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ECOLOGIA VIRIATO SOROMENHO MARQUES
Cristina Beckert (1956 2014)
Filósofa da crise ambiental
Fomos
amigos desde
1974, quando entrei
pela primeira vez na
Faculdade de Letras
da Universidade de
Lisboa. Colegas a
partir de 1980, na mesma insti-
tuição onde ambos seguimos um
caminho de ensino e investigação.
Não é uma evocação dos afetos,
aquilo que pretendo nesta crónica.
Isso estará sempre latente. Mas a
minha intenção é a de fazer um
pouco de justiça à obra de pensa-
mento deixada por uma mulher
serena, dotada de uma enorme
inteligência, talvez apenas supera-
da pela sua bondade e atenção ao
enorme sofrimento que percorre o
nosso mundo contemporâneo.
A sua formação filosófica revela
uma grande solidez. As suas teses
de mestrado e de doutoramen-
to dedicadas, respetivamente, a
Fichte e a E. Lévinas, são claros
indícios de que se sentia perfei-
tamente à vontade nos grandes
e complexos labirintos da filoso-
fia moderna e contemporânea,
como é o caso da Fenomenologia,
das Filosofias da Existência, e do
Idealismo Alemão. Noutros escritos
perpassa a marca e influência
de outros grandes pensadores.
Descartes, Kant, mas também
Freud, Paul Ricoeur, Hans .Fonas e
Hannah Arendt.
A nossa colaboração passou a
ser mais estreita com a introdução
na nossa Faculdade da Área de
Estudos de Filosofia da Natureza
e do Ambiente, apartir de 1995.
No domínio da pós-graduação,
Cristina Beckert assegurou e co-
ordenou ao longo dos anos a esfera
letiva e de investigação ligada
à Ética Ambiental. Dezenas de
alunos beneficiaram do seu apoio
permanente e enorme disponibi-
lidade na elaboração das suas teses
de mestrado e de doutoramento.
Alguns de entre eles vieram de ou-
tros países, em particular do Brasil.
Cristina Beckert Ação e pensamento
44
Nunca esquecendo
as outras dimensões
da crise global do
ambiente, era sobre
a necessidade de
pensar o sentido do
agir humano, que
se debruçava o seu
labor como docente e
investigadora
A "REGRA DE OURO"
E O SEU ALCANCE
Diria que a preocupação central,
embora não exclusiva, da sua obra
se focaliza nas questões éticas.
Desde logo na determinação do que
é o sujeito e o alcance da ética. O
seu interesse por tradições diversas
das da filosofia continental, nome-
adamente, o estudo de autores de
uma tradição mais anglo-saxónica,
inseparável dessa sua procura de
uma fundamentação da ética num
horizonte que não se quedasse por
um humanismo antropocêntrico e
redutor.
Várias vezes, nos seus textos, se
refere a necessidade de repensar
a chamada "regra de ouro" que
atravessa as diferentes paisagens
históricas e culturais da ética, e
que, de entre outras formulações,
pode ser manifestada no seu modo
bíblico: "Não faças aos outros
aquilo que não gostarias que não te
fizessem". Ou, pela positiva: "Faz
aos outros aquilo que gostarias que
te fizessem" .
É aí que entra a sua
meditação sobre a ética ambiental
e sobre a bioética.
As suas fontes não são apenas
os autores contemporâneos como
Peter Singer, Holmes Rolsten
111, que se situam na linhagem
de J. Stuart Mill, mas também as
tradições do pensamento oriental,
em particular hindu, com a sua
compaixão por todas as criatu-
ras capazes de sentir e de sofrer.
Cristina seguiu o convite de Aldo
Leopold: alargar a república da
ética a todas as criaturas, incluindo
os ecossistemas, que são condições
de possibilidade para a produção e
reprodução das comunidades-de-
vida, onde as narrativas individu-
ais têm possibilidade de surgir e
florescer.
Unindo ação e pensamen-
to, Cristina Beckert era uma
vegetariana por razões filosófi-
cas. Padecendo de uma doença
debilitante, não quis acrescen-
tar ao mundo mais sofrimento,
mesmo que difuso e anónimo,
sobre criaturas animais indefesas
e silenciosas, que na voragem dos
dias tendemos a esquecer defini-
tivamente. Nunca esquecendo as
outras dimensões da crise global do
ambiente, era sobre esta necessi-
dade, profundamente filosófica, de
pensar o sentido do agir humano,
que se debruçava o seu labor como
docente e investigadora.
TRABALHAR COM OS OUTROS
Deve ser destacada a sua contí-
nua atitude de abertura para a
colaboração interdisciplinar com
outras áreas do saber, nomeada-
mente no âmbito da Medicina e
das Ciências da Saúde. Foi, nessa
linha, presidente do Conselho
Científico do Doutoramento em
Enfermagem da Universidade de
Lisboa. A autonomia e a disciplina
do silêncio, exigidos pela pesquisa
filosófica, nunca a impediram de
trabalhar de modo colaborati-
vo em diversas frentes. Assumiu
uma posição de coordenação no
Centro de Filosofia da Universidade
de Lisboa. No Departamento de
Filosofia, desempenhou vários car-
gos, e como investigadora liderou
diversos projetos de investigação e
numerosas conferências e coló-
quios científicos. A sua bibliografia
é vasta, mas, sobretudo na área da
ética ambiental, a sua produção
constitui do que de mais consis-
tente foi até hoje escrito em língua
portuguesa.
Fora do âmbito estritamen-
te académico, foi fundadora e
presidente, ao longo de muitos
anos, de uma Organização Não-
Governamental, a Sociedade de
Ética Ambiental (SEA) . Sempre
atenta às oscilações do presente, e
à aceleração da história, Cristina
Beckert deixa em todos os que
tiveram a felicidade de com ela
conviver, uma memória intensa.
Transmitia- nos uma experiência
de proximidade ao que é essencial,
àquilo que permanece no tempo.
Talvez para além dele. Era como
se tivesse sido capaz de entrever
um pouco daquilo que começámos
a procurar, no Ocidente, desde o
Poema de Parménides. Uma pro-
cura de cujo profundo e essencial
sentido, hoje, dolorosamente,
parece nos termos esquecido, jl

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  • 1. ECOLOGIA VIRIATO SOROMENHO MARQUES Cristina Beckert (1956 2014) Filósofa da crise ambiental Fomos amigos desde 1974, quando entrei pela primeira vez na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Colegas a partir de 1980, na mesma insti- tuição onde ambos seguimos um caminho de ensino e investigação. Não é uma evocação dos afetos, aquilo que pretendo nesta crónica. Isso estará sempre latente. Mas a minha intenção é a de fazer um pouco de justiça à obra de pensa- mento deixada por uma mulher serena, dotada de uma enorme inteligência, talvez apenas supera- da pela sua bondade e atenção ao enorme sofrimento que percorre o nosso mundo contemporâneo. A sua formação filosófica revela uma grande solidez. As suas teses de mestrado e de doutoramen- to dedicadas, respetivamente, a Fichte e a E. Lévinas, são claros indícios de que se sentia perfei- tamente à vontade nos grandes e complexos labirintos da filoso- fia moderna e contemporânea, como é o caso da Fenomenologia, das Filosofias da Existência, e do Idealismo Alemão. Noutros escritos perpassa a marca e influência de outros grandes pensadores. Descartes, Kant, mas também Freud, Paul Ricoeur, Hans .Fonas e Hannah Arendt. A nossa colaboração passou a ser mais estreita com a introdução na nossa Faculdade da Área de Estudos de Filosofia da Natureza e do Ambiente, apartir de 1995. No domínio da pós-graduação, Cristina Beckert assegurou e co- ordenou ao longo dos anos a esfera letiva e de investigação ligada à Ética Ambiental. Dezenas de alunos beneficiaram do seu apoio permanente e enorme disponibi- lidade na elaboração das suas teses de mestrado e de doutoramento. Alguns de entre eles vieram de ou- tros países, em particular do Brasil. Cristina Beckert Ação e pensamento 44 Nunca esquecendo as outras dimensões da crise global do ambiente, era sobre a necessidade de pensar o sentido do agir humano, que se debruçava o seu labor como docente e investigadora A "REGRA DE OURO" E O SEU ALCANCE Diria que a preocupação central, embora não exclusiva, da sua obra se focaliza nas questões éticas. Desde logo na determinação do que é o sujeito e o alcance da ética. O seu interesse por tradições diversas das da filosofia continental, nome- adamente, o estudo de autores de uma tradição mais anglo-saxónica, inseparável dessa sua procura de uma fundamentação da ética num horizonte que não se quedasse por um humanismo antropocêntrico e redutor. Várias vezes, nos seus textos, se refere a necessidade de repensar a chamada "regra de ouro" que atravessa as diferentes paisagens históricas e culturais da ética, e
  • 2. que, de entre outras formulações, pode ser manifestada no seu modo bíblico: "Não faças aos outros aquilo que não gostarias que não te fizessem". Ou, pela positiva: "Faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem" . É aí que entra a sua meditação sobre a ética ambiental e sobre a bioética. As suas fontes não são apenas os autores contemporâneos como Peter Singer, Holmes Rolsten 111, que se situam na linhagem de J. Stuart Mill, mas também as tradições do pensamento oriental, em particular hindu, com a sua compaixão por todas as criatu- ras capazes de sentir e de sofrer. Cristina seguiu o convite de Aldo Leopold: alargar a república da ética a todas as criaturas, incluindo os ecossistemas, que são condições de possibilidade para a produção e reprodução das comunidades-de- vida, onde as narrativas individu- ais têm possibilidade de surgir e florescer. Unindo ação e pensamen- to, Cristina Beckert era uma vegetariana por razões filosófi- cas. Padecendo de uma doença debilitante, não quis acrescen- tar ao mundo mais sofrimento, mesmo que difuso e anónimo, sobre criaturas animais indefesas e silenciosas, que na voragem dos dias tendemos a esquecer defini- tivamente. Nunca esquecendo as outras dimensões da crise global do ambiente, era sobre esta necessi- dade, profundamente filosófica, de pensar o sentido do agir humano, que se debruçava o seu labor como docente e investigadora. TRABALHAR COM OS OUTROS Deve ser destacada a sua contí- nua atitude de abertura para a colaboração interdisciplinar com outras áreas do saber, nomeada- mente no âmbito da Medicina e das Ciências da Saúde. Foi, nessa linha, presidente do Conselho Científico do Doutoramento em Enfermagem da Universidade de Lisboa. A autonomia e a disciplina do silêncio, exigidos pela pesquisa filosófica, nunca a impediram de trabalhar de modo colaborati- vo em diversas frentes. Assumiu uma posição de coordenação no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. No Departamento de Filosofia, desempenhou vários car- gos, e como investigadora liderou diversos projetos de investigação e numerosas conferências e coló- quios científicos. A sua bibliografia é vasta, mas, sobretudo na área da ética ambiental, a sua produção constitui do que de mais consis- tente foi até hoje escrito em língua portuguesa. Fora do âmbito estritamen- te académico, foi fundadora e presidente, ao longo de muitos anos, de uma Organização Não- Governamental, a Sociedade de Ética Ambiental (SEA) . Sempre atenta às oscilações do presente, e à aceleração da história, Cristina Beckert deixa em todos os que tiveram a felicidade de com ela conviver, uma memória intensa. Transmitia- nos uma experiência de proximidade ao que é essencial, àquilo que permanece no tempo. Talvez para além dele. Era como se tivesse sido capaz de entrever um pouco daquilo que começámos a procurar, no Ocidente, desde o Poema de Parménides. Uma pro- cura de cujo profundo e essencial sentido, hoje, dolorosamente, parece nos termos esquecido, jl