2. 1. O problema
No período imediatamente a seguir ao fim da IIª Guerra Mundial, a Filosofia goza de
grande prestígio e é prestigiada. Podemos falar dum prestígio incomparável, do mesmo modo
que podemos falar duma época da Filosofia. Em França, em Paris, uma plêiade de professores
de Filosofia arrebatam assembleias de alunos. E estes já se tinham acotovelado para se
inscrever nas suas turmas e nos seus cursos livres. Os mestres pensadores como Hegel e Marx
são venerados. Jean D’ORMESON afirma que, imediatamente a seguir à guerra e durante
vários anos, “o prestígio da filosofia foi incomparável e do mesmo modo que o século XIX fora
o século da História, os meados do século XX “surgem consagrados à Filosofia”, nas mãos da
Filosofia estavam todas as expressões da cultura, o cinema, a pintura, o teatro, a política1
().
Assiste-se a uma explosão e triunfo do hegelianismo pela mão de Jean Hyppolite, do mesmo
modo que Foucault dirá depois que toda a nossa época procura fugir a Hegel, apesar disso
pressupor avaliar quanto ele se aproximou de nós. [ver também o que se passava com o
fenómenos Marcuse. Ver Virgílio Ferreira e Sartre, a vinda deste a Portugal...]. E depois virá o
fervilhar do marxismo, o “horizonte indispensável da nossa época”, segundo Sartre.
Só que, pergunto, o que é feito desse capital de prestígio mobilizador da Filosofia? Porque
é que não nos entusiasmamos assim/mais com a Filosofia? Quem ocupou o seu espaço nos
nossos corações?
Mas o prestígio da Filosofia naquelas décadas do século XX também se podem aferir pelo
ardor que é posto nos debates, nos confrontos radicais e de posições tidas como extremadas
em que se manifestavam as opiniões. Ora, o ardor desses debates já não existe: os debates e
as discussões deram lugar a uma cortesia académica e a uma tolerância em relação ao outro
que acaba por descambar na indiferença perante o outro e as ideias que o outro defende.
Possivelmente não houve nenhum saber a ocupar o espaço da Filosofia, mas apenas uma nova
atitude que opta por desistir da discussão das ideias em nome da tolerância perante o que é
diferente. O triunfo do relativismo, impulsionado pelo desmoronar do materialismo histórico e
duma filosofia marxista que parecia secar tudo à sua volta porque se identificava com a
Verdade e seria absolvida no tribunal da História (o tribunal que amanhã justificará os
desmandos de hoje…), conduz à desvalorização do compromisso, do engagement. Já não há
prato único e servem-nos uma extensa lista de opções, resultado de combinações infinitas,
tudo ao mesmo preço.
1.1. A Filosofia sob o signo da desilusão
Fernando Savater na sua obra A Arte do Ensaio – ensaios sobre a cultura universal 2
,
quando escreve sobre As Palavras e as Coisas de Michel Foucault, afirma, depois de adiantar
que em Filosofia não é fácil dizer algo de novo, que “nas últimas décadas, não se
1 Cit. in Didier ERIBON, Michel Foucault, p. 32.
2
Fernando SAVATER, A Arte do Ensaio – ensaios sobre a cultura universal, Lisboa, Temas e Debates /
Círculo de Leitores, 2009, 152 pp.
3. apresentaram tantas questões novas como parecia vir a prometer a nossa época vertiginosa”3
.
Esta afirmação do filósofo espanhol sintetiza muito bem um dos nossos pontos de partida para
a nossa reflexão se que se segue. Com efeito, a Filosofia faz-se hoje sob o signo da desilusão,
versão romantizada do embuste que foi produzir um discurso pobre quando prometia muito
mais. Prometia ou parecia prometer, teremos que ver. De qualquer modo, houve um tempo,
um tempo vertiginoso, segundo Savater, que nos fez pensar que a Filosofia nos ofereceria
muito mais. Ora, o que é que prometia e porque é que não foi assim?
2. Quando estudava Filosofia na Faculdade
O meu interesse pela Filosofia coincidia com o facto de a Filosofia também ser
interessante. Quando me recordo do ambiente que existia na Faculdade de Letras e no
departamento de Filosofia nos primeiros anos da década de oitenta do século passado, nos
corredores e nas bibliotecas e, sobretudo nos bares da Faculdade, era indiscutível que
exaltávamos com a Filosofia e com os filósofos e fazíamos do que estes afirmavam, um
conjunto de orientações firmes para a nossa conduta e um conjunto de teses e princípios que,
não reconhecendo que eram verdades absolutas pois isso era o que de mais sempre existiu
contra a essência da experiência da Filosofia e do Filosofar, integravam contudo as nossas
armas e armaduras com que, alegremente confiantes, avançávamos para todas as discussões.
E como, naquele tempo, amávamos as discussões filosóficas, políticas ou simplesmente
oriundas das áreas das ciências humanas e sociais!... Esse ambiente efervescente, fervilhando
de argumentos, teses, aforismos, referências bibliográficas, citações em grego e alemão, era
o ambiente que vivíamos todos os dias na Faculdade de Letras. Adorávamos discutir, a
experiência do filosofar era uma atividade de combate. Não se arriscava a vida nesses
combates dialéticos, mas o seu interesse não era principalmente académico. Antes pelo
contrário. Combatia-se por posições, ocupando progressivamente as suas ruas e avenidas, as
suas praças, os seus locais estratégicos para, aos poucos, acabarmos por conquistar a cidade,
a polis. Isto porque, naquele tempo, a Filosofia habitava a cidade ou reivindicava foros de
cidadania, reclamava um lugar público na cidade. O debate das ideias não tinha um objetivo
meramente académico ou hermenêutico, movendo-se apenas no interior da próprio discurso
e/ou das ideias. O debate era uma luta pela conquista de posições, sabia-se que havia um
posicionamento político e ideológico por detrás da querela filosófica. Estranhamento, o
interesse de então por Heidegger “esqueceu-se” desse posicionamento político-ideológico que
determina, de certa maneira, o discurso e o debate filosóficos.
Contudo, esta quase euforia pela Filosofia não se manteve e ainda durante o meu curso,
ou imediatamente a seguir à sua conclusão, comecei a relativizar a importância da Filosofia.
O reconhecimento, já na altura, de que a Filosofia não era um local onde se chegava, mas um
sítio donde se partia, indicava precisamente essa relativização da importância da Filosofia.
Com efeito, havia nesta tese uma certa instrumentalização da Filosofia. A Filosofia já não era
3
Fernando SAVATER, Op. cit., p. 106.
4. um fim em si mesmo, mas um conhecimento e um conjunto de enfoques que permitiram o
avanço para outros conhecimentos. A Filosofia habilitava
3. Filósofos por todo o lado e Filosofia em lado nenhum
Dizem-nos: não devemos falar de Filosofia, mas sim de filosofias. No plural. A pluralidade
ou proliferação de filosofias parece ser muito bonito, parece significar o triunfo da
democratização da Filosofia. A cada um a sua Filosofia. Mesmo que seja uma Filosofia de
Bolso. Só que esta pluralidade e Filosofias também significa que cada um tem ou constrói a
sua Filosofia. Cada cabeça a sua Filosofia!
Só que, se é assim, porquê correr a escutar o Filósofo? É mais cómodo para cada um
escutar-se a si mesmo ou escutar o companheiro que dorme ao nosso lado ou o nosso vizinho
do andar de cima que se cruza connosco, todos os dias, no elevador. O Filósofo está ali, à
mão de semear! Não andou o Heraclito a dizer que a Filosofia também estava a na cozinha?
Assim, devemos concluir que nos dias de hoje, o que não falta são filósofos e Filosofias!
Perante esta abundância era inevitável a sua desvalorização! E pensar que andaram alguns a
cuidar da sua especificidade, da sua especialização, da sua dificuldade. Apesar da Filosofia
poder chegar a todos, nem todos chegavam à Filosofia! Era estreito o caminho que conduzia
ao Reino das Ideias Filosóficas! Era mais fácil o pobre entrar no Reino dos Céus!
A Filosofia era especial! O filósofo era um ser especial! O Filósofo tinha um estilo, tinha
muito estilo!...
5. 10. Como começa o século
O século XX começa de forma profundamente marcante para a Filosofia: em 1900,
Husserl conclui as suas Investigações Filosóficas, Freud publica A Interpretação dos Sonhos e é
também o ano da morte de Nietzsche e do nascimento de Hans-Georg Gadamer4
. Mas porquê
todo este afã? O que procuravam Husserl e Freud? Existe aqui algum sentido milenarista
nestes autores de origem judaica?
4
Cf. Manuel Maceiras FAFIÁN, «A Filosofia no Século XX», in Eduqa – Revista Galega do Ensino, nº 28, 2,
2000, pp. 55-84.
6. 11. O professor de Filosofia
Nesse passado prestigiante da Filosofia também se refletiu na figura do professor de
Filosofia. Este era alguém respeitado porque dominava um saber difícil, que não era acessível
a todos, um saber único, incompreendido, interpelante, que incomodava. Hoje o que há de
incómodo no professor de Filosofia tem a ver com questões de orçamento e da distinção,
também por motivos orçamentais, entre conhecimentos essenciais e saberes de utilidade
duvidosa e, por isso, provavelmente bem dispensáveis.
A saída da Filosofia dos currículos do ensino secundário não mobilizaria ninguém ou,
pelo menos, não teria as repercussões que teve por exemplo, em França, aquando da reforma
Haby5
.
5 Cf. Qui a Peur de la Philosophie?.
7. O Passado Prestigiante da Filosofia – AP
Ver Althusser e a sua autobiografia
Ver Les Maîtres Penseurs
Ver o que Sartre e Simone de Beauvoir escreveram sobre a sua época. Como é que foi a
vinda deles a Portugal?
Olivier Rolin, Tigre de Papel, ASA, 2003
Martin e Marie percorrem os arredores de Paris num velho Citroen boca de sapo. Ele
procurando entender o que o mundo mudou nos últimos trintas anos, desde a revolução
do Maio de 68; ela a descobrir o que era o mundo nesses anos. Marie é a filha do
melhor amigo de Martin, que morreu e já não...
Bernard-Henri Lévy, O Século de Sartre
Biografia de Sartre/Simone de Beauvoir
Ver prefácios de livros, do Sartre por exemplo.