ver resquícios de seu antigo amor na maneira como ela
mexia a boca ou coçava o nariz e até mesmo em como entortava a
cabeça quando exclamava admiração. E isso era mais que bastava
para sustentar sua paixão ainda pungente.

A chuva que começou caindo pesada, como um golpe desferido
de uma só vez, permanecia assim. A área em que estavam, mesmo
coberta por toldo, já começava a ficar incômoda por conta dos
respingos de chuva, ameaçando inundar o chão. Josué bebia
chocolate quente numa caneca amarela com o desenho de um
ramalhete de flores variadas, muito simpática, com a logo do Café
Primavera aparentemente pintada à mão.
— Eu tinha me esquecido completamente de como é o inverno
aqui— revelou Carmem, tateando na bolsa em busca de mais um
cigarro.
— Trouxeste a chuva.
Ela esboçou a reação de não ter entendido.
— É a primeira chuva do inverno desse ano. E foste tu que
trouxeste.
— Continuas bobo, Josué— sorriu ela, visivelmente tímida.
Ficaram em silêncio por um tempo, apreciando a água abençoada
que ensopava a cidade. Carmem pegou o cigarro na bolsa, mas a
quietude da contemplação a deteve. Josué observava a chuva, mas
seus olhos inconstantes volta e meia grudavam em Carmem. Ela
parecia estar absorta em algum tipo de lembrança, como que
revivendo os áureos tempos em que tudo que ela queria era
representar uma personagem, experimentar novos figurinos e
passear por diferentes cenários. Josué ainda nem tinha lhe contado
sobre o que ele estivera fazendo naquele lugar ao longo dos
últimos treze anos. A bem da verdade, esperou que ela esquecesse
e nem lhe indagasse. Até hoje Josué se mantinha no mesmo grupo
de teatro em que ele e Carmem iniciaram nas artes cênicas. Após
a morte do mestre Horácio, Josué passara a ser um tutor para os
novatos e para os que nele viam um líder. Não ganhava muito
dinheiro com isso, mas sobrevivia. Não cursou faculdade e só saiu
da cidade duas vezes, sendo apenas uma delas para a capital. Sua
história não tinha glamour, nem grandes mudanças de hábitos,
como passar a fumar. Não se casara, não tivera filhos. Houve uma
ou duas namoradas com quem não pôde continuar a ficar, por
circunstâncias comuns da vida. Uma destas circunstâncias: seu
amor que nunca morrera por Carmem, alguém por quem ele
sempre nutriu um sentimento gigante no peito, mas que na
realidade o que houve entre eles nunca passou de uma amizade na
qual trocaram um único beijo.
— Tu achas que podes me perdoar, Josué?
Ela o arrebatou dos pensamentos repentinamente, deixando-o
intrigado com tal pergunta.
— Não entendi, Carmem.
— Todo esse tempo eu estive rodando por esse mundo,
vagueando de lá pra cá, tentando me encontrar e me estabelecer.
Enquanto tu ficaste aqui, me esperando. Tu guardaste o maior
sentimento do teu coração todo para uma pessoa que foi pro
mundo viver aventuras e dar murro em ponta de faca. Tu ficaste
na tua pureza, acreditando que cada dia que passava era apenas o
tempo fazendo com que se aproximasse o dia de nos
reencontrarmos.
Josué tinha o olhar fixo em Carmem, que se punha a tagarelar
ainda contemplando a chuva. Como ela poderia saber de tudo
aquilo? Como ela podia estar falando aquelas coisas tão exatas,
sensatas?
— Eu fui embora deixando para trás um coração iluminado de
esperança, Josué. O teu coração. Eu sabia que tu me amavas, mas
o teu amor era tão absurdamente superior à minha amizade por ti,
que eu tive vergonha da minha existência. Eu não podia mais
continuar aqui, onde eu ia sofrer as consequências por não poder
corresponder a um amor tão forte e generoso como o teu. Tu
achas que podes me perdoar?
Josué recostou-se em sua cadeira, petrificado. Por dentro, sentiuse encolher. A cada segundo, sentia-se ficando cada vez menor.
— Estás me dizendo que meu amor foi a causa de tua partida?
Ela não esboçou resposta nem mesmo no olhar, perdido na chuva.
Josué esperou uma resposta, mas tudo havia sido dito com
extrema clareza.
— Nesse caso, não deveria ser eu a te pedir perdão?— ele tentou
manter o contato.
— Amar não é erro que careça perdão. Fugir de ser amado, isso
sim, é punível. Correr com o coração apertado de dor por não ser
digno de retribuir amor, isso é abominável.
— Mas éramos jovens, Carmem. Mesmo que não me amasses,
um dia o tempo haveria de me curar a dor e eu teria superado,
pois assim é com todos os que amam e fracassam. A crueldade
nos castiga a ponto de se transformar em experiência, uma ponte
para a maturidade.
Ela sorriu. Mas era um sorriso frio, irônico. De alguma forma, ela
parecia carregar uma culpa insustentável.
— Se fazes tanta questão, então te perdoo, Carmem. Nem tenho
por que não fazê-lo. Só me importa que sejas feliz.
Enfim, ela voltou-se a ele. Encarou-o com toda a ternura que
pôde, expressando um semblante aliviado. Josué lhe sorriu e
tocou sua mão sobre a mesa. A atmosfera daquela ocasião em que
se beijaram uma única vez pousou sobre os ombros do moço.
Entretanto, somente ele sentira.
O encontro acabou. Não houve beijo. Ela não o amava, apenas
sentiu que devia a ele algum tipo de satisfação.

Semanas depois, a fatídica carta chegou para Josué. Essa parte foi
deixada de lado no reencontro em que tiveram, mas Carmem
estava com uma doença incurável, lutando há tempos, até que
desistira e, lembrando-se do tempo de vida estimado pelo médico,
deixou passar alguns meses e então foi até sua cidade natal
resolver aquela que considerou a pendência mais imperdoável de
sua existência. Com o perdão de Josué, agora a morte até lhe
parecia mais amena. Tinha medo de ser enterrada com qualquer
dívida com o mundo, especialmente com alguém que, de tanto
amor que exalava de si, lhe deu a melhor adolescência que
alguém poderia querer. Encenaram tantos espetáculos juntos,
foram tantos ensaios divertidos, broncas do mestre Horácio,
broncas de um para o outro, excursões para se apresentar em
festivais de teatro, cumplicidade, confidências, lágrimas e muitos
risos. Viveram como namorados, ainda que rodeados pela
ausência de evidências que marcam um casal. Mas a ligação que
tiveram, essa poderia causar inveja a um sem-número de casais.

Chovia torrencialmente no dia em que Carmem desceu à
sepultura. Josué foi o único, durante o enterro, que não se abrigou
da chuva, pois para ele a chuva era como um carinho espevitado
daquela Carmem de treze anos atrás. E se deixara tocar sem
qualquer pudor pela água que banhava sua face e fazia as roupas
lhe grudarem à pele.
Só me importa que sejas feliz.
D E S E N H O

Conto: Tagore (por Prsni Nascimento)
Numa pequena cidade da Índia havia um jovem chamado Tagore,
que amava desenhar e seu grande sonho de infância era ser
reconhecido como um grande desenhista pelo Príncipe Arjuna.
Chegar perto do príncipe nunca foi fácil, pois o príncipe Arjuna
vivia sempre cercado por muitas pessoas e asseclas. Além de
popular, era realmente muito dedicado ao reino, e apesar das
várias tentativas Tagore nunca conseguiu realizar tal sonho.
O rapaz sempre teve no príncipe um exemplo de bom homem,
que de certa forma relembrava seu pai, de quem tinha imensa
saudade. Seu pai fora assassinado de forma misteriosa. Passados
alguns anos sua mãe casou-se novamente, desta vez com um
homem que havia trabalhado com o seu pai; também parecia ao
jovem que eles foram amigos, lembrava-se de vê-los sempre
juntos quando criança. Logo depois do casamento ele foi morar
com eles, com a convivência passou a tratar muito mal o menino,
o que lhe provocou sérios problemas, traumas e medos. Tagore
sofreu muito nas mãos do seu padrasto, que batia nele por
qualquer coisa. Sua mãe, submissa, fingia que nada acontecia,
Tagore parou seus estudos desde que seu pai foi assassinado, no
entanto continuamente estava lendo algum livro ou desenhando.
Tagore nunca soube quem fora o assassino de seu pai, até que um
dia achou uma carta de seu pai dizendo que traiu o reino por que
queria muito dinheiro e acabou negociando uma mercadoria
muito importante do príncipe Arjuna com o reino inimigo. O
príncipe descobriu e muito furioso estava à sua procura. Surpreso,
Tagore não entendia o que havia acontecido no passado, sabia que
o pai trabalhava com o príncipe e que eram grandes amigos. A
carta deixou estranhas dúvidas em sua mente: seria o príncipe o
assassino de seu pai?
Decidido a investigar a morte de seu pai, Tagore fugiu em direção
ao castelo de Jaipur, morada do príncipe Arjuna. Apesar das
evidências da carta, no íntimo do seu coração nutria a esperança
de que o príncipe não fosse o autor da morte de seu pai, mas
precisava descobrir a verdade. Por sua mente passava a memória
de sua infância, as longas conversas de seu pai com o príncipe, o
sorriso dele ao chegar do trabalho e abraçar sua mãe e o aperto
forte de suas mãos.
Durante a viagem passou a desenhar tudo que via, os traços das
árvores, o voo dos passaros, o sorriso das crianças brincando, o
sobe e desce das montanhas, ao longe alguns devotos dançando
na frente de um templo. Ao cair da primeira noite passou por um
vilarejo e resolveu dormir na copa de uma árvore, acordou
assustado com uma criança lhe observando. Ela lhe ofereceu
comida, ele agradeceu e seguiu viagem. No segundo dia
caminhando conheceu Sawai, um homem que levava encomendas
para a cidade de Jaipur numa carroça, e ofereceu-lhe uma carona
até a cidade.
Já nas proximidades da cidade, Sawai disse que passariam pelo
rio das lamentações de barco para poder levar as encomendas e
convidou-o:
―Tome cuidado na travessia, jovem Tagore, porque diz a lenda
que quem passar pelo rio tem seus segredos do passado revelados.
Tagore aceitou atravessar o rio com Sawai. Na travessia Tagore
teve uma visão, sentiu uma tonteira tomar contar do seu corpo,
olhou pro rio e viu as águas turvas diante de si. Do meio daquelas
águas surgiu uma imagem, nela viu nitidamente seu padrasto
lutando com seu pai na floresta perto da cidade que eles
moravam, viu também o padrasto sacar uma adaga. No momento
que o homem ia cortar seu pai com a arma, Tagore sentiu a
garganta apertar. Uma sonolência apoderou-se de sua mente e
caiu no chão do barco desacordado.
Sawai ficou desesperado, não havia ninguém além do bargueiro
pra ajudar. Para sua calma, o jovem não tardou em acordar, mas
mentiu sobre a visão, pois ainda não sabia o que fazer com tal
revelação, não viu o padrasto matar o seu pai, mas viu a adaga
cortar o ar e os olhos de ódio daquele homem contra seu pai. Ao
desembarcar se despediu e agradeceu a Sawai.
Seguiu rumo ao castelo de Jaipur, era dia de festa no castelo,
muitas pessoas entravam e saíam levando coisas para a festa. Ele
avistou uma carroça de flores indo em direção ao castelo,
então se escondeu na carroça conseguindo passar pelos
portões, disfarçou-se como um dos serviçais do príncipe, passou
pelas imensas colunas douradas que davam entradas a grandes
salões, sabia que nesses salões o príncipe costumava receber
pessoas da realeza.
Aproximou-se do corredor lateral que dava acesso aos aposentos
reais, quando de repende alguém o interrompeu dizendo:
―Ei! Leve essa bandeja para o príncipe no salão de eventos por
ali― acenou com a cabeça para a direita.
Era a oportunidade que estava esperando. Tentando demostrar
tranquilidade, foi ao encontro do príncipe. Naquele imenso salão
ornado de flores e tecidos, sentado no centro de um tapete
colorido estava o príncipe. Parecia que o tempo havia parado. O
príncipe Arjuna tinha o mesmo sorriso, algumas pessoas faziam
barulho ao redor dele, mas Tagore não percebia, tudo que passava
pela sua cabeça era que aquele homem com aquele sorriso
certamente era o amigo do seu pai. Aproximou-se lentamente do
príncipe.
―Chegou o chá― O príncipe chegou bem perto de Tagore, olhou
nos seus olhos e perguntou com um jeito desconfiado:
―Seu rosto parece-me familiar, meu jovem, como se chama?
―Sou Tagore, filho de Brisma.
―Brisma, meu muito amigo do passado?
―Sim, vim até o senhor, príncipe Arjuna, com muitas perguntas
sobre meu pai.
Batendo palmas o príncipe pediu que todos se retirassem para que
pudesse falar a sós com Tagore.
O príncipe abraçou o jovem emocionado dizendo:
―Você é muito parecido com seu pai, não sabia que trabalhava
aqui, nunca o vi antes. Seu pai não era apenas um comprador de
mercadorias do palácio, nos conheciamos desde a infância , sofri
muito quando seu pai morreu, nunca mais tive notícias suas e de
sua mãe, pois havia pouco tempo que seu pai tinha saído da
cidade com sua mãe e não soube onde estavam, mas agora estou
feliz de encontrar você.
―Não trabalho no palácio, apenas me disfarcei para encontrar
com o senhor. Minha mãe casou novamente, eu sempre quis saber
a verdade sobre a morte do meu pai. Até que um dia encontrei
isso.
Retirou do bolso a carta e entregou ao príncipe dizendo:
―Passei pelo rio das lamentações e tive uma visão do meu pai
lutando com meu padrasto na floresta, vi uma adaga na mão do
meu padrasto cortar o ar e acordei.
Assustado o príncipe falou com o jovem:
―Venha comigo― pegou Tagore pelas mãos e saiu pelo
corredor até um quarto, abriu uma pequena gaveta, retirou um
objeto envolto em um tecido, desenrolou e perguntou:
―É está adaga que você viu? Esta adaga foi encontrada na
floresta com o sangue de seu pai que jazia estentido sobre umas
pedras. Esta arma pertencia ao assistente do seu pai, um homem
rude que nutria muita inveja no seu coração, Kansas.
―Mas é o meu padrasto! Ele devia estar preso, por que não
prenderam ele ? Por que ele casou com minha mãe?
― Kansas alegou que havia perdido a adaga uma semana antes e
nunca conseguiram provar nada contra ele, pois algumas pessoas
do povoado disseram tê-lo visto sem sua adaga, mas sempre
soubemos que foi Kansas que matou Brisma. Quanto à carta foi
uma das muitas rusgas do passado, apenas um mal entendido, que
soubemos solucionar juntos, eu e o seu pai― e mais uma vez
abraçou Tagore e os dois choraram. Tagore ficou morando com o
príncipe e mandou notícias para sua mãe, que estava muito bem.
Com o tempo perdoou o padrasto, apesar de tê-lo feito sofrer.
Para sua mãe, Kansas era um bom marido e o jovem achou que
era uma recompensa para o coração dela. Tagore tornou-se o
desenhista oficial do Castelo de Jaipur e todos se encantavam com
seus desenhos. Vinham pessoas de todas as partes da Índia para
serem desenhadas por ele, e seus desenhos viajaram o mundo.
ARQUITETURA

Conto: Casa Colonial (por MK Santos)
Lembro-me da residência, uma casa de arquitetura colonial,
localizada às margens de uma lagoa, com uma árvore de ipê nos
fundos, uma vizinhança tranquila, amigável e com vários campos
que na primavera se cobria de flores. Parece paisagem de pintura,
mas era real, eu também não acreditava que lugares assim
existiam, mas existem, agora não sei se neste mundo ou no outro.
Eu era novo, recém-admitido numa empresa multinacional,
meus pais não aprovavam a minha mudança, sair do centro
urbano para me acomodar numa cidadela interiorana. Confesso
que eu tinha receio de não me adaptar, mas o salário era muito
bom, eu poderia levar adiante os meus planos de montar a minha
própria empresa de consultoria artística.
Logo que aceitei o emprego, cheguei à pacata cidade de
Novos Campos e passei um dia inteiro em busca de um lugar para
alugar, algo que não fosse tão caro, afinal eu queria economizar,
mas que fosse aconchegante para um rapaz solteiro que viveria só
por alguns anos. Percorri por várias ruas do centro da cidade e
nenhuma moradia disponível, pedi informações aos moradores e
todos me davam a mesma resposta “aqui é difícil encontrar casas
vagas”, então decidi, enfim, procurar o único corretor de imóveis
da cidade.
Na imobiliária me deparei com uma situação inusitada e um
pouco desestimulante, a única casa disponível se localizava a
alguns quilômetros fora do centro da cidade; era uma casa
campestre e, além disso, possuía a fama de ser mal assombrada.
Ri no momento em que soube da história, mas imediatamente
desfiz o sorriso, pois percebi que o corretor falara sério.
Perguntei sobre qual tipo de assombração estávamos
falando, afinal, anoitecia e eu precisava definir um local para
passar a noite. O corretor explicou-me um pouco da história da
casa, disse que no passado ela era habitada por um grande
coronel, dono de muitas terras e de trabalhadores escravizados por
dívidas. Era um homem muito cruel, muitos homens sofreram
castigos perversos e morreram naquelas terras. A casa está
localizada nos campos mais lindos da cidade, mas tem esse
problema de ser povoada por esses espíritos dos ex-trabalhadores.
Acreditei na história que ele me contou, pois me mostrou, na
internet, alguns documentos antigos da época: eram registros de
jornal que documentavam a descoberta do cemitério clandestino
com mais de vinte ossadas de seres humanos, os supostos extrabalhadores. Mas não acreditei que a casa sofresse com a
influência de algum tipo de energia do além, nunca acreditei
nisso, meus pais sempre me falavam que era para eu ter medo dos
vivos, pois os mortos nada podiam fazer de mal. Convicto no que
eu pensava e na necessidade de dormir, eu estava exausto, resolvi
ir conhecer a tal casa.
A meia hora do centro de Novos Campos, bem após uma
curva há mais ou menos um quilômetro eu já conseguia avistar a
casa, construída sobre uma colina. De fato, era uma casa em estilo
colonial, com uma varanda trabalhada em arcos, portas e janelas
feitas de madeira de lei.
Não sei por que as pessoas evitavam aquela casa, ela era tão
charmosa e possuía um grande valor histórico, embora não fosse
um passado muito bom, mas isso não a desvalorizava enquanto
história, afinal, a sua estrutura representava um estilo de época e
se mantinha intacta, super conservada, exceto pela pintura
desgastada.
Nem bem chegamos e o corretor deu meia-volta e saiu
queimando pneu, apenas deixou claro que os boletos seriam
enviados para o endereço todo fim de mês. Não importou a mim,
estava ansioso para adentrar na minha nova casa. No interior da
sala, vi que a mobília estava descoberta e limpa, como se a casa
nunca tivesse deixado de ser habitada. Novamente não me
importou, continuei explorando o lugar. Fui aos quartos, embora o
valor cobrado pelo imóvel estivesse acessível, a casa era grande,
possuía vários quartos, todos distribuídos em um corredor longo,
que ligava a sala à cozinha.
Definitivamente, eu estava satisfeito com a minha aquisição,
havia me apaixonado pela casa, o cansaço me vencia, mas não
poderia dormir sem pegar uma ducha. Fui conhecer a banheira da
suíte, a pus para encher enquanto retirava a roupa, fui me
despindo, e do nada a porta abriu lentamente, propagando pelo
cômodo um ruído de dobradiças enferrujadas. Olhei para a porta,
mas não vi ninguém. Peguei a toalha a coloquei no ombro,
caminhei até a porta, fechei-a e me dirigi ao banheiro. Mergulhei
lentamente na banheira e com o chuveiro ainda ligado, aparei as
gotas no rosto até adormecer.
Quando acordei, senti um cheiro bom de café da manhã.
Estranhei, afinal, quem poderia estar na cozinha fazendo o café?
Eu era novo ali e não tinha feito amizade com ninguém ainda,
sequer tinha me apresentado na filial da empresa. Peguei a toalha,
enrolei-a na cintura e desci a escada devagar, olhando apreensivo
cada cômodo da casa. Ao chegar à cozinha, vi uma mulher de
costas, trajando um vestido longo, antigo. Era morena,
aparentemente nova, por volta dos vinte anos, corpo bonito,
parecia preparar algo. Assustado eu deixei escapar um “oi”, mas
ela não respondeu, fui me aproximando devagar até conseguir
tocar em seu ombro, então a toquei e perguntei:
“Quem é você?”
Ela se virou e falou com um ar de felicidade: “Até que
enfim você acordou!”
Eu não entendi nada, mas olhei em seus olhos verdes que
me hipnotizaram e me regressaram à sua história.
Seu nome era Esmeralda, talvez pela cor dos olhos, era filha
bastarda do dono da casa, Coronel Antônio Vellais. O coronel era
casado com a senhora Lindalva, alguns anos mais nova que ele,
charmosa, porém estéril, o que fazia com que aceitasse a presença
de Esmeralda na casa, mesmo sabendo que era fruto de um ato de
infidelidade de seu esposo. Esmeralda era tratada como uma
serviçal, não era escrava, mas não gozava de seus direitos como
filha. O coronel sofria de uma enfermidade crônica, sabia que
logo morreria, portanto tratou de cuidar do atestado antes que a
sua hora de partir chegasse.
Embora a fama de coronel cruel do senhor Vellais
ultrapassasse as fronteiras da cidade, em seu testamento, ele
buscou se redimir com Esmeralda e deixou a posse da Casa
Colonial em nome de sua única filha. Quando morreu e a leitura
do testamento foi feita, senhora Lindalva não se conformou e se
descontrolou emocionalmente, foi até a sala de caça da casa,
pegou uma arma, voltou à sala e atirou em Esmeralda, que em
seus poucos minutos de vida, sussurrou: “Esta casa é minha e
daqui não sairei”.
Após esta lembrança, voltei da regressão e compreendi o
que se passava na casa. A moça pegou numa de minhas mãos e
disse: “Agora ela também é sua”.
Olhei seriamente nos olhos dela, depois baixei a cabeça e vi
que na outra mão ela manuseava uma faca com a qual me desferiu
um golpe fatal dizendo:
“Fazia muito tempo que te esperava!”
Minha vista foi embaçando, fui caindo e a respiração
parando lentamente, meu sangue escorrendo e sendo absorvido
pelo piso. Eu, definitivamente, fui me sentindo cada vez mais
ligado à arquitetura da casa, desde então nunca mais ninguém
obteve notícias a meu respeito. Junto a Esmeralda e aos outros
espíritos da fazenda, passei a guardar a casa de todos os intrusos
que a tentassem tomar de nós.
CINEMA

Conto: A vida é um roteiro de quinta (por Rodrigo Mergulhão)
Tom era um garoto solitário em seu universo particular.
Contrariando convenções, preferia Hawking, Hobsbawm e Kurtz
aos irmãos Grimm ou Monteiro Lobato. Debatia na internet a
teoria das cordas e descobertas de estrelas anãs. Nas horas vagas,
era astronauta. E foi em uma de suas viagens errantes que
conheceu Klwyngoom X.
– Pequeno terreno, eu sou Klwyngoom X – falou o
habitante de Adrasteia, um dos satélites de Júpiter. – Tenho uma
mensagem ao seu povo mundano.
– Venha comigo à Terra! – convidou Tom.
A chegada de Klwyngoom X à Terra causou furor. O
evento era o desvario perfeito dos contextos spielberguianos. O
extraterrestre foi tachado de ameaça universal.
– Infestações terráqueas, trago-lhes uma mensagem – falou
Klwyngoom X diante do mundo. – Cuidem de seu planeta. Pólos
derretem. Águas se esvaem. Ar acinzenta. Florestas desbotam.
Vocês morrerão.
Ao fim da declaração, todas as nações da Terra atacaram o
ser estranho. Para salvá-lo, Tom fugiu carregando-o no cesto de
sua bicicleta, que voou ao espaço. Na estratosfera, Tom foi
crivado por submetralhadoras e morreu; Klwyngoom X estava só.
Ele não compreendeu o ser humano; o homem era mesmo animal
sem razão. Ele precisaria voltar logo para Adrasteia. Infelizmente,
escorregou do cesto da bicicleta e viu-se caindo, caindo...
Santiago acordou suado. Que ridículo! Havia sonhado que
era um alienígena chamado alguma-coisa-xis! Realmente, ele
precisava de ideias melhores. Há muitas semanas, Santiago
lamentava ainda não ter script louvável à produção de um curta
como avaliação de seu último semestre na Universidade da
Califórnia, em Los Angeles, uma das mais renomadas faculdades
de cinema do mundo.
Aos vinte e nove anos, Santiago Cabrón estava a um passo
de concretizar o sonho de ser cineasta. Deparava-se atualmente,
porém, com falta de tato e inspiração. O fato lhe alarmava.
– Não consigo, Larry! – queixou-se Santiago ao colega de
quarto.
– Relax, latino. Se até Vidal teve problemas com Brass,
você ainda acha salvação.
– Não tenho ideias...
– A sua própria história de vida já é um roteiro, man.
Expatriado de Cuba, Santiago Cabrón, vivia há oito anos
em território norte-americano. Em seu país, Cabrón era integrante
do Hijos de Perras, grupo anárquico cujos membros infiltravamse nas engrenagens do governo cubano para divulgar as
controvérsias de Fidel Castro. Cabrón foi perseguido após
publicar artigos sobre a existência de provas do pagamento de
Castro a Lee Harvey Oswald para que este matasse John
Kennedy, em 1963. Cabrón pediu asilo aos Estados Unidos da
América.
Todo esse cenário também lhe perturbava ainda hoje
porque alguém o seguia. Estagiário do jornal La Opinión, a
caminho do trabalho, à noite, Santiago foi abordado por três
homens encapuzados; dois o seguraram contra um muro.
– Vamos, Sierra! – gritava o terceiro homem, que lhe
socava o rosto. – Onde estão os papéis?!
Sierra. Alejandro Sierra. O verdadeiro nome de Cabrón.
Como sabiam?
– Não sei do que falam! Meu nome é Santi...
O homem lhe bateu com um bastão de beisebol,
quebrando-lhe duas costelas.
– Sem gracinhas, Sierra, sei quem você é! Devolva a pasta,
pelotudo de mierda!
Santigo compreendeu. Eles eram agentes de Raúl. Em
2008, lobos cubanos tiveram carta branca: todos os inimigos dos
Castro seriam caçados. Aqueles capangas queriam o Dossiê
Politburo, documentos acerca da aproximação do governo cubano
com o Partido Comunista da União Soviética nos anos 60,
roubados pelo Hijos.
Cabrón não lhes entregou o material. O agressor cravou-lhe
um canivete na jugular. O corpo de Santiago foi jogado na
Hollywood Boulevard. Começou a chover. Santiago espirrou.
– CORTA! Porra, Max! Espirrou de novo, caralho! – gritou
Müller.
– Poxa, Müller, desculpa, foi essa água fria... – lamentou
Max.
– Sempre a água, sempre a água! Cadê teu
profissionalismo, cara?! Puta merda... Muito obrigado, pessoal.
Graças a Max, por hoje é só, não é, Max?
Müller dispensou a equipe e todos abandonaram o set. Max
permaneceu sozinho no escuro, limpando o sangue falso em seu
pescoço, ainda enfurecido por seu diretor ter sido rude diante de
todos.
Max Ventura era uma negação. Tentava ser astro do
cinema brasileiro desde 1998, quando fez testes para figurante do
programa Zorra Total. No entanto, as oportunidades não lhe
cabiam. Perdera para Vinícius de Oliveira o papel de Josué, em
Central do Brasil, por não ser cabeçudo. Ao encontrar o ator na
rua, a esmo, agrediu Vinícius e ficou detido na FEBEM por
quatro meses.
Nas audições para O auto da Compadecida, Fernanda
Montenegro lembrou-se do espancador de seu jovem colega e
recusou-se a interpretar a Compadecida caso Max Ventura
estivesse no elenco. Não se faz necessário dizer o desfecho da
história.
Antecipando-se para Carandiru, Max implantara próteses
mamárias de silicone para interpretar a personagem Lady Di.
Inexplicavelmente a Max, Rodrigo Santoro foi selecionado ao
papel. Por causa dos seios, perdeu Lisbela e o prisioneiro e
Cazuza. Para conseguir pagar a retirada das mamas, teve de fazer
propagandas de sutiãs e campanhas de exame de toque contra
câncer sem exibição de seu rosto.
Suas derradeiras tentativas foram em 2007, com Cidade
dos Homens e Tropa de Elite. Não se lê “Max Ventura” nos
créditos dos filmes.
Cinco anos depois, interpretava Santiago Cabrón. Ele mal
entendia o roteiro. Era um herói cubano urbano cineasta. Algo
assim. Selton Mello havia recusado o papel. Por que seria? Não
importava, ele tinha sua chance de atuar. Ele enfim tinha a sua
chance de atuar. A sua chance de mostrar ao mundo o que era
capaz! Enfim! Todos pagariam por seu atraso! E pagariam caro!
Mui-to-ca-ro! Max Ventura planejou livrar-se dos que lhe haviam
recusado suporte até aquele momento. Ele mataria cada ator que
lhe usurpara personagem; cada diretor, produtor e roteirista que
até hoje lhe negara trabalho e começaria por Cacá Diegues.
– Cacá Diegues? Mas que merda é essa, Tomás? Que
merda de história é essa, Tomás?!
– Então, Meireles, deixa eu ler de novo pra você, olha só...
– Ler porra nenhuma! Eu sei ler, caralho! Tô perguntando
que bosta é essa! Monteiro Lobato?! E o que é Kurtz?! Mas que
merda de Clingu do... do... do asteroide de Júpiter? O que é isso?
Cocoon?! Que bosta, Tomás!
– Ô, Meireles, não é bem assim.
– “Não é bem assim”, cara?! Então que porra de Fidel é
essa?! Tá louco, homem? Já se deu conta da cagada que isso pode
dar?! Conspiração cubana?! E a UCLA! Tu pediu permissão pra
usar o nome da Universidade da Califórnia, Tomás?!
Meireles berrou o fim da frase. Tomás tremia ao lhe
apresentar o rascunho com o qual concorreriam pelo patrocínio da
Petrobras através do “Programa Petrobras Cultural – Seleção
Pública de Projetos, edição 2012”, do apoio à produção de filmes
inéditos brasileiros de longa-metragem, realizados ou finalizados
em película cinematográfica de 35mm ou formato digital, de
produção independente e que se destinassem a salas de cinema
originalmente.
– E o título? “Assassinatos na Academia Brasileira de
Cinema”?! Que é isso?! Jô Soares?! Tu tá plagiando Jô Soares,
sua mula?!
– Plagiando nada... Pode ver no CPB... Além do mais, é um
título provisório... Pensei também em “Sangue no Gramado”. O
festival, Gramado, Rio Grande do Sul, sabe?
– Não, Tomás, não sei de mais nada! Mas que merda,
cara...! Um Santiago lá da puta-que-pariu vem matar gente aqui
no Brasil?! Tá louco?! Que coisa mais patética, seu idiota!
– Não é Santiago Cabrón, Meireles, é Max Ventura, leia
direito...
– Que resolve matar gente aqui no Brasil? – repetiu
Meireles.
– Não é matar, matar... É só uma brincadeirinha nominal...
Homenagem, sei lá.
– Então você decidiu ridicularizar, digo, brincar com,
perdão, brincar com Hector Babenco, Paulo Morelli, Walter
Salles, Wagner Moura, Montenegro, Santoro, é isso, Tomás?
Hein?
Tomás não respondeu.
– Tomás, você enlouqueceu? – perguntou o diretor.
Tomás não respondeu.
– Tomás, você enlouqueceu – disse o doutor.
Eu não respondi.
– Você enlouqueceu e – continuou me dizendo o doutor –,
desde ontem você está aqui conosco, Tomás. Seus filhos acharam
melhor interná-lo. Mas não se preocupe, você poderá vê-los todos
os dias.
Não, eu não estava louco.
Eu sou apenas um garoto solitário em seu universo
particular. Contrariando convenções, prefiro Hawking,
Hobsbawm e Kurtz aos irmãos Grimm ou Monteiro Lobato.
Deixa eu te contar uma história, leitor: eu sou astronauta.
POESIA

Conto: A passagem (por Genniffer Moreira)
Algumas gotas de tristeza lhe caíam dos olhos, enquanto a menina
observava a beleza das nuvens. Não eram simples lágrimas de
saudade, não eram compostas lágrimas de felicidade, eram
singelas lágrimas pela percepção da sua inseparável relação com a
solidão. E as gotículas de tristeza continuavam a cair e molhar a
grama verde do lugar onde a pequena menina estava sentada, um
lugar qualquer situado numa cidade qualquer, numa dimensão
qualquer sem importância.
Olhar a grama não lhe causava o mesmo efeito que olhar as
nuvens, a tristeza se aprofundava com mais facilidade quando ela
observava a estranha beleza das nuvens se contrapondo ao azul do
céu. A menina acreditava em mágica e pensava que as nuvens
faziam parte de algum feitiço de Duendes ou Fadas que vivem no
final do arco-íris. Pensar em magia era um passatempo que
amenizava a tristeza de saber sobre a sua irremediável solidão.
O branco fumacento das nuvens continha particularidades que a
frágil menina não conseguia explicar com palavras, talvez,
ninguém pudesse explicar verbalmente as particularidades que as
nuvens podem causar nos sentidos dos seres humanos. Ela
acreditava que nem as nuvens poderiam explicar sobre essa
singular sensação que causam nas pessoas, portanto, a verdade
sobre as nuvens não precisava ser explicada ou estudada por ela e
pelos demais seres humanos que observavam as nuvens.
A menina sorriu ao pensar que as nuvens possuíam uma beleza
singular e inexplicável, como em um encantamento a tristeza que
encharcava a grama daquele lugar onde ela estava evaporou. Num
passe de mágica as gotas de tristeza que restavam dentro do seu
pequeno coração simplesmente deixaram de existir, agora não era
mais doloroso pensar na solidão, agora ela podia pegar a
passagem em seu bolso e sorrir ao imaginar o que lhe esperava no
final do arco-íris.
Porém, o possível final do arco-íris da pequena menina não se
tratava de um belo final feliz, ou, talvez, o orfanato qualquer na
cidade vizinha para onde ela deveria viajar não fosse o pote de
ouro no final do seu arco-íris. Mas, isso não tinha importância,
naquele breve momento as nuvens haviam enchido o coração da
menina de alegria e poesia, naquela tarde ensolarada e
deprimente, enfim, as nuvens lhe haviam dado um valioso
presente, e seu presente era de fato o seu tempo presente.
O final não precisava ser escrito, o final não tinha importância, a
passagem na mão da menina não simbolizaria a sua eterna solidão
e tristeza. A passagem deveria ter muitos outros significados que
ela desconhecia. E as nuvens não poderiam explicar com palavras
a verdadeira POESIA que vivia dentro do coração daquela
menina.
MÚSICA

Conto: Sua Música (por Samila Lages)
Era tudo silêncio, desde o princípio.
E seria tudo silêncio até o fim, se ela não tivesse aparecido.
Ela era como uma ventania, um furioso e barulhento tufão que
chegou de repente, derrubando todas as estruturas da sua vida. E o
fizera de maneira tão sutil que ele, bobo, chegou a agradecer aos
céus por aquela arrebatadora destruição.
Como se conheceram? Um bar, um pequeno palco, amigos e gim.
Ela cantava e tocava baixo na banda que se apresentava. Ele
apenas bebia mais uns goles de gim enquanto sentia as vibrações
mais graves da música em seu corpo e escutava as palavras dela
com seus olhos. Ela cantava bem, ele logo soube só de observar
como a sua face transmitia uma profunda emoção quando ela
fechava os olhos.
Ela era linda, ele pensou observando seus cabelos tintos em
vermelho fogo e a cintura marcada por um corselet vermelho.
Seus movimentos e gestos também detinham a atitude esperada
de uma artista do rock, ele supôs, mesmo sem saber por que
deveria se esperar aquilo de uma artista do rock. Ele só sabia que
a música era boa e batia palmas ao final de cada execução.
Durante todo o show ele a observou, sem se dar conta de que era
quase ridícula sua atenção exacerbada. Volta e meia um dos
amigos da mesa o cutucava, soltava uma gracinha, de que ele ia
‘secar’ a menina se continuasse olhando daquela maneira. Ele se
sentiu um pouco envergonhado, mas não conseguiu parar de
olhar. Talvez por toda essa atenção, a vocalista, antes do
encerramento, apontou para ele e disse “essa é a última música e
eu gostaria de dedicar para o bonitão de óculos aqui da frente!”
Ele corou um pouco e perguntou para um dos amigos o que ela
tinha dito. Quase não acreditou e abriu um sorriso enquanto
observava novamente a bela face dela repleta de sentimentos.
E quando o show terminou, ela desceu do palco, veio falar com
ele. Perguntou se poderia ganhar um pouco do gim que tomavam.
Obviamente, ele travou, mas um dos amigos se adiantou e
explicou que ele não ouvia, mas que ela era bem vinda a sentar-se
com eles.
-Como assim ele não ouve? Ele estava prestando tanta atenção na
banda. –Ela perguntou. De fato, tinha visto o pessoal da mesa
usando libras em alguns momentos, mas não imaginou que fosse
ele o surdo.
O amigo pensou se responderia, mas achou melhor dizer para
Bruno responder por si só, apontando para o caderno dele e
fazendo os sinais que indicavam a pergunta dela.
“Eu podia sentir a vibração do som do seu baixo, e algumas
batidas da bateria. E você parece cantar muito bem, você
transmite a letra com sua face.”
Ele entregou o papel com um sorriso meio tímido.
Ainda um pouco impressionada ela aceitou o convite para se
sentar, e não sabendo libras pegou a caneta dele e se pôs a
dialogar de uma maneira que nunca tinha feito, quase ignorando
os demais membros da mesa. Bruno descobriu que o nome dela
era Daniela, mas que ela gostava de ser chamada de Danny.
Falaram sobre as diversas coisas, desde música e pintura (ele era
artista plástico), até as mais piegas e ridiculamente românticas
formas de literatura.
Mais de uma hora se passou e ela precisava ir. Eles trocaram
contato e marcaram um encontro, dois, três. Ele pintou quatro
retratos dela, e às vezes ela cantava em seu ouvido, mesmo
sabendo que ele não escutaria. Mas ele sentia a vibração e o hálito
quente dela na orelha e se limitava a imaginar o quão sensual
seria a voz dela. Aquilo lhe bastava, ou pelo menos ele achava
que bastaria.
Em oito meses ficaram noivos e foram morar juntos. Bruno ia a
cada um dos seus shows. Conheceu o pessoal da banda, fez
amizade e até desenhou a capa do EP deles. Danny tinha
aprendido a falar em libras; às vezes lhe traduzia as letras em
gestos enquanto cantava. Eram palavras muito bonitas, mas não
detinham nem metade da emoção que sua face demonstrava
enquanto ela cantava no palco.
E por algum motivo, aquilo lhe dava vontade de chorar.
Era incômodo saber que a seu redor centenas de pessoas
escutavam a voz dela, escutavam suas palavras, viam suas
expressões e a adoravam por isso.
Um dia ela escreveu uma música para ele, dizendo o quanto o
amava, dizendo que ele era um anjo em sua vida.
Ele chorou.
Ela pensou que fosse emoção, mas na verdade era tristeza. Era
difícil para Bruno saber que centenas, milhares de pessoas tinham
uma parte dela que ele jamais teria. Ele se preguntou se seria certo
ter uma música dela para si. Quando decidiu que era certo, ele se
perguntou por que não poderia escutar a voz dela cantando aquela
música que deveria ser só sua.
Por que ela cantava aquela música para todo mundo?
Ele sentiu raiva de si, de Deus e dela quando essa música se
transformou em hit. Graças ao sucesso a banda fechou contrato
com uma grande gravadora e até vídeo-clip fizeram daquela
música. O assédio dos fãs dela o irritavam, os elogios nas redes
sociais e na crítica especializada o deixavam enciumado. Até na
televisão ela ia! E da televisão ele não podia nem escutar as
vibrações do baixo dela.
Ele não foi mais aos shows e passou a sair de casa toda vez que
ela tocava piano ou baixo. Da mesma forma, não quis desenhar a
capa do novo álbum da banda.
Quase não se falavam, e quando faziam, brigavam pelos mais
torpes motivos. Ele não quis nem continuar o quadro dela que
estava em andamento.
Ele não escutava enquanto ela chorava baixinho com o rosto
enfiado no travesseiro durante à noite.
Mas ele sentia.
Sentia em seu peito o choro dela.
Quando ela estourou e disse que iria embora, ele chorou também,
pediu desculpas com um abraço e um beijo, explicou porque
estava agindo daquela forma. Ela perdoou em palavras que ele
não ouviu e em gestos que acalentaram seu coração.
Ela sorriu em meio a seu choro.
E naquele sorriso havia música.
No seu abraço havia música.
No seu beijo havia música.
Ele era o único que conhecia aquela música.
Como ele era felizardo por ser o único no mundo capaz de ouvir
aquela música, tão bela, tão sua.
Só sua.
DANÇA

Conto: Flamejar (por Lara Utzig)
Entreolharam-se naquele setembro. Fatal? Não. Nesses
encontros só há o nascimento de algo bom. A mágica de dois
olhares que se cruzam no mesmo instante: a simultaneidade
divina.
Eis que naquele baile, no meio do salão, eles se viram pela
primeira vez. Ela dançava sozinha, como se o mundo lhe fosse
alheio aos pés e só importasse a música que lhe atingia, na
delicadeza dos movimentos de uma bailarina clássica. Ele
dançava sozinho também, mas com uma ginga maliciosa de
sambista cafajeste. Mas ainda que parecesse malemolente, ele era
tímido demais para chamá-la.
E assim a noite foi passando, os suores foram escorrendo, as
solas foram se desgastando, os músicos foram se cansando, as
bebidas foram se acabando e os dois foram se desanimando. Ele,
ainda se perguntando como chegar nela, e observando o contraste
de estilos que guiavam ambos os corpos. Ela era sublime e
sensual ao mesmo tempo, mas concentrava-se na própria leveza
autossuficiente. Reinava, majestosa, numa solidão confortável.
Como ele conseguiria apagar o ar maroto do rosto e ser digno de
merecer a honra de uma dança, antes do amanhecer?
Precisava tê-la em seus braços ao som de qualquer música,
não importava qual. Sabia que qualquer canção se transformaria
em um hino assim que ele a tocasse. Enquanto isso, ela
permanecia lá, intacta e aparentemente indiferente ao dilema
interno que ele estava vivendo.
Foi até o balcão e virou uma dose. Uma dose de álcool que
deu origem a uma dose de coragem também, para que (até que
enfim!) ele se aproximasse. Quando finalmente ficou ao lado dela,
não soube o que dizer, mas nem precisou abrir a boca para mais
nada. Ela o pegou pela mão, pois entendeu desde o princípio
daquela festa que eles tinham sido feitos para bailar um com o
outro. E pacientemente aguardou que seu futuro par viesse para
mais perto, sem forçar nem apressar a chegada. “Ele virá quando
se sentir à vontade”, pensou ela: “não posso adiantar a hora certa
e o fluir das coisas”...
Posicionaram-se frente a frente. Olharam-se mais uma vez.
As mãos quentes e suadas quase se grudaram uma a outra. A
música começou novamente:
Chama,
Me chama
Que eu te esperei no fundo do salão dos dias.

Chama,
Que a chama
Vai ascender em seis por oito o nosso par...

E como ele havia imaginado, a música na companhia dela se
tornou única! E houve sim, uma chama: o fogo do sapateado e a
luz flamejante nos olhos deles. Naquele momento, em que os pés
se mexeram em conjunto... Passos ritmados, coração
descompassado.

Me aperta contra o peito e a favor do meu desejo de dançar,
Talvez descompassar.
Me baila do teu jeito e me conduz num passo feito só pra nós...
E chama-me!

Naquele momento, em que o vestido dela - de caimento
perfeito - esvoaçou no rodopio de ambos... Eles se tornaram um
só. E assim surgiu um amor: um amor que estaria, para sempre,
em movimento.
Casaram-se três anos depois, ao som da mesma canção do
dia em que se viram pela primeira vez naquele baile: Chama-me,
de Gisele de Santi. O tempo foi passando e mesmo com a rotina
que assola todos os casais, viviam como se estivessem em
constante lua-de-mel e aos domingos, entre cafés e bacias de
pipoca com leite condensado, se amavam no sofá da sala.
Quando chegou o Carnaval, saíram entre confetes e
serpentina... Ele pierrot e ela colombina, em meio às marchinhas.
Ela deixou de lado a erudição do ballet e ele a ensinou a ter um
pouco de samba no pé. E apesar da efemeridade desse festejo, que
após quatro dias se finda em cinzas, a avenida da vida deles
prosseguiu com uma alegoria. Dentro do ventre dela.
O engraçado é que no caso específico dessa relação, não
havia, na intimidade da cama, a expressão “fazer amor”. Entre
eles, era... “Dançar amor”.
PINTURA

Conto: O pintor (por Rodrigo Ferreira)
Um par de olhos femininos estava fixo no quadro
finalizado diante de si. O artista daquela magnífica pintura
também fixava o olhar sobre a obra acabada: uma linda mulher
nua, deitada sobre um divã, pintada em diferentes tons de
vermelho.
― Só falta falar, você não acha? ― disse o feliz artista
àquela que servira como modelo para sua arte.
Resposta alguma foi ouvida naquela pequena, fétida e
amontoada sala de pintura, o que não pareceu incomodar o
contente trabalhador. Os dois pares de olhos continuavam
vidrados na tela.
Calmamente, o pintor recolhe o quadro do cavalete e
centraliza sua nova obra-prima entre outros trinta quadros de
pintura, quadros estes escurecidos e já carcomidos. Essa nova arte
acendia uma bruxuleante luz vermelha sobre as outras telas negras
como o piche.
― A melhor de todas. Sem sombra de dúvidas. Agradeço
a você por me conceder essa honra.
Palavras tentavam sair pelos lábios daquela moçoila de
olhos esbugalhados e que lacrimejavam. Mesmo o mais simples
gesto parecia difícil de reproduzir. Estava estarrecida com tudo e
não tirava os olhos da pintura.
― Não se esforce demais. Eu sei que demorou um pouco
e você deve estar cansada de manter a mesma posição por um
longo tempo, mas cada segundo gasto valeu a pena.
As outras telas ao redor daquela última depositada
retratavam praticamente a mesma coisa: uma jovem moça nua,
deitada sobre um divã, em uma pose sensual, ideal para um artista
retratar. Mesmo que aquelas estivessem danificadas e a tinta, de
péssima qualidade, já estivesse desgastada, o traçado original
ainda podia ser percebido.
― A melhor de todas! ― não cansava de repetir o pintor
com orgulho de si mesmo, afinal a tela realmente impressionava.
Sirenes de viaturas policiais foram ouvidas pela rua,
cercando o prédio do artista em êxtase, mas nem aquele barulho
infernal o tirou da observação de sua mais perfeita obra
finalizada. Porém, sabendo que todo aquele escarcéu o impediria
de criar mais belezas, resolveu recolher-se por hora.
― Jovem moça, agora eu gostaria de descansar um
pouco.
Dizendo isso, puxou a loira donzela do divã pelos
cabelos e a jogou ao chão, em um baque surdo, amaciado pelo
carpete manchado de carmim.
A mocinha finalmente parou de responder a qualquer
estímulo externo.
Da sua nuca, uma enorme ferida aberta estava enegrecida
pelo sangue endurecido. Entre suas pernas, um vermelho ainda
podia ser visto, mesmo que ele tivesse quase extinguido, devido
aos pelos do pincel que por ali correram.
O pintor deitou-se no divã, deixando uma de suas pernas
do lado de fora, o pé levemente recostado na cabeça de mais uma
musa inspiradora.
― A mais perfeita. Sem comparação!
Agradecemos por ter baixado este e-book
e apreciado este material feito com tanto
carinho

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E-book O Mosaico dos Raros

  • 1. O MOSAICO DOS RAROS Contos da Literatura Jovem do Amapá ORGANIZAÇÃO: MARVIN CROSS
  • 2. O MOSAICO DOS RAROS Organização: Marvin Cross MACAPÁ-AP/ FEVEREIRO, 2014
  • 3. Com Tiago Quingosta Marvin Cross Prsni Nascimento MK Santos Rodrigo Mergulhão Genniffer Moreira Samila Lages Lara Utzig Rodrigo Ferreira
  • 4. ENTENDENDO O MOSAICO DOS RAROS Um mosaico pode ser definido como várias peças unidas, que podem ser de diferentes materiais (pedras, plástico, papel etc.), a fim de formar um todo, uma figura, caracterizando-se, portanto, como uma obra mosaica. São diferentes pedaços que vão se embutindo uns aos outros a fim de formarem algo único. Este livro é um mosaico. Sua proposta foi de abordar as diferentes expressões artísticas para servirem de pano de fundo a cada história aqui contada. Muitas dessas artes são mais do que pano de fundo, mas componentes cruciais nos contos reunidos neste e-book organizado por mim e com participação ilustre de escritores jovens da seara literária que vem explodindo no Amapá. É um mosaico de textos raros, feitos sob encomenda (literalmente!!), obedecendo a um desafio proposto que consistia em cada autor ficar encarregado de uma arte específica, como o conto intrigante de MK Santos, que trata da arte arquitetônica, ou a surreal narrativa de Rodrigo Mergulhão, incumbido de elaborar um conto com o tema “Cinema”. Nas próximas páginas, você está convidado a se divertir, se emocionar, refletir e até mesmo se arrepiar com as obras carinhosamente preparadas para seu precioso momento de leitura. Ficamos honrados em contribuir com isso, muito mais se você curtir nossos textos e recomendar a seus amigos que façam o download deste material. Um grande abraço e boa leitura!! Marvin Cross, Organizador da coletânea e um dos contistas
  • 5. FOTOGRAFIA Conto: Sobre Gavetas (por Tiago Quingosta)
  • 6. Hoje é um dia especial. Não era essa a palavra que deveria ter empregado... Hoje é um dia “peculiar” soaria melhor, soaria menos festivo. Dia de abrir aquela velha gaveta, cheia de fotografias e recordações. Uma gaveta empoeirada, mas que nem por isso perde o seu valor. Ela está empoeirada porque precisa estar incólume, longe da intervenção humana para conservar... Frágeis recordações. Se eu fosse uma gaveta me sentiria honrada em proteger tantas memórias, algumas felizes, algumas tristes, mas memórias, frutos de vidas vividas... Ou traços de vidas perdi-das... Eu também tenho minhas gavetas na memória, recordações que ecoam e que sempre pedem para serem revisitadas. Embora as gavetas encontrem-se abarrotadas de lembranças alegres, há tantas tristezas quanto neurônios em mim, embora não saiba quantos neurônios eu possua. No entanto, de uma coisa tenho certeza, aquelas fotografias guardadas lá embaixo são uma tentativa de estender emoções, esticá-las e tentar voltar; ocorre que a vida não volta. Eu, pelo menos, nunca vi uma rosa velha voltar ao esplendor dos seus nove meses. Existem conservantes e não milagres para as rosas, assim como para nós.
  • 7. Pois bem, porque hoje é hoje, decidi abrir aquela gaveta que fica dentro de uma antiga câmara escura na qual revelávamos nossas fotografias. Atualmente não passa de um depósito, cuja porta está coberta de rosas, bem na parte de trás do meu jardim, este último mais parece um labirinto de tanto que os teixos e arbustos cresceram pela propriedade. Andei diante dos Hibiscos, Cravos, Orquídeas, Rosas, Girassóis, Azaleias, e quase esqueci qual o meu objetivo. Como o jardim destoa da casa! A casa é tão monocromática, fria, grande, escura. Pergunto-me qual o porquê de continuar aqui. O jardim Dela deve ser a razão, o refúgio que procuramos. Não sei o que me espera em outros lugares, por isso a isolação. Isolação irmã da solidão. Eu já tive muitos amigos, todavia, depois do que houve, decidi que evitar pessoas evitaria, por sua vez, lembranças desagradáveis, obviamente a minha doença piorou. Descobri que para essa tristeza ainda não há cura. Talvez eu cultive agora mais lembranças do que flores. E lembranças consomem a maior parte da minha energia mental. Faz um tempinho que ela se foi, foi morar com Deus, a minha filha... Meu casamento já estava fadado ao fracasso mesmo
  • 8. antes, então eu saberia que acabaria só. Nunca imaginei que naquele jardim, havia uma parte que estava morrendo, um solo limoso e desprovido de luz tomava conta, e plantas estranhas iriam aparecer, elas insistem em brotar até agora, como a Beladona e seus doces, negros e Mortais frutos. Procurei ocupar-me... Decidi que iria arrumar toda aquela bagunça do depósito, pois tempo tinha de sobra, tempo é tudo o que eu tenho agora... Porque o resto da minha família mora longe... E apenas uma vez ao ano vem me visitar. Encontrei aquela nossa velha Polaroid ― que eu nunca gostei muito de usar―, algumas pelúcias e outras coisas. Depois que tudo ficou limpo, sentei-me no tapete, agora limpo, e trouxe a gavetinha para perto. Nem me interessei pelo móvel, eu precisava da gaveta. Passei a olhar os nossos álbuns de fotografias, um a um, chorei, parei de olhar, voltei a olhar, sorri, passei os dedos sobre as fotos para tentar sentir os momentos, sentir o toque das tuas mãozinhas, minha filha... Fotos têm esse poder sobre mim, mais do que poesias, mais do que canções, fotos são minha metonímia real, minha certeza de que estou viva. Como num passe de mágica, um pequenino raio de sol atravessou o jardim e invadiu o depósito em direção ao móvel da
  • 9. gavetinha. Foi quando notei que havia um papel dobrado, bem no seu fundo, no local de onde tirei a gaveta...
  • 10. T E A T R O Conto: Carmem e a chuva (por Marvin Cross)
  • 11. Os últimos raios de sol se delineavam no céu, apesar de ainda ser pouco mais de duas da tarde. No entanto, já se aguardava a chuva que desde cedo se insinuava. O último botão da camisa foi abotoado, o último fio de cabelo foi penteado e algumas gotas de perfume foram salpicadas nos pulsos e pescoço. Ele ainda se lembrava do perfume favorito dela. Josué nunca se reconhecera tão ávido por um encontro. Ou, naquele caso em particular, um reencontro. Após tantos anos de saudade e espera, agarrado a uma promessa que nem mesmo fora feita, mas que em seu coração ele sentia como quem está ciente da respiração. Embora tingido de um cinza deprimente, o céu parecia estar etiquetado com o nome dela: Carmem. Josué já não era mais aquele adolescente sonhador dos tempos em que foi colega de Carmem na oficina de teatro de Horácio Padilha, o saudoso mestre das artes cênicas falecido há dezessete meses. Batendo à porta dos trinta, Josué sabia que aquele reencontro com Carmem tinha tudo para dar errado: ela deixara a cidade em busca de ventos novos, aprimorar-se na arte dramática, aplicar-se com esmero e total entrega ao sonho de ser uma atriz além da extensão daquela pequena cidade. Josué continuara ali, alimentando a ambição e o sonho de também ser um grande ator e pisar em grades palcos, entreter numerosas plateias. Mas seu grande erro foi justamente ter continuado ali. Então, muitos anos depois do último (e também primeiro) beijo entre eles, eis que Carmem pareceu ressurgir, como quem aparece de um desses sonhos que se tem por muitas e muitas noites, como se esses sonhos tivessem sido meros prenúncios de um retorno. Ela resolveu que era hora de fazer uma visita, pôr os pés naquele lugar onde seu sonho nasceu e deu os primeiros passos. Josué foi a única pessoa com quem ela marcou uma espécie de encontro.
  • 12. Ela chegou primeiro ao Café Primavera. Escolheu uma mesa ao ar livre, numa área coberta por um toldo, para poder fumar à vontade. Acompanhou o exato momento em que Josué apareceu. Empertigou-se um pouco à frente e seu rosto desenhou um misto de alegria com saudade. Os olhos de Josué a fulminaram com uma grata satisfação. Inesquecível amor adolescente. O pobre Josué estava um tanto molhado, pois a chuva começou a desabar num ímpeto por volta de uns vinte passos antes do Café. Carmem e chuva: uma perfeita combinação para as costumeiras tardes de tédio daquela cidade. Era bom se ver livre das tardes costumeiras, pensou aquele jovem homem, de certa forma ancorado num turbilhão de expectativas. — Tu estás mais magro— avaliou Carmem, com uma certa dificuldade para encontrar a primeira coisa a dizer. Josué riu sem jeito, gaguejando sutilmente ao tentar explicar que andava tendo uma rotina puxada por conta do teatro. — E tu agora fumas— observou ele, talvez também com dificuldade em dizer algo. O (re)encontro foi regado a muita conversa sobre o que aconteceu no hiato de treze anos. Josué se sentiu desprezível diante das narrativas inacabáveis de Carmem, claramente alguém com muito mais coisas para contar do que ele. Carmem simplesmente desistira do teatro. Para ele, aquilo era mais que absurdo!! Mas tudo bem, afinal, ela ainda era Carmem. A inolvidável e marcante Carmem. Ela prosseguiu relatando sua frustração com a carreira de atriz, depois de meia dúzia de espetáculos encenados na capital, de como os produtores de seu grupo teatral a exploravam e cobravam tanto dela, e de como, paralelo a tudo isso, ela tomou interesse por outras áreas, indo parar, inclusive, na faculdade de Agronomia. Josué nem tinha uma ideia clara do que fazia um agrônomo.
  • 13. Carmem se casou duas vezes nos últimos treze anos, sofreu dois abortos espontâneos, foi abandonada pelo último marido e assim começou a fumar. Ela, realmente, não lembrava tanto aquela garota de faces arredondadas e um sorriso que, ao se abrir, parecia desvelar um roseiral sob o sol crepuscular. Carmem retornou com a bagagem cheia de histórias e desilusões, como roupas amarrotadas numa trouxa para lavar. Josué se sentia falando com outra pessoa. A Carmem de antigamente teria comentado algo sobre seu perfume no exato segundo em que ele a cumprimentou. Enquanto ela falava, Josué podia ver resquícios de seu antigo amor na maneira como ela mexia a boca ou coçava o nariz e até mesmo em como entortava a cabeça quando exclamava admiração. E isso era mais que bastava para sustentar sua paixão ainda pungente. A chuva que começou caindo pesada, como um golpe desferido de uma só vez, permanecia assim. A área em que estavam, mesmo coberta por toldo, já começava a ficar incômoda por conta dos respingos de chuva, ameaçando inundar o chão. Josué bebia chocolate quente numa caneca amarela com o desenho de um ramalhete de flores variadas, muito simpática, com a logo do Café Primavera aparentemente pintada à mão. — Eu tinha me esquecido completamente de como é o inverno aqui— revelou Carmem, tateando na bolsa em busca de mais um cigarro. — Trouxeste a chuva. Ela esboçou a reação de não ter entendido. — É a primeira chuva do inverno desse ano. E foste tu que trouxeste. — Continuas bobo, Josué— sorriu ela, visivelmente tímida. Ficaram em silêncio por um tempo, apreciando a água abençoada que ensopava a cidade. Carmem pegou o cigarro na bolsa, mas a
  • 14. quietude da contemplação a deteve. Josué observava a chuva, mas seus olhos inconstantes volta e meia grudavam em Carmem. Ela parecia estar absorta em algum tipo de lembrança, como que revivendo os áureos tempos em que tudo que ela queria era representar uma personagem, experimentar novos figurinos e passear por diferentes cenários. Josué ainda nem tinha lhe contado sobre o que ele estivera fazendo naquele lugar ao longo dos últimos treze anos. A bem da verdade, esperou que ela esquecesse e nem lhe indagasse. Até hoje Josué se mantinha no mesmo grupo de teatro em que ele e Carmem iniciaram nas artes cênicas. Após a morte do mestre Horácio, Josué passara a ser um tutor para os novatos e para os que nele viam um líder. Não ganhava muito dinheiro com isso, mas sobrevivia. Não cursou faculdade e só saiu da cidade duas vezes, sendo apenas uma delas para a capital. Sua história não tinha glamour, nem grandes mudanças de hábitos, como passar a fumar. Não se casara, não tivera filhos. Houve uma ou duas namoradas com quem não pôde continuar a ficar, por circunstâncias comuns da vida. Uma destas circunstâncias: seu amor que nunca morrera por Carmem, alguém por quem ele sempre nutriu um sentimento gigante no peito, mas que na realidade o que houve entre eles nunca passou de uma amizade na qual trocaram um único beijo. — Tu achas que podes me perdoar, Josué? Ela o arrebatou dos pensamentos repentinamente, deixando-o intrigado com tal pergunta. — Não entendi, Carmem. — Todo esse tempo eu estive rodando por esse mundo, vagueando de lá pra cá, tentando me encontrar e me estabelecer. Enquanto tu ficaste aqui, me esperando. Tu guardaste o maior sentimento do teu coração todo para uma pessoa que foi pro mundo viver aventuras e dar murro em ponta de faca. Tu ficaste na tua pureza, acreditando que cada dia que passava era apenas o tempo fazendo com que se aproximasse o dia de nos reencontrarmos. Josué tinha o olhar fixo em Carmem, que se punha a tagarelar ainda contemplando a chuva. Como ela poderia saber de tudo aquilo? Como ela podia estar falando aquelas coisas tão exatas, sensatas?
  • 15. — Eu fui embora deixando para trás um coração iluminado de esperança, Josué. O teu coração. Eu sabia que tu me amavas, mas o teu amor era tão absurdamente superior à minha amizade por ti, que eu tive vergonha da minha existência. Eu não podia mais continuar aqui, onde eu ia sofrer as consequências por não poder corresponder a um amor tão forte e generoso como o teu. Tu achas que podes me perdoar? Josué recostou-se em sua cadeira, petrificado. Por dentro, sentiuse encolher. A cada segundo, sentia-se ficando cada vez menor. — Estás me dizendo que meu amor foi a causa de tua partida? Ela não esboçou resposta nem mesmo no olhar, perdido na chuva. Josué esperou uma resposta, mas tudo havia sido dito com extrema clareza. — Nesse caso, não deveria ser eu a te pedir perdão?— ele tentou manter o contato. — Amar não é erro que careça perdão. Fugir de ser amado, isso sim, é punível. Correr com o coração apertado de dor por não ser digno de retribuir amor, isso é abominável. — Mas éramos jovens, Carmem. Mesmo que não me amasses, um dia o tempo haveria de me curar a dor e eu teria superado, pois assim é com todos os que amam e fracassam. A crueldade nos castiga a ponto de se transformar em experiência, uma ponte para a maturidade. Ela sorriu. Mas era um sorriso frio, irônico. De alguma forma, ela parecia carregar uma culpa insustentável. — Se fazes tanta questão, então te perdoo, Carmem. Nem tenho por que não fazê-lo. Só me importa que sejas feliz. Enfim, ela voltou-se a ele. Encarou-o com toda a ternura que pôde, expressando um semblante aliviado. Josué lhe sorriu e tocou sua mão sobre a mesa. A atmosfera daquela ocasião em que se beijaram uma única vez pousou sobre os ombros do moço. Entretanto, somente ele sentira. O encontro acabou. Não houve beijo. Ela não o amava, apenas sentiu que devia a ele algum tipo de satisfação. Semanas depois, a fatídica carta chegou para Josué. Essa parte foi deixada de lado no reencontro em que tiveram, mas Carmem
  • 16. estava com uma doença incurável, lutando há tempos, até que desistira e, lembrando-se do tempo de vida estimado pelo médico, deixou passar alguns meses e então foi até sua cidade natal resolver aquela que considerou a pendência mais imperdoável de sua existência. Com o perdão de Josué, agora a morte até lhe parecia mais amena. Tinha medo de ser enterrada com qualquer dívida com o mundo, especialmente com alguém que, de tanto amor que exalava de si, lhe deu a melhor adolescência que alguém poderia querer. Encenaram tantos espetáculos juntos, foram tantos ensaios divertidos, broncas do mestre Horácio, broncas de um para o outro, excursões para se apresentar em festivais de teatro, cumplicidade, confidências, lágrimas e muitos risos. Viveram como namorados, ainda que rodeados pela ausência de evidências que marcam um casal. Mas a ligação que tiveram, essa poderia causar inveja a um sem-número de casais. Chovia torrencialmente no dia em que Carmem desceu à sepultura. Josué foi o único, durante o enterro, que não se abrigou da chuva, pois para ele a chuva era como um carinho espevitado daquela Carmem de treze anos atrás. E se deixara tocar sem qualquer pudor pela água que banhava sua face e fazia as roupas lhe grudarem à pele. Só me importa que sejas feliz.
  • 17. D E S E N H O Conto: Tagore (por Prsni Nascimento)
  • 18. Numa pequena cidade da Índia havia um jovem chamado Tagore, que amava desenhar e seu grande sonho de infância era ser reconhecido como um grande desenhista pelo Príncipe Arjuna. Chegar perto do príncipe nunca foi fácil, pois o príncipe Arjuna vivia sempre cercado por muitas pessoas e asseclas. Além de popular, era realmente muito dedicado ao reino, e apesar das várias tentativas Tagore nunca conseguiu realizar tal sonho. O rapaz sempre teve no príncipe um exemplo de bom homem, que de certa forma relembrava seu pai, de quem tinha imensa saudade. Seu pai fora assassinado de forma misteriosa. Passados alguns anos sua mãe casou-se novamente, desta vez com um homem que havia trabalhado com o seu pai; também parecia ao jovem que eles foram amigos, lembrava-se de vê-los sempre juntos quando criança. Logo depois do casamento ele foi morar com eles, com a convivência passou a tratar muito mal o menino, o que lhe provocou sérios problemas, traumas e medos. Tagore sofreu muito nas mãos do seu padrasto, que batia nele por qualquer coisa. Sua mãe, submissa, fingia que nada acontecia, Tagore parou seus estudos desde que seu pai foi assassinado, no entanto continuamente estava lendo algum livro ou desenhando. Tagore nunca soube quem fora o assassino de seu pai, até que um dia achou uma carta de seu pai dizendo que traiu o reino por que queria muito dinheiro e acabou negociando uma mercadoria muito importante do príncipe Arjuna com o reino inimigo. O príncipe descobriu e muito furioso estava à sua procura. Surpreso, Tagore não entendia o que havia acontecido no passado, sabia que o pai trabalhava com o príncipe e que eram grandes amigos. A carta deixou estranhas dúvidas em sua mente: seria o príncipe o assassino de seu pai? Decidido a investigar a morte de seu pai, Tagore fugiu em direção ao castelo de Jaipur, morada do príncipe Arjuna. Apesar das evidências da carta, no íntimo do seu coração nutria a esperança de que o príncipe não fosse o autor da morte de seu pai, mas precisava descobrir a verdade. Por sua mente passava a memória de sua infância, as longas conversas de seu pai com o príncipe, o
  • 19. sorriso dele ao chegar do trabalho e abraçar sua mãe e o aperto forte de suas mãos. Durante a viagem passou a desenhar tudo que via, os traços das árvores, o voo dos passaros, o sorriso das crianças brincando, o sobe e desce das montanhas, ao longe alguns devotos dançando na frente de um templo. Ao cair da primeira noite passou por um vilarejo e resolveu dormir na copa de uma árvore, acordou assustado com uma criança lhe observando. Ela lhe ofereceu comida, ele agradeceu e seguiu viagem. No segundo dia caminhando conheceu Sawai, um homem que levava encomendas para a cidade de Jaipur numa carroça, e ofereceu-lhe uma carona até a cidade. Já nas proximidades da cidade, Sawai disse que passariam pelo rio das lamentações de barco para poder levar as encomendas e convidou-o: ―Tome cuidado na travessia, jovem Tagore, porque diz a lenda que quem passar pelo rio tem seus segredos do passado revelados. Tagore aceitou atravessar o rio com Sawai. Na travessia Tagore teve uma visão, sentiu uma tonteira tomar contar do seu corpo, olhou pro rio e viu as águas turvas diante de si. Do meio daquelas águas surgiu uma imagem, nela viu nitidamente seu padrasto lutando com seu pai na floresta perto da cidade que eles moravam, viu também o padrasto sacar uma adaga. No momento que o homem ia cortar seu pai com a arma, Tagore sentiu a garganta apertar. Uma sonolência apoderou-se de sua mente e caiu no chão do barco desacordado. Sawai ficou desesperado, não havia ninguém além do bargueiro pra ajudar. Para sua calma, o jovem não tardou em acordar, mas mentiu sobre a visão, pois ainda não sabia o que fazer com tal revelação, não viu o padrasto matar o seu pai, mas viu a adaga cortar o ar e os olhos de ódio daquele homem contra seu pai. Ao desembarcar se despediu e agradeceu a Sawai.
  • 20. Seguiu rumo ao castelo de Jaipur, era dia de festa no castelo, muitas pessoas entravam e saíam levando coisas para a festa. Ele avistou uma carroça de flores indo em direção ao castelo, então se escondeu na carroça conseguindo passar pelos portões, disfarçou-se como um dos serviçais do príncipe, passou pelas imensas colunas douradas que davam entradas a grandes salões, sabia que nesses salões o príncipe costumava receber pessoas da realeza. Aproximou-se do corredor lateral que dava acesso aos aposentos reais, quando de repende alguém o interrompeu dizendo: ―Ei! Leve essa bandeja para o príncipe no salão de eventos por ali― acenou com a cabeça para a direita. Era a oportunidade que estava esperando. Tentando demostrar tranquilidade, foi ao encontro do príncipe. Naquele imenso salão ornado de flores e tecidos, sentado no centro de um tapete colorido estava o príncipe. Parecia que o tempo havia parado. O príncipe Arjuna tinha o mesmo sorriso, algumas pessoas faziam barulho ao redor dele, mas Tagore não percebia, tudo que passava pela sua cabeça era que aquele homem com aquele sorriso certamente era o amigo do seu pai. Aproximou-se lentamente do príncipe. ―Chegou o chá― O príncipe chegou bem perto de Tagore, olhou nos seus olhos e perguntou com um jeito desconfiado: ―Seu rosto parece-me familiar, meu jovem, como se chama? ―Sou Tagore, filho de Brisma. ―Brisma, meu muito amigo do passado? ―Sim, vim até o senhor, príncipe Arjuna, com muitas perguntas sobre meu pai. Batendo palmas o príncipe pediu que todos se retirassem para que pudesse falar a sós com Tagore.
  • 21. O príncipe abraçou o jovem emocionado dizendo: ―Você é muito parecido com seu pai, não sabia que trabalhava aqui, nunca o vi antes. Seu pai não era apenas um comprador de mercadorias do palácio, nos conheciamos desde a infância , sofri muito quando seu pai morreu, nunca mais tive notícias suas e de sua mãe, pois havia pouco tempo que seu pai tinha saído da cidade com sua mãe e não soube onde estavam, mas agora estou feliz de encontrar você. ―Não trabalho no palácio, apenas me disfarcei para encontrar com o senhor. Minha mãe casou novamente, eu sempre quis saber a verdade sobre a morte do meu pai. Até que um dia encontrei isso. Retirou do bolso a carta e entregou ao príncipe dizendo: ―Passei pelo rio das lamentações e tive uma visão do meu pai lutando com meu padrasto na floresta, vi uma adaga na mão do meu padrasto cortar o ar e acordei. Assustado o príncipe falou com o jovem: ―Venha comigo― pegou Tagore pelas mãos e saiu pelo corredor até um quarto, abriu uma pequena gaveta, retirou um objeto envolto em um tecido, desenrolou e perguntou: ―É está adaga que você viu? Esta adaga foi encontrada na floresta com o sangue de seu pai que jazia estentido sobre umas pedras. Esta arma pertencia ao assistente do seu pai, um homem rude que nutria muita inveja no seu coração, Kansas. ―Mas é o meu padrasto! Ele devia estar preso, por que não prenderam ele ? Por que ele casou com minha mãe? ― Kansas alegou que havia perdido a adaga uma semana antes e nunca conseguiram provar nada contra ele, pois algumas pessoas do povoado disseram tê-lo visto sem sua adaga, mas sempre soubemos que foi Kansas que matou Brisma. Quanto à carta foi
  • 22. uma das muitas rusgas do passado, apenas um mal entendido, que soubemos solucionar juntos, eu e o seu pai― e mais uma vez abraçou Tagore e os dois choraram. Tagore ficou morando com o príncipe e mandou notícias para sua mãe, que estava muito bem. Com o tempo perdoou o padrasto, apesar de tê-lo feito sofrer. Para sua mãe, Kansas era um bom marido e o jovem achou que era uma recompensa para o coração dela. Tagore tornou-se o desenhista oficial do Castelo de Jaipur e todos se encantavam com seus desenhos. Vinham pessoas de todas as partes da Índia para serem desenhadas por ele, e seus desenhos viajaram o mundo.
  • 24. Lembro-me da residência, uma casa de arquitetura colonial, localizada às margens de uma lagoa, com uma árvore de ipê nos fundos, uma vizinhança tranquila, amigável e com vários campos que na primavera se cobria de flores. Parece paisagem de pintura, mas era real, eu também não acreditava que lugares assim existiam, mas existem, agora não sei se neste mundo ou no outro. Eu era novo, recém-admitido numa empresa multinacional, meus pais não aprovavam a minha mudança, sair do centro urbano para me acomodar numa cidadela interiorana. Confesso que eu tinha receio de não me adaptar, mas o salário era muito bom, eu poderia levar adiante os meus planos de montar a minha própria empresa de consultoria artística. Logo que aceitei o emprego, cheguei à pacata cidade de Novos Campos e passei um dia inteiro em busca de um lugar para alugar, algo que não fosse tão caro, afinal eu queria economizar, mas que fosse aconchegante para um rapaz solteiro que viveria só por alguns anos. Percorri por várias ruas do centro da cidade e nenhuma moradia disponível, pedi informações aos moradores e todos me davam a mesma resposta “aqui é difícil encontrar casas vagas”, então decidi, enfim, procurar o único corretor de imóveis da cidade. Na imobiliária me deparei com uma situação inusitada e um pouco desestimulante, a única casa disponível se localizava a alguns quilômetros fora do centro da cidade; era uma casa campestre e, além disso, possuía a fama de ser mal assombrada. Ri no momento em que soube da história, mas imediatamente desfiz o sorriso, pois percebi que o corretor falara sério. Perguntei sobre qual tipo de assombração estávamos falando, afinal, anoitecia e eu precisava definir um local para passar a noite. O corretor explicou-me um pouco da história da casa, disse que no passado ela era habitada por um grande coronel, dono de muitas terras e de trabalhadores escravizados por dívidas. Era um homem muito cruel, muitos homens sofreram castigos perversos e morreram naquelas terras. A casa está localizada nos campos mais lindos da cidade, mas tem esse problema de ser povoada por esses espíritos dos ex-trabalhadores.
  • 25. Acreditei na história que ele me contou, pois me mostrou, na internet, alguns documentos antigos da época: eram registros de jornal que documentavam a descoberta do cemitério clandestino com mais de vinte ossadas de seres humanos, os supostos extrabalhadores. Mas não acreditei que a casa sofresse com a influência de algum tipo de energia do além, nunca acreditei nisso, meus pais sempre me falavam que era para eu ter medo dos vivos, pois os mortos nada podiam fazer de mal. Convicto no que eu pensava e na necessidade de dormir, eu estava exausto, resolvi ir conhecer a tal casa. A meia hora do centro de Novos Campos, bem após uma curva há mais ou menos um quilômetro eu já conseguia avistar a casa, construída sobre uma colina. De fato, era uma casa em estilo colonial, com uma varanda trabalhada em arcos, portas e janelas feitas de madeira de lei. Não sei por que as pessoas evitavam aquela casa, ela era tão charmosa e possuía um grande valor histórico, embora não fosse um passado muito bom, mas isso não a desvalorizava enquanto história, afinal, a sua estrutura representava um estilo de época e se mantinha intacta, super conservada, exceto pela pintura desgastada. Nem bem chegamos e o corretor deu meia-volta e saiu queimando pneu, apenas deixou claro que os boletos seriam enviados para o endereço todo fim de mês. Não importou a mim, estava ansioso para adentrar na minha nova casa. No interior da sala, vi que a mobília estava descoberta e limpa, como se a casa nunca tivesse deixado de ser habitada. Novamente não me importou, continuei explorando o lugar. Fui aos quartos, embora o valor cobrado pelo imóvel estivesse acessível, a casa era grande, possuía vários quartos, todos distribuídos em um corredor longo, que ligava a sala à cozinha. Definitivamente, eu estava satisfeito com a minha aquisição, havia me apaixonado pela casa, o cansaço me vencia, mas não poderia dormir sem pegar uma ducha. Fui conhecer a banheira da suíte, a pus para encher enquanto retirava a roupa, fui me despindo, e do nada a porta abriu lentamente, propagando pelo cômodo um ruído de dobradiças enferrujadas. Olhei para a porta, mas não vi ninguém. Peguei a toalha a coloquei no ombro,
  • 26. caminhei até a porta, fechei-a e me dirigi ao banheiro. Mergulhei lentamente na banheira e com o chuveiro ainda ligado, aparei as gotas no rosto até adormecer. Quando acordei, senti um cheiro bom de café da manhã. Estranhei, afinal, quem poderia estar na cozinha fazendo o café? Eu era novo ali e não tinha feito amizade com ninguém ainda, sequer tinha me apresentado na filial da empresa. Peguei a toalha, enrolei-a na cintura e desci a escada devagar, olhando apreensivo cada cômodo da casa. Ao chegar à cozinha, vi uma mulher de costas, trajando um vestido longo, antigo. Era morena, aparentemente nova, por volta dos vinte anos, corpo bonito, parecia preparar algo. Assustado eu deixei escapar um “oi”, mas ela não respondeu, fui me aproximando devagar até conseguir tocar em seu ombro, então a toquei e perguntei: “Quem é você?” Ela se virou e falou com um ar de felicidade: “Até que enfim você acordou!” Eu não entendi nada, mas olhei em seus olhos verdes que me hipnotizaram e me regressaram à sua história. Seu nome era Esmeralda, talvez pela cor dos olhos, era filha bastarda do dono da casa, Coronel Antônio Vellais. O coronel era casado com a senhora Lindalva, alguns anos mais nova que ele, charmosa, porém estéril, o que fazia com que aceitasse a presença de Esmeralda na casa, mesmo sabendo que era fruto de um ato de infidelidade de seu esposo. Esmeralda era tratada como uma serviçal, não era escrava, mas não gozava de seus direitos como filha. O coronel sofria de uma enfermidade crônica, sabia que logo morreria, portanto tratou de cuidar do atestado antes que a sua hora de partir chegasse. Embora a fama de coronel cruel do senhor Vellais ultrapassasse as fronteiras da cidade, em seu testamento, ele buscou se redimir com Esmeralda e deixou a posse da Casa Colonial em nome de sua única filha. Quando morreu e a leitura do testamento foi feita, senhora Lindalva não se conformou e se descontrolou emocionalmente, foi até a sala de caça da casa, pegou uma arma, voltou à sala e atirou em Esmeralda, que em seus poucos minutos de vida, sussurrou: “Esta casa é minha e daqui não sairei”.
  • 27. Após esta lembrança, voltei da regressão e compreendi o que se passava na casa. A moça pegou numa de minhas mãos e disse: “Agora ela também é sua”. Olhei seriamente nos olhos dela, depois baixei a cabeça e vi que na outra mão ela manuseava uma faca com a qual me desferiu um golpe fatal dizendo: “Fazia muito tempo que te esperava!” Minha vista foi embaçando, fui caindo e a respiração parando lentamente, meu sangue escorrendo e sendo absorvido pelo piso. Eu, definitivamente, fui me sentindo cada vez mais ligado à arquitetura da casa, desde então nunca mais ninguém obteve notícias a meu respeito. Junto a Esmeralda e aos outros espíritos da fazenda, passei a guardar a casa de todos os intrusos que a tentassem tomar de nós.
  • 28. CINEMA Conto: A vida é um roteiro de quinta (por Rodrigo Mergulhão)
  • 29. Tom era um garoto solitário em seu universo particular. Contrariando convenções, preferia Hawking, Hobsbawm e Kurtz aos irmãos Grimm ou Monteiro Lobato. Debatia na internet a teoria das cordas e descobertas de estrelas anãs. Nas horas vagas, era astronauta. E foi em uma de suas viagens errantes que conheceu Klwyngoom X. – Pequeno terreno, eu sou Klwyngoom X – falou o habitante de Adrasteia, um dos satélites de Júpiter. – Tenho uma mensagem ao seu povo mundano. – Venha comigo à Terra! – convidou Tom. A chegada de Klwyngoom X à Terra causou furor. O evento era o desvario perfeito dos contextos spielberguianos. O extraterrestre foi tachado de ameaça universal. – Infestações terráqueas, trago-lhes uma mensagem – falou Klwyngoom X diante do mundo. – Cuidem de seu planeta. Pólos derretem. Águas se esvaem. Ar acinzenta. Florestas desbotam. Vocês morrerão. Ao fim da declaração, todas as nações da Terra atacaram o ser estranho. Para salvá-lo, Tom fugiu carregando-o no cesto de sua bicicleta, que voou ao espaço. Na estratosfera, Tom foi crivado por submetralhadoras e morreu; Klwyngoom X estava só. Ele não compreendeu o ser humano; o homem era mesmo animal sem razão. Ele precisaria voltar logo para Adrasteia. Infelizmente, escorregou do cesto da bicicleta e viu-se caindo, caindo... Santiago acordou suado. Que ridículo! Havia sonhado que era um alienígena chamado alguma-coisa-xis! Realmente, ele precisava de ideias melhores. Há muitas semanas, Santiago lamentava ainda não ter script louvável à produção de um curta como avaliação de seu último semestre na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, uma das mais renomadas faculdades de cinema do mundo. Aos vinte e nove anos, Santiago Cabrón estava a um passo de concretizar o sonho de ser cineasta. Deparava-se atualmente, porém, com falta de tato e inspiração. O fato lhe alarmava. – Não consigo, Larry! – queixou-se Santiago ao colega de quarto.
  • 30. – Relax, latino. Se até Vidal teve problemas com Brass, você ainda acha salvação. – Não tenho ideias... – A sua própria história de vida já é um roteiro, man. Expatriado de Cuba, Santiago Cabrón, vivia há oito anos em território norte-americano. Em seu país, Cabrón era integrante do Hijos de Perras, grupo anárquico cujos membros infiltravamse nas engrenagens do governo cubano para divulgar as controvérsias de Fidel Castro. Cabrón foi perseguido após publicar artigos sobre a existência de provas do pagamento de Castro a Lee Harvey Oswald para que este matasse John Kennedy, em 1963. Cabrón pediu asilo aos Estados Unidos da América. Todo esse cenário também lhe perturbava ainda hoje porque alguém o seguia. Estagiário do jornal La Opinión, a caminho do trabalho, à noite, Santiago foi abordado por três homens encapuzados; dois o seguraram contra um muro. – Vamos, Sierra! – gritava o terceiro homem, que lhe socava o rosto. – Onde estão os papéis?! Sierra. Alejandro Sierra. O verdadeiro nome de Cabrón. Como sabiam? – Não sei do que falam! Meu nome é Santi... O homem lhe bateu com um bastão de beisebol, quebrando-lhe duas costelas. – Sem gracinhas, Sierra, sei quem você é! Devolva a pasta, pelotudo de mierda! Santigo compreendeu. Eles eram agentes de Raúl. Em 2008, lobos cubanos tiveram carta branca: todos os inimigos dos Castro seriam caçados. Aqueles capangas queriam o Dossiê Politburo, documentos acerca da aproximação do governo cubano com o Partido Comunista da União Soviética nos anos 60, roubados pelo Hijos. Cabrón não lhes entregou o material. O agressor cravou-lhe um canivete na jugular. O corpo de Santiago foi jogado na Hollywood Boulevard. Começou a chover. Santiago espirrou. – CORTA! Porra, Max! Espirrou de novo, caralho! – gritou Müller.
  • 31. – Poxa, Müller, desculpa, foi essa água fria... – lamentou Max. – Sempre a água, sempre a água! Cadê teu profissionalismo, cara?! Puta merda... Muito obrigado, pessoal. Graças a Max, por hoje é só, não é, Max? Müller dispensou a equipe e todos abandonaram o set. Max permaneceu sozinho no escuro, limpando o sangue falso em seu pescoço, ainda enfurecido por seu diretor ter sido rude diante de todos. Max Ventura era uma negação. Tentava ser astro do cinema brasileiro desde 1998, quando fez testes para figurante do programa Zorra Total. No entanto, as oportunidades não lhe cabiam. Perdera para Vinícius de Oliveira o papel de Josué, em Central do Brasil, por não ser cabeçudo. Ao encontrar o ator na rua, a esmo, agrediu Vinícius e ficou detido na FEBEM por quatro meses. Nas audições para O auto da Compadecida, Fernanda Montenegro lembrou-se do espancador de seu jovem colega e recusou-se a interpretar a Compadecida caso Max Ventura estivesse no elenco. Não se faz necessário dizer o desfecho da história. Antecipando-se para Carandiru, Max implantara próteses mamárias de silicone para interpretar a personagem Lady Di. Inexplicavelmente a Max, Rodrigo Santoro foi selecionado ao papel. Por causa dos seios, perdeu Lisbela e o prisioneiro e Cazuza. Para conseguir pagar a retirada das mamas, teve de fazer propagandas de sutiãs e campanhas de exame de toque contra câncer sem exibição de seu rosto. Suas derradeiras tentativas foram em 2007, com Cidade dos Homens e Tropa de Elite. Não se lê “Max Ventura” nos créditos dos filmes. Cinco anos depois, interpretava Santiago Cabrón. Ele mal entendia o roteiro. Era um herói cubano urbano cineasta. Algo assim. Selton Mello havia recusado o papel. Por que seria? Não importava, ele tinha sua chance de atuar. Ele enfim tinha a sua chance de atuar. A sua chance de mostrar ao mundo o que era capaz! Enfim! Todos pagariam por seu atraso! E pagariam caro! Mui-to-ca-ro! Max Ventura planejou livrar-se dos que lhe haviam
  • 32. recusado suporte até aquele momento. Ele mataria cada ator que lhe usurpara personagem; cada diretor, produtor e roteirista que até hoje lhe negara trabalho e começaria por Cacá Diegues. – Cacá Diegues? Mas que merda é essa, Tomás? Que merda de história é essa, Tomás?! – Então, Meireles, deixa eu ler de novo pra você, olha só... – Ler porra nenhuma! Eu sei ler, caralho! Tô perguntando que bosta é essa! Monteiro Lobato?! E o que é Kurtz?! Mas que merda de Clingu do... do... do asteroide de Júpiter? O que é isso? Cocoon?! Que bosta, Tomás! – Ô, Meireles, não é bem assim. – “Não é bem assim”, cara?! Então que porra de Fidel é essa?! Tá louco, homem? Já se deu conta da cagada que isso pode dar?! Conspiração cubana?! E a UCLA! Tu pediu permissão pra usar o nome da Universidade da Califórnia, Tomás?! Meireles berrou o fim da frase. Tomás tremia ao lhe apresentar o rascunho com o qual concorreriam pelo patrocínio da Petrobras através do “Programa Petrobras Cultural – Seleção Pública de Projetos, edição 2012”, do apoio à produção de filmes inéditos brasileiros de longa-metragem, realizados ou finalizados em película cinematográfica de 35mm ou formato digital, de produção independente e que se destinassem a salas de cinema originalmente. – E o título? “Assassinatos na Academia Brasileira de Cinema”?! Que é isso?! Jô Soares?! Tu tá plagiando Jô Soares, sua mula?! – Plagiando nada... Pode ver no CPB... Além do mais, é um título provisório... Pensei também em “Sangue no Gramado”. O festival, Gramado, Rio Grande do Sul, sabe? – Não, Tomás, não sei de mais nada! Mas que merda, cara...! Um Santiago lá da puta-que-pariu vem matar gente aqui no Brasil?! Tá louco?! Que coisa mais patética, seu idiota! – Não é Santiago Cabrón, Meireles, é Max Ventura, leia direito... – Que resolve matar gente aqui no Brasil? – repetiu Meireles. – Não é matar, matar... É só uma brincadeirinha nominal... Homenagem, sei lá.
  • 33. – Então você decidiu ridicularizar, digo, brincar com, perdão, brincar com Hector Babenco, Paulo Morelli, Walter Salles, Wagner Moura, Montenegro, Santoro, é isso, Tomás? Hein? Tomás não respondeu. – Tomás, você enlouqueceu? – perguntou o diretor. Tomás não respondeu. – Tomás, você enlouqueceu – disse o doutor. Eu não respondi. – Você enlouqueceu e – continuou me dizendo o doutor –, desde ontem você está aqui conosco, Tomás. Seus filhos acharam melhor interná-lo. Mas não se preocupe, você poderá vê-los todos os dias. Não, eu não estava louco. Eu sou apenas um garoto solitário em seu universo particular. Contrariando convenções, prefiro Hawking, Hobsbawm e Kurtz aos irmãos Grimm ou Monteiro Lobato. Deixa eu te contar uma história, leitor: eu sou astronauta.
  • 34. POESIA Conto: A passagem (por Genniffer Moreira)
  • 35. Algumas gotas de tristeza lhe caíam dos olhos, enquanto a menina observava a beleza das nuvens. Não eram simples lágrimas de saudade, não eram compostas lágrimas de felicidade, eram singelas lágrimas pela percepção da sua inseparável relação com a solidão. E as gotículas de tristeza continuavam a cair e molhar a grama verde do lugar onde a pequena menina estava sentada, um lugar qualquer situado numa cidade qualquer, numa dimensão qualquer sem importância. Olhar a grama não lhe causava o mesmo efeito que olhar as nuvens, a tristeza se aprofundava com mais facilidade quando ela observava a estranha beleza das nuvens se contrapondo ao azul do céu. A menina acreditava em mágica e pensava que as nuvens faziam parte de algum feitiço de Duendes ou Fadas que vivem no final do arco-íris. Pensar em magia era um passatempo que amenizava a tristeza de saber sobre a sua irremediável solidão. O branco fumacento das nuvens continha particularidades que a frágil menina não conseguia explicar com palavras, talvez, ninguém pudesse explicar verbalmente as particularidades que as nuvens podem causar nos sentidos dos seres humanos. Ela acreditava que nem as nuvens poderiam explicar sobre essa singular sensação que causam nas pessoas, portanto, a verdade sobre as nuvens não precisava ser explicada ou estudada por ela e pelos demais seres humanos que observavam as nuvens. A menina sorriu ao pensar que as nuvens possuíam uma beleza singular e inexplicável, como em um encantamento a tristeza que encharcava a grama daquele lugar onde ela estava evaporou. Num passe de mágica as gotas de tristeza que restavam dentro do seu pequeno coração simplesmente deixaram de existir, agora não era mais doloroso pensar na solidão, agora ela podia pegar a passagem em seu bolso e sorrir ao imaginar o que lhe esperava no final do arco-íris. Porém, o possível final do arco-íris da pequena menina não se tratava de um belo final feliz, ou, talvez, o orfanato qualquer na cidade vizinha para onde ela deveria viajar não fosse o pote de
  • 36. ouro no final do seu arco-íris. Mas, isso não tinha importância, naquele breve momento as nuvens haviam enchido o coração da menina de alegria e poesia, naquela tarde ensolarada e deprimente, enfim, as nuvens lhe haviam dado um valioso presente, e seu presente era de fato o seu tempo presente. O final não precisava ser escrito, o final não tinha importância, a passagem na mão da menina não simbolizaria a sua eterna solidão e tristeza. A passagem deveria ter muitos outros significados que ela desconhecia. E as nuvens não poderiam explicar com palavras a verdadeira POESIA que vivia dentro do coração daquela menina.
  • 37. MÚSICA Conto: Sua Música (por Samila Lages)
  • 38. Era tudo silêncio, desde o princípio. E seria tudo silêncio até o fim, se ela não tivesse aparecido. Ela era como uma ventania, um furioso e barulhento tufão que chegou de repente, derrubando todas as estruturas da sua vida. E o fizera de maneira tão sutil que ele, bobo, chegou a agradecer aos céus por aquela arrebatadora destruição. Como se conheceram? Um bar, um pequeno palco, amigos e gim. Ela cantava e tocava baixo na banda que se apresentava. Ele apenas bebia mais uns goles de gim enquanto sentia as vibrações mais graves da música em seu corpo e escutava as palavras dela com seus olhos. Ela cantava bem, ele logo soube só de observar como a sua face transmitia uma profunda emoção quando ela fechava os olhos. Ela era linda, ele pensou observando seus cabelos tintos em vermelho fogo e a cintura marcada por um corselet vermelho. Seus movimentos e gestos também detinham a atitude esperada de uma artista do rock, ele supôs, mesmo sem saber por que deveria se esperar aquilo de uma artista do rock. Ele só sabia que a música era boa e batia palmas ao final de cada execução. Durante todo o show ele a observou, sem se dar conta de que era quase ridícula sua atenção exacerbada. Volta e meia um dos amigos da mesa o cutucava, soltava uma gracinha, de que ele ia ‘secar’ a menina se continuasse olhando daquela maneira. Ele se sentiu um pouco envergonhado, mas não conseguiu parar de olhar. Talvez por toda essa atenção, a vocalista, antes do encerramento, apontou para ele e disse “essa é a última música e eu gostaria de dedicar para o bonitão de óculos aqui da frente!” Ele corou um pouco e perguntou para um dos amigos o que ela tinha dito. Quase não acreditou e abriu um sorriso enquanto observava novamente a bela face dela repleta de sentimentos. E quando o show terminou, ela desceu do palco, veio falar com ele. Perguntou se poderia ganhar um pouco do gim que tomavam.
  • 39. Obviamente, ele travou, mas um dos amigos se adiantou e explicou que ele não ouvia, mas que ela era bem vinda a sentar-se com eles. -Como assim ele não ouve? Ele estava prestando tanta atenção na banda. –Ela perguntou. De fato, tinha visto o pessoal da mesa usando libras em alguns momentos, mas não imaginou que fosse ele o surdo. O amigo pensou se responderia, mas achou melhor dizer para Bruno responder por si só, apontando para o caderno dele e fazendo os sinais que indicavam a pergunta dela. “Eu podia sentir a vibração do som do seu baixo, e algumas batidas da bateria. E você parece cantar muito bem, você transmite a letra com sua face.” Ele entregou o papel com um sorriso meio tímido. Ainda um pouco impressionada ela aceitou o convite para se sentar, e não sabendo libras pegou a caneta dele e se pôs a dialogar de uma maneira que nunca tinha feito, quase ignorando os demais membros da mesa. Bruno descobriu que o nome dela era Daniela, mas que ela gostava de ser chamada de Danny. Falaram sobre as diversas coisas, desde música e pintura (ele era artista plástico), até as mais piegas e ridiculamente românticas formas de literatura. Mais de uma hora se passou e ela precisava ir. Eles trocaram contato e marcaram um encontro, dois, três. Ele pintou quatro retratos dela, e às vezes ela cantava em seu ouvido, mesmo sabendo que ele não escutaria. Mas ele sentia a vibração e o hálito quente dela na orelha e se limitava a imaginar o quão sensual seria a voz dela. Aquilo lhe bastava, ou pelo menos ele achava que bastaria. Em oito meses ficaram noivos e foram morar juntos. Bruno ia a cada um dos seus shows. Conheceu o pessoal da banda, fez amizade e até desenhou a capa do EP deles. Danny tinha
  • 40. aprendido a falar em libras; às vezes lhe traduzia as letras em gestos enquanto cantava. Eram palavras muito bonitas, mas não detinham nem metade da emoção que sua face demonstrava enquanto ela cantava no palco. E por algum motivo, aquilo lhe dava vontade de chorar. Era incômodo saber que a seu redor centenas de pessoas escutavam a voz dela, escutavam suas palavras, viam suas expressões e a adoravam por isso. Um dia ela escreveu uma música para ele, dizendo o quanto o amava, dizendo que ele era um anjo em sua vida. Ele chorou. Ela pensou que fosse emoção, mas na verdade era tristeza. Era difícil para Bruno saber que centenas, milhares de pessoas tinham uma parte dela que ele jamais teria. Ele se preguntou se seria certo ter uma música dela para si. Quando decidiu que era certo, ele se perguntou por que não poderia escutar a voz dela cantando aquela música que deveria ser só sua. Por que ela cantava aquela música para todo mundo? Ele sentiu raiva de si, de Deus e dela quando essa música se transformou em hit. Graças ao sucesso a banda fechou contrato com uma grande gravadora e até vídeo-clip fizeram daquela música. O assédio dos fãs dela o irritavam, os elogios nas redes sociais e na crítica especializada o deixavam enciumado. Até na televisão ela ia! E da televisão ele não podia nem escutar as vibrações do baixo dela. Ele não foi mais aos shows e passou a sair de casa toda vez que ela tocava piano ou baixo. Da mesma forma, não quis desenhar a capa do novo álbum da banda. Quase não se falavam, e quando faziam, brigavam pelos mais torpes motivos. Ele não quis nem continuar o quadro dela que estava em andamento.
  • 41. Ele não escutava enquanto ela chorava baixinho com o rosto enfiado no travesseiro durante à noite. Mas ele sentia. Sentia em seu peito o choro dela. Quando ela estourou e disse que iria embora, ele chorou também, pediu desculpas com um abraço e um beijo, explicou porque estava agindo daquela forma. Ela perdoou em palavras que ele não ouviu e em gestos que acalentaram seu coração. Ela sorriu em meio a seu choro. E naquele sorriso havia música. No seu abraço havia música. No seu beijo havia música. Ele era o único que conhecia aquela música. Como ele era felizardo por ser o único no mundo capaz de ouvir aquela música, tão bela, tão sua. Só sua.
  • 43. Entreolharam-se naquele setembro. Fatal? Não. Nesses encontros só há o nascimento de algo bom. A mágica de dois olhares que se cruzam no mesmo instante: a simultaneidade divina. Eis que naquele baile, no meio do salão, eles se viram pela primeira vez. Ela dançava sozinha, como se o mundo lhe fosse alheio aos pés e só importasse a música que lhe atingia, na delicadeza dos movimentos de uma bailarina clássica. Ele dançava sozinho também, mas com uma ginga maliciosa de sambista cafajeste. Mas ainda que parecesse malemolente, ele era tímido demais para chamá-la. E assim a noite foi passando, os suores foram escorrendo, as solas foram se desgastando, os músicos foram se cansando, as bebidas foram se acabando e os dois foram se desanimando. Ele, ainda se perguntando como chegar nela, e observando o contraste de estilos que guiavam ambos os corpos. Ela era sublime e sensual ao mesmo tempo, mas concentrava-se na própria leveza autossuficiente. Reinava, majestosa, numa solidão confortável. Como ele conseguiria apagar o ar maroto do rosto e ser digno de merecer a honra de uma dança, antes do amanhecer? Precisava tê-la em seus braços ao som de qualquer música, não importava qual. Sabia que qualquer canção se transformaria em um hino assim que ele a tocasse. Enquanto isso, ela permanecia lá, intacta e aparentemente indiferente ao dilema interno que ele estava vivendo. Foi até o balcão e virou uma dose. Uma dose de álcool que deu origem a uma dose de coragem também, para que (até que enfim!) ele se aproximasse. Quando finalmente ficou ao lado dela, não soube o que dizer, mas nem precisou abrir a boca para mais nada. Ela o pegou pela mão, pois entendeu desde o princípio daquela festa que eles tinham sido feitos para bailar um com o outro. E pacientemente aguardou que seu futuro par viesse para mais perto, sem forçar nem apressar a chegada. “Ele virá quando se sentir à vontade”, pensou ela: “não posso adiantar a hora certa e o fluir das coisas”...
  • 44. Posicionaram-se frente a frente. Olharam-se mais uma vez. As mãos quentes e suadas quase se grudaram uma a outra. A música começou novamente: Chama, Me chama Que eu te esperei no fundo do salão dos dias. Chama, Que a chama Vai ascender em seis por oito o nosso par... E como ele havia imaginado, a música na companhia dela se tornou única! E houve sim, uma chama: o fogo do sapateado e a luz flamejante nos olhos deles. Naquele momento, em que os pés se mexeram em conjunto... Passos ritmados, coração descompassado. Me aperta contra o peito e a favor do meu desejo de dançar, Talvez descompassar. Me baila do teu jeito e me conduz num passo feito só pra nós... E chama-me! Naquele momento, em que o vestido dela - de caimento perfeito - esvoaçou no rodopio de ambos... Eles se tornaram um só. E assim surgiu um amor: um amor que estaria, para sempre, em movimento. Casaram-se três anos depois, ao som da mesma canção do dia em que se viram pela primeira vez naquele baile: Chama-me, de Gisele de Santi. O tempo foi passando e mesmo com a rotina que assola todos os casais, viviam como se estivessem em constante lua-de-mel e aos domingos, entre cafés e bacias de pipoca com leite condensado, se amavam no sofá da sala.
  • 45. Quando chegou o Carnaval, saíram entre confetes e serpentina... Ele pierrot e ela colombina, em meio às marchinhas. Ela deixou de lado a erudição do ballet e ele a ensinou a ter um pouco de samba no pé. E apesar da efemeridade desse festejo, que após quatro dias se finda em cinzas, a avenida da vida deles prosseguiu com uma alegoria. Dentro do ventre dela. O engraçado é que no caso específico dessa relação, não havia, na intimidade da cama, a expressão “fazer amor”. Entre eles, era... “Dançar amor”.
  • 46. PINTURA Conto: O pintor (por Rodrigo Ferreira)
  • 47. Um par de olhos femininos estava fixo no quadro finalizado diante de si. O artista daquela magnífica pintura também fixava o olhar sobre a obra acabada: uma linda mulher nua, deitada sobre um divã, pintada em diferentes tons de vermelho. ― Só falta falar, você não acha? ― disse o feliz artista àquela que servira como modelo para sua arte. Resposta alguma foi ouvida naquela pequena, fétida e amontoada sala de pintura, o que não pareceu incomodar o contente trabalhador. Os dois pares de olhos continuavam vidrados na tela. Calmamente, o pintor recolhe o quadro do cavalete e centraliza sua nova obra-prima entre outros trinta quadros de pintura, quadros estes escurecidos e já carcomidos. Essa nova arte acendia uma bruxuleante luz vermelha sobre as outras telas negras como o piche. ― A melhor de todas. Sem sombra de dúvidas. Agradeço a você por me conceder essa honra. Palavras tentavam sair pelos lábios daquela moçoila de olhos esbugalhados e que lacrimejavam. Mesmo o mais simples gesto parecia difícil de reproduzir. Estava estarrecida com tudo e não tirava os olhos da pintura. ― Não se esforce demais. Eu sei que demorou um pouco e você deve estar cansada de manter a mesma posição por um longo tempo, mas cada segundo gasto valeu a pena. As outras telas ao redor daquela última depositada retratavam praticamente a mesma coisa: uma jovem moça nua, deitada sobre um divã, em uma pose sensual, ideal para um artista retratar. Mesmo que aquelas estivessem danificadas e a tinta, de péssima qualidade, já estivesse desgastada, o traçado original ainda podia ser percebido. ― A melhor de todas! ― não cansava de repetir o pintor com orgulho de si mesmo, afinal a tela realmente impressionava. Sirenes de viaturas policiais foram ouvidas pela rua, cercando o prédio do artista em êxtase, mas nem aquele barulho infernal o tirou da observação de sua mais perfeita obra
  • 48. finalizada. Porém, sabendo que todo aquele escarcéu o impediria de criar mais belezas, resolveu recolher-se por hora. ― Jovem moça, agora eu gostaria de descansar um pouco. Dizendo isso, puxou a loira donzela do divã pelos cabelos e a jogou ao chão, em um baque surdo, amaciado pelo carpete manchado de carmim. A mocinha finalmente parou de responder a qualquer estímulo externo. Da sua nuca, uma enorme ferida aberta estava enegrecida pelo sangue endurecido. Entre suas pernas, um vermelho ainda podia ser visto, mesmo que ele tivesse quase extinguido, devido aos pelos do pincel que por ali correram. O pintor deitou-se no divã, deixando uma de suas pernas do lado de fora, o pé levemente recostado na cabeça de mais uma musa inspiradora. ― A mais perfeita. Sem comparação!
  • 49. Agradecemos por ter baixado este e-book e apreciado este material feito com tanto carinho