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Organizadores
João Paulo Allain Teixeira
Louise Dantas de Andrade
Jurisdição, Processo e
Direitos Humanos
Recife, julho de 2014
Créditos
Dseign da capa: Ana Catarina Lemos
Composição do miolo: Ana Catarina Lemos
Organização e revisão: João Paulo Allain Teixeira e Louise Dantas de Andrade
Editora: APPODI
J95 Jurisdição, processo e direitos humanos / João Paulo Allain
Teixeira, Louise Dantas de Andrade, organizadores.
-- Recife : APPODI, 2014.
255 p. : i..
ISBN: 978-85-64680-03-6
1. Direitos humanos - Brasil. I. Teixeira, João Paulo
Fernandes Allain. II. Andrade, Louise Dantas de.
CDU 342.7(81)
SOBRE OS AUTORES
João Paulo Allain Teixeira
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas del Derecho pela
Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universi-
dade Federal de Pernambuco (1995). Professor dos programas de pós-graduação stricto sensu
da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco. Professor
Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, professor da Universidade Católica de Pernam-
buco e Professor titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador ad hoc do MEC/INEP.
Louise Dantas de Andrade
Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Graduada em Direito
pela Universidade Católica de Pernambuco (2010).
5
APRESENTAÇÃO
O pensamento jurídico contemporâneo, nascido a partir da segunda metade do século pas-
sado, tem se voltado às múltiplas possibilidades de compreensão da tutela e promoção dos Direitos
Humanos. Uma das mais evidentes formas de proteção aos Direitos Humanos encontra-se na
dimensão jurisdicional do direito. O trabalho ora apresentado é o resultado de um esforço cole-
tivo voltado a debater as possibilidades de compreensão do papel do Poder Judiciário no que se
refere à efetividade dos Direitos Humanos em um contexto social fragmentado e multifacetado.
Este esforço é viabilizado a partir de diálogos estabelecidos entre os integrantes do Programa de
Pós-Graduação em Direito da UNICAP, integrantes do grupo de pesquisa “Jurisdição Constitucio-
nal, Democracia e Constitucionalização de Direitos” e pesquisadores de outras Universidades e
Centros de Pesquisa do país.
As abordagens que se seguem oferecem um panorama das possibilidades de pensar os di-
reitos humanos a partir do viés jurisdicional. Virginia Colares e Vinicius Calado, utilizando-se das
ferramentas da Análise Crítica do Discurso (ACD), dissecam um editorial publicado em um jornal
pernambucano acerca da Extradição de Cesare Batisti; Carolina Salazar L`Armee Queiroga de
Medeiros e Marilia Montenegro Pessoa de Mello, analisam o simbolismo da Lei Maria da Penha
no tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher; Érica Babini Lapa do Amaral,
Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Juliana Marques Lyra Carneiro Leão, Keunny Raniere Car-
valho de Macêdo Filho estudam o tema da criminalização secundária nas varas da infância e da
juventude do Recife, evidenciando os paradoxos do sistema punitivo brasileiro; Manuela Abath
Valença lança um olhar crítico sobre a cultura do medo e seus reflexos para os Direitos Humanos;
Luciana Brasileiro inscreve os Direitos Humanos no contexto da reprodução assistida, analisando
seus reflexos para o direito à liberdade;em análise sobre a tutela dos Direitos em decorrência da
atividade médica, Natália Barroca estuda as violações aos Direitos Humanos e a responsabilidade
penal em decorrência da episiotomia; Hugo de Brito Machado Segundo partindo da neurociência
e da biologia, vislumbra a possibilidade de contribuições destes dominios do saber para a filosofia
do direito, Daniel Carneiro Leão Romaguera e João Paulo Allain Teixeira procuram estabelecer
um crítica contemporânea aos Direitos Humanos a partir da sua doxa universalista; sob uma pers-
pectiva institucional, Rafael Bezerra de Souza e Carlos Bolonha estudam as dificuldades de pensar
o funcionamento das instituições a partir de um recorte estritamente normativo; Flávia Santiago
Lima trabalha com o tema do “neoconstitucionalismo” destacando seus reflexos para a efetivida-
de constitucional; Em estudo sobre o controle da administração pública, Glauco Salomão Leite e
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo se propõem a refletir sobre o pael da adminsitração pública no
que se refere à constitucionalização do direito à saúde; partindo do perfil legislativo brasileiro, Hé-
6
lio Silvio Ourém Campos dedica a sua atenção para a as interferências assimétricas da política na
produção do direito tributário brasileiro; Raymundo Juliano Feitosa e Alexandre Salema estudam o
tema da extrafiscalidade a partir da Teoria dos Sistemas; Lúcio Grassi de Gouveia trabalha com as
relações entre antijuridicidade e litigância de má-fé; Roberto Wanderley Nogueira analisa os novos
paradigmas constitucionais para o acesso à justiça de pessoas com deficiência; o tema de Aline da
Silva Machado Joaquim e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger é o estudo do Direito à Memória
na Constituição de 1988, partindo da obra “Eichmann em Jerusalém” de Hannah Arendt; Alexan-
dre Henrique Tavares Saldanha trabalha com a liberdade de comunicação em uma sociedade de
informação na restauração de democracias em regimes transicionais; Alexandre Freire Pimentel
dedica-se ao estudo do sistema jurisdicional norte-americano, lançando as bases para uma análise
comparativa entre o direito, o processo e a classificação das ações nos Estados Unidos, e finalmen-
te, Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso estuda as relações entre desenvolvimento econômico e
tráfico de pessoas.
Como se percebe, trata-se de um trabalho conjunto cuja maior virtude encontra-se na pos-
sibilidade de afirmação de um olhar multifacetado sobre um fenômeno complexo. É com alegria
e satisfação que apresentamos à comunidade jurídica nacional este conjunto de reflexões, na
esperança de que possam vir a estimular o debate em torno da proteção jurisdicional dos Direitos
Humanos.
João Paulo Allain Teixeira
Louise Dantas
Recife, julho de 2014
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO5
EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVIDADE JURÍDICA
DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO 10
Virgínia Colares
Vinícius Calado
O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊN-
CIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 18
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros
Marília Montenegro Pessoa de Mello
A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE
RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO
AO MENORISMO  28
Érica Babini Lapa do Amaral Machado
Marília Montenegro Pessoa de Mello
Juliana Marques Lyra Carneiro Leão
Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho
PRIVILÉGIO DE BANDIDOS? A CULTURA DO MEDO E O SENTIMENTO DE INSEGU-
RANÇA COLOCANDO OS DIREITOS HUMANOS EM XEQUE 41
Manuela Abath Valença
DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS E REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA:
LIBERDADE DE REPRODUZIR (?) 53
Luciana Brasileiro
A RESPONSABILIDADE PENAL DECORRENTE DA EPISIOTOMIA COMO VIOLA-
ÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 64
Natália Barroca
CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA E DA BIOLOGIA À FILOSOFIA DO DIREITO72
Hugo de Brito Machado Segundo
DOXA UNIVERSALISTA DOS DIREITOS HUMANOS E SEUS PARADOXOS: POR UMA
CRÍTICA AO DIREITO NA ATUALIDADE 85
Daniel Carneiro Leão Romaguera
João Paulo Allain Teixeira
TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A PERS-
PECTIVA INSTITUCIONAL 105
Rafael Bezerra de Souza
Carlos Bolonha
“MOVIMENTO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL”: CONSIDERA-
ÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DOS POSTULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS NO
BRASIL120
Flávia Santiago Lima
O OUTRO LADO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONTROLE DA ADMINISTRA-
ÇÃO PÚBLICA: ANÁLISE A PARTIR DO DIREITO À SAÚDE  132
Glauco Salomão Leite
Marcelo Labanca Corrêa de Aráujo
O BRASIL – ATOS INSTITUCIONAIS, ATOS COMPLEMENTARES E UMA HISTÓRIA DE
DESCONSTITUCIONALIZAÇÕES E RECONSTITUCIONALIZAÇÕES ACELERADAS139
Hélio Sílvio Ourem Campos
TEORIA DOS SISTEMAS E EXTRAFISCALIDADE: A QUESTÃO DA PREVALÊNCIA DA
LÓGICA DO SUBSISTEMA DA ECONOMIA 157
Raymundo Juliano Feitosa
Alexandre Henrique Salema Ferreira
ANTIJURIDICIDADE E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ 177
Lúcio Grassi de Gouveia
ACESSO À JUSTIÇA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: NOVOS PARADIGMAS
CONSTITUCIONAIS189
Roberto Wanderley Nogueira
O DIREITO À MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: um olhar a partir da obra
Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt 202
Aline da Silva Machado Joaquim
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: DESAFIOS DA LIBER-
DADE DE COMUNICAÇÃO E DA LÓGICA “WIKILEAKS” NA RESTAURAÇÃO DAS
DEMOCRACIAS EM TRANSIÇÃO 223
Alexandre Henrique Tavares Saldanha
O SISTEMA JURISDICIONAL NORTE-AMERICANO: ANÁLISE COMPARATIVA SO-
BREO DIREITO, O PROCESSO E A CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES NOS EUA 231
Alexandre Freire Pimentel
LA POLÍTICA MIGRATORIA DE LOS ESTADOS DESARROLLADOS COMO FACTOR
FACILITADOR DE LA TRATA Y DEL TRÁFICO HUMANO 246
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
10
EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVI-
DADE JURÍDICA DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO
Virgínia Colares1
Vinícius Calado2
1. A NOTÍCIA DO EDITORIAL
	O fato jurídico (lato sensu) noticiado no editorial é uma decisão judicial proferida pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante ao pedido, feito pela Itália, de extradição de Cesare
Battisti, com fundamento em decisão judicial transitada em julgado naquele país que condenou
o cidadão italiano à pena de prisão por homicídio. Destaque-se que até mesmo esta simples in-
formação resumida da questão de fato jurídico não fora abordada no editorial, uma evidência de
versão da notícia politicamente comprometida.
	 O editorial, intitulado “BATTISTI ATINGE O STF”, ao leitor médio pode até passar desper-
cebido e iniciar a leitura do texto sem qualquer reflexão, entretanto o verbo atingir no presente do
indicativo insinua,em seu eixo de possibilidades polissêmicas, imediatamente, um duplo sentido:
o primeiro o de alcançar (chegar até lá) e o segundo de ofender/ manchar a imagem (HOUAISS,
2001. p.334). Assim a oração poderia ser interpretada como “Battisti chega até o STF” ou “Battisti
mancha a imagem do STF”, assinalando ambigüidade na construção.
	 Para o jurista, fica evidenciada a idéia de que Cesare Battisti conseguiu manchar a imagem
do STF com o episódio, notadamente porque juridicamente o caso não chegou até o STF, mas sim
originou-se nele por força de sua competência fixada na Constituição da República como adiante
1 Possui mestrado (1992) e doutorado (1999) em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Atualmente, é professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), atuando na graduação e
mestrado em Direito. É líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes). Integra a International
Language and Law Association (ILLA). É participante do Grupo de Pesquisa em Linguística Forense da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de Linguística Aplicada ao Direito, atua na linha de pes-
quisa da Análise Crítica do Discurso Jurídico. 
2  Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2000), com especialização em Direi-
to Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2002). Obteve o primeiro lugar na seleção para
o programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2010), sendo aprovado
com distinção em sua defesa pública (2012). Atua como professor de Direito Civil, Direito do Consumidor e Prática
Jurídica na UNICAP (desde 2011). Sócio fundador e ex-presidente da APPODI - Associação Pernambucana de Pós-
graduandos em Direito (2010-2012).
11
se demonstrará.
	Outro elemento de destaque neste editorial é a sua chamada: “O Supremo poderia ter
evitado o espetáculo vexatório de uma decisão inócua”, conforme figura 01, a seguir. De modo ex-
plícito, uma posição de crítica à conduta do STF, com escolhas lexicais eruditas precisas e tempo
verbal que remete o leitor a uma idéia de “culpa” do tribunal, pois, pela construção do texto do
editorial,pode-se inferir que o STF poderia ter evitado o espetáculo, mas não o fez.
Figura 01
2. ANÁLISE CRÍTICA DO EDITORIAL
A crescente expansão do poder judicial no Estado Democrático de Direito vem sendo cha-
mada por alguns autores de judicialização da política (WERNECK VIANNA et al., 1999; CAS-
TRO, 1997; SANTOS, 2003). Esse fenômeno mundial é caracterizado por uma postura ativista
dos juízes, que passam a interpretar “criativamente” o direito, ocasionando assim uma espécie de
transferência da função legislativa, antes concentrada nos poderes Legislativo e Executivo, para
os tribunais. Por outro lado, a influência do Poder Judiciário (e do raciocínio judicial) no campo
político torna-se visível devido à utilização, cada vez maior, de procedimentos judiciais por parte
de agências executivas e legislativas (TATE; VALLINDER, 1995).
Tais fenômenos que evidenciam essa dúplice tendência antidemocrática quando noticiados
na imprensa expõem relações entre diferentes práticas discursivas. No editorial, apresentam o
alinhamento político da empresa midiática como assegura Nascimento (2003, p.85):
O editorial é um texto argumentativo que representa a opinião da empresa jorna-
lística que o publica. Através dele, é apresentado o posicionamento do jornal sobre
fatos do dia-a-dia. A partir de um fato, o (a) editoralista desenvolve um raciocínio
valorativo, através do qual defende, com argumentos persuasivos, a posição políti-
co-social do jornal e refuta as opostas, conduzindo o leitor à conclusão pretendida
pela empresa.
12
Pelo sistema de transitividade da Gramática Sistêmico Funcional (GSF) há seis modos de ex-
pressar os processos verbais: (a) materiais, (b) mentais, (c) relacionais; considerados os principais
e (d) verbais, (e) existenciais e (f). comportamentais; considerados secundários. O processo, na
perspectiva da GSF, é um espaço semiótico no qual as regiões não são rígidas, há um continuum
entre os vários processos que sustenta o princípio da indeterminação semântica das línguas. Num
texto, podemos ver experiências construídas no domínio da emoção/ sentimento, p. ex. “estou
muito cansada” ou no domínio da classificação “meu corpo está quebrado” porque o mundo das
experiências é altamente indeterminado e a gramática constrói seu sistema a partir dos vários
tipos de processo sem comprometer a comunicação. Os processos principais [(a) materiais – do
mundo físico, (b) mentais – do mundo consciente, (c) relacionais - do mundo das relações abs-
tratas] são aqueles pelos quais se faz algo. Os processos materiais constituem ações nas quais as
entidades fazem algo. Assim, há orações médias ou intransitivas e orações transitivas ou efetivas.
Nas primeiras, há apenas um participante, p. ex. “Nos últimos anos, o STF tem buscado exibir de
maneira mais intensa, com transparência louvável, o debate sobre as suas decisões.” (linhas 03-
05, fragmento 01, a seguir). Já as orações efetivas ou transitivas têm dois ou mais participantes
como p. ex. “Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na última quarta-feira, o STF
decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti pela Itália, e logo em seguida, voltou
atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia-se o presidente Lula – a última palavra sobre a
extradição.” (linhas 09-12, fragmento 02, a seguir). As orações transitivas assinalam que alguém
fez alguma coisa a alguém. Se na intransitiva acima, o STF aparece como único protagonista na
construção textual do editorial e por essa razão a oração aparenta maior isenção ou intransitivi-
dade; a segunda envolve vários protagonistas “os cidadãos” (leitoras do jornal); “o STF”; “Cesare
Battisti”; “a Itália”; “o Executivo/ o presidente Lula”.
1.	 Composto idealmente por personalidades de reconhecida experiência, notório saber e
2.	 ilibada trajetória pública, ao Supremo Tribunal Federal cabe decidir, em última instância,
3.	 questões muitas vezes polêmicas que são postas ao sistema jurisdicional brasileiro. Nos
4.	 últimos anos, o STF tem buscado exibir de maneira mais intensa, com transparência
5.	 louvável, o debate sobre as suas decisões. Neste processo, contudo, cresce a impressão
6.	 de que os holofotes da mídia chegam a ofuscar os ministros a tal ponto que a discussão
7.	 intramuros parece contaminar-se pelo calor do lado de fora.
Fragmento 01
	 A escolha dos verbos do mundo físico, eixo do fazer, comportamental: “cabe decidir” (linha
2); “exibir” (linha 4); “cresce” ( linha 5); “chegam a ofuscar” (linha 6) “contaminar-se” (linha 7)
reafirmam a idéia de agente do Supremo Tribunal Federal (STF) realizando processos materiais
que constituem ações de mudanças externas, físicas e perceptíveis. A reflexividade entre os minis-
tros do STF, “os holofotes da mídia” e o “calor do lado de fora” da população brasileira, é anuncia-
da pelo editorialista como “transparência louvável” (linhas 04-05) do STF. Entretanto, nos escritos
de Chouliaraki  Fairclough (1999) sobre a pós-modernidade, a reflexividade, em toda prática
social, há um aspecto discursivo; ou seja as construções discursivas das práticas são partes cons-
titutivas das próprias práticas e as práticas podem depender dessas construções para sustentar
relações de dominação; dessa forma, a reflexividade funciona ideologicamente e não de maneira
neutra como apregoam tanto o judiciário, como a imprensa- centros de poder da vida social no
dizer foucaulteano. A “informação” sobre a composição do STF (linhas 01-03), ao usar o advérbio
idealmente já demonstra o tom de crítica, um ar de ironia; inferindo-se daí que a composição do
STF, de fato, não é a ideal. Ao utilizar a técnica de ancoragem (aproximação/ distanciamento)
para falar genericamente da atuação positiva do STF e no caso concreto criticá-lo, o editorial re-
corre às expressões “Nos últimos anos” (linhas 03-04) e “Neste processo” (linha 05). O operador
argumentativo“contudo”(linha 05), indicador de contraposição, estabelece relações de contraste,
disjunção, concessão, oposição corroborando a ironia insinuada com a escolha lexical do advérbio
“idealmente” (linha 01).
8.	 Essa intercomunicação aparenta ter sido prejudicial à própria capacidade do STF de
9.	 discernir o seu raio de poder. Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na
13
10.	última quarta-feira, o STF decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti
11.	pela Itália, e logo em seguida, voltou atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia-
12.	se o presidente Lula – a última palavra sobre a extradição. Lembra a letra de uma
13.	canção de Vinicius de Moraes - se era para desfazer, por que é que fez? Ficou a
14.	incômoda sensação de que a sutil diferença entre veredicto “determinativo” e
15.	“autorizativo” configurou a tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde
16.	a origem, politicamente.
Fragmento 02
	 O movimento dos verbos, no fragmento 02, informa que o STF fez e desfez uma decisão ao
sabor da política. Entretanto não informa que apenas o chefe de estado pode homologar um pedi-
do de extradição. O editorial joga mais que com os permitidos jogos de linguagem wittgnsteineanos
ao citar Vinicius de Moraes: “se era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13). Nesse sentido,
Meurer e Motta-Roth (2002) dizem que, emtodo contexto cultural de situação, há atividades que
são representadasna linguagem, há papéis desempenhados por nós e por nossos interlocutoresque
se estabelecem pela linguagem, e há pressuposições compartilhadas pornós e por nossos interlo-
cutores sobre como essas atividades e esses papéisserão explicitados por meio da linguagem.
	 Assim, o uso dos verbos e da adjetivação demonstra tendenciosidade do jornal ao afirmar
que o STF estaria “contaminado” (linha 07, 46) e com seus ministros “ofuscados” (linha 06), e
ainda que ficou uma sensação “incômoda” em face de “sutil” (linha 14) diferença que configurou
a atitude uma “saída honrosa” (linha 15), numa decisão “apertada” (linha 32) que teria gerado
um “perigoso” (linha 35) precedente. Fala ainda de um elemento “perturbador” (linha 43) e aque-
la fora uma “surpreendente solução” (linha 47), além dos já citados “espetáculo vexatório/decisão
inócua” (chamada).Aduz ainda de modo implícito que o STF deveria ficar de “fora do mundo/
realidade social” para não se prejudicar ao asseverar que: “Essa intercomunicação aparenta ter
sido prejudicial à própria capacidade do STF de discernir o seu raio de poder.” (linhas 08-09)
17.	 Seria mais lógico, sob qualquer ângulo avaliado, que a apreciação que se sucedeu ao
18.	 mérito da extradição tivesse sido realizada antes, determinando-se previamente a quem
19.	 caberia a palavra final sobre o caso. Posto que, ficasse decidido, como ficou, que a
20.	 decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo ministro da
21.	 Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo
22.	 vexatório de uma decisão inócua. Se os processos de extradição “começam e terminam
23.	 pelo Executivo”, como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte
24.	 nacional como mero “rito de passagem” apenas onera os cofres públicos e toma o tempo
25.	 dos réus. Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fazer.
Fragmento 03
	 Predomina neste fragmento verbos do eixo do mundo das relações abstratas que represen-
tam algo que acontece ou existe e se constroem com apenas um participante que a GSF denomina
existente, na nossa análise o STF. O fulcro do editorial é asserção: “Posto que, ficasse decidido,
como ficou, que a decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo
ministro da Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo ve-
xatório de uma decisão inócua”. O ministro não defendeu nenhuma posição, apenas aludiu à lei
que determina a competência jurídica da decisão.
	 Destaque-se, ainda, que existiram fatos precedentes a esse pronunciamento do STF. Cesa-
re Battisti havia solicitado a condição de refugiado político que fora deferida pelo Ministro Tarso
Genro. Nos autos da extradição, o STF reconhece a ilegalidade do ato de concessão de status de
refugiado político, concedido pelo Ministro de Estado da Justiça em setembro de 2009, e discute
o mérito do pedido feito pela Itália. Esse fato fez cair por terra um dos argumentos da defesa de
Cesare Battisti que se fundamentava no art. 33 da Lei nº 9.474/97 “O reconhecimento da condi-
ção de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que
fundamentaram a concessão de refúgio”.
	 Os parâmetros de legalidade para o caso da extradição de Cesare Battisti estão estabelecidos
no art. 77, VII do Estatuto do Estrangeiro, disciplinando que o crime político não pode ser o fun-
damento do pedido de extradição:
14
Lei n.: 6.815/81Art. 77. Não se concederá a extradição quando: VII - o fato consti-
tuir crime político;
Lei n.: 6815/81, Art. 77 - § 2º Caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Fede-
ral, a apreciação do caráter da infração.
	Nesse mesmo sentido está grafado o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, em seu
artigo 3º, 1: “A extradição não será concedida: (...) e) se o fato pelo qual é pedida for considerado,
pela Parte requerida, crime político;”. Da interpretação dos dispositivos constitucionais e legais
pertinentes, compreende-se que o papel do STF é apreciar a questão de fundo e não a extradição
em si. Ou seja, competiria ao STF, por meio de seu Plenário, decidir exclusivamente acerca da
prática ou não de crime político pelo extraditando Cesare Battisti. Caso não houvesse se pronun-
ciado o Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF sobre a legalidade e procedência do pedido
de extradição, o extraditando não poderia ser entregue à Itália por força do art. 77 do Estatuto
do Estrangeiro acima transcrito, mas como houve o reconhecimento (apertado) da existência de
crime comum de homicídio, pronunciou-se o STF pelo deferimento do pedido de extradição.
	 Segundo o editorial, o problema fora o conteúdo da manifestação do STF na “contraditória
sessão” (linha 26) que julgou procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti feito pela Itália
e, ao mesmo tempo, entendeu que compete ao Presidente da República a discricionariedade da
execução ou não da extradição por se tratar de questão de relações internacionais. O discurso que
emerge da superfície textual do editorial expressa uma não-neutralidade; sinaliza explícita posição
contrária à atitude do STF; tece inúmeras críticas; e finda por inferir supostas conseqüências do
fato, sem qualquer correlação direta ao episódio. Nessas condições, a informatividade e a intertex-
tualidade restam comprometidas.
	 O caso Battisti não “chegou até o STF”, mas sim se originou nele por força de sua compe-
tência fixada na Constituição da República, pois assim estabelece o Art. 102, I, ‘g’ da CF/88:
CF/88, Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda
da Constituição, cabendo-lhe:
	 I - processar e julgar, originariamente:
		 g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro;
	 Assim, compete exclusivamente ao STF processar a julgar a extradição solicitada por Esta-
do estrangeiro, sendo justamente o que ocorreu no caso objeto de análise do editorial, qual seja,
o julgamento pelo STF do pedido de extradição de Cesare Battisti formulado pela Itália. A Lei n°
6.815/81 que “Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de
Imigração”, conhecida como “Estatuto do Estrangeiro”, trata da questão da extradição e disciplina
sobre qual aspecto deve o STF se pronunciar, estabelecendo ainda que dita decisão é irrecorrível,
posto que proferida pelo plenário da Corte3
. Daí o menor grau de informatividade dos aspectos
legais envolvidos no fato jurídico (lato sensu), noticiado pelo editorial, compromete a notícia, tor-
nado-a tendenciosa.
	 O fragmento 03 se caracteriza pela utilização de verbos do eixo dos processos verbais (d),
existenciais (e) e comportamentais (f), considerados por Halliday; Matthiessen (2004) como se-
cundários. Esses processos verbais que expressam o dizer, comunicar, apontar, configuram as re-
lações simbólicas construídas na mente e expressas verbalmente ou por outras vias multimodais.
O editorial enuncia que “Se os processos de extradição ‘começam e terminam pelo Executivo’,
como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte nacional como mero ‘rito de
passagem’ apenas onera os cofres públicos e toma o tempo dos réus” (linhas 22-15). A utilização
das aspas, desloca a responsabilidade do dizer para o ministro, entretanto o Art. 102 da CF, como
visto acima, é incisivo quanto à competência do STF no que concerne “a extradição solicitada por
Estado estrangeiro”.
	 Na linha 25, a asserção de que “Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fa-
zer. ”, um ato indireto de fala modalizado pelo advérbio “certamente”, ironicamente constrói uma
3 Lei n.: 6.815/81 - Art. 83. Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo
Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão.
15
identidade negativa do STF.
26.	 A implicação da contraditória sessão do STF não passou despercebida por seus
27.	 integrantes. O ministro Cezar Peluso, relator do caso, comparou a possível negativa do
28.	 presidente da República à extradição a transformar a função do STF numa “brincadeira
29.	 de criança”. No mesmo tom, o presidente do Tribunal, Gilmar Mendes, afirmou que não
30.	 deveria haver espaço para questionar a validade da aprovação da extradição, uma vez
31.	 que a casa não seria “órgão de consulta”. Contrariando Mendes e o relator, pela mesma
32.	 votação apertada da primeira parte, só que em sentido inverso, por cinco votos a quatro,
33.	 os juízes resolveram dar o caráter “autorizativo” para a extradição do italiano.
Fragmento 04
	 Halliday; Matthiessen (2004) classificam os processos materiais em criativos e transfor-
mativos, sendo esses últimos aqueles que mudam o estado de coisas numa dada situação. Ao
comparar “ /.../a possível negativa do presidente da República à extradição a transformar a função
do STF numa “brincadeira de criança”, na voz do ministro Cezar Peluso; o editorial constói uma
oração cuja transitividade coloca em rota de colisão os poderes Executivo e Judiciário. A despeito
da concessão da extradição (ou sua execução) ser ato compete ao chefe de Estado, por força do
art. 84, incisos VII e VII da CF/1988. Ou seja, quem efetivamente despacha a extradição no Brasil
é o Presidente da República, após o prévio pronunciamento do STF, como já explicitado. Ou ainda
dito de outro modo, a decisão de deferimento da extradição pelo STF não vincula o Presidente da
República, sendo a decisão presidencial política e não jurídica. Neste diapasão, compulsando o
andamento do processual do processo de Extradição nº 1.0854
, encontra-se o resumo da decisão
objeto do editorial: “O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de extradição, por maioria, o Tribu-
nal assentou o caráter discricionário do ato do Presidente da República de execução da extradição,
Extradição nº 1.085. Plenário, 18.11.2009.”
	 Como se vê, falar de mero “rito de passagem” (linha 24); “órgão de consulta” (linha 31);
“coadjuvante” (linha 41); dentre outras estratégias de nomeação da entidade jurídicaem tom de
caráter jocoso evidenciam a construção de uma identidade negativa STF pelo editorial do jornal.
	
34.	O professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr., chamou o vaivém
35.	do STF no desfecho do caso Battisti de “um tiro no pé”. Abre-se perigoso precedente
36.	para a desvalorização do Judiciário diante de um Executivo já hipertrofiado, como o
37.	Executivo brasileiro. Afinal, para o cidadão comum, e de acordo com a prescrição
38.	constitucional, o Supremo Tribunal Federal deve ser evocado para dirimir as mais altas
39.	dúvidas, e sobre a sua resposta não devem restar bifurcações. Dentro da repartição dos
40.	poderes republicanos, ninguém espera que o “tribunal supremo” funcione como um
41.	coadjuvante “supremo conselho”. Ou que o julgamento dos dilemas nacionais seja
42.	encargo submetido à ponderação do presidente da República. Como se vê, o recuo do
43.	STF após “extraditar” Battisti lança um elemento perturbador na própria arquitetura
44.	democrática.
Fragmento 05
	 No fragmento 05, o editorialista arremata o tecido textual iniciado com do fio condutor “se
era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13) com o “vaivém do STF” (linha 34) atribuindo ao
“professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr” o enunciado gnómico dar
“um tiro no pé” ( linha 35). Nesse caso, o tiro saiu pela culatra, pois qualquer cidadão brasileiro
poderia ter dito tal “pérola”, usar o argumento de autoridade de um eminente catedrático da USP
parece piada. Trata-se de uma “citação”, no mínimo, inadequada. Como já dito, se existem “bifur-
cações” (linha 39) foram postas pelo poder legislativo na construção das leis, vistas acima, e não
pelo STF que as cumpriu.
	 Assim, “a sutil diferença entre veredicto ‘determinativo’ e ‘autorizativo’” (linhas 14-15) não
se trata de uma “tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde a origem, politi-
camente”. (15-16), como pretende o editorial, o judiciário cumpriu aquilo posto pelo legislativo;
4 Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2514526
16
sendo ambos expressões do poder institucionalizado.
A idéia de poder, que está ao centro da visão moderna do direito processual, cons-
titui assim fator de aproximação do processo à política, entendida esta como o pro-
cesso de escolhas axiológicas e fixação dos destinos do Estado. (itálicos no original)
/.../
Em sua acepção mais ampla e necessariamente vaga, poder é a capacidade de pro-
duzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de alterar a probabilidade de obter
esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas. (itálicos no original) DINA-
MARCO (2005. p. 100)
	 Assim, sendo o poder a capacidade de produzir os efeitos pretendidos, e sendo a observân-
cia do devido processo legal um direito fundamental, era indispensável a manifestação do poder
judiciário para atingir este desiderato, pois, se assim não fosse, estar-se-ia “ferindo de morte” o
texto constitucional e não “bifurcando-o”, ou o STF dando um “tiro no pé”.
45.	A extradição de Cesare Battisti (ou a sua acolhida pelo governo brasileiro) recebeu tons
46.	dramáticos e uma carga ideológica que não poderiam contaminar o seu julgamento.
47.	Entretanto, a surpreendente solução, encontrada pelo máximo juizado do País, de
48.	“concluir sem encerrar” um caso polêmico, além de perplexidade, traz de volta a
49.	preocupação acerca da saúde de nossas instituições. Diante de um cenário continental
50.	que apresenta endêmicas fragilidades, qualquer suspeita de trincamento em uma das
51.	bases do estado de direito pode fazer ressurgir o fantasma de tempos idos, quando o
52.	argumento político proibia que qualquer um pudesse contar com o bom senso final de
53.	um tribunal superior isento, democrático e justo” – como consideramos o STF.
Fragmento 06
	 O tom do fragmento 06 é panfletário, evoca “o fantasma de tempos idos” da ditadura mili-
tar. Estrategicamente, o editorial alinha “a extradição de Cesare Battisti” com “a sua acolhida pelo
governo brasileiro” como sinônimos (linha 45), fato que, aí sim denota o tom político-partidário do
jornal. Paradoxalmente, a concepção de linguagem do jornalista isola as práticas sociais de julgar e
de dar a notícia de “tons dramáticos” e de “carga ideológica” como se produzissem textos no vácuo
social.
	 As vozes de Tarso Genro, Carlos Ayres, Cezar Peluso, o ministro relator do caso, o presidente
da República, Gilmar Mendes e Miguel Reale Jr tentam aproximar e persuadir o leitor a concordar
com ele (autor), mostrando uma conformidade discursiva de seu texto com o dos ministros, utili-
zando essa intertextualidade como uma de suas estratégias além de tentar a transitividade com os
cidadãos, evocando-os aqui e ali.
	 Em fecho, o autor conclui, sem qualquer, coerência de raciocínio com as premissas previa-
mente estabelecidas em seu texto que o STF estaria doente, inferindo que o judiciário teria “trin-
cado” e estaria submisso ao Executivo, não sendo, pois “isento, democrático e justo” como deveria
ser.
3. REFLEXÃO SOBRE A ANÁLISE
	 Em conclusão, podemos afirmar que o conteúdo informativo que deveria ser o aspecto mais
nítido do editorial, com linguagem clara e objetiva sobre o fato em si mesmo considerado, notada-
mente a questão jurídica de fundo e as divergências existentes (entre juristas), não foi a principal
preocupação do autor, emergindo do texto um discurso construído em premissas equivocadas/
parciais/ localizadas com uma conclusão de aspecto generalizante que termina por questionar
a lisura do Poder Judiciário, demonstrando-se que o editorial enquanto “voz” oficial do jornal,
expressou um discurso comprometido ideologicamente, numa verdadeira violação ao compromis-
so ético-profissional dos jornalistas, consubstanciado em levar ao grande público a “verdade dos
fatos”. Observou-se que o editorial em análise limita-se a transmitir ao leitor uma versão ideo-
logicamente comprometida visando angariar adeptos às suas teses, sem abordar, como deveria,
17
a questão central (efetivo deferimento da extradição pelo STF), a questão de fundo (não houve
crime político, segundo decisão do STF) e, por fim, a questão a decisão judicial que é objeto de
crítica pelo editorial (compete ao presidente e não ao STF executar a extradição).
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estão publicados no DOU, de 10.12.1981. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o
Conselho Nacional de Imigração. Disponível em http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/biblio-
tecavirtual/dh/volume%20i/naclei6815.htmAcesso em 19 set. 2010.
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REPÚBLICA ITALIANA. Assinado em Roma, em 17 de outubro de 1989.Aprovado pelo Decreto Le-
gislativo nº 78, de 20 de novembro de 1992. Ratificações trocadas em Brasília, em 14 de junho de
1993. Promulgado pelo Decreto nº 863, de 9 de julho de 1993. Publicado no Diário Oficial de 12 de
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18
O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMEN-
TO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER1
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros2
Marília Montenegro Pessoa de Mello3
1. A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA COMO FORMA DE CONTROLE INFORMAL SOBRE
AS MULHERES NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA
A legitimação da sociedade patriarcal por parte do sistema da justiça criminal se deu, dentre
outras razões, porque o Estado penal se eximiu de interferir na esfera privada. Nesse sentido, o
sistema penal transferiu a responsabilidade de controle sobre as mulheres para outras instituições
de controle social, tidas como informais, como as escolas, a mídia, a religião e, principalmente, as
famílias, através das quais eram aplicadas sanções informais (privadas) às mulheres cujas condu-
tas eram contrárias ao padrão social esperado (não preenchiam a condição de “boa” filha, “boa”
esposa ou “boa” mãe), e não as formais (públicas) aplicadas pela Justiça Penal (BARATTA, 1999,
45-46).
O Estado penal, então, absteve-se de interferir na esfera privada, transferindo para o ho-
mem, detentor do poder patriarcal, a responsabilidade de exercer o controle e fiscalizar o compor-
tamento das mulheres. A preocupação com a sexualidade e reputação da mulher autorizava, por
exemplo, a restrição de sua liberdade e acesso aos espaços públicos, como também maior controle
sobre o seu corpo. Ademais, a falta de independência econômica permitia também o controle das
horas vagas e das atividades de lazer.
1 O presente trabalho foi aprovado e apresentado pelas autoras no 4º CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊN-
CIAS CRIMINAIS: Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos, realizado no segundo semestre de
2013, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ademais, está vinculado às pesquisas
desenvolvidas pelo Grupo Asa Branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista CAPES/
PROSUP.
3 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Gradua-
ção em Direito da UNICAP e UFPE.
19
Em último caso, porém com certa frequência, essas formas de controle resultavam na práti-
ca de violência, “justificada como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos
papéis de gênero” (DIAS, 2010, p. 21). Ao eximir-se de interferir na esfera privada, pois, o Direito
Penal elevou praticamente à legalidade ações violentas no seio familiar contra as mulheres, mas-
carando-as e dando a impressão de que a paz reinava no “nobre” e intocável âmbito privado. Nesse
contexto, em momentos históricos, ainda que teoricamente possível, o Direito Penal eliminou, na
prática, a atuação da mulher no polo ativo de um crime, por ser considerada, ao revés do homem,
vulnerável, inativa e inferior. Ressaltou com frequência, entretanto, desde que considerada “ho-
nesta”, sua qualidade de vítima.
Na tipificação dos crimes sexuais do Código Penal, o legislador utilizou-se da técnica que
Vera Andrade denomina de “lógica da honestidade” (ANDRADE, 2005, p. 90), pela qual, classi-
ficavam-se as mulheres vitimizando ou desvitimizando-as conforme o padrão de sexualidade da
época. Obviamente, as mulheres consideradas “desonestas” e “indignas” eram afastadas do polo
passivo do crime, de modo a desmerecer a tutela do Direito Penal.
Nesse cenário, a qualidade de vítima da mulher, desde que considerada “honesta”, foi tão
frequentemente ressaltada que, embora apenas exigido para a configuração de alguns crimes se-
xuais, o preenchimento da condição de honestidade pela mulher parecia ser elemento essencial
para sua figuração no polo passivo de qualquer tipo penal. Logo, independentemente do bem ju-
rídico atingido – vida, integridade física ou honra – enquanto considerada “indigna”, “pública” ou
“prostituta”, a prática criminosa contra a mulher parecia ficar subliminarmente autorizada pela
ordem jurídica (MELLO, 2009, p. 466).
Foi nesse contexto, pois, que se desenvolveu a sociedade patriarcal brasileira. Nela, os es-
tigmas impostos pelo sistema penal, especialmente os relacionados à sexualidade, legitimaram
exigências de padrões comportamentais femininos e também contribuíram para ressaltar os me-
canismos de controle sobre as mulheres, que se resumiam à aplicação pelos homens de penas
privadas no núcleo da instituição familiar, em nome da “proteção da família”, da “defesa da honra”
ou da “garantia do pátrio poder”.
Em razão da abstenção do Estado penal de interferir na esfera privada, portanto, a maio-
ria dos delitos praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar não chegava ao co-
nhecimento das autoridades ou, quando chegava, por algum motivo, não resultava em processo
criminal. Esse processo de imunização e impunidade gerou a chamada “cifra oculta” do crime
(SUTHERLAND, 1985)4
. Por conseguinte, tinha-se a falsa impressão de que não havia violência
alguma contra a mulher.
2. O POPULISMO PUNITIVO E A LEI “MARIA DA PENHA”
Somente após a vigência da Constituição Federal Brasileira de 1988, com a formal equi-
paração dos direitos das mulheres aos dos homens, a realidade dessa legitimação passou a ser
modificada e a violência de gênero passou, paulatinamente, a ser revelada e a ter um tratamento
diferenciado no sistema jurídico penal brasileiro.
Nesse cenário, por intermédio de indicadores oficiais, dentro dos Juizados Especiais Cri-
minais, se evidenciou a alarmante presença de inúmeros casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) pela sociedade brasileira (CAMPOS;
CARVALHO, 2011, p. 143-145). Constatou-se, assim, um paradoxo, já que a família, espaço de
proteção onde laços de amor e afeto são construídos, revelou-se, também, um local de violência e
violação. No contexto da violência doméstica, pois, o homem, pai ou companheiro, confunde-se
com o agressor.
Embora evidenciada, o julgamento da violência doméstica nestes Juizados demonstrou-se
ineficaz, porque se desconsiderava a relação hierarquizada e de poder sobre as mulheres no am-
biente doméstico e familiar, como também a existência, entre vítima e agressor, de uma relação de
carinho e afeto (ROMEIRO, 2009, p.54). No mais, o propósito de escuta das vítimas era inverso ao
4 A “cifra oculta” da criminalidade é representada pela diferença entre a “criminalidade real” (quantidade de delitos
cometidos verdadeiramente em um determinado momento) e a “criminalidade aparente” (casos que chegam ao co-
nhecimento das autoridades e constam nas estatísticas oficiais).
20
procedimento utilizado e as soluções apresentadas, através indiscriminada utilização das medidas
despenalizadoras e redução dos conflitos a aspectos pecuniários, findaram por banalizar esta vio-
lência de gênero (CAMPOS; CARVALHO, 2006, P. 419).
Além de estar bastante presente nos JECRIMs, a violência doméstica contra a mulher pas-
sou a ocupar um espaço cada vez maior na imprensa brasileira. Portanto, ao divulgar e dramatizar
alguns casos extremos de violência contra a mulher, como o da cearense Maria da Penha Maia
Fernandes, vítima de duas tentativas de homicídio por seu ex-marido, a mídia passou a fomentar
e legitimar a necessidade de um maior rigor punitivo para os agressores, interferindo, assim, na
opinião pública.
A mídia, no entanto, superficializa as realidades sociais e distorce o modo de enxergá-las,
de sorte que a essência dos problemas passa a ser ignorada. Adicionalmente, todo conhecimento
produzido nas universidades por estudiosos renomados a respeito da violência institucional das
prisões, seus efeitos negativos sobre o indivíduo e o fracasso das ideologias prevencionistas é es-
condido. Ganham espaço nos telejornais de maiores audiência, em contrapartida, os discursos
vazios dos “especialistas em tudo”, os quais reduzem a complexidade dos conflitos ao binômio de-
lito-pena e tentam convencer os expectadores de que a única opção que resta ao Estado é o poder
de punir e criminalizar (BATISTA, 2002, p. 274-276).
Com efeito, as pessoas compadecidas com o drama da violência de gênero, se visualizavam
como potenciais vítimas, demonizavam os possíveis agressores e criticavam o Estado brasileiro em
razão do banal tratamento dado à violência contra a mulher no âmbito dos JECrims. Nesse ínte-
rim, a sociedade se mobilizou a fim de inserir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos
debates políticos e pleitear o aumento indiscriminado da punição.
Nesse contexto, é de suma importância a apresentação dos ensinamentos de David Garland
(2008, p. 55), que, embora observador das realidades norteamericanas e britânicas, conseguiu
caracterizar um fenômeno evidentemente global:
Os interesses e sentimentos das vítimas (...) agora são rotineiramente invocados em
apoio às medidas de segregação punitiva. Nos EUA, políticos concedem entrevistas
coletivas para anunciar leis relativas às sentenças condenatórias, e são acompanha-
dos no palco pelas famílias das vítimas. Leis são aprovadas e batizadas com o nome
de vítimas (...). O novo imperativo político é no sentido de que as vítimas devem ser
protegidas, seus clamores devem ser ouvidos, sua memória deve ser honrada, sua
raiva deve ser exprimida, seus medos devem ser tratados (...). Qualquer atenção
aos direitos ou ao bem-estar do agressor é considerada defletiva das medidas apro-
priadas de respeito às vítimas. Cria-se um jogo político maniqueísta, no qual o gan-
ho do agressor significa a perda da “vítima”, e “apoiar” as vítimas automaticamente
quer dizer ser duro com os agressores.
A articulação do poder da mídia com o sofrimento das vítimas e as demandas populares
recrudescedoras causam fortes consequências na política, gerando o fenômeno que se denomina
“populismo punitivo”, o qual consiste na verdadeira “perpetuação do antigo clientelismo que sem-
pre marcou as recentes democracias latino-americanas” (GLOECKNER, 2011, p. 82) por meio
da utilização política do arsenal penal. Tal fenômeno é caracterizado pela atual tendência política
de se atuar emergencialmente enrijecendo legislações penais, em razão da demanda populacional
por respostas mais incisivas ao crime, consequência da disseminação do medo e forte sentimento
de insegurança social, potencializados, ainda, pelo apelo midiático. Como efeito, políticas crimi-
nais recrudecedoras, incluídas nas pautas eleitoreiras como principal forma de solução das maze-
las sociais, são aplaudidas pela sociedade e a popularidade dos mentores dessas políticas aumenta
significativamente.
A respeito dessas manobras políticas através das quais os legisladores fogem às suas respon-
sabilidades ao tentar atribuir às legislações penais um efeito educador meramente simbólico, Raúl
Zaffaroni (2011, p. 44) declara:
Essas normalizações são claramente inconstitucionais porque, (a) usam as pessoas
21
como meio para a obtenção de fins e (b) porque valoram positivamente o embuste
público (pretendem que a população acredite falsamente que seus bens são tutela-
dos com eficácia). Quando os bens jurídicos ficam desprotegidos, o público engana-
do e o poder punitivo incrementado, é violada frontalmente a constituição porque
(a) não se provê segurança, (b) se coisificam ou se mediatizam os seres humanos,
(c) o príncípio democrático é pervertido por enganação, (d) se colocam em perigo
os âmbitos democráticos, habilitando o abuso do poder punitivo, (e) se aprofunda
a seletividade punitiva, (f) por fim, se obstaculizam o desenvolvimento social e o
aperfeiçoamento institucional.
Com efeito, as soluções atuais dadas ao crime ganham um novo semblante bastante para-
doxal, porque, na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança e educar a moral
societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, por não conseguem
cumprir, sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, assim como, muitas vezes,
põem em risco os próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MRAINHO JÚNIOR,
2009, p. 86-89).
Face, portanto, ao compadecimento social com a história de Maria, à fácil aderência por
todos às causas feministas, no que tange à violência doméstica contra a mulher, como também
aos fortes anseios e apelos vindicativos midiáticos e coletivos por uma máxima intervenção penal,
o Estado, por meio de seus discursos políticos-demagogos, não inovou e decidiu governar através
da simbólica intervenção punitiva e fez por encerrada sua suposta atuação voltada para a solução
do problema social “iluminado”. Surgiu, assim, no cenário jurídico nacional a Lei n.º 11.340/2006
como resposta política às fortes demandas midiáticas e populacionais por ações mais incisivas
contra a criminalidade doméstica.
Quanto ao tratamento penal previsto para os crimes praticados contra a mulher no contexto
doméstico e familiar, a Lei n.º 11.340/2006 pecou em inúmeros aspectos. O Poder Legislativo,
preocupado apenas em atender clamores demandantes de uma Lei rigorosa, contrariamente à
tendência dos movimentos e reformas garantistas em favor dos direitos humanos, vedou o uso
das aclamadas medidas despenalizadoras, aumentou penas de crimes, adicionou circunstâncias
agravantes ao Código Penal, ampliou o rol de situações passíveis de prisões preventivas e preferiu
a regra da ação penal incondicionada. Afastou-se, portanto, do referencial minimalista do Direito
Penal para solucionar conflitos de origem doméstica e familiar.
Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe
muitas alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante acla-
mada pelos militantes em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e
segurança feminina. No entanto, as pretensões da criminalização provedora são tidas como fala-
ciosas e inócuas. Nesse sentido, assegura-se:
O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento
feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas
penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segu-
rança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de
segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirma-
ção que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não
menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social,
as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua
carga simbólica (MELLO, 2010, p. 146).
A legislação, através de sua redação, portanto, trouxe a simbólica criminalização de comple-
xos problemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de crimino-
logia crítica comprovam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso
de erradicação da violência e promoção da segurança.
22
3. A INCAPACIDADE DE O SISTEMA PENAL RESOLVER UM PROBLEMA SOCIAL
A lógica da imposição de sanções do sistema penal, através da teoria da pena, apresenta-se
aparentemente perfeita, porque, promete acabar com a criminalidade, garantir a segurança e a
correção do delinquente. Com efeito, alude-se ao sistema penal, diante de suas promessas, como
melhor forma de solução de mazelas sociais.
Entretanto, pesquisas revelam que, contrariamente ao que se espera como consequência da
crescente utilização do cárcere como meio de prevenção do crime, os índices da criminalidade
não diminuem, mas aumentam concomitantemente ao aumento dos indicadores da população
encarcerada (CID; LARRAURI, 2009, p. 3-13). Nesse sentido, Foucault confirma: “as prisões
não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a
quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta” (FOUCAULT,
1999, p. 292).
Outrossim, o cárcere revela-se como uma instituição degradante que não realiza a promessa
de recuperação do delinquente. A prisão, que ainda é uma pena corporal, só gera sofrimento: im-
põe um modo de vida peculiar, controlado e negativo ao detento, priva-o a da forma cotidiana de
viver, do contato com familiares, amigos e pertences, das relações amorosas, do trabalho, de modo
que despersonaliza e dessocializa o prisioneiro (ZAFFARONI, 2001, p. 135-136).
Nesse diapasão, é contraditória a utilização da segregação pessoal e consequente afastamen-
to de todas as regras sociais extramuros, com a intenção de integrar o preso, como um passe de
mágica, às regras sociais das quais foram afastados. Sem mencionar, ainda, a crise institucional
pela qual o cárcere passa em razão das degradantes condições de vida proporcionadas aos prisio-
neiros. Ademais, as dificuldades de readaptação são potencializadas pelo estigma social que marca
um ex-condenado, de modo que, mesmo com a cessação do sequestro institucional, a exclusão
social perdura para além do tempo atrás das grades. Como consequência da exclusão constante,
altos índices de reincidência são apresentados à sociedade (ANDRADE, 1997, p. 291).
Cai por terra, pois, a funcionalidade das atribuições da pena: o sistema penal é incapaz de
proteger bens jurídicos, de reduzir da criminalidade e de ressocializar o preso. Assim, salta aos
olhos que a operacionalidade do sistema penal baseia-se na irracionalidade e que ele representa
uma aberração no mundo real. O sistema penal revela-se como um sistema de aparências porque
não consegue fazer com que as promessas que o legitimam sejam cumpridas; marcada está, pois,
sua completa crise de legitimidade (ANDRADE, 2006, p. 470-471).
O sistema penal, portanto, está falido e deslegitimado e possui uma lógica particular, cuja
funcionalidade é intangível aos problemas que pretende resolver. A pena deixou, nesse contexto,
de ter funções concretas; restou-lhe, apenas, a função simbólica de manutenção do sistema penal
e crença populacional na legislação vigente e na funcionalidade do próprio sistema; é o que se
denomina de “função agnóstica da pena” (ZAFFARONI, 2004, p. 33).
Na atualidade, no entanto, a sociedade, escravizada pelo medo e pela insegurança, prefere
optar por uma atuação simbólica a qual acaba por expandir o paradoxal sistema punitivo no intui-
to de acalmar seus anseios. Nesse compasso, porém, as esferas que apresentariam soluções mais
plausíveis aos conflitos são ocultadas e os problemas sociais findam por não serem solucionados.
A ineficiência do sistema penal para prevenir e erradicar a criminalidade não é diferente
quando o assunto é a violência doméstica e familiar contra a mulher. Estudos divulgadospor Ele-
na Larrauri demonstraram que, na Espanha, conquanto exista a rígida Lei Orgânica n.º 11/2003,
a qual em muito inspirou a brasileira Lei “Maria da Penha”, os índices de homicídios praticados
contra as mulheres por seus parceiros não diminuíram. Deveras, resultados revelam, ainda, que
as mulheres em situação de violência não vislumbram a aptidão da justiça penal para ajudá-las a
solucionar seus problemas (LARRAURI, 2011, p. 1-2).
Os motivos que conduzem a decepção feminina com o sistema penal são vários, no entanto
todos eles convergem para um único fato (de inúmeros efeitos negativos): a apropriação, pelo sis-
tema penal, dos conflitos das vítimas, de sorte que suas vozes e expectativas são completamente
olvidadas e o problema não é solucionado.
O procedimento processual penal, tal como é concebido na modernidade, relega à vítima um
papel secundário. A prioridade da ação Estatal não consiste na contemplação dos sentimentos da
vítima ou dos efeitos da prática delitiva sobre sua vida, mas na persecução penal daquele que pra-
23
ticou um ato criminoso. Após a expropriação do conflito pelo Estado, portanto, o suposto agressor
não tem que dar satisfações à ofendida, mas deve prestar contas ao próprio Estado, detentor da
ação penal.
As vítimas, no sistema penal, portanto, são ignoradas; seus depoimentos são reduzidos a
termo e, para os oficiais, tudo que importa ao reportá-los são as circunstâncias que fazem o fato
subsumir à norma, o que leva à completa redução da complexidade desses conflitos. No enqua-
dramento legal, portanto, o encadeamento da briga é totalmente refutado e reduzido àquele único
ato que define o crime (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 82).
Necessário destacar, ainda, um dos aspectos mais relevantes e diferenciadores dos conflitos
de gênero: o comprometimento emocional entre as partes envolvidas. As normas do direito penal
não contemplam o envolvimento afetivo entre os integrantes dos polos ativos e passivo do crime;
elas programam, normalmente, situações corriqueiras e não complexas nas quais as partes não se
conhecem, como uma briga em um bar ou um roubo eventual. No caso da violência doméstica e
familiar contra a mulher, entretanto, a briga ou agressão é concomitante à existência de uma rela-
ção familiar, onde os integrantes partilham laços de amor, intimidade e carinho. Logo, os casos en-
volvem uma carga subjetiva muito grande e o Direito Penal não foi estruturado para contemplá-la.
Em decorrência dessas relações íntimas e de afeto existentes, aponta-se que as mulheres
violadas, ao tornarem público o conflito doméstico e familiar, normalmente não querem retribuir
o mal causado pelo agressor, criminalizando-o e punindo-o. Elas desejam apenas romper o ciclo de
violência e restabelecer o pacto familiar e a paz no lar. Até mesmo as raras mulheres que desejam
a separação, no caso de violência conjugal, não almejam a persecução penal do agressor; elas pre-
ferem que a coesão familiar seja mantida, especialmente quando há filhos envolvidos.
Nesse diapasão, as mensagens midiáticas de que as vítimas e suas famílias clamam por
vingança e punição são bastante falaciosas. Afirma-se que o sentimento da vindita até existe,
principalmente logo após a ocorrência do fato, daí a existência de calorosos depoimentos veicu-
lados nos meios de comunicação. Entretanto, esse sentimento não é generalizado e muito menos
duradouro. Pesquisas revelam que as vítimas, em geral, não vislumbram a necessidade de um pro-
cesso penal e, até mesmo em casos mais graves, preferem a resolução do conflito fora do mundo
jurídico-penal e punitivo (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 116-118).
As vítimas querem, nesse contexto, proteção e a disponibilidade de formas diversas e con-
cretas para a solução dos conflitos domésticos e não, necessariamente, a punição do agressor. No
entanto, a expropriação do conflito pelo Estado, além reduzir as complexidades dos conflitos por
não contemplar suas peculiaridades e múltiplas facetas, redunda na apresentação de uma única
reação à situação conflituosa: a resposta punitiva através da imposição de uma pena privativa de
liberdade.
O enforque penal, portanto, limita as mulheres e o conflito é subtraído, por completo, da
órbita de alcance das partes envolvidas, de modo que e as múltiplas formas de solução disponíveis
são forçosamente substituídas pela aplicação de uma lógica punitiva (OTERO, 2008).
Ademais, a crença de que, com a punição do agressor, a vítima poderá descansar e encontrar
sua paz, é tão falaciosa quanto os ideais de ressocialização e prevenção que acompanham o mo-
delo da justiça encarceradora. Quando o processo termina com a imposição de uma medida cons-
tritiva, a mulher, que ainda partilha sentimentos amorosos pelo agressor, ao ver o sofrimento do
condenado no cumprimento da pena, sente-se uma violadora e não mais uma vítima, já que vis-
lumbra o mal causado ao agressor muito mais gravoso que aquele que ele lhe causou. Outrossim,
os efeitos da pena transcendem à pessoa do condenado, de modo que afetam substancialmente a
família (HERMANN, 2002, p. 56-57).
A imposição da pena ao agressor, portanto, implica também a imposição de uma sanção à ví-
tima. Com a intervenção penal, a mulher fica desamparada em todos os sentidos: não possui mais
apoio econômico (seja porque ela já não trabalhava, seja porque a renda familiar não será mais
complementada); não há mais a afetividade daquele ente querido no seio familiar; e, o estigma
de ser “filha”, “mãe” ou “mulher” de um condenado acompanha-a em qualquer âmbito social,
dificultando suas relações e obtenção de trabalho. A condição de vítima da mulher, portanto, per-
petua-se com a condenação de seu agressor; o vitimizador, no entanto, agora é o próprio sistema
penal.
Ante o exposto, percebe-se que normalmente as mulheres vítimas da violência doméstica
24
não desejam a existência do procedimento penal5
. A Lei Maria da Penha, no entanto, impossi-
bilitou qualquer forma de diálogo e de exposição das vontades das vítimas, seja pela vedação da
utilização dos institutos alternativos ao processo, seja pela escolha da regra da ação penal pública
incondicionada. Paradoxalmente, pois, a Lei que surgiu, no contexto do fenômeno do populismo
punitivo, no intuito de dar voz e poder às mulheres, impõe um procedimento o qual impede que
elas falem e que elas tenham vez.
Com efeito, a rigidez da legislação, que impõe a irreversibilidade do procedimento processual
penal e a prisão como única resposta ao conflito doméstico, findará por inibir a procura do auxilio
institucional e contribuir para o silêncio e temor das vítimas. Por conseguinte, as “cifras ocultas”
da violência doméstica contra a mulher poderão ser incrementadas, já que o próprio instrumento
reservado à proteção feminina irá, de todas as formas, penalizá-la. A respeito, afirma Julita Lem-
gruber (2011, p. 381):
(...) legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem
seus agressores e registrarem suas queixas. Sempre que o companheiro ou esposo
é o único provedor da família, o medo de sua prisão e condenação a uma pena
privativa de liberdade acaba por contribuir para a impunidade... É urgente que se
amplie o conhecimento das experiências alternativas à imposição de penas nesta
área, pois já existe evidência de que, em vários casos, o encarceramento de homens
pode aumentar, ao invés de diminuir, os níveis de violência contra a mulher e as
taxas gerais de impunidade para esse tipo de crime.
Nesses termos, pois, a intervenção penal jamais poderá ser considerada como um meio efeti-
vo para a solução de conflitos domésticos. Em verdade, muitos dos conflitos pessoais, os quais são
enquadráveis na previsão taxativa da Lei penal, na atualidade, são resolvidos através de meios não
disponibilizados pelo sistema penal. Apenas uma ínfima parte deles é resolvida na justiça criminal.
Na maioria das vezes, as soluções são encontradas pelos próprios membros da família ou com o
auxílio de profissionais que apontem uma alternativa viável.
Resta comprovada, assim, a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via
formal da justiça criminal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos
de escuta das partes envolvidas, não apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos
ou sequer prevenindo as situações de violência. Nesse contexto, se o sistema penal está falido por
não conseguir solucionar os problemas que se propõe erradicar e as mulheres vítimas da violência
doméstica e familiar, em sua maioria, não desejam a persecução penal de seus agressores, resta,
unicamente, a irracionalidade da utilização de medidas punitivas extremas para a solução dos
conflitos domésticos.
Certamente o caminho para a solução do conflito não passa pela criminalização,
muito menos pela carcerização do agressor, na medida em que o sistema penal, em
especial a pena de prisão, não oferece mais que uma falácia ideológica em termos
de ressocialização do agente (...). Esse mesmo sistema, ademais, não faz pelas víti-
mas mais que duplicar as suas dores, expondo-as a um ritual indiferente e formal,
que desconsidera a diversidade inerente à condição humana e reproduz os valores
patriarcais que a conduziram até ele. Aportando ao sistema penal, a vítima, mais do
que nunca, distancia-se de seu desiderato de reformular a convivência doméstica,
porque deflagra um aparato que não esta munido dos mecanismos necessários para
a mediação do conflito, o que a leva a retirar-se do espaço público que conquistou
ao longo de uma história de lutas, para retornar à esfera do privado, desmuniciada
5 Em estudo realizado pelas autoras durante dois anos no 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher da cidade do Recife, em que se pesquisou todos os processos criminais instaurados no Juizado nos anos de
2007 a 2010 arquivados pelo Tribunal pernambucano até Junho de 2011, constatou-se que 57% das mulheres retra-
taram, quando se tratava de crime de ação penal pública condicionada à representação. Ademais, 79% dos processos
pesquisados foram extintos sem a resolução do mérito e pode-se afirmar que 53% dessas extinções foi devida à mani-
festação de vontade das vítimas, já que os institutos que deram ensejo à extinção da punibilidade foram a decadência
e a retratação da vítima.
25
de qualquer resposta (HERMANN, 2002, p. 18-19).
Reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social,
portanto, não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Importante, assim, que sejam
discutidos e apresentados meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente através
transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de
medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma pena-
lista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.
Resultados positivos têm sido obtidos quando no investimento em políticas públicas emanci-
padoras. Logo, concomitantemente às políticas minimizadoras da intervenção penal e à evolução
do pensamento criminológico, devem ser implementadas políticas sociais de prevenção incidentes
nas verdadeiras causas da criminalidade doméstica.
Portanto, as políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem estar fo-
cadas na reprodução de um ambiente doméstico e familiar equilibrado, ultrapassando, assim,
as barreiras da medieval e maniqueísta perquirição do culpado e eterna vitimização feminina. É
indispensável, nesse diapasão, a superação e não disseminação, no intelecto social, dos precon-
ceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade ainda patriarcal e machista, que levam à
ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor.
Logo, é preciso se voltar às origens do problema, precipuamente familiar e de origens históricas,
da violência doméstica e, definitivamente, o sistema penal não se presta a fazer isso.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei “Maria da Penha”, criada no intuito de “empoderar” as mulheres para enfrentar a
violência doméstica e familiar, não cumpre os seus propósitos. Entretanto, paradoxalmente, por
haver retirado a fala feminina do espaço público e não ter contemplado as peculiaridades dos
conflitos de gênero e a falência do sistema punitivo, pode contribuir para a ocultação dos dados
relativos à violência doméstica e familiar, já que as mulheres vítimas preferem o silêncio à dolorosa
e ineficiente intervenção do sistema penal no ambiente doméstico. É urgente, portanto, que se
ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para
além do sistema penal.
	 Como precisamos denunciar uma estrutura falida de um sistema, antes de pensar em for-
mas capazes de substituí-lo, não coube a este trabalho apontar formas alternativas de soluções de
conflitos aplicáveis ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Por ora, en-
tretanto, fica o apontamento de que se deve atentar para as contradições do sistema penal e criar
formas de resistir ao fenômeno do populismo punitivo, visto que, através dele, políticas públicas
de aparência são enxertadas no seio social e, consequentemente, os espaços de debate na socie-
dade são reduzidos e os meios que apresentem soluções efetivas aos problemas que incomodam a
sociedade são ocultados.
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28
A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂN-
CIA E JUVENTUDE DE RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO
DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO AO MENORISMO 1
Érica Babini Lapa do Amaral Machado2
Marília Montenegro Pessoa de Mello3
Juliana Marques Lyra Carneiro Leão4
Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho5
1. INTRODUÇÃO
O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela Lei 8.069/90 e consagrado nos ter-
mos dos artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988, estabelece um novo paradigma no
tratamento conferido à infância e juventude. Antes alicerçado sob os parâmetros da Doutrina da
Situação Irregular, o menor submetia-se à tutela do Estado, que regido pelo binômio menor/delin-
quente, resultava em um processo de intenso aprisionamento.
Com o advento do ECA, a Doutrina da Proteção Integral passa a elencar garantias próprias
do sistema constitucional para a apuração de atos infracionais, impedindo violações de direitos e
garantias fundamentais, ainda que em nome da “socioeducação”, determinando novo marco no
tratamento à infância e juventude, ao reconhecer seu status de sujeito de direitos e deveres em
condição peculiar de desenvolvimento - conditio sine qua non para a proteção dos direitos funda-
mentais da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito - e garantido seu tratamento
1  Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC, finan-
ciado pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo
Asa branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br
2 Professora de Criminologia e Direito Penal da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Doutoranda em
Ciências Criminais na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
3 Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e da Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE. Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC
4 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora PIBIC-UNICAP
5 Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisador PIBIC-UNICAP.
29
específico e particular.
A Doutrina da Proteção Integral orienta as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescen-
te (ECA), incorporando o conceito de ato infracional para conferir à responsabilização o caráter
de medida socioeducativa, objetivando fomentar a perspectiva pedagógica. Entretanto, resta veri-
ficada através desta pesquisa que a implementação da nova política guarda muitos resquícios do
antigo sistema menorista.
	 Percebe-se, ao lado da excessiva intervenção estatal por meio do Poder Judiciário, conferido
ao juiz poder quase absoluto de decisão, uma ampla discricionariedade ao impor valores e crenças
pessoais quando da aplicação de medidas, o que termina por restringir as prerrogativas constitu-
cionalmente asseguradas pelos referidos diplomas legais.
Destarte, é sob a égide da Criminologia Crítica que se tem o marco teórico norteador da pre-
sente pesquisa, o qual desenvolve estudo crítico acerca das questões atinentes ao sistema penal e
suas políticas punitivistas adotadas pelo Estado, detectando, por conseguinte, as influências e os
impactos exercidos sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Orientar-se através dos estudos proporcionados pela Criminologia Crítica é de fundamental
importância, posto que a perspectiva crítica pretende compreender o crime como um fenômeno
complexo – resultado da criminalização das agências oficiais de poder, cuja reação é condicionada
por ideologias e políticas (ZAFFARONI, 2001).
O desvio não é a qualidade do ato cometido por alguém, mas antes a consequência
da aplicação, por outros, de regras e sanções a um ‘ofensor’. O desviante é uma pes-
soa a quem este rótulo pôde ser aplicado com sucesso. O comportamento desviante
é o comportamento designado como tal (BECKER, 1963, p. 55).
Trata-se exatamente do intento sociológico, segundo o qual a real atuação do sistema de
justiça deve ser perquerido, apesar das diagramações da dogmática legislativa.
A pesquisa está sendo realizada a partir da metodologia etnográfica, com o objetivo de com-
preender como a criminalização secundária atua nas audiências de apresentação e continuidade
para apuração de ato infracional, de modo a investigar o grau de cumprimento de garantias penais
e processuais quando da cominação de medidas socioeducativas.
Nesse sentido, foram acompanhadas audiências na Vara da Justiça Sem Demora, e nas 3ª e
4ª Varas de Continuação da Infância e Juventude da cidade do Recife, no período de abril a junho
do ano de 2013, para apuração de dados necessários à proposta da pesquisa em estudo. Outros-
sim, verificou-se em que nível se processam tais impedimentos e suas influências na imputação de
medidas, em detrimento dos princípios assegurados pelo referido dispositivo legal e consolidados
pela Constituição Federal de 1988.
Para consolidar a temática proposta, adentrar no contexto social-político envolto no trata-
mento conferido as crianças e adolescentes, foi necessário um extenso estudo teórico. Inicial-
mente a metodologia dedutiva, fundamentada na investigação bibliográfica, foi importante para
compreender a evolução cultural-legislativa da infância e juventude no Brasil e no mundo.
Com o objetivo de alcançar a verdadeira compreensão dos fatos, focou-se na contextuali-
zação da própria estrutura jurídico-protecionista de intervenção estatal, caracterizada por um
modelo legislativo garantista através, principalmente, da aplicação do Estatuto da Criança e do
Adolescente influenciado pela Doutrina da Proteção Integral. Procurou-se verificar a incidência
paralela de influências extrínsecas de controle social legitimados por uma camada latente de pu-
nitivismo e segregação.
Com base nesta investigação, o pesquisador posiciona-se como espectador dentro do objeto
em exame, absorvendo os dados de forma impessoal, visando absorção da realidade dos fatos em
sua essência. Neste projeto, o método foi empregado a partir do acompanhamento de um total de
54 audiências, sendo 21 delas realizadas na Vara da Justiça Sem Demora (VJSD), e outras 33 nas
3ª e 4ª Varas de Continuação da Infância (VI) e Juventude, na cidade do Recife, durante o período
de abril a junho do ano de 2013. Constituindo-se como uma pesquisa de campo, este convívio per-
mitiu uma produção de dados concretos frutos de observação direta do pesquisador com o objeto
científico.
30
Nesse sentido, serão utilizadas de forma amostral para análise e cruzamento de dados que
irão compor a presente pesquisa, 3 das audiências acompanhadas VJSD, e 5 das audiências pre-
senciadas nas VI. De modo a realizar a interpretação do conteúdo pelo cruzamento de dados,
foram criadas três categorias de análise, objetivando delinear as conclusões obtidas através dessa
experiência.
As categorias de análise formuladas foram as seguintes: 1ª Categoria: Procedimentos – Direi-
tos e Garantias Fundamentais; a) Legalidade; b) Devido processo legal (- Materialidade, - Provas,
- Trâmite legal); c) Proporcionalidade; 2ª Categoria: Seletividade do Sistema; 3ª Categoria: Fun-
damentos do Julgador (- Família, - Escolaridade, - Drogas, - Exemplo para a sociedade, - Arrepen-
dimento do ato praticado, - Religião).
O procedimento desenvolvido seguiu, portanto, etapas sucessivas e determinadas: 1- Rea-
lizado o estudo bibliográfico de contextualização da temática (objeto da pesquisa); 2- Acompa-
nhadas as 54 audiências, coletando-se os dados relevantes e necessários para teste das premissas
preestabelecidas inicialmente; 3- Prosseguiu-se uma análise de conteúdo (BARDIN, 1977), explo-
rando os elementos ocultos constatados a partir dos dados empiricamente agrupados; 4- Tomando
como base as fases anteriores, estabeleceu-se as categorias de análise para filtração das mesmas;
5- Levando-se em consideração todo o estudo teórico-prático elaborado, faz-se necessária a exibi-
ção das discussões trazidas e dos resultados advindos.
Após o empreendimento algumas conclusões foram levantadas, o que se verá a seguir.
2. DO MENORISMO À PROTEÇÃO INTEGRAL: UM OLHAR SOB A INFÂNCIA E JUVENTUDE
Para abordar a temática sobre a infância e juventude, é mister estabelecer um marco refe-
rencial, que no presente trabalho será dado pela edição da Lei 8.069/90, que inaugura o Estatuto
da Criança e do Adolescente, simbolizando novo modo de se visualizar e lidar com jovem no Brasil.
A história da infância comprova que somente a partir de meados do século XIX que se tem
dedicado um tratamento jurídico diferenciado para este grupo. Em outros termos, é neste mo-
mento histórico que a criança passa a ser visualizada juridicamente. Porém, o que se verificava
anteriormente, além de não ser reconhecida pela sociedade, era a criança sequer ser contemplada
nos textos legais, fato que pode ser analisado diante dos Códigos Penais existente na época. Estes
consideravam menores de idade da mesma forma que os adultos, de caráter penal indiferenciado,
conferindo tratamentos semelhantes e fixando penas privativas de liberdade relativamente meno-
res que às aplicadas aos maiores, a serem cumpridas em condições deploráveis de encarceramento
e sujeitas às promiscuidades praticadas pelos adultos, visto que ambos encontravam-se recolhidos
nas mesmas instituições penitenciárias (PLATT, 1977).
Esse quadro perdura até o final do século XIX e início do século XX, quando surge forte
indignação moral da sociedade com as condições existentes e da promiscuidade vivenciada nos
ambientes penitenciários, sinalizando os primeiros indícios de mudanças, que seriam propostas
pelos ideais do Movimento dos Reformadores, nos Estados Unidos, onde teve início essa nova
compreensão acerca da criança, e se espalharia pelo mundo no decorrer do novo século (MEN-
DEZ, 1998).
Fundamental ressaltar que o contexto da época colaborava com a situação vivida pela infân-
cia. As inovações e inúmeras mudanças promovidas pela Revolução Industrial, trazendo em si os
novos rumos do capitalismo, terminaram por produzir efeitos nas diversas camadas sociais, pro-
vocando o deslocamento de grandes massas do campo em direção aos centros urbanos nascentes,
na busca por emprego nas grandes fábricas.
Como o artesão perdeu espaço frente às linhas de produção fabris, fator aliado aos salários
muito baixos, fazia-se necessário a aplicação de toda família no trabalho, de maneira a obter o
sustento mínimo do lar. Destarte, mulheres e crianças ocuparam os novos postos de trabalho nas
fábricas. Uma vez que as mulheres e as crianças não estavam sujeitas a qualquer regulamentação
de trabalhista, e com salário auferido inferior àquele pago ao homem, consistiam em mão de obra
barata de fácil acesso, favorecendo o empresariado, no intento de ter todos os postos ativos.
Nesse sentido, a criança cumpria importante papel, visto que auxiliava na renda familiar.
Destaca-se que as condições a que estavam submetidos operários e crianças era de completa
precariedade, em ambientes insalubres, inadequados ao desempenho de qualquer atividade. Não
31
obstante as circunstâncias desfavoráveis, o sistema econômico capitalista agravou a pobreza no
campo, de modo que a necessidade das famílias em obter seu sustento gerou incessante busca
por empregos, impulsionando intenso processo de superlotação das grandes cidades, que aliado
à falta de infraestrutura que comportasse o excesso de contingente populacional, culminou em
graves problemas sócio estruturais, ensejando o surgimento dos subúrbios onde se aglomeravam
as pessoas mais pobres, provocando, por sua vez, a difusão de doenças e o aumento da violência
urbana (SARAIVA, 2009).
Esse processo passou a clamar por políticas que atuassem tanto no sentido da manutenção
do sistema econômico, quanto no controle dos problemas sociais. Nesse ínterim, medidas foram
instituídas nesse propósito. O alto índice de jovens em situação de abandono, em razão das dificul-
dades enfrentadas pelas famílias para criá-los, e de jovens delinquentes, em função da excessiva
aglomeração nos centros urbanos aliada à precária infraestrutura, além de estarem situados à
margem do mercado de trabalho, fomentam a introdução de novas políticas destinadas à criança
e ao adolescente. Os ideais propostos pelo Movimento dos Reformadores no início do século XX,
nos Estados Unidos, instauram um momento de caráter tutelar da juventude, ao estabelecer clas-
sificações distintas entre criança e adulto, eliminando a promiscuidade existente nos centros de
reclusão, principal dos motivos de contestações.
Intentada uma análise crítica, evidencia-se que o projeto dos reformadores, além de uma
conquista sobre o velho sistema, constituiu compromisso profundo com àquele. As novas leis e
administração da Justiça de Menores nasceram e se desenvolveram sob os pilares ideológicos do
positivismo filosófico, de maneira que a cultura de sequestro dos conflitos sociais somente foi al-
terada em único aspecto: a promiscuidade (MÉNDEZ, 1998).
Ademais, se por um lado visava extinguir a promiscuidade através da distinção estabeleci-
da, por outro reproduzia articuladas políticas de repressão social, com intensa criminalização da
pobreza e estereotipação da juventude desviada, invariavelmente estigmatizada por ser pobre, de
maioria negra, mal instruída e localizada nos subúrbios das cidades, o que não raro resultou no
encarceramento, alegando-se proteção ao menor abandonado/delinquente (BARATTA, 1998).
Remonta ao final do século XIX a criação do primeiro Tribunal de Menores, em Illinois, nos
Estados Unidos. Seguiu-se com diversos outros países aderindo à criação de Tribunais de Meno-
res, instituindo seus juízos especiais. Através do Decreto Federal 16.273, o Brasil cria seu primei-
ro juízo de menores em 1923, no Rio de Janeiro. A criança que era tratada como coisa passou a
reclamar a condição de objeto de proteção do Estado, dando molde à nova Doutrina da Situação
Irregular que perduraria até meados do século XX.
Esta doutrina acaba consagrando o binômio carência/delinquência, promovendo intensa
criminalização da pobreza. Imperioso constatar que essa nova política surge como uma tentativa
de solucionar os problemas sociais, e não havia melhor alternativa senão a de exercer estratégico
controle nas camadas mais desfavorecidas da população, notadamente os mais pobres. Nos dize-
res de Emilio García Méndez (1998, p. 27), essa doutrina não significa outra coisa que legitimar
uma potencial ação judicial indiscriminada sobre as crianças e os adolescentes em situação de
dificuldade.
Dessa forma, busca o Estado, através da intervenção jurídico-penal, suprir as deficiências
estruturais de políticas sócias básicas, o que demonstra claro populismo punitivo, dado que se re-
corre a mecanismos da esfera penal para intentar a dizimação dos grupos mais vulneráveis, à mar-
gem do sistema econômico vigente, em decorrência da própria omissão estatal no cumprimento
de medidas mínimas que atendam as necessidades da sociedade.
Em nome da paz e da ordem, aqueles que não detinham o poderio econômico pregado pelo
sistema capitalista estavam sujeitos a contínuo processo de controle e explícita exclusão, conse-
quentemente. Em outras palavras, consistia na criminalização dessa faixa social, e para tanto,
o cárcere desempenhava papel essencial no funcionamento das sociedades, sendo instrumento
civilizado e constitucional de segregação das populações problemáticas criadas pela economia e
pelos arranjos sociais atuais (GARLAND, 2008).
No tocante a Doutrina da Situação Irregular, é de suma importância atentar que suas leis
estabelecem clara divisão na categoria da infância: entre crianças e adolescentes, aqueles per-
tencentes às classes mais altas; e menores, compreendendo o universo dos excluídos economi-
camente, da escola e da família. Levando em consideração a impunidade declarada, ignorando
32
juridicamente delitos graves cometidos por adolescentes das classes mais favorecidas, não resta
entendimento diverso acerca das leis existentes enquanto destinadas exclusivamente para os me-
nores em situação de dificuldade. O tratamento jurídico dos problemas relacionados à juventude,
seguido da atuação do juiz portando-se como um bom pai de família, encarregado de suprir as de-
ficiências de instrução do jovem, infere que o Juiz de Menores não estava limitado pela lei e tinha
amplo poder discricionário para tomar sua decisão.
Destarte, a proteção conferida à juventude frequentemente violava ou restringia direitos,
dado não ser concebida desde a perspectiva dos direitos fundamentais, como se observa diante da
utilização de categorias vagas e ambíguas para definir em que situação o menor seria classificado
em condição de risco ou perigo, além de reunir no mesmo lugar crianças e adolescentes que co-
meteram delitos graves com aqueles que se encontravam em status de abandono.
É válido suscitar que nesse sistema as condições pessoais, familiares e sociais que fazem o
jovem estar em situação irregular, tornando-se potencial objeto de intervenção estatal. A juventu-
de aparece como objeto de proteção, porém não reconhecidos enquanto sujeito de direitos, e sim
como incapazes, tornando a opinião da criança irrelevante. Uma vez que essas leis são direcio-
nadas aos menores, abandonados e delinquentes, a medida adotada pelos Juizados de Menores
resumia-se na privação de liberdade, por tempo indeterminado, tanto para os que delinquiram,
quanto para os protegidos em razão de abandono. Nesses termos, a prisão constitui o principal
instrumento da política habitacional do Estado para os inúteis da nova economia (WACQUANT,
2007).
Ora, inolvidável reconhecer que se trata de uma política jurídico-penal que estereotipa sua
clientela, criminaliza a pobreza e segrega os vulneráveis, e diante da inexistência de investimentos
públicos básicos, figuram a imagem de inimigo interno, constituindo-se em ameaça a sociedade,
fruto da própria má atuação estatal, que encontra em mecanismos de controle e exclusão social a
manutenção e justificativa de sua omissão administrativa.
2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e a promoção da Dou-
trina da Proteção Integral
Na vigência do Código de Menores, decorrente da discricionariedade outorgada ao juiz, e
em consequência da atuação judicial-criminalizante dos órgãos repressivos e intervencionistas,
frequentemente se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como
delito na legislação penal brasileira, suprimindo-se garantias penais e processuais.
Desse modo, evidencia-se a assertiva proferida por Larrauri (2006, p. 14) quando atenta
que o aumento de pessoas que estão na prisão não reproduz o aumento da delinquência, mas a
multiplicidade de outros fatores, como decisões legislativas, sensibilidade judicial e capacidade e
limites do próprio sistema para processar os diversos atos delitivos.
Outrossim, esse populismo punitivo que assolava o universo infanto-juvenil resultou em
grande movimento pela reforma do Direito do Menor, a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1989, que tem força de lei in-
terna para os países signatários, dentre os quais o Brasil. Essa lei internacional constituiu marco
na condição jurídica da infância, e terminou por consagrar a Doutrina da Proteção Integral, que
embasaria as futuras legislações concernentes à criança e ao adolescente, substituindo a velha
Doutrina da Situação Irregular (DOLINGER, 2003 ).
A Doutrina da Proteção Integral foi adotada na Constituição Federal de 1988, contemplada
nos artigos 227 e 228, promovendo a juventude à condição de sujeitos de direitos e obrigações
próprios de seu peculiar estado de desenvolvimento, eliminando o conceito menor e atribuindo
novo funcionamento da Justiça da Infância e Juventude. Os sistemas de garantias presentes no
Direito Penal passam a ser aplicados à criança e ao adolescente, inclusive quando da prática de
ato infracional.
A introdução da atual legislação retira a figura do Juiz de Menores, atribuído do caráter de
instrutor do jovem, na figura de um pai, restringindo sua atuação ao estrito papel de julgador dos
fatos, com poderes limitados pelas garantias processuais e penais asseguradas na Carta Magna
(DA ROSA, 2011).
Definem-se os direitos das crianças, que sob pena de ameaça ou violação, é dever da família,
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  • 2. Organizadores João Paulo Allain Teixeira Louise Dantas de Andrade Jurisdição, Processo e Direitos Humanos Recife, julho de 2014
  • 3. Créditos Dseign da capa: Ana Catarina Lemos Composição do miolo: Ana Catarina Lemos Organização e revisão: João Paulo Allain Teixeira e Louise Dantas de Andrade Editora: APPODI J95 Jurisdição, processo e direitos humanos / João Paulo Allain Teixeira, Louise Dantas de Andrade, organizadores. -- Recife : APPODI, 2014. 255 p. : i.. ISBN: 978-85-64680-03-6 1. Direitos humanos - Brasil. I. Teixeira, João Paulo Fernandes Allain. II. Andrade, Louise Dantas de. CDU 342.7(81)
  • 4. SOBRE OS AUTORES João Paulo Allain Teixeira Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas del Derecho pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universi- dade Federal de Pernambuco (1995). Professor dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco. Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, professor da Universidade Católica de Pernam- buco e Professor titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador ad hoc do MEC/INEP. Louise Dantas de Andrade Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010).
  • 5. 5 APRESENTAÇÃO O pensamento jurídico contemporâneo, nascido a partir da segunda metade do século pas- sado, tem se voltado às múltiplas possibilidades de compreensão da tutela e promoção dos Direitos Humanos. Uma das mais evidentes formas de proteção aos Direitos Humanos encontra-se na dimensão jurisdicional do direito. O trabalho ora apresentado é o resultado de um esforço cole- tivo voltado a debater as possibilidades de compreensão do papel do Poder Judiciário no que se refere à efetividade dos Direitos Humanos em um contexto social fragmentado e multifacetado. Este esforço é viabilizado a partir de diálogos estabelecidos entre os integrantes do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP, integrantes do grupo de pesquisa “Jurisdição Constitucio- nal, Democracia e Constitucionalização de Direitos” e pesquisadores de outras Universidades e Centros de Pesquisa do país. As abordagens que se seguem oferecem um panorama das possibilidades de pensar os di- reitos humanos a partir do viés jurisdicional. Virginia Colares e Vinicius Calado, utilizando-se das ferramentas da Análise Crítica do Discurso (ACD), dissecam um editorial publicado em um jornal pernambucano acerca da Extradição de Cesare Batisti; Carolina Salazar L`Armee Queiroga de Medeiros e Marilia Montenegro Pessoa de Mello, analisam o simbolismo da Lei Maria da Penha no tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher; Érica Babini Lapa do Amaral, Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Juliana Marques Lyra Carneiro Leão, Keunny Raniere Car- valho de Macêdo Filho estudam o tema da criminalização secundária nas varas da infância e da juventude do Recife, evidenciando os paradoxos do sistema punitivo brasileiro; Manuela Abath Valença lança um olhar crítico sobre a cultura do medo e seus reflexos para os Direitos Humanos; Luciana Brasileiro inscreve os Direitos Humanos no contexto da reprodução assistida, analisando seus reflexos para o direito à liberdade;em análise sobre a tutela dos Direitos em decorrência da atividade médica, Natália Barroca estuda as violações aos Direitos Humanos e a responsabilidade penal em decorrência da episiotomia; Hugo de Brito Machado Segundo partindo da neurociência e da biologia, vislumbra a possibilidade de contribuições destes dominios do saber para a filosofia do direito, Daniel Carneiro Leão Romaguera e João Paulo Allain Teixeira procuram estabelecer um crítica contemporânea aos Direitos Humanos a partir da sua doxa universalista; sob uma pers- pectiva institucional, Rafael Bezerra de Souza e Carlos Bolonha estudam as dificuldades de pensar o funcionamento das instituições a partir de um recorte estritamente normativo; Flávia Santiago Lima trabalha com o tema do “neoconstitucionalismo” destacando seus reflexos para a efetivida- de constitucional; Em estudo sobre o controle da administração pública, Glauco Salomão Leite e Marcelo Labanca Corrêa de Araújo se propõem a refletir sobre o pael da adminsitração pública no que se refere à constitucionalização do direito à saúde; partindo do perfil legislativo brasileiro, Hé-
  • 6. 6 lio Silvio Ourém Campos dedica a sua atenção para a as interferências assimétricas da política na produção do direito tributário brasileiro; Raymundo Juliano Feitosa e Alexandre Salema estudam o tema da extrafiscalidade a partir da Teoria dos Sistemas; Lúcio Grassi de Gouveia trabalha com as relações entre antijuridicidade e litigância de má-fé; Roberto Wanderley Nogueira analisa os novos paradigmas constitucionais para o acesso à justiça de pessoas com deficiência; o tema de Aline da Silva Machado Joaquim e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger é o estudo do Direito à Memória na Constituição de 1988, partindo da obra “Eichmann em Jerusalém” de Hannah Arendt; Alexan- dre Henrique Tavares Saldanha trabalha com a liberdade de comunicação em uma sociedade de informação na restauração de democracias em regimes transicionais; Alexandre Freire Pimentel dedica-se ao estudo do sistema jurisdicional norte-americano, lançando as bases para uma análise comparativa entre o direito, o processo e a classificação das ações nos Estados Unidos, e finalmen- te, Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso estuda as relações entre desenvolvimento econômico e tráfico de pessoas. Como se percebe, trata-se de um trabalho conjunto cuja maior virtude encontra-se na pos- sibilidade de afirmação de um olhar multifacetado sobre um fenômeno complexo. É com alegria e satisfação que apresentamos à comunidade jurídica nacional este conjunto de reflexões, na esperança de que possam vir a estimular o debate em torno da proteção jurisdicional dos Direitos Humanos. João Paulo Allain Teixeira Louise Dantas Recife, julho de 2014
  • 7. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO5 EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVIDADE JURÍDICA DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO 10 Virgínia Colares Vinícius Calado O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊN- CIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 18 Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros Marília Montenegro Pessoa de Mello A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO AO MENORISMO 28 Érica Babini Lapa do Amaral Machado Marília Montenegro Pessoa de Mello Juliana Marques Lyra Carneiro Leão Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho PRIVILÉGIO DE BANDIDOS? A CULTURA DO MEDO E O SENTIMENTO DE INSEGU- RANÇA COLOCANDO OS DIREITOS HUMANOS EM XEQUE 41 Manuela Abath Valença DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS E REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA: LIBERDADE DE REPRODUZIR (?) 53 Luciana Brasileiro A RESPONSABILIDADE PENAL DECORRENTE DA EPISIOTOMIA COMO VIOLA- ÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 64 Natália Barroca CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA E DA BIOLOGIA À FILOSOFIA DO DIREITO72 Hugo de Brito Machado Segundo
  • 8. DOXA UNIVERSALISTA DOS DIREITOS HUMANOS E SEUS PARADOXOS: POR UMA CRÍTICA AO DIREITO NA ATUALIDADE 85 Daniel Carneiro Leão Romaguera João Paulo Allain Teixeira TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A PERS- PECTIVA INSTITUCIONAL 105 Rafael Bezerra de Souza Carlos Bolonha “MOVIMENTO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL”: CONSIDERA- ÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DOS POSTULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS NO BRASIL120 Flávia Santiago Lima O OUTRO LADO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONTROLE DA ADMINISTRA- ÇÃO PÚBLICA: ANÁLISE A PARTIR DO DIREITO À SAÚDE 132 Glauco Salomão Leite Marcelo Labanca Corrêa de Aráujo O BRASIL – ATOS INSTITUCIONAIS, ATOS COMPLEMENTARES E UMA HISTÓRIA DE DESCONSTITUCIONALIZAÇÕES E RECONSTITUCIONALIZAÇÕES ACELERADAS139 Hélio Sílvio Ourem Campos TEORIA DOS SISTEMAS E EXTRAFISCALIDADE: A QUESTÃO DA PREVALÊNCIA DA LÓGICA DO SUBSISTEMA DA ECONOMIA 157 Raymundo Juliano Feitosa Alexandre Henrique Salema Ferreira ANTIJURIDICIDADE E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ 177 Lúcio Grassi de Gouveia ACESSO À JUSTIÇA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: NOVOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS189 Roberto Wanderley Nogueira O DIREITO À MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: um olhar a partir da obra Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt 202 Aline da Silva Machado Joaquim Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
  • 9. SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: DESAFIOS DA LIBER- DADE DE COMUNICAÇÃO E DA LÓGICA “WIKILEAKS” NA RESTAURAÇÃO DAS DEMOCRACIAS EM TRANSIÇÃO 223 Alexandre Henrique Tavares Saldanha O SISTEMA JURISDICIONAL NORTE-AMERICANO: ANÁLISE COMPARATIVA SO- BREO DIREITO, O PROCESSO E A CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES NOS EUA 231 Alexandre Freire Pimentel LA POLÍTICA MIGRATORIA DE LOS ESTADOS DESARROLLADOS COMO FACTOR FACILITADOR DE LA TRATA Y DEL TRÁFICO HUMANO 246 Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
  • 10. 10 EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVI- DADE JURÍDICA DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO Virgínia Colares1 Vinícius Calado2 1. A NOTÍCIA DO EDITORIAL O fato jurídico (lato sensu) noticiado no editorial é uma decisão judicial proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante ao pedido, feito pela Itália, de extradição de Cesare Battisti, com fundamento em decisão judicial transitada em julgado naquele país que condenou o cidadão italiano à pena de prisão por homicídio. Destaque-se que até mesmo esta simples in- formação resumida da questão de fato jurídico não fora abordada no editorial, uma evidência de versão da notícia politicamente comprometida. O editorial, intitulado “BATTISTI ATINGE O STF”, ao leitor médio pode até passar desper- cebido e iniciar a leitura do texto sem qualquer reflexão, entretanto o verbo atingir no presente do indicativo insinua,em seu eixo de possibilidades polissêmicas, imediatamente, um duplo sentido: o primeiro o de alcançar (chegar até lá) e o segundo de ofender/ manchar a imagem (HOUAISS, 2001. p.334). Assim a oração poderia ser interpretada como “Battisti chega até o STF” ou “Battisti mancha a imagem do STF”, assinalando ambigüidade na construção. Para o jurista, fica evidenciada a idéia de que Cesare Battisti conseguiu manchar a imagem do STF com o episódio, notadamente porque juridicamente o caso não chegou até o STF, mas sim originou-se nele por força de sua competência fixada na Constituição da República como adiante 1 Possui mestrado (1992) e doutorado (1999) em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, é professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), atuando na graduação e mestrado em Direito. É líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes). Integra a International Language and Law Association (ILLA). É participante do Grupo de Pesquisa em Linguística Forense da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de Linguística Aplicada ao Direito, atua na linha de pes- quisa da Análise Crítica do Discurso Jurídico.  2  Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2000), com especialização em Direi- to Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2002). Obteve o primeiro lugar na seleção para o programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2010), sendo aprovado com distinção em sua defesa pública (2012). Atua como professor de Direito Civil, Direito do Consumidor e Prática Jurídica na UNICAP (desde 2011). Sócio fundador e ex-presidente da APPODI - Associação Pernambucana de Pós- graduandos em Direito (2010-2012).
  • 11. 11 se demonstrará. Outro elemento de destaque neste editorial é a sua chamada: “O Supremo poderia ter evitado o espetáculo vexatório de uma decisão inócua”, conforme figura 01, a seguir. De modo ex- plícito, uma posição de crítica à conduta do STF, com escolhas lexicais eruditas precisas e tempo verbal que remete o leitor a uma idéia de “culpa” do tribunal, pois, pela construção do texto do editorial,pode-se inferir que o STF poderia ter evitado o espetáculo, mas não o fez. Figura 01 2. ANÁLISE CRÍTICA DO EDITORIAL A crescente expansão do poder judicial no Estado Democrático de Direito vem sendo cha- mada por alguns autores de judicialização da política (WERNECK VIANNA et al., 1999; CAS- TRO, 1997; SANTOS, 2003). Esse fenômeno mundial é caracterizado por uma postura ativista dos juízes, que passam a interpretar “criativamente” o direito, ocasionando assim uma espécie de transferência da função legislativa, antes concentrada nos poderes Legislativo e Executivo, para os tribunais. Por outro lado, a influência do Poder Judiciário (e do raciocínio judicial) no campo político torna-se visível devido à utilização, cada vez maior, de procedimentos judiciais por parte de agências executivas e legislativas (TATE; VALLINDER, 1995). Tais fenômenos que evidenciam essa dúplice tendência antidemocrática quando noticiados na imprensa expõem relações entre diferentes práticas discursivas. No editorial, apresentam o alinhamento político da empresa midiática como assegura Nascimento (2003, p.85): O editorial é um texto argumentativo que representa a opinião da empresa jorna- lística que o publica. Através dele, é apresentado o posicionamento do jornal sobre fatos do dia-a-dia. A partir de um fato, o (a) editoralista desenvolve um raciocínio valorativo, através do qual defende, com argumentos persuasivos, a posição políti- co-social do jornal e refuta as opostas, conduzindo o leitor à conclusão pretendida pela empresa.
  • 12. 12 Pelo sistema de transitividade da Gramática Sistêmico Funcional (GSF) há seis modos de ex- pressar os processos verbais: (a) materiais, (b) mentais, (c) relacionais; considerados os principais e (d) verbais, (e) existenciais e (f). comportamentais; considerados secundários. O processo, na perspectiva da GSF, é um espaço semiótico no qual as regiões não são rígidas, há um continuum entre os vários processos que sustenta o princípio da indeterminação semântica das línguas. Num texto, podemos ver experiências construídas no domínio da emoção/ sentimento, p. ex. “estou muito cansada” ou no domínio da classificação “meu corpo está quebrado” porque o mundo das experiências é altamente indeterminado e a gramática constrói seu sistema a partir dos vários tipos de processo sem comprometer a comunicação. Os processos principais [(a) materiais – do mundo físico, (b) mentais – do mundo consciente, (c) relacionais - do mundo das relações abs- tratas] são aqueles pelos quais se faz algo. Os processos materiais constituem ações nas quais as entidades fazem algo. Assim, há orações médias ou intransitivas e orações transitivas ou efetivas. Nas primeiras, há apenas um participante, p. ex. “Nos últimos anos, o STF tem buscado exibir de maneira mais intensa, com transparência louvável, o debate sobre as suas decisões.” (linhas 03- 05, fragmento 01, a seguir). Já as orações efetivas ou transitivas têm dois ou mais participantes como p. ex. “Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na última quarta-feira, o STF decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti pela Itália, e logo em seguida, voltou atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia-se o presidente Lula – a última palavra sobre a extradição.” (linhas 09-12, fragmento 02, a seguir). As orações transitivas assinalam que alguém fez alguma coisa a alguém. Se na intransitiva acima, o STF aparece como único protagonista na construção textual do editorial e por essa razão a oração aparenta maior isenção ou intransitivi- dade; a segunda envolve vários protagonistas “os cidadãos” (leitoras do jornal); “o STF”; “Cesare Battisti”; “a Itália”; “o Executivo/ o presidente Lula”. 1. Composto idealmente por personalidades de reconhecida experiência, notório saber e 2. ilibada trajetória pública, ao Supremo Tribunal Federal cabe decidir, em última instância, 3. questões muitas vezes polêmicas que são postas ao sistema jurisdicional brasileiro. Nos 4. últimos anos, o STF tem buscado exibir de maneira mais intensa, com transparência 5. louvável, o debate sobre as suas decisões. Neste processo, contudo, cresce a impressão 6. de que os holofotes da mídia chegam a ofuscar os ministros a tal ponto que a discussão 7. intramuros parece contaminar-se pelo calor do lado de fora. Fragmento 01 A escolha dos verbos do mundo físico, eixo do fazer, comportamental: “cabe decidir” (linha 2); “exibir” (linha 4); “cresce” ( linha 5); “chegam a ofuscar” (linha 6) “contaminar-se” (linha 7) reafirmam a idéia de agente do Supremo Tribunal Federal (STF) realizando processos materiais que constituem ações de mudanças externas, físicas e perceptíveis. A reflexividade entre os minis- tros do STF, “os holofotes da mídia” e o “calor do lado de fora” da população brasileira, é anuncia- da pelo editorialista como “transparência louvável” (linhas 04-05) do STF. Entretanto, nos escritos de Chouliaraki Fairclough (1999) sobre a pós-modernidade, a reflexividade, em toda prática social, há um aspecto discursivo; ou seja as construções discursivas das práticas são partes cons- titutivas das próprias práticas e as práticas podem depender dessas construções para sustentar relações de dominação; dessa forma, a reflexividade funciona ideologicamente e não de maneira neutra como apregoam tanto o judiciário, como a imprensa- centros de poder da vida social no dizer foucaulteano. A “informação” sobre a composição do STF (linhas 01-03), ao usar o advérbio idealmente já demonstra o tom de crítica, um ar de ironia; inferindo-se daí que a composição do STF, de fato, não é a ideal. Ao utilizar a técnica de ancoragem (aproximação/ distanciamento) para falar genericamente da atuação positiva do STF e no caso concreto criticá-lo, o editorial re- corre às expressões “Nos últimos anos” (linhas 03-04) e “Neste processo” (linha 05). O operador argumentativo“contudo”(linha 05), indicador de contraposição, estabelece relações de contraste, disjunção, concessão, oposição corroborando a ironia insinuada com a escolha lexical do advérbio “idealmente” (linha 01). 8. Essa intercomunicação aparenta ter sido prejudicial à própria capacidade do STF de 9. discernir o seu raio de poder. Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na
  • 13. 13 10. última quarta-feira, o STF decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti 11. pela Itália, e logo em seguida, voltou atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia- 12. se o presidente Lula – a última palavra sobre a extradição. Lembra a letra de uma 13. canção de Vinicius de Moraes - se era para desfazer, por que é que fez? Ficou a 14. incômoda sensação de que a sutil diferença entre veredicto “determinativo” e 15. “autorizativo” configurou a tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde 16. a origem, politicamente. Fragmento 02 O movimento dos verbos, no fragmento 02, informa que o STF fez e desfez uma decisão ao sabor da política. Entretanto não informa que apenas o chefe de estado pode homologar um pedi- do de extradição. O editorial joga mais que com os permitidos jogos de linguagem wittgnsteineanos ao citar Vinicius de Moraes: “se era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13). Nesse sentido, Meurer e Motta-Roth (2002) dizem que, emtodo contexto cultural de situação, há atividades que são representadasna linguagem, há papéis desempenhados por nós e por nossos interlocutoresque se estabelecem pela linguagem, e há pressuposições compartilhadas pornós e por nossos interlo- cutores sobre como essas atividades e esses papéisserão explicitados por meio da linguagem. Assim, o uso dos verbos e da adjetivação demonstra tendenciosidade do jornal ao afirmar que o STF estaria “contaminado” (linha 07, 46) e com seus ministros “ofuscados” (linha 06), e ainda que ficou uma sensação “incômoda” em face de “sutil” (linha 14) diferença que configurou a atitude uma “saída honrosa” (linha 15), numa decisão “apertada” (linha 32) que teria gerado um “perigoso” (linha 35) precedente. Fala ainda de um elemento “perturbador” (linha 43) e aque- la fora uma “surpreendente solução” (linha 47), além dos já citados “espetáculo vexatório/decisão inócua” (chamada).Aduz ainda de modo implícito que o STF deveria ficar de “fora do mundo/ realidade social” para não se prejudicar ao asseverar que: “Essa intercomunicação aparenta ter sido prejudicial à própria capacidade do STF de discernir o seu raio de poder.” (linhas 08-09) 17. Seria mais lógico, sob qualquer ângulo avaliado, que a apreciação que se sucedeu ao 18. mérito da extradição tivesse sido realizada antes, determinando-se previamente a quem 19. caberia a palavra final sobre o caso. Posto que, ficasse decidido, como ficou, que a 20. decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo ministro da 21. Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo 22. vexatório de uma decisão inócua. Se os processos de extradição “começam e terminam 23. pelo Executivo”, como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte 24. nacional como mero “rito de passagem” apenas onera os cofres públicos e toma o tempo 25. dos réus. Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fazer. Fragmento 03 Predomina neste fragmento verbos do eixo do mundo das relações abstratas que represen- tam algo que acontece ou existe e se constroem com apenas um participante que a GSF denomina existente, na nossa análise o STF. O fulcro do editorial é asserção: “Posto que, ficasse decidido, como ficou, que a decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo ve- xatório de uma decisão inócua”. O ministro não defendeu nenhuma posição, apenas aludiu à lei que determina a competência jurídica da decisão. Destaque-se, ainda, que existiram fatos precedentes a esse pronunciamento do STF. Cesa- re Battisti havia solicitado a condição de refugiado político que fora deferida pelo Ministro Tarso Genro. Nos autos da extradição, o STF reconhece a ilegalidade do ato de concessão de status de refugiado político, concedido pelo Ministro de Estado da Justiça em setembro de 2009, e discute o mérito do pedido feito pela Itália. Esse fato fez cair por terra um dos argumentos da defesa de Cesare Battisti que se fundamentava no art. 33 da Lei nº 9.474/97 “O reconhecimento da condi- ção de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”. Os parâmetros de legalidade para o caso da extradição de Cesare Battisti estão estabelecidos no art. 77, VII do Estatuto do Estrangeiro, disciplinando que o crime político não pode ser o fun- damento do pedido de extradição:
  • 14. 14 Lei n.: 6.815/81Art. 77. Não se concederá a extradição quando: VII - o fato consti- tuir crime político; Lei n.: 6815/81, Art. 77 - § 2º Caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Fede- ral, a apreciação do caráter da infração. Nesse mesmo sentido está grafado o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, em seu artigo 3º, 1: “A extradição não será concedida: (...) e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela Parte requerida, crime político;”. Da interpretação dos dispositivos constitucionais e legais pertinentes, compreende-se que o papel do STF é apreciar a questão de fundo e não a extradição em si. Ou seja, competiria ao STF, por meio de seu Plenário, decidir exclusivamente acerca da prática ou não de crime político pelo extraditando Cesare Battisti. Caso não houvesse se pronun- ciado o Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF sobre a legalidade e procedência do pedido de extradição, o extraditando não poderia ser entregue à Itália por força do art. 77 do Estatuto do Estrangeiro acima transcrito, mas como houve o reconhecimento (apertado) da existência de crime comum de homicídio, pronunciou-se o STF pelo deferimento do pedido de extradição. Segundo o editorial, o problema fora o conteúdo da manifestação do STF na “contraditória sessão” (linha 26) que julgou procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti feito pela Itália e, ao mesmo tempo, entendeu que compete ao Presidente da República a discricionariedade da execução ou não da extradição por se tratar de questão de relações internacionais. O discurso que emerge da superfície textual do editorial expressa uma não-neutralidade; sinaliza explícita posição contrária à atitude do STF; tece inúmeras críticas; e finda por inferir supostas conseqüências do fato, sem qualquer correlação direta ao episódio. Nessas condições, a informatividade e a intertex- tualidade restam comprometidas. O caso Battisti não “chegou até o STF”, mas sim se originou nele por força de sua compe- tência fixada na Constituição da República, pois assim estabelece o Art. 102, I, ‘g’ da CF/88: CF/88, Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro; Assim, compete exclusivamente ao STF processar a julgar a extradição solicitada por Esta- do estrangeiro, sendo justamente o que ocorreu no caso objeto de análise do editorial, qual seja, o julgamento pelo STF do pedido de extradição de Cesare Battisti formulado pela Itália. A Lei n° 6.815/81 que “Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração”, conhecida como “Estatuto do Estrangeiro”, trata da questão da extradição e disciplina sobre qual aspecto deve o STF se pronunciar, estabelecendo ainda que dita decisão é irrecorrível, posto que proferida pelo plenário da Corte3 . Daí o menor grau de informatividade dos aspectos legais envolvidos no fato jurídico (lato sensu), noticiado pelo editorial, compromete a notícia, tor- nado-a tendenciosa. O fragmento 03 se caracteriza pela utilização de verbos do eixo dos processos verbais (d), existenciais (e) e comportamentais (f), considerados por Halliday; Matthiessen (2004) como se- cundários. Esses processos verbais que expressam o dizer, comunicar, apontar, configuram as re- lações simbólicas construídas na mente e expressas verbalmente ou por outras vias multimodais. O editorial enuncia que “Se os processos de extradição ‘começam e terminam pelo Executivo’, como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte nacional como mero ‘rito de passagem’ apenas onera os cofres públicos e toma o tempo dos réus” (linhas 22-15). A utilização das aspas, desloca a responsabilidade do dizer para o ministro, entretanto o Art. 102 da CF, como visto acima, é incisivo quanto à competência do STF no que concerne “a extradição solicitada por Estado estrangeiro”. Na linha 25, a asserção de que “Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fa- zer. ”, um ato indireto de fala modalizado pelo advérbio “certamente”, ironicamente constrói uma 3 Lei n.: 6.815/81 - Art. 83. Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão.
  • 15. 15 identidade negativa do STF. 26. A implicação da contraditória sessão do STF não passou despercebida por seus 27. integrantes. O ministro Cezar Peluso, relator do caso, comparou a possível negativa do 28. presidente da República à extradição a transformar a função do STF numa “brincadeira 29. de criança”. No mesmo tom, o presidente do Tribunal, Gilmar Mendes, afirmou que não 30. deveria haver espaço para questionar a validade da aprovação da extradição, uma vez 31. que a casa não seria “órgão de consulta”. Contrariando Mendes e o relator, pela mesma 32. votação apertada da primeira parte, só que em sentido inverso, por cinco votos a quatro, 33. os juízes resolveram dar o caráter “autorizativo” para a extradição do italiano. Fragmento 04 Halliday; Matthiessen (2004) classificam os processos materiais em criativos e transfor- mativos, sendo esses últimos aqueles que mudam o estado de coisas numa dada situação. Ao comparar “ /.../a possível negativa do presidente da República à extradição a transformar a função do STF numa “brincadeira de criança”, na voz do ministro Cezar Peluso; o editorial constói uma oração cuja transitividade coloca em rota de colisão os poderes Executivo e Judiciário. A despeito da concessão da extradição (ou sua execução) ser ato compete ao chefe de Estado, por força do art. 84, incisos VII e VII da CF/1988. Ou seja, quem efetivamente despacha a extradição no Brasil é o Presidente da República, após o prévio pronunciamento do STF, como já explicitado. Ou ainda dito de outro modo, a decisão de deferimento da extradição pelo STF não vincula o Presidente da República, sendo a decisão presidencial política e não jurídica. Neste diapasão, compulsando o andamento do processual do processo de Extradição nº 1.0854 , encontra-se o resumo da decisão objeto do editorial: “O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de extradição, por maioria, o Tribu- nal assentou o caráter discricionário do ato do Presidente da República de execução da extradição, Extradição nº 1.085. Plenário, 18.11.2009.” Como se vê, falar de mero “rito de passagem” (linha 24); “órgão de consulta” (linha 31); “coadjuvante” (linha 41); dentre outras estratégias de nomeação da entidade jurídicaem tom de caráter jocoso evidenciam a construção de uma identidade negativa STF pelo editorial do jornal. 34. O professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr., chamou o vaivém 35. do STF no desfecho do caso Battisti de “um tiro no pé”. Abre-se perigoso precedente 36. para a desvalorização do Judiciário diante de um Executivo já hipertrofiado, como o 37. Executivo brasileiro. Afinal, para o cidadão comum, e de acordo com a prescrição 38. constitucional, o Supremo Tribunal Federal deve ser evocado para dirimir as mais altas 39. dúvidas, e sobre a sua resposta não devem restar bifurcações. Dentro da repartição dos 40. poderes republicanos, ninguém espera que o “tribunal supremo” funcione como um 41. coadjuvante “supremo conselho”. Ou que o julgamento dos dilemas nacionais seja 42. encargo submetido à ponderação do presidente da República. Como se vê, o recuo do 43. STF após “extraditar” Battisti lança um elemento perturbador na própria arquitetura 44. democrática. Fragmento 05 No fragmento 05, o editorialista arremata o tecido textual iniciado com do fio condutor “se era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13) com o “vaivém do STF” (linha 34) atribuindo ao “professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr” o enunciado gnómico dar “um tiro no pé” ( linha 35). Nesse caso, o tiro saiu pela culatra, pois qualquer cidadão brasileiro poderia ter dito tal “pérola”, usar o argumento de autoridade de um eminente catedrático da USP parece piada. Trata-se de uma “citação”, no mínimo, inadequada. Como já dito, se existem “bifur- cações” (linha 39) foram postas pelo poder legislativo na construção das leis, vistas acima, e não pelo STF que as cumpriu. Assim, “a sutil diferença entre veredicto ‘determinativo’ e ‘autorizativo’” (linhas 14-15) não se trata de uma “tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde a origem, politi- camente”. (15-16), como pretende o editorial, o judiciário cumpriu aquilo posto pelo legislativo; 4 Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2514526
  • 16. 16 sendo ambos expressões do poder institucionalizado. A idéia de poder, que está ao centro da visão moderna do direito processual, cons- titui assim fator de aproximação do processo à política, entendida esta como o pro- cesso de escolhas axiológicas e fixação dos destinos do Estado. (itálicos no original) /.../ Em sua acepção mais ampla e necessariamente vaga, poder é a capacidade de pro- duzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de alterar a probabilidade de obter esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas. (itálicos no original) DINA- MARCO (2005. p. 100) Assim, sendo o poder a capacidade de produzir os efeitos pretendidos, e sendo a observân- cia do devido processo legal um direito fundamental, era indispensável a manifestação do poder judiciário para atingir este desiderato, pois, se assim não fosse, estar-se-ia “ferindo de morte” o texto constitucional e não “bifurcando-o”, ou o STF dando um “tiro no pé”. 45. A extradição de Cesare Battisti (ou a sua acolhida pelo governo brasileiro) recebeu tons 46. dramáticos e uma carga ideológica que não poderiam contaminar o seu julgamento. 47. Entretanto, a surpreendente solução, encontrada pelo máximo juizado do País, de 48. “concluir sem encerrar” um caso polêmico, além de perplexidade, traz de volta a 49. preocupação acerca da saúde de nossas instituições. Diante de um cenário continental 50. que apresenta endêmicas fragilidades, qualquer suspeita de trincamento em uma das 51. bases do estado de direito pode fazer ressurgir o fantasma de tempos idos, quando o 52. argumento político proibia que qualquer um pudesse contar com o bom senso final de 53. um tribunal superior isento, democrático e justo” – como consideramos o STF. Fragmento 06 O tom do fragmento 06 é panfletário, evoca “o fantasma de tempos idos” da ditadura mili- tar. Estrategicamente, o editorial alinha “a extradição de Cesare Battisti” com “a sua acolhida pelo governo brasileiro” como sinônimos (linha 45), fato que, aí sim denota o tom político-partidário do jornal. Paradoxalmente, a concepção de linguagem do jornalista isola as práticas sociais de julgar e de dar a notícia de “tons dramáticos” e de “carga ideológica” como se produzissem textos no vácuo social. As vozes de Tarso Genro, Carlos Ayres, Cezar Peluso, o ministro relator do caso, o presidente da República, Gilmar Mendes e Miguel Reale Jr tentam aproximar e persuadir o leitor a concordar com ele (autor), mostrando uma conformidade discursiva de seu texto com o dos ministros, utili- zando essa intertextualidade como uma de suas estratégias além de tentar a transitividade com os cidadãos, evocando-os aqui e ali. Em fecho, o autor conclui, sem qualquer, coerência de raciocínio com as premissas previa- mente estabelecidas em seu texto que o STF estaria doente, inferindo que o judiciário teria “trin- cado” e estaria submisso ao Executivo, não sendo, pois “isento, democrático e justo” como deveria ser. 3. REFLEXÃO SOBRE A ANÁLISE Em conclusão, podemos afirmar que o conteúdo informativo que deveria ser o aspecto mais nítido do editorial, com linguagem clara e objetiva sobre o fato em si mesmo considerado, notada- mente a questão jurídica de fundo e as divergências existentes (entre juristas), não foi a principal preocupação do autor, emergindo do texto um discurso construído em premissas equivocadas/ parciais/ localizadas com uma conclusão de aspecto generalizante que termina por questionar a lisura do Poder Judiciário, demonstrando-se que o editorial enquanto “voz” oficial do jornal, expressou um discurso comprometido ideologicamente, numa verdadeira violação ao compromis- so ético-profissional dos jornalistas, consubstanciado em levar ao grande público a “verdade dos fatos”. Observou-se que o editorial em análise limita-se a transmitir ao leitor uma versão ideo- logicamente comprometida visando angariar adeptos às suas teses, sem abordar, como deveria,
  • 17. 17 a questão central (efetivo deferimento da extradição pelo STF), a questão de fundo (não houve crime político, segundo decisão do STF) e, por fim, a questão a decisão judicial que é objeto de crítica pelo editorial (compete ao presidente e não ao STF executar a extradição). REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,DF: Sena- do, 1988. BRASIL. Lei n. 6.964, de 9.12.1981, com as alterações por ela introduzidas. Os anexos referidos estão publicados no DOU, de 10.12.1981. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível em http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/biblio- tecavirtual/dh/volume%20i/naclei6815.htmAcesso em 19 set. 2010. BRASIL. TRATADO DE EXTRADIÇÃO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A REPÚBLICA ITALIANA. Assinado em Roma, em 17 de outubro de 1989.Aprovado pelo Decreto Le- gislativo nº 78, de 20 de novembro de 1992. Ratificações trocadas em Brasília, em 14 de junho de 1993. Promulgado pelo Decreto nº 863, de 9 de julho de 1993. Publicado no Diário Oficial de 12 de julho de 1993. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/tratado-extradicao-brasil-italia.pdf. Acesso em 19 set. 2010. CHOULIARAKI, L. ; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity. Edinburgh: Edinburgh Uni- versity Press, 1999. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 100. HALLIDAY, M.A.K.; MATTHIESSEN, C.M.I.M. Introduction to funcional grammar. 3. ed.Lon- don: Arnold, 2004 HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,2001. MEURER, J.L ; MOTTA-ROTH, D. (orgs.) Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru: EDUSC, 2002. NASCIMENTO, K. C. de S. Mecanismos argumentativos no jornalismo escrito. In: PAULIUKO- NIS, M. A. L. GAVAZZI, S.(orgs.). Texto e discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003: 85-96. SANTOS, Fabiano. O Poder Legislativo no Presidencialismo de Coalizão. Belo Horizonte: Ed, UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. TATE, Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995. WERNECK VIANNA, Luiz; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, ManuelPalacios Cunha et al. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Riode Janeiro: Revam, 1997. 334 p.
  • 18. 18 O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMEN- TO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER1 Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros2 Marília Montenegro Pessoa de Mello3 1. A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA COMO FORMA DE CONTROLE INFORMAL SOBRE AS MULHERES NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA A legitimação da sociedade patriarcal por parte do sistema da justiça criminal se deu, dentre outras razões, porque o Estado penal se eximiu de interferir na esfera privada. Nesse sentido, o sistema penal transferiu a responsabilidade de controle sobre as mulheres para outras instituições de controle social, tidas como informais, como as escolas, a mídia, a religião e, principalmente, as famílias, através das quais eram aplicadas sanções informais (privadas) às mulheres cujas condu- tas eram contrárias ao padrão social esperado (não preenchiam a condição de “boa” filha, “boa” esposa ou “boa” mãe), e não as formais (públicas) aplicadas pela Justiça Penal (BARATTA, 1999, 45-46). O Estado penal, então, absteve-se de interferir na esfera privada, transferindo para o ho- mem, detentor do poder patriarcal, a responsabilidade de exercer o controle e fiscalizar o compor- tamento das mulheres. A preocupação com a sexualidade e reputação da mulher autorizava, por exemplo, a restrição de sua liberdade e acesso aos espaços públicos, como também maior controle sobre o seu corpo. Ademais, a falta de independência econômica permitia também o controle das horas vagas e das atividades de lazer. 1 O presente trabalho foi aprovado e apresentado pelas autoras no 4º CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊN- CIAS CRIMINAIS: Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos, realizado no segundo semestre de 2013, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ademais, está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo Asa Branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista CAPES/ PROSUP. 3 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Gradua- ção em Direito da UNICAP e UFPE.
  • 19. 19 Em último caso, porém com certa frequência, essas formas de controle resultavam na práti- ca de violência, “justificada como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero” (DIAS, 2010, p. 21). Ao eximir-se de interferir na esfera privada, pois, o Direito Penal elevou praticamente à legalidade ações violentas no seio familiar contra as mulheres, mas- carando-as e dando a impressão de que a paz reinava no “nobre” e intocável âmbito privado. Nesse contexto, em momentos históricos, ainda que teoricamente possível, o Direito Penal eliminou, na prática, a atuação da mulher no polo ativo de um crime, por ser considerada, ao revés do homem, vulnerável, inativa e inferior. Ressaltou com frequência, entretanto, desde que considerada “ho- nesta”, sua qualidade de vítima. Na tipificação dos crimes sexuais do Código Penal, o legislador utilizou-se da técnica que Vera Andrade denomina de “lógica da honestidade” (ANDRADE, 2005, p. 90), pela qual, classi- ficavam-se as mulheres vitimizando ou desvitimizando-as conforme o padrão de sexualidade da época. Obviamente, as mulheres consideradas “desonestas” e “indignas” eram afastadas do polo passivo do crime, de modo a desmerecer a tutela do Direito Penal. Nesse cenário, a qualidade de vítima da mulher, desde que considerada “honesta”, foi tão frequentemente ressaltada que, embora apenas exigido para a configuração de alguns crimes se- xuais, o preenchimento da condição de honestidade pela mulher parecia ser elemento essencial para sua figuração no polo passivo de qualquer tipo penal. Logo, independentemente do bem ju- rídico atingido – vida, integridade física ou honra – enquanto considerada “indigna”, “pública” ou “prostituta”, a prática criminosa contra a mulher parecia ficar subliminarmente autorizada pela ordem jurídica (MELLO, 2009, p. 466). Foi nesse contexto, pois, que se desenvolveu a sociedade patriarcal brasileira. Nela, os es- tigmas impostos pelo sistema penal, especialmente os relacionados à sexualidade, legitimaram exigências de padrões comportamentais femininos e também contribuíram para ressaltar os me- canismos de controle sobre as mulheres, que se resumiam à aplicação pelos homens de penas privadas no núcleo da instituição familiar, em nome da “proteção da família”, da “defesa da honra” ou da “garantia do pátrio poder”. Em razão da abstenção do Estado penal de interferir na esfera privada, portanto, a maio- ria dos delitos praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar não chegava ao co- nhecimento das autoridades ou, quando chegava, por algum motivo, não resultava em processo criminal. Esse processo de imunização e impunidade gerou a chamada “cifra oculta” do crime (SUTHERLAND, 1985)4 . Por conseguinte, tinha-se a falsa impressão de que não havia violência alguma contra a mulher. 2. O POPULISMO PUNITIVO E A LEI “MARIA DA PENHA” Somente após a vigência da Constituição Federal Brasileira de 1988, com a formal equi- paração dos direitos das mulheres aos dos homens, a realidade dessa legitimação passou a ser modificada e a violência de gênero passou, paulatinamente, a ser revelada e a ter um tratamento diferenciado no sistema jurídico penal brasileiro. Nesse cenário, por intermédio de indicadores oficiais, dentro dos Juizados Especiais Cri- minais, se evidenciou a alarmante presença de inúmeros casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) pela sociedade brasileira (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 143-145). Constatou-se, assim, um paradoxo, já que a família, espaço de proteção onde laços de amor e afeto são construídos, revelou-se, também, um local de violência e violação. No contexto da violência doméstica, pois, o homem, pai ou companheiro, confunde-se com o agressor. Embora evidenciada, o julgamento da violência doméstica nestes Juizados demonstrou-se ineficaz, porque se desconsiderava a relação hierarquizada e de poder sobre as mulheres no am- biente doméstico e familiar, como também a existência, entre vítima e agressor, de uma relação de carinho e afeto (ROMEIRO, 2009, p.54). No mais, o propósito de escuta das vítimas era inverso ao 4 A “cifra oculta” da criminalidade é representada pela diferença entre a “criminalidade real” (quantidade de delitos cometidos verdadeiramente em um determinado momento) e a “criminalidade aparente” (casos que chegam ao co- nhecimento das autoridades e constam nas estatísticas oficiais).
  • 20. 20 procedimento utilizado e as soluções apresentadas, através indiscriminada utilização das medidas despenalizadoras e redução dos conflitos a aspectos pecuniários, findaram por banalizar esta vio- lência de gênero (CAMPOS; CARVALHO, 2006, P. 419). Além de estar bastante presente nos JECRIMs, a violência doméstica contra a mulher pas- sou a ocupar um espaço cada vez maior na imprensa brasileira. Portanto, ao divulgar e dramatizar alguns casos extremos de violência contra a mulher, como o da cearense Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de homicídio por seu ex-marido, a mídia passou a fomentar e legitimar a necessidade de um maior rigor punitivo para os agressores, interferindo, assim, na opinião pública. A mídia, no entanto, superficializa as realidades sociais e distorce o modo de enxergá-las, de sorte que a essência dos problemas passa a ser ignorada. Adicionalmente, todo conhecimento produzido nas universidades por estudiosos renomados a respeito da violência institucional das prisões, seus efeitos negativos sobre o indivíduo e o fracasso das ideologias prevencionistas é es- condido. Ganham espaço nos telejornais de maiores audiência, em contrapartida, os discursos vazios dos “especialistas em tudo”, os quais reduzem a complexidade dos conflitos ao binômio de- lito-pena e tentam convencer os expectadores de que a única opção que resta ao Estado é o poder de punir e criminalizar (BATISTA, 2002, p. 274-276). Com efeito, as pessoas compadecidas com o drama da violência de gênero, se visualizavam como potenciais vítimas, demonizavam os possíveis agressores e criticavam o Estado brasileiro em razão do banal tratamento dado à violência contra a mulher no âmbito dos JECrims. Nesse ínte- rim, a sociedade se mobilizou a fim de inserir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos debates políticos e pleitear o aumento indiscriminado da punição. Nesse contexto, é de suma importância a apresentação dos ensinamentos de David Garland (2008, p. 55), que, embora observador das realidades norteamericanas e britânicas, conseguiu caracterizar um fenômeno evidentemente global: Os interesses e sentimentos das vítimas (...) agora são rotineiramente invocados em apoio às medidas de segregação punitiva. Nos EUA, políticos concedem entrevistas coletivas para anunciar leis relativas às sentenças condenatórias, e são acompanha- dos no palco pelas famílias das vítimas. Leis são aprovadas e batizadas com o nome de vítimas (...). O novo imperativo político é no sentido de que as vítimas devem ser protegidas, seus clamores devem ser ouvidos, sua memória deve ser honrada, sua raiva deve ser exprimida, seus medos devem ser tratados (...). Qualquer atenção aos direitos ou ao bem-estar do agressor é considerada defletiva das medidas apro- priadas de respeito às vítimas. Cria-se um jogo político maniqueísta, no qual o gan- ho do agressor significa a perda da “vítima”, e “apoiar” as vítimas automaticamente quer dizer ser duro com os agressores. A articulação do poder da mídia com o sofrimento das vítimas e as demandas populares recrudescedoras causam fortes consequências na política, gerando o fenômeno que se denomina “populismo punitivo”, o qual consiste na verdadeira “perpetuação do antigo clientelismo que sem- pre marcou as recentes democracias latino-americanas” (GLOECKNER, 2011, p. 82) por meio da utilização política do arsenal penal. Tal fenômeno é caracterizado pela atual tendência política de se atuar emergencialmente enrijecendo legislações penais, em razão da demanda populacional por respostas mais incisivas ao crime, consequência da disseminação do medo e forte sentimento de insegurança social, potencializados, ainda, pelo apelo midiático. Como efeito, políticas crimi- nais recrudecedoras, incluídas nas pautas eleitoreiras como principal forma de solução das maze- las sociais, são aplaudidas pela sociedade e a popularidade dos mentores dessas políticas aumenta significativamente. A respeito dessas manobras políticas através das quais os legisladores fogem às suas respon- sabilidades ao tentar atribuir às legislações penais um efeito educador meramente simbólico, Raúl Zaffaroni (2011, p. 44) declara: Essas normalizações são claramente inconstitucionais porque, (a) usam as pessoas
  • 21. 21 como meio para a obtenção de fins e (b) porque valoram positivamente o embuste público (pretendem que a população acredite falsamente que seus bens são tutela- dos com eficácia). Quando os bens jurídicos ficam desprotegidos, o público engana- do e o poder punitivo incrementado, é violada frontalmente a constituição porque (a) não se provê segurança, (b) se coisificam ou se mediatizam os seres humanos, (c) o príncípio democrático é pervertido por enganação, (d) se colocam em perigo os âmbitos democráticos, habilitando o abuso do poder punitivo, (e) se aprofunda a seletividade punitiva, (f) por fim, se obstaculizam o desenvolvimento social e o aperfeiçoamento institucional. Com efeito, as soluções atuais dadas ao crime ganham um novo semblante bastante para- doxal, porque, na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança e educar a moral societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, por não conseguem cumprir, sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, assim como, muitas vezes, põem em risco os próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MRAINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89). Face, portanto, ao compadecimento social com a história de Maria, à fácil aderência por todos às causas feministas, no que tange à violência doméstica contra a mulher, como também aos fortes anseios e apelos vindicativos midiáticos e coletivos por uma máxima intervenção penal, o Estado, por meio de seus discursos políticos-demagogos, não inovou e decidiu governar através da simbólica intervenção punitiva e fez por encerrada sua suposta atuação voltada para a solução do problema social “iluminado”. Surgiu, assim, no cenário jurídico nacional a Lei n.º 11.340/2006 como resposta política às fortes demandas midiáticas e populacionais por ações mais incisivas contra a criminalidade doméstica. Quanto ao tratamento penal previsto para os crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar, a Lei n.º 11.340/2006 pecou em inúmeros aspectos. O Poder Legislativo, preocupado apenas em atender clamores demandantes de uma Lei rigorosa, contrariamente à tendência dos movimentos e reformas garantistas em favor dos direitos humanos, vedou o uso das aclamadas medidas despenalizadoras, aumentou penas de crimes, adicionou circunstâncias agravantes ao Código Penal, ampliou o rol de situações passíveis de prisões preventivas e preferiu a regra da ação penal incondicionada. Afastou-se, portanto, do referencial minimalista do Direito Penal para solucionar conflitos de origem doméstica e familiar. Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante acla- mada pelos militantes em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e segurança feminina. No entanto, as pretensões da criminalização provedora são tidas como fala- ciosas e inócuas. Nesse sentido, assegura-se: O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segu- rança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirma- ção que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica (MELLO, 2010, p. 146). A legislação, através de sua redação, portanto, trouxe a simbólica criminalização de comple- xos problemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de crimino- logia crítica comprovam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso de erradicação da violência e promoção da segurança.
  • 22. 22 3. A INCAPACIDADE DE O SISTEMA PENAL RESOLVER UM PROBLEMA SOCIAL A lógica da imposição de sanções do sistema penal, através da teoria da pena, apresenta-se aparentemente perfeita, porque, promete acabar com a criminalidade, garantir a segurança e a correção do delinquente. Com efeito, alude-se ao sistema penal, diante de suas promessas, como melhor forma de solução de mazelas sociais. Entretanto, pesquisas revelam que, contrariamente ao que se espera como consequência da crescente utilização do cárcere como meio de prevenção do crime, os índices da criminalidade não diminuem, mas aumentam concomitantemente ao aumento dos indicadores da população encarcerada (CID; LARRAURI, 2009, p. 3-13). Nesse sentido, Foucault confirma: “as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta” (FOUCAULT, 1999, p. 292). Outrossim, o cárcere revela-se como uma instituição degradante que não realiza a promessa de recuperação do delinquente. A prisão, que ainda é uma pena corporal, só gera sofrimento: im- põe um modo de vida peculiar, controlado e negativo ao detento, priva-o a da forma cotidiana de viver, do contato com familiares, amigos e pertences, das relações amorosas, do trabalho, de modo que despersonaliza e dessocializa o prisioneiro (ZAFFARONI, 2001, p. 135-136). Nesse diapasão, é contraditória a utilização da segregação pessoal e consequente afastamen- to de todas as regras sociais extramuros, com a intenção de integrar o preso, como um passe de mágica, às regras sociais das quais foram afastados. Sem mencionar, ainda, a crise institucional pela qual o cárcere passa em razão das degradantes condições de vida proporcionadas aos prisio- neiros. Ademais, as dificuldades de readaptação são potencializadas pelo estigma social que marca um ex-condenado, de modo que, mesmo com a cessação do sequestro institucional, a exclusão social perdura para além do tempo atrás das grades. Como consequência da exclusão constante, altos índices de reincidência são apresentados à sociedade (ANDRADE, 1997, p. 291). Cai por terra, pois, a funcionalidade das atribuições da pena: o sistema penal é incapaz de proteger bens jurídicos, de reduzir da criminalidade e de ressocializar o preso. Assim, salta aos olhos que a operacionalidade do sistema penal baseia-se na irracionalidade e que ele representa uma aberração no mundo real. O sistema penal revela-se como um sistema de aparências porque não consegue fazer com que as promessas que o legitimam sejam cumpridas; marcada está, pois, sua completa crise de legitimidade (ANDRADE, 2006, p. 470-471). O sistema penal, portanto, está falido e deslegitimado e possui uma lógica particular, cuja funcionalidade é intangível aos problemas que pretende resolver. A pena deixou, nesse contexto, de ter funções concretas; restou-lhe, apenas, a função simbólica de manutenção do sistema penal e crença populacional na legislação vigente e na funcionalidade do próprio sistema; é o que se denomina de “função agnóstica da pena” (ZAFFARONI, 2004, p. 33). Na atualidade, no entanto, a sociedade, escravizada pelo medo e pela insegurança, prefere optar por uma atuação simbólica a qual acaba por expandir o paradoxal sistema punitivo no intui- to de acalmar seus anseios. Nesse compasso, porém, as esferas que apresentariam soluções mais plausíveis aos conflitos são ocultadas e os problemas sociais findam por não serem solucionados. A ineficiência do sistema penal para prevenir e erradicar a criminalidade não é diferente quando o assunto é a violência doméstica e familiar contra a mulher. Estudos divulgadospor Ele- na Larrauri demonstraram que, na Espanha, conquanto exista a rígida Lei Orgânica n.º 11/2003, a qual em muito inspirou a brasileira Lei “Maria da Penha”, os índices de homicídios praticados contra as mulheres por seus parceiros não diminuíram. Deveras, resultados revelam, ainda, que as mulheres em situação de violência não vislumbram a aptidão da justiça penal para ajudá-las a solucionar seus problemas (LARRAURI, 2011, p. 1-2). Os motivos que conduzem a decepção feminina com o sistema penal são vários, no entanto todos eles convergem para um único fato (de inúmeros efeitos negativos): a apropriação, pelo sis- tema penal, dos conflitos das vítimas, de sorte que suas vozes e expectativas são completamente olvidadas e o problema não é solucionado. O procedimento processual penal, tal como é concebido na modernidade, relega à vítima um papel secundário. A prioridade da ação Estatal não consiste na contemplação dos sentimentos da vítima ou dos efeitos da prática delitiva sobre sua vida, mas na persecução penal daquele que pra-
  • 23. 23 ticou um ato criminoso. Após a expropriação do conflito pelo Estado, portanto, o suposto agressor não tem que dar satisfações à ofendida, mas deve prestar contas ao próprio Estado, detentor da ação penal. As vítimas, no sistema penal, portanto, são ignoradas; seus depoimentos são reduzidos a termo e, para os oficiais, tudo que importa ao reportá-los são as circunstâncias que fazem o fato subsumir à norma, o que leva à completa redução da complexidade desses conflitos. No enqua- dramento legal, portanto, o encadeamento da briga é totalmente refutado e reduzido àquele único ato que define o crime (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 82). Necessário destacar, ainda, um dos aspectos mais relevantes e diferenciadores dos conflitos de gênero: o comprometimento emocional entre as partes envolvidas. As normas do direito penal não contemplam o envolvimento afetivo entre os integrantes dos polos ativos e passivo do crime; elas programam, normalmente, situações corriqueiras e não complexas nas quais as partes não se conhecem, como uma briga em um bar ou um roubo eventual. No caso da violência doméstica e familiar contra a mulher, entretanto, a briga ou agressão é concomitante à existência de uma rela- ção familiar, onde os integrantes partilham laços de amor, intimidade e carinho. Logo, os casos en- volvem uma carga subjetiva muito grande e o Direito Penal não foi estruturado para contemplá-la. Em decorrência dessas relações íntimas e de afeto existentes, aponta-se que as mulheres violadas, ao tornarem público o conflito doméstico e familiar, normalmente não querem retribuir o mal causado pelo agressor, criminalizando-o e punindo-o. Elas desejam apenas romper o ciclo de violência e restabelecer o pacto familiar e a paz no lar. Até mesmo as raras mulheres que desejam a separação, no caso de violência conjugal, não almejam a persecução penal do agressor; elas pre- ferem que a coesão familiar seja mantida, especialmente quando há filhos envolvidos. Nesse diapasão, as mensagens midiáticas de que as vítimas e suas famílias clamam por vingança e punição são bastante falaciosas. Afirma-se que o sentimento da vindita até existe, principalmente logo após a ocorrência do fato, daí a existência de calorosos depoimentos veicu- lados nos meios de comunicação. Entretanto, esse sentimento não é generalizado e muito menos duradouro. Pesquisas revelam que as vítimas, em geral, não vislumbram a necessidade de um pro- cesso penal e, até mesmo em casos mais graves, preferem a resolução do conflito fora do mundo jurídico-penal e punitivo (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 116-118). As vítimas querem, nesse contexto, proteção e a disponibilidade de formas diversas e con- cretas para a solução dos conflitos domésticos e não, necessariamente, a punição do agressor. No entanto, a expropriação do conflito pelo Estado, além reduzir as complexidades dos conflitos por não contemplar suas peculiaridades e múltiplas facetas, redunda na apresentação de uma única reação à situação conflituosa: a resposta punitiva através da imposição de uma pena privativa de liberdade. O enforque penal, portanto, limita as mulheres e o conflito é subtraído, por completo, da órbita de alcance das partes envolvidas, de modo que e as múltiplas formas de solução disponíveis são forçosamente substituídas pela aplicação de uma lógica punitiva (OTERO, 2008). Ademais, a crença de que, com a punição do agressor, a vítima poderá descansar e encontrar sua paz, é tão falaciosa quanto os ideais de ressocialização e prevenção que acompanham o mo- delo da justiça encarceradora. Quando o processo termina com a imposição de uma medida cons- tritiva, a mulher, que ainda partilha sentimentos amorosos pelo agressor, ao ver o sofrimento do condenado no cumprimento da pena, sente-se uma violadora e não mais uma vítima, já que vis- lumbra o mal causado ao agressor muito mais gravoso que aquele que ele lhe causou. Outrossim, os efeitos da pena transcendem à pessoa do condenado, de modo que afetam substancialmente a família (HERMANN, 2002, p. 56-57). A imposição da pena ao agressor, portanto, implica também a imposição de uma sanção à ví- tima. Com a intervenção penal, a mulher fica desamparada em todos os sentidos: não possui mais apoio econômico (seja porque ela já não trabalhava, seja porque a renda familiar não será mais complementada); não há mais a afetividade daquele ente querido no seio familiar; e, o estigma de ser “filha”, “mãe” ou “mulher” de um condenado acompanha-a em qualquer âmbito social, dificultando suas relações e obtenção de trabalho. A condição de vítima da mulher, portanto, per- petua-se com a condenação de seu agressor; o vitimizador, no entanto, agora é o próprio sistema penal. Ante o exposto, percebe-se que normalmente as mulheres vítimas da violência doméstica
  • 24. 24 não desejam a existência do procedimento penal5 . A Lei Maria da Penha, no entanto, impossi- bilitou qualquer forma de diálogo e de exposição das vontades das vítimas, seja pela vedação da utilização dos institutos alternativos ao processo, seja pela escolha da regra da ação penal pública incondicionada. Paradoxalmente, pois, a Lei que surgiu, no contexto do fenômeno do populismo punitivo, no intuito de dar voz e poder às mulheres, impõe um procedimento o qual impede que elas falem e que elas tenham vez. Com efeito, a rigidez da legislação, que impõe a irreversibilidade do procedimento processual penal e a prisão como única resposta ao conflito doméstico, findará por inibir a procura do auxilio institucional e contribuir para o silêncio e temor das vítimas. Por conseguinte, as “cifras ocultas” da violência doméstica contra a mulher poderão ser incrementadas, já que o próprio instrumento reservado à proteção feminina irá, de todas as formas, penalizá-la. A respeito, afirma Julita Lem- gruber (2011, p. 381): (...) legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem seus agressores e registrarem suas queixas. Sempre que o companheiro ou esposo é o único provedor da família, o medo de sua prisão e condenação a uma pena privativa de liberdade acaba por contribuir para a impunidade... É urgente que se amplie o conhecimento das experiências alternativas à imposição de penas nesta área, pois já existe evidência de que, em vários casos, o encarceramento de homens pode aumentar, ao invés de diminuir, os níveis de violência contra a mulher e as taxas gerais de impunidade para esse tipo de crime. Nesses termos, pois, a intervenção penal jamais poderá ser considerada como um meio efeti- vo para a solução de conflitos domésticos. Em verdade, muitos dos conflitos pessoais, os quais são enquadráveis na previsão taxativa da Lei penal, na atualidade, são resolvidos através de meios não disponibilizados pelo sistema penal. Apenas uma ínfima parte deles é resolvida na justiça criminal. Na maioria das vezes, as soluções são encontradas pelos próprios membros da família ou com o auxílio de profissionais que apontem uma alternativa viável. Resta comprovada, assim, a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via formal da justiça criminal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos de escuta das partes envolvidas, não apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos ou sequer prevenindo as situações de violência. Nesse contexto, se o sistema penal está falido por não conseguir solucionar os problemas que se propõe erradicar e as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar, em sua maioria, não desejam a persecução penal de seus agressores, resta, unicamente, a irracionalidade da utilização de medidas punitivas extremas para a solução dos conflitos domésticos. Certamente o caminho para a solução do conflito não passa pela criminalização, muito menos pela carcerização do agressor, na medida em que o sistema penal, em especial a pena de prisão, não oferece mais que uma falácia ideológica em termos de ressocialização do agente (...). Esse mesmo sistema, ademais, não faz pelas víti- mas mais que duplicar as suas dores, expondo-as a um ritual indiferente e formal, que desconsidera a diversidade inerente à condição humana e reproduz os valores patriarcais que a conduziram até ele. Aportando ao sistema penal, a vítima, mais do que nunca, distancia-se de seu desiderato de reformular a convivência doméstica, porque deflagra um aparato que não esta munido dos mecanismos necessários para a mediação do conflito, o que a leva a retirar-se do espaço público que conquistou ao longo de uma história de lutas, para retornar à esfera do privado, desmuniciada 5 Em estudo realizado pelas autoras durante dois anos no 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da cidade do Recife, em que se pesquisou todos os processos criminais instaurados no Juizado nos anos de 2007 a 2010 arquivados pelo Tribunal pernambucano até Junho de 2011, constatou-se que 57% das mulheres retra- taram, quando se tratava de crime de ação penal pública condicionada à representação. Ademais, 79% dos processos pesquisados foram extintos sem a resolução do mérito e pode-se afirmar que 53% dessas extinções foi devida à mani- festação de vontade das vítimas, já que os institutos que deram ensejo à extinção da punibilidade foram a decadência e a retratação da vítima.
  • 25. 25 de qualquer resposta (HERMANN, 2002, p. 18-19). Reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, portanto, não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma pena- lista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. Resultados positivos têm sido obtidos quando no investimento em políticas públicas emanci- padoras. Logo, concomitantemente às políticas minimizadoras da intervenção penal e à evolução do pensamento criminológico, devem ser implementadas políticas sociais de prevenção incidentes nas verdadeiras causas da criminalidade doméstica. Portanto, as políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem estar fo- cadas na reprodução de um ambiente doméstico e familiar equilibrado, ultrapassando, assim, as barreiras da medieval e maniqueísta perquirição do culpado e eterna vitimização feminina. É indispensável, nesse diapasão, a superação e não disseminação, no intelecto social, dos precon- ceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade ainda patriarcal e machista, que levam à ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor. Logo, é preciso se voltar às origens do problema, precipuamente familiar e de origens históricas, da violência doméstica e, definitivamente, o sistema penal não se presta a fazer isso. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei “Maria da Penha”, criada no intuito de “empoderar” as mulheres para enfrentar a violência doméstica e familiar, não cumpre os seus propósitos. Entretanto, paradoxalmente, por haver retirado a fala feminina do espaço público e não ter contemplado as peculiaridades dos conflitos de gênero e a falência do sistema punitivo, pode contribuir para a ocultação dos dados relativos à violência doméstica e familiar, já que as mulheres vítimas preferem o silêncio à dolorosa e ineficiente intervenção do sistema penal no ambiente doméstico. É urgente, portanto, que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para além do sistema penal. Como precisamos denunciar uma estrutura falida de um sistema, antes de pensar em for- mas capazes de substituí-lo, não coube a este trabalho apontar formas alternativas de soluções de conflitos aplicáveis ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Por ora, en- tretanto, fica o apontamento de que se deve atentar para as contradições do sistema penal e criar formas de resistir ao fenômeno do populismo punitivo, visto que, através dele, políticas públicas de aparência são enxertadas no seio social e, consequentemente, os espaços de debate na socie- dade são reduzidos e os meios que apresentem soluções efetivas aos problemas que incomodam a sociedade são ocultados. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. _________. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, julho, 2005. _________. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão.Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 13, n. 19, p. 459-488, jan./dez., 2006. BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAM- POS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: crime, direito e
  • 26. 26 sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 271-288, 2002a. Semestral. CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Violência doméstica e Juizados Especiais Cri- minais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 2, p.409-422, maio/set. 2006. CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista.Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. CELIS, Jacqueline Bernat de. HULSMAN, Louk. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993. CID, José; LARRAURI, Elena. Development of crime, social change, mass media, crime policy, sanctioning practice and their impact on prison population rates. Sistema Penal Violência, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p.1-21, jul./dez. 2009. DIAS, Maria Berenice.A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. FAYET JÚNIOR, Ney; MARINHO JÚNIOR, Inezil Penna. Complexidade, insegurança e globaliza- ção: repercussões no sistema penal contemporâneo. Sistema Penal Violência, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p.84-100, jul./dez. 2009. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 20. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. GARLAND, David.A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2008. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Razões (?) do populismo punitivo.Revista Jurídica, Porto Ale- gre, v. 59, n. 402, p. 67-83, abr. 2011. HERMANN, Leda Maria. Violência doméstica e os Juizados especiais criminais: a dor que a Lei esqueceu. Campinas: Servanda, 2002. LARRAURI, Elena. Mujeres y sistema penal: violencia doméstica. Montevideo-Buenos Aires: Edi- torial IBdef, 2008. LARRAURI, Elena. La intervencion penal para resolver un problema social. Revista Argentina de Teoría Jurídica, Buenos Aires, v. 11, n. 1, p. 01-22, ago., 2011. LEMGRUBER, Julita. A mulher e o sistema de justiça criminal – Algumas notas.Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 36, p. 381, out.-dez. 2001. MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Lei de violência doméstica: Lei nº 11.340/2006. In: DAOUN, Alexandre Jean; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coord.). Leis penais comentadas. São Paulo: Quartier Latin, 2009. _____. Da mulher honesta à lei com nome de mulher: o lugar do feminismo na legislação penal brasileira. Revista Videre, Dourados, ano II, n. 3, p. 137-159, jan. /jun., 2010. OTERO, Juan Manuel. A hipocrisia e a dor no sistema de sanções do direito penal. Discursos Sedi- ciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 12, n. 15/16, p. 45-63, 2007. 1 e 2 semestres 2008. ROMEIRO, Julieta. A Lei Maria da Penha e os desafios da institucionalização da “violência conju- gal” no Brasil. In: MORAES, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila (coords.). Gênero, violência e direitos
  • 27. 27 na sociedade brasileira.Rio de Janeiro: 7 letras, 2009. SUTHERLAND. Edwin Hardin. White collar crime: the uncut version. New Haven: Yale Univer- sity Press, 1985. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por vulnerabilidade. Discursos sediciosos: crime, direi- to e sociedade, Rio de Janeiro, ano 9, n. 14, p. 31-47, 2004. 1º e 2º semestres 2004. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A ciência penal alemã e as exigências político-criminais da América Latina. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 15, n. 17/18, p. 39-46, 2011.
  • 28. 28 A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂN- CIA E JUVENTUDE DE RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO AO MENORISMO 1 Érica Babini Lapa do Amaral Machado2 Marília Montenegro Pessoa de Mello3 Juliana Marques Lyra Carneiro Leão4 Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho5 1. INTRODUÇÃO O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela Lei 8.069/90 e consagrado nos ter- mos dos artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988, estabelece um novo paradigma no tratamento conferido à infância e juventude. Antes alicerçado sob os parâmetros da Doutrina da Situação Irregular, o menor submetia-se à tutela do Estado, que regido pelo binômio menor/delin- quente, resultava em um processo de intenso aprisionamento. Com o advento do ECA, a Doutrina da Proteção Integral passa a elencar garantias próprias do sistema constitucional para a apuração de atos infracionais, impedindo violações de direitos e garantias fundamentais, ainda que em nome da “socioeducação”, determinando novo marco no tratamento à infância e juventude, ao reconhecer seu status de sujeito de direitos e deveres em condição peculiar de desenvolvimento - conditio sine qua non para a proteção dos direitos funda- mentais da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito - e garantido seu tratamento 1  Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC, finan- ciado pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo Asa branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br 2 Professora de Criminologia e Direito Penal da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Doutoranda em Ciências Criminais na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. 3 Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC 4 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora PIBIC-UNICAP 5 Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisador PIBIC-UNICAP.
  • 29. 29 específico e particular. A Doutrina da Proteção Integral orienta as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescen- te (ECA), incorporando o conceito de ato infracional para conferir à responsabilização o caráter de medida socioeducativa, objetivando fomentar a perspectiva pedagógica. Entretanto, resta veri- ficada através desta pesquisa que a implementação da nova política guarda muitos resquícios do antigo sistema menorista. Percebe-se, ao lado da excessiva intervenção estatal por meio do Poder Judiciário, conferido ao juiz poder quase absoluto de decisão, uma ampla discricionariedade ao impor valores e crenças pessoais quando da aplicação de medidas, o que termina por restringir as prerrogativas constitu- cionalmente asseguradas pelos referidos diplomas legais. Destarte, é sob a égide da Criminologia Crítica que se tem o marco teórico norteador da pre- sente pesquisa, o qual desenvolve estudo crítico acerca das questões atinentes ao sistema penal e suas políticas punitivistas adotadas pelo Estado, detectando, por conseguinte, as influências e os impactos exercidos sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Orientar-se através dos estudos proporcionados pela Criminologia Crítica é de fundamental importância, posto que a perspectiva crítica pretende compreender o crime como um fenômeno complexo – resultado da criminalização das agências oficiais de poder, cuja reação é condicionada por ideologias e políticas (ZAFFARONI, 2001). O desvio não é a qualidade do ato cometido por alguém, mas antes a consequência da aplicação, por outros, de regras e sanções a um ‘ofensor’. O desviante é uma pes- soa a quem este rótulo pôde ser aplicado com sucesso. O comportamento desviante é o comportamento designado como tal (BECKER, 1963, p. 55). Trata-se exatamente do intento sociológico, segundo o qual a real atuação do sistema de justiça deve ser perquerido, apesar das diagramações da dogmática legislativa. A pesquisa está sendo realizada a partir da metodologia etnográfica, com o objetivo de com- preender como a criminalização secundária atua nas audiências de apresentação e continuidade para apuração de ato infracional, de modo a investigar o grau de cumprimento de garantias penais e processuais quando da cominação de medidas socioeducativas. Nesse sentido, foram acompanhadas audiências na Vara da Justiça Sem Demora, e nas 3ª e 4ª Varas de Continuação da Infância e Juventude da cidade do Recife, no período de abril a junho do ano de 2013, para apuração de dados necessários à proposta da pesquisa em estudo. Outros- sim, verificou-se em que nível se processam tais impedimentos e suas influências na imputação de medidas, em detrimento dos princípios assegurados pelo referido dispositivo legal e consolidados pela Constituição Federal de 1988. Para consolidar a temática proposta, adentrar no contexto social-político envolto no trata- mento conferido as crianças e adolescentes, foi necessário um extenso estudo teórico. Inicial- mente a metodologia dedutiva, fundamentada na investigação bibliográfica, foi importante para compreender a evolução cultural-legislativa da infância e juventude no Brasil e no mundo. Com o objetivo de alcançar a verdadeira compreensão dos fatos, focou-se na contextuali- zação da própria estrutura jurídico-protecionista de intervenção estatal, caracterizada por um modelo legislativo garantista através, principalmente, da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente influenciado pela Doutrina da Proteção Integral. Procurou-se verificar a incidência paralela de influências extrínsecas de controle social legitimados por uma camada latente de pu- nitivismo e segregação. Com base nesta investigação, o pesquisador posiciona-se como espectador dentro do objeto em exame, absorvendo os dados de forma impessoal, visando absorção da realidade dos fatos em sua essência. Neste projeto, o método foi empregado a partir do acompanhamento de um total de 54 audiências, sendo 21 delas realizadas na Vara da Justiça Sem Demora (VJSD), e outras 33 nas 3ª e 4ª Varas de Continuação da Infância (VI) e Juventude, na cidade do Recife, durante o período de abril a junho do ano de 2013. Constituindo-se como uma pesquisa de campo, este convívio per- mitiu uma produção de dados concretos frutos de observação direta do pesquisador com o objeto científico.
  • 30. 30 Nesse sentido, serão utilizadas de forma amostral para análise e cruzamento de dados que irão compor a presente pesquisa, 3 das audiências acompanhadas VJSD, e 5 das audiências pre- senciadas nas VI. De modo a realizar a interpretação do conteúdo pelo cruzamento de dados, foram criadas três categorias de análise, objetivando delinear as conclusões obtidas através dessa experiência. As categorias de análise formuladas foram as seguintes: 1ª Categoria: Procedimentos – Direi- tos e Garantias Fundamentais; a) Legalidade; b) Devido processo legal (- Materialidade, - Provas, - Trâmite legal); c) Proporcionalidade; 2ª Categoria: Seletividade do Sistema; 3ª Categoria: Fun- damentos do Julgador (- Família, - Escolaridade, - Drogas, - Exemplo para a sociedade, - Arrepen- dimento do ato praticado, - Religião). O procedimento desenvolvido seguiu, portanto, etapas sucessivas e determinadas: 1- Rea- lizado o estudo bibliográfico de contextualização da temática (objeto da pesquisa); 2- Acompa- nhadas as 54 audiências, coletando-se os dados relevantes e necessários para teste das premissas preestabelecidas inicialmente; 3- Prosseguiu-se uma análise de conteúdo (BARDIN, 1977), explo- rando os elementos ocultos constatados a partir dos dados empiricamente agrupados; 4- Tomando como base as fases anteriores, estabeleceu-se as categorias de análise para filtração das mesmas; 5- Levando-se em consideração todo o estudo teórico-prático elaborado, faz-se necessária a exibi- ção das discussões trazidas e dos resultados advindos. Após o empreendimento algumas conclusões foram levantadas, o que se verá a seguir. 2. DO MENORISMO À PROTEÇÃO INTEGRAL: UM OLHAR SOB A INFÂNCIA E JUVENTUDE Para abordar a temática sobre a infância e juventude, é mister estabelecer um marco refe- rencial, que no presente trabalho será dado pela edição da Lei 8.069/90, que inaugura o Estatuto da Criança e do Adolescente, simbolizando novo modo de se visualizar e lidar com jovem no Brasil. A história da infância comprova que somente a partir de meados do século XIX que se tem dedicado um tratamento jurídico diferenciado para este grupo. Em outros termos, é neste mo- mento histórico que a criança passa a ser visualizada juridicamente. Porém, o que se verificava anteriormente, além de não ser reconhecida pela sociedade, era a criança sequer ser contemplada nos textos legais, fato que pode ser analisado diante dos Códigos Penais existente na época. Estes consideravam menores de idade da mesma forma que os adultos, de caráter penal indiferenciado, conferindo tratamentos semelhantes e fixando penas privativas de liberdade relativamente meno- res que às aplicadas aos maiores, a serem cumpridas em condições deploráveis de encarceramento e sujeitas às promiscuidades praticadas pelos adultos, visto que ambos encontravam-se recolhidos nas mesmas instituições penitenciárias (PLATT, 1977). Esse quadro perdura até o final do século XIX e início do século XX, quando surge forte indignação moral da sociedade com as condições existentes e da promiscuidade vivenciada nos ambientes penitenciários, sinalizando os primeiros indícios de mudanças, que seriam propostas pelos ideais do Movimento dos Reformadores, nos Estados Unidos, onde teve início essa nova compreensão acerca da criança, e se espalharia pelo mundo no decorrer do novo século (MEN- DEZ, 1998). Fundamental ressaltar que o contexto da época colaborava com a situação vivida pela infân- cia. As inovações e inúmeras mudanças promovidas pela Revolução Industrial, trazendo em si os novos rumos do capitalismo, terminaram por produzir efeitos nas diversas camadas sociais, pro- vocando o deslocamento de grandes massas do campo em direção aos centros urbanos nascentes, na busca por emprego nas grandes fábricas. Como o artesão perdeu espaço frente às linhas de produção fabris, fator aliado aos salários muito baixos, fazia-se necessário a aplicação de toda família no trabalho, de maneira a obter o sustento mínimo do lar. Destarte, mulheres e crianças ocuparam os novos postos de trabalho nas fábricas. Uma vez que as mulheres e as crianças não estavam sujeitas a qualquer regulamentação de trabalhista, e com salário auferido inferior àquele pago ao homem, consistiam em mão de obra barata de fácil acesso, favorecendo o empresariado, no intento de ter todos os postos ativos. Nesse sentido, a criança cumpria importante papel, visto que auxiliava na renda familiar. Destaca-se que as condições a que estavam submetidos operários e crianças era de completa precariedade, em ambientes insalubres, inadequados ao desempenho de qualquer atividade. Não
  • 31. 31 obstante as circunstâncias desfavoráveis, o sistema econômico capitalista agravou a pobreza no campo, de modo que a necessidade das famílias em obter seu sustento gerou incessante busca por empregos, impulsionando intenso processo de superlotação das grandes cidades, que aliado à falta de infraestrutura que comportasse o excesso de contingente populacional, culminou em graves problemas sócio estruturais, ensejando o surgimento dos subúrbios onde se aglomeravam as pessoas mais pobres, provocando, por sua vez, a difusão de doenças e o aumento da violência urbana (SARAIVA, 2009). Esse processo passou a clamar por políticas que atuassem tanto no sentido da manutenção do sistema econômico, quanto no controle dos problemas sociais. Nesse ínterim, medidas foram instituídas nesse propósito. O alto índice de jovens em situação de abandono, em razão das dificul- dades enfrentadas pelas famílias para criá-los, e de jovens delinquentes, em função da excessiva aglomeração nos centros urbanos aliada à precária infraestrutura, além de estarem situados à margem do mercado de trabalho, fomentam a introdução de novas políticas destinadas à criança e ao adolescente. Os ideais propostos pelo Movimento dos Reformadores no início do século XX, nos Estados Unidos, instauram um momento de caráter tutelar da juventude, ao estabelecer clas- sificações distintas entre criança e adulto, eliminando a promiscuidade existente nos centros de reclusão, principal dos motivos de contestações. Intentada uma análise crítica, evidencia-se que o projeto dos reformadores, além de uma conquista sobre o velho sistema, constituiu compromisso profundo com àquele. As novas leis e administração da Justiça de Menores nasceram e se desenvolveram sob os pilares ideológicos do positivismo filosófico, de maneira que a cultura de sequestro dos conflitos sociais somente foi al- terada em único aspecto: a promiscuidade (MÉNDEZ, 1998). Ademais, se por um lado visava extinguir a promiscuidade através da distinção estabeleci- da, por outro reproduzia articuladas políticas de repressão social, com intensa criminalização da pobreza e estereotipação da juventude desviada, invariavelmente estigmatizada por ser pobre, de maioria negra, mal instruída e localizada nos subúrbios das cidades, o que não raro resultou no encarceramento, alegando-se proteção ao menor abandonado/delinquente (BARATTA, 1998). Remonta ao final do século XIX a criação do primeiro Tribunal de Menores, em Illinois, nos Estados Unidos. Seguiu-se com diversos outros países aderindo à criação de Tribunais de Meno- res, instituindo seus juízos especiais. Através do Decreto Federal 16.273, o Brasil cria seu primei- ro juízo de menores em 1923, no Rio de Janeiro. A criança que era tratada como coisa passou a reclamar a condição de objeto de proteção do Estado, dando molde à nova Doutrina da Situação Irregular que perduraria até meados do século XX. Esta doutrina acaba consagrando o binômio carência/delinquência, promovendo intensa criminalização da pobreza. Imperioso constatar que essa nova política surge como uma tentativa de solucionar os problemas sociais, e não havia melhor alternativa senão a de exercer estratégico controle nas camadas mais desfavorecidas da população, notadamente os mais pobres. Nos dize- res de Emilio García Méndez (1998, p. 27), essa doutrina não significa outra coisa que legitimar uma potencial ação judicial indiscriminada sobre as crianças e os adolescentes em situação de dificuldade. Dessa forma, busca o Estado, através da intervenção jurídico-penal, suprir as deficiências estruturais de políticas sócias básicas, o que demonstra claro populismo punitivo, dado que se re- corre a mecanismos da esfera penal para intentar a dizimação dos grupos mais vulneráveis, à mar- gem do sistema econômico vigente, em decorrência da própria omissão estatal no cumprimento de medidas mínimas que atendam as necessidades da sociedade. Em nome da paz e da ordem, aqueles que não detinham o poderio econômico pregado pelo sistema capitalista estavam sujeitos a contínuo processo de controle e explícita exclusão, conse- quentemente. Em outras palavras, consistia na criminalização dessa faixa social, e para tanto, o cárcere desempenhava papel essencial no funcionamento das sociedades, sendo instrumento civilizado e constitucional de segregação das populações problemáticas criadas pela economia e pelos arranjos sociais atuais (GARLAND, 2008). No tocante a Doutrina da Situação Irregular, é de suma importância atentar que suas leis estabelecem clara divisão na categoria da infância: entre crianças e adolescentes, aqueles per- tencentes às classes mais altas; e menores, compreendendo o universo dos excluídos economi- camente, da escola e da família. Levando em consideração a impunidade declarada, ignorando
  • 32. 32 juridicamente delitos graves cometidos por adolescentes das classes mais favorecidas, não resta entendimento diverso acerca das leis existentes enquanto destinadas exclusivamente para os me- nores em situação de dificuldade. O tratamento jurídico dos problemas relacionados à juventude, seguido da atuação do juiz portando-se como um bom pai de família, encarregado de suprir as de- ficiências de instrução do jovem, infere que o Juiz de Menores não estava limitado pela lei e tinha amplo poder discricionário para tomar sua decisão. Destarte, a proteção conferida à juventude frequentemente violava ou restringia direitos, dado não ser concebida desde a perspectiva dos direitos fundamentais, como se observa diante da utilização de categorias vagas e ambíguas para definir em que situação o menor seria classificado em condição de risco ou perigo, além de reunir no mesmo lugar crianças e adolescentes que co- meteram delitos graves com aqueles que se encontravam em status de abandono. É válido suscitar que nesse sistema as condições pessoais, familiares e sociais que fazem o jovem estar em situação irregular, tornando-se potencial objeto de intervenção estatal. A juventu- de aparece como objeto de proteção, porém não reconhecidos enquanto sujeito de direitos, e sim como incapazes, tornando a opinião da criança irrelevante. Uma vez que essas leis são direcio- nadas aos menores, abandonados e delinquentes, a medida adotada pelos Juizados de Menores resumia-se na privação de liberdade, por tempo indeterminado, tanto para os que delinquiram, quanto para os protegidos em razão de abandono. Nesses termos, a prisão constitui o principal instrumento da política habitacional do Estado para os inúteis da nova economia (WACQUANT, 2007). Ora, inolvidável reconhecer que se trata de uma política jurídico-penal que estereotipa sua clientela, criminaliza a pobreza e segrega os vulneráveis, e diante da inexistência de investimentos públicos básicos, figuram a imagem de inimigo interno, constituindo-se em ameaça a sociedade, fruto da própria má atuação estatal, que encontra em mecanismos de controle e exclusão social a manutenção e justificativa de sua omissão administrativa. 2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e a promoção da Dou- trina da Proteção Integral Na vigência do Código de Menores, decorrente da discricionariedade outorgada ao juiz, e em consequência da atuação judicial-criminalizante dos órgãos repressivos e intervencionistas, frequentemente se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como delito na legislação penal brasileira, suprimindo-se garantias penais e processuais. Desse modo, evidencia-se a assertiva proferida por Larrauri (2006, p. 14) quando atenta que o aumento de pessoas que estão na prisão não reproduz o aumento da delinquência, mas a multiplicidade de outros fatores, como decisões legislativas, sensibilidade judicial e capacidade e limites do próprio sistema para processar os diversos atos delitivos. Outrossim, esse populismo punitivo que assolava o universo infanto-juvenil resultou em grande movimento pela reforma do Direito do Menor, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1989, que tem força de lei in- terna para os países signatários, dentre os quais o Brasil. Essa lei internacional constituiu marco na condição jurídica da infância, e terminou por consagrar a Doutrina da Proteção Integral, que embasaria as futuras legislações concernentes à criança e ao adolescente, substituindo a velha Doutrina da Situação Irregular (DOLINGER, 2003 ). A Doutrina da Proteção Integral foi adotada na Constituição Federal de 1988, contemplada nos artigos 227 e 228, promovendo a juventude à condição de sujeitos de direitos e obrigações próprios de seu peculiar estado de desenvolvimento, eliminando o conceito menor e atribuindo novo funcionamento da Justiça da Infância e Juventude. Os sistemas de garantias presentes no Direito Penal passam a ser aplicados à criança e ao adolescente, inclusive quando da prática de ato infracional. A introdução da atual legislação retira a figura do Juiz de Menores, atribuído do caráter de instrutor do jovem, na figura de um pai, restringindo sua atuação ao estrito papel de julgador dos fatos, com poderes limitados pelas garantias processuais e penais asseguradas na Carta Magna (DA ROSA, 2011). Definem-se os direitos das crianças, que sob pena de ameaça ou violação, é dever da família,