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Jorge Barbosa
FILOSOFIA
Curso de Artes Visuais
Fevereiro, 2013




C O N T R I B U TO D E D E S C A R T E S PA R A A F I LO S O F I A
                           MODERNA




    Descartes, logo no início do Discurso do Método, manifesta o seu desencanto por não encontrar
um conhecimento certo em filosofia. Tudo o que estudou lhe parece sem fundamento.

    A história da filosofia mostra uma sucessão inacabada de opiniões, que depois são refutadas
numa sucessão contínua. Por isso, quer empreender, com firmeza e com segurança, a construção de
uma filosofia certa e duradoura. Com esse objetivo, propõe-se eliminar previamente todas as fontes
possíveis de erro e de incerteza. Embora seja sua intenção criticar a filosofia aristotélica, que dominava
na sua época, a verdade é que mantém a divisão de Aristóteles das faculdades da alma: sentidos
exteriores, sentido comum, memória, imaginação e entendimento. Todas essas faculdades, à exceção
do entendimento, funcionam graças à união do corpo com a alma. Os sentidos dependem da ação
dos objetos exteriores, que imprimem neles imagens à maneira de um carimbo em cera. Segundo
Descartes, possuímos uma dupla memória, sensitiva e intelectual. A primeira depende da imaginação,
que está ligada a imagens com origem no corpo, a segunda depende do entendimento. Só o
entendimento é espiritual e pode funcionar separadamente do corpo. Por isso, é a única faculdade
capaz de intuir clara e distintamente as ideias ou as “naturezas simples”1, prescindindo das
imagens e das impressões, e a única a ser capaz de alcançar a verdade. Os sentidos e a imaginação
podem ajudar-nos, mas também podem criar-nos dificuldades.

     A causa principal dos nossos erros provém dos sentidos e da imaginação. Desde a infância, em
que vivemos sob o domínio dos sentidos, adquirimos muitos preconceitos, e é necessário eliminá-los
previamente se quisermos chegar à verdade e à certeza. Daqui resulta a insistência com que
Descartes tenta desligar-se dos sentidos e da imaginação, excluindo da sua investigação todos os
elementos procedentes da experiência sensível, recorrendo só a elementos procedentes da sua
interioridade intelectual. Para proceder com garantia de alcançar a verdade é indispensável um
trabalho prévio de depuração e de libertação dos sentidos.


1 “Naturezas simples” é um termo que se refere aos últimos elementos, a que se acede através da análise, e que são
conhecidos por via das ideias claras e distintas, através da intuição. Há três tipos de naturezas simples: 1) materiais, que
estão só nos corpos (movimento, extensão…); 2) espirituais, que estão só na mente (pensar, duvidar, amar…); 3)
comuns a ambas (a existência, o tempo…)
Descartes prescinde da experiência sensível como ponto de partida. Para se preservar do erro e
alcançar a verdade, só confia no uso puro da sua razão recolhida dentro de si mesma, funcionando de
portas fechadas, desligada de qualquer tipo de contacto com o mundo da experiência sensível, tendo
em vista fazer as suas deduções rigorosamente a partir de ideias claras e distintas. Não parte da
realidade das coisas para chegar à ideia, mas da ideia para chegar à realidade. A sua investigação, tal
como a de Kant (que veremos mais tarde), será puramente interna, tal como a percebe a razão

Os Motivos para Duvidar

    Trata-se de colocar em dúvida os conhecimentos até então tidos como certos, até que não reste
qualquer motivo para duvidar, mesmo que essa dúvida nos pareça exagerada ou até ridícula. Não será
necessário recusar, uma a uma, todas a nossas ideias isoladamente - trabalho impensável -, bastará
contestar a origem de onde elas provêm. Essa dúvida situa-se, então, em três níveis concretos:

Os Sentidos podem enganar-nos

    É certamente difícil admitir que os sentidos nos enganem sempre, mas, ainda que remota, existe a
possibilidade de isso acontecer, isto é, não podemos ter a certeza absoluta de que não nos enganem,
porque é possível que algumas vezes o façam. Portanto, devemos considerar provisoriamente falsos
todos os dados que tenham origem nos sentidos, até porque quando somos enganados por eles não
temos consciência do erro em que estamos a incorrer.

A Confusão entre a vigília e o sono

     Duvidar dos dados com origem nos sentidos permite-nos pôr em dúvida que os objetos
percepcionados sejam tal como os percepcionamos, mas não nos permite duvidar da sua existência.
No entanto, quem não sonhou alguma vez e não se representou em sonhos as mesmas coisas que
vivenciou em estado de vigília e até com maior intensidade, sendo enganado, enquanto dormia, por
essas ilusões? Parece fácil saber quando estou acordado ou a dormir, e, assim, evitar o erro. “Mas se
pensar nisso com atenção, lembro-me de que muitas vezes ilusões desta natureza me enganaram
enquanto dormia; e ao acordar com esse pensamento, vejo muito claramente que não há indícios certos
para distinguir o sono da vigília, a tal ponto que fico baralhado e é tão grande a confusão que quase me
convenço de que ainda continuo a dormir.”2 Desta dificuldade, que consiste em distinguir com toda a
evidência a vigília do sono, resulta o imperativo de duvidar da existência de um mundo exterior ao
meu pensamento. Assim, de novo provisoriamente, Descartes considera falsa a existência desse
mundo exterior ao pensamento.

A Hipótese do génio maligno

     É possível, diz Descartes, duvidar de todas as percepções dos sentidos, porque, às vezes, nos
enganam, e, para além disso, acontece que, em certas ocasiões, não conseguimos distinguir se o que
se está a passar é um sonho ou uma realidade. Deste modo, a dúvida não abrange somente uma


2   in Meditações Metafísicas, primeira meditação, Descartes
determinada sensação, mas toda a realidade exterior ao pensamento: pode acontecer que tudo não
passe de um sonho. Apesar desta enorme dúvida, há algo que pode parecer uma certeza, pelo
menos, temporária: nem em sonhos é possível duvidar das verdades matemáticas, segundo as quais
2+2=4, e um quadrado não pode ter mais de quatro lados. Por outras palavras, é possível duvidar de
tudo o que se conhece a posteriori, mas não parece possível duvidar do que conhecemos a priori.
Mesmo assim, Descartes ainda encontra razões para prosseguir na sua dúvida metódica: inventa a
hipótese de um génio maligno, de um diabrete que andasse por aí a brincar connosco, fazendo-nos
ter por certo o conhecimento a priori.

     Ninguém nos garante que não estejamos sob o domínio de um deus maligno, “astucioso,
enganador e poderoso” que nos esteja a confundir no que diz respeito às noções matemáticas.
“Assim, suporei que há, não um verdadeiro Deus - que é a fonte suprema de verdade -, mas um génio
maligno, tão astucioso e enganador quanto poderoso, o qual recorre a todo o seu engenho para me
enganar.” 3 A hipótese do génio maligno é uma metáfora que faz com que a dúvida incida também
sobre a própria razão. Por outras palavras, quem é que me garante que, quando somo 2+2 ou faço
operações semelhantes, cuja conclusão se manifesta evidente, eu estou na verdade? Teremos de
considerar também provisoriamente falsas - ou, pelo menos, duvidosas - as matemáticas.



Em Busca da Certeza
     Em resumo, a nossa natureza humana pode ser de tal forma que nos engane quando acreditamos
saber que algo é verdadeiro ou falso. Também é possível, então, duvidar das certezas das matemáticas.
No entanto, há algo que escapa ao poder do génio maligno e à própria possibilidade de a natureza
humana funcionar mal: se o deus maligno me engana, então existo; se me engano a mim mesmo,
também existo, pelo que, desta forma, Descartes vai superar a dúvida hiperbólica, esta dúvida que põe
em causa, não só a toda a existência exterior ao nosso pensamento, mas a própria razão matemática.
Isto é, a dúvida conduz à consciência de duvidar e, por conseguinte, de pensar, e
assim vai assumir que “penso, então existo”.

     O núcleo central da filosofia cartesiana é o estudo do fundamento em que se baseia o
conhecimento humano. Com Descartes, podemos dizer que surge a epistemologia, ou teoria do
conhecimento, como tema central da filosofia moderna. Quais são as verdades que podemos
conhecer com certeza? Esta é a questão central do Discurso do Método, e, sobretudo, da primeira das
suas Meditações. Para ele, a dúvida, tal como a consciência da ignorância para Sócrates e Platão, é o
primeiro passo para todas as certezas.

    Abandonando a filosofia escolástica medieval e aristotélica, por as considerar incapazes de dar
resposta às exigências científicas da sua época, Descartes vai inspirar-se nas matemáticas para
desenvolver um método que traga a certeza ao espírito humano em todas as questões. Considerará


3   in Meditações Metafísicas, primeira meditação, Descartes
certas só aquelas ideias que se apresentem na nossa mente com clareza (sem dúvidas para a
consciência) e com distinção (passadas pelo crivo da análise).

    Descartes pretendia fundar o edifício da filosofia em alicerces inamovíveis, com tanta solidez que
conseguisse resistir à dúvida mais radical dos cépticos, e achava que alcançaria esta sua pretensão
seguindo um método estritamente racional e dedutivo, semelhante ao que ele próprio
usava na matemática (sobretudo, geometria) com tão bons resultados. Para isso, precisava de um
ponto de partida incontroverso, um princípio indiscutível, certo, seguro: uma primeira verdade
que ninguém pudesse pôr em causa.

    Essa primeira verdade reúne as seguintes condições:

    1.    É clara: corresponde à presença e manifestação de uma ideia na inteligência que a intui
      de modo inequívoco e manifesto.

    2. É distinta: uma representação mental não deve conter nada que pertença a outras.
     Distinta é uma ideia, quando as suas partes ou componentes são diferentes umas das outras e
     conhecidas com clareza pela consciência.

    3. É evidente: os primeiros princípios na ordem das razões devem ser conhecidos por si
     mesmos e exigem um perfeita inteligibilidade. As ideias simples (claras e distintas) são inteligíveis
     por si mesmas; as ideias compostas têm de ser decompostas nos seus elementos para se
     tornarem inteligíveis (análise).



Proposta de Interpretação
     O “Penso, logo existo” (“cogito”) não é um enunciado, ou uma proposição lógica. Para isso, seria
indispensável que a primeira verdade de Descartes fosse “tudo o que pensa existe” e que “penso”
fosse a segunda; a partir destas duas verdades, retiraria a conclusão “existo”. Discutir a sua primeira
verdade (“Penso, logo existo”) estritamente do ponto de vista lógico ou analítico pode ser ocioso, ou
é mesmo uma pura perda de tempo.

    Na verdade, a filosofia de Descartes teve uma influência poderosa, para o bem e para o mal, em
toda a filosofia e ciência modernas. Como é que isso foi possível, se Descartes foi um bom geómetra,
mas não tão genial que a história da geometria fosse marcada por ele, foi um fraco teólogo (a sua
teoria a respeito de Deus é realmente muito pobre), a sua ontologia (filosofia do ser) é medíocre…
como é que foi, então, possível que Descartes tenha desempenhado um papel tão relevante na
filosofia e ciência modernas?

    Permitam-me que recorra a uma metáfora de Deleuze que compara os filósofos aos pássaros (e
também aos peixes). Os pássaros lançam gritos e entoam cantos. Um grito de amor de um pássaro
não é o mesmo que um canto nupcial. Um pássaro pode lançar um grito de aviso de perigo: isso não
é um canto. Mas é uma mensagem. É uma imagem do seu pensamento, a respeito da realidade. Não é
o pensamento, é a imagem dele.

     Há, como nos pássaros, gritos filosóficos da razão, e gritos filosóficos da desrazão (se me é
permitido dizer assim). O “penso, logo existo” é um grito da razão, não é um canto, um discurso
filosófico. Por exemplo, um outro filósofo, Leibniz, lançou um grito da razão: “tudo tem uma razão”.
Isto é um grito. Deste grito resultou um longo discurso, um canto harmonioso e até, por vezes muito
belo do filósofo, o seu discurso. Este grito “tudo tem uma razão” ecoou por muito tempo, e outros
filósofos, como Hegel, fizeram dele um canto ainda mais belo e talvez mais confuso, mais “tipo” jazz.
Dostoiewski, um escritor russo, lançou um grito da desrazão que me impressionou (há muitos, muitos
anos): “Não ficarei tranquilo, nem vos deixarei tranquilos, enquanto não me forem prestadas contas
de todas as vítimas da História.” (mais ou menos isto) O que é que os distingue?

    •        Nos gritos da razão, a frase começa por “ninguém pode negar”. Ninguém pode negar que
        se penso, então existo. Esta coisa não suporta uma análise lógica, mas quem é que pode negar, a
        não ser por uma questão puramente formal, que se “penso, então existo”? Ora digam lá. “tu
        pensas, mas não existes”. O “penso, logo existo” pode ser uma asneira, mas olhe que a sua de
        admitir que penso, mas não existo não lhe fica nada atrás. Isto é um grito da razão. O canto, o
        discurso filosófico vem depois.

    •       Nos gritos da desrazão, a frase começa por “eu posso negar”, posso negar que 2+2=4.
        Posso negar que seja impossível prestar contas por todas as vítimas da História. Posso, porque
        quero. Os gritos da desrazão também podem dar, e dão, origem a belos cantos.



     Então, o que pretende Descartes com o seu grito? Muito simplesmente, propor uma viragem
fundamental na filosofia do seu tempo. O homem era “um anima racional”, ideia esta que vinha desde
Aristóteles (discípulo de Platão). O que determinava o homem era a sua racionalidade, e, em nome
dela, a filosofia, mantendo-se discursiva e especulativa, afastava-se da ciência emergente no século XVI
e XVII (Copérnico, Galileu…). Para Descartes, o homem continua racional, mas a sua racionalidade
tem de ser a da matemática. O que é complicado ou complexo, tem de ser simplificado. Só assim se
conseguem resolver as grandes equações. E, se simplificarmos todas as grandes equações do universo
e da vida, aquilo que resolveremos, em cada passo, será muito fácil e de evidência garantida.

     O seu grito, de Descartes, foi ouvido porque era o que interessava ser ouvido naquele tempo. A
ciência moderna haveria de se desenvolver até pontos difíceis de imaginar por Descartes, com base
no seu grito e com algum desprezo pelo seu canto. O Homem vai ser capaz, através de
procedimentos de simplificação dos problemas, de resolver todos os que se lhe apresentem. Era esta
a crença de Descartes, foi esta a crença dos modernos.
Só que não é bem assim, e agora Descartes parece muito distante e desatualizado. E está de
facto, sobretudo, desatualizado. Mas o seu grito ainda ecoa, e ecoa de forma estridente naqueles que,
por razões estritamente analíticas, o criticam ou desprezam.



As Regras do Método
     Descartes tem intenção de encontrar uma certeza absoluta. Desconfia dos sentidos e da
imaginação e recolhe-se na interioridade da consciência. Também desconfia dos longos raciocínios,
onde, subrepticiamente, se pode introduzir algum erro. As suas regras são pensadas para evitar
preconceitos, precipitações, falsas conceções que provêm da educação, da impaciência na
investigação, etc. Descartes quer raciocínios curtos, simples, claros, concretos, intuitivos, em que se vá
passando lentamente de cada ideia para a seguinte; na primeira parte do Discurso do Método afirma
que “os que andam muito devagar podem chegar muito mais longe”. E isso é o que ele propõe.
Segundo Descartes, que se inspira na matemática (que respeita estas regras), as regras podem e
devem ser utilizadas em todos os tipos de investigação que pretendam ser rigorosos e aceder à
certeza.

    As regras concretas do método, que Descartes aduz, são as seguintes, enunciadas quase de forma
matemática:

    1.     “Não admitir nunca como verdadeira coisa alguma sem saber com evidência que o seja”.

    2.     “Dividir cada uma das dificuldades que vou examinar em tantas partes quantas seja possível
      e sejam requeridas para a sua melhor resolução”.

    3.    “Conduzir ordenadamente os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e
      mais fáceis de conhecer, para ir subindo a pouco e pouco, por níveis, até ao conhecimento dos
      mais complexos”.

    4.    “Proceder sempre a enumerações tão completas e revisões tão gerais, que esteja sempre
      seguro de não ter omitido nada”.



O Significado do “cogito”

     O cogito é o modelo por excelência da ideia clara e distinta, que se afirma com a máxima
certeza, acima de toda a dúvida, pois não é possível duvidar do pensamento próprio nem da própria
existência; se duvidar, isso demonstrará que existo, pois duvidar é pensar.

    “Pensar, logo existo” não é um entimema ou um silogismo incompleto, com uma premissa ou
conclusão subentendida. Não é tão pouco uma inferência, isto é, uma operação mental que consiste
num processo psicológico, segundo o qual acreditamos ter justificação para admitir uma conclusão,
pelo facto de aceitar uma ou várias premissas. Não é, ainda que dê essa ilusão pela sua forma “penso,
logo existo”. Não é sequer um raciocínio, nem supõe uma premissa maior (“tudo o que pensa
existe”).

     Para que a existência seja uma consequência do pensamento não é necessário nenhum
silogismo, pois essa consequência é-nos imposta por intuição, por evidência imediata (não mediata
nem deduzida). É um facto irrefutável, uma experiência direta e primária, uma percepção imediata,
intuitiva, evidente e simultânea do pensamento e da existência. Ao pensar, ou ao exercer o acto do
pensamento, o sujeito percebe-se a si mesmo como existindo, como sendo, e percebe a sua própria
existência, não como a conclusão de um raciocínio, mas, como diz Descartes, como uma simples
inspecção do espírito. O cogito é a expressão da simples percepção de um facto de consciência
imediato, primário, concreto e particular: a existência do eu que pensa. O “penso, logo existo”
equivale a dizer eu sou pensado ou eu sou uma coisa que pensa, ou eu sou um espírito, uma alma, um
entendimento.

    No entanto, a palavra pensamento tem em Descartes um sentido muito vasto, abarcando todo o
fenómeno e toda a atividade da consciência. O cogito equivale a qualquer acção sentida,
experimentada pelo sujeito.

    Não é, então, um raciocínio, nem uma ideia abstrata universal, mas um facto concreto e imediato
da consciência, em que se percebe simultaneamente o pensamento e a existência, a atividade e o ser.
Neste sentido, deixando de lado a acusação de se tratar de uma tautologia (eu penso=eu existo=eu
sou uma coisa que pensa=eu tenho uma alma que é pensamento), é uma verdade absolutamente
certa e indubitável.



Deus, Garantia do Conhecimento Humano

      A perfeição de Deus, diz agora Descartes, permite saber que Deus não engana o homem. Por
isso, podemos acreditar no testemunho que nos oferecem os nossos sentidos, no que diz respeito à
existência da res extensa (a realidade exterior ao pensamento, como o nosso corpo e todo o mundo
que nos rodeia). Isto não significa que os sentidos readquiram a importância que Descartes lhes tinha
retirado, e muito menos que sejam o melhor caminho de acesso ao conhecimento do mundo. A
forma como Descartes aborda esta problemática de Deus é muito pobre. Mas tem uma importância
fundamental para a sua filosofia. Para Descartes, é imprescindível demonstrar, o mais cedo possível, de
forma clara e rápida, a existência de Deus e os seus atributos essenciais, como forma de prosseguir as
suas deduções filosóficas. Para além do mais, Descartes pretende que as suas deduções vão mais além
da pura intuição do cogito, e da ideia clara e distinta da res extensa (do mundo exterior à consciência).

    Ora, justamente por se ter mantido recolhido na interioridade da sua alma, ou da sua
consciência, por ter rompido a comunicação com o mundo exterior prescindindo de toda a
experiência e informação que os seus sentidos pudessem proporcionar-lhe, por isso mesmo, precisa
de uma garantia segura para dar o salto da sua ideia de extensão (ideia de um mundo exterior à
consciência) para a realidade concreta do mundo extramental. Esta é a razão da sua insistência em
buscar uma prova da existência de Deus, a qual, uma vez demonstrada, lhe oferecerá um novo critério
de verdade, que se acrescenta e reforça o da evidência do pensamento, e serve para garantir o
processo dedutivo dos seus raciocínios ou intuições sucessivas. Descartes põe assim a verdade de
Deus ao serviço da sua dedução, cujo resultado será uma ciência física que ele gostaria que fosse
absolutamente certa e segura. A Física moderna nasce, assim, de um acto de fé, enunciado inicialmente
por Galileu, segundo o qual o mundo, criado por Deus, obedece a leis matemáticas, e o nosso
entendimento tem a capacidade de as encontrar, porque, na sua forma mais pura, o pensamento é um
pensamento matemático. Só que Descartes, ao procurar provas racionais da existência de Deus, e,
pensando que as encontrou, criou também a ilusão de que a existência de Deus não era só uma
questão de fé, mas sobretudo de razão. Este movimento do pensamento reforçou e deu força àquilo
a que haveria de se chamar ciência moderna.

    Na realidade, Descartes mistura o seu racionalismo com o voluntarismo divino (base da sua
pobre Teologia), que dificilmente se podem compaginar. Tudo, as essências e as verdades, depende da
vontade de Deus. Por isso, procura poupar a sua certeza à arbitrariedade da vontade divina.
Descartes refugia-se, então, na promoção da bondade de Deus. Um deus bom, que em todos os casos
procura o melhor para o bem dos homens, não permitiria que nos enganássemos nas nossas
deduções, e muito menos nos deixaria à mercê de um génio maligno que se divertisse a enganar-nos.



As Provas da Existência de Deus

    É claro que Descartes se considerava cristão, embora seja duvidoso que alguma vez tivesse tido
consciência das críticas à religião que viriam a ter origem na sua teoria.

    As “provas” da existência de Deus seguem três caminhos diferentes:

    1. A ideia do perfeito (ou de um ser perfeito) (prova cosmológica)- a ideia
     de ser perfeito não pode provir de um ser imperfeito; por outro lado, nenhuma alma teria
     consciência da sua imperfeição nem teria alguma dúvida, se não tivesse essa ideia de perfeição.
     Essa ideia de perfeição só pode, então, ter origem num ser absolutamente perfeito (Deus) que
     a teria colocado na nossa alma. “Pois, como poderia eu saber que duvido e que desejo, isto é, que
     algo me falta e que não sou perfeito, se não tivesse em mim a ideia de um ser mais perfeito, por
     comparação com o qual tenho consciência da imperfeição da minha natureza? (…) Digo que a ideia
     desse ser sumamente perfeito e infinito é absolutamente verdadeira; pois, ainda que por acaso
     pudesse fazer de conta que um ser como esse não existe, todavia, não posso fingir que a sua ideia
     não representa nada de real, como disse antes da ideia de frio. (…) pelo contrário, sendo esta ideia
     muito clara e distinta e contendo mais realidade objetiva do que todas as outras, não há ideia
     alguma que seja, por si mesma, mais verdadeira…”

    2. A ideia da imperfeição e da dependência do meu ser - esta prova parte da
     contingência do próprio homem como ser finito e limitado, que não possui em si mesmo a
causa do seu ser. Deus é, por conseguinte, a causa do nosso ser (e não somente da ideia que
   tenho dele)

       2.1. Parte da consciência da própria imperfeição (duvido, sou ignorante…)

       2.2. Eu, todo o meu ser (não só a minha mente), sou contingente. E essa contingência não
        resulta só da minha origem (não fui eu que dei a mim mesmo o ser), mas também da
        impossibilidade de continuar mantendo-me no ser.

       2.3. Mas, será que dependo de Deus, ou de um ser maior do que eu, mas inferior a Deus?
        Descartes recusa o recurso a uma cadeia de seres, que poderia ser infinita:
        impossibilidade do regresso ao infinito. Isto é, se eu sou um ser que pensa, quem me fez e
        me mantém no ser também deve ser um ser pensante. Ora bom, se esse ser não é
        causa de si, outro o terá feito. Mas a série de causas não pode ser infinita.

       2.4. Por conseguinte, Deus existe e é Uno; temos dele uma ideia inata, precisamente
        porque foi ele quem nos criou.

  3. A própria ideia de Deus (da sua essência) contém em si mesma a da
   sua existência (argumento ontológico) - Descartes desenvolve esta prova em quatro
   proposições:

       3.1. Deus é um ser perfeito.

       3.2. Um ser perfeito não pode ter a imperfeição de não existir, nem me pode enganar.

       3.3. Tudo quanto há em nós vem de Deus; portanto, também as nossas ideias claras e
        distintas (porque o Ser perfeito é a causa universal).

       3.4. As ideias claras e distintas são afirmações divinas na consciência humana. Todas as
        ideias inatas, claras e distintas, são necessariamente verdadeiras, pois estão garantidas pela
        veracidade de Deus.



Em Resumo
  Em Descartes, a dúvida surge como um processo, como um método.

  1.   A dúvida em sentido restrito e o seu processo:

       1.1. Os sentidos já nos enganaram alguma vez; nada garante que não nos enganem
         sempre.

       1.2.   Não sabemos com certeza como distinguir o estado de vigília do estado de sono.

       1.3. Às vezes, enganamo-nos ao raciocinar. Existe portanto lugar para dúvidas a respeito
         da eficácia da razão.
1.4. O génio maligno: é possível que exista um génio maligno que nos engane, ou até que
        Deus tenha criado o homem de tal forma que se engane sempre que pensa algo, por
        exemplo, quando pensa que 2+2=4.

2.     A tábua de salvação do cepticismo: o cogito. A proposição “eu penso, logo existo” aparece
  como evidente e indubitável de qualquer ponto de vista, porque mesmo que me esteja a
  enganar, serei sempre alguém que existe, uma consciência que se engana; logo, a existência do
  eu, da mente pensante (não de todo o homem; Descartes ainda não sabe como justificar o
  próprio corpo, e muito menos os dos outros) é um dado de que não posso duvidar.

3.      Regresso ao mundo: a resolução da dúvida. Para “recuperar” o mundo que, num primeiro
  momento tinha “perdido”, Descartes recorrerá à demonstração da existência de um Deus
  bom. Este Deus criou-nos e deu-nos as faculdades necessárias para conhecer as coisas. Dito
  isto, podemos agora confiar nos nossos sentidos, assim como na nossa capacidade racional,
  sobretudo naquelas ideias, que se nos apresentem com clareza e distinção na nossa mente. Isto
  significa, para Descartes, que agora já podemos recusar os anteriores motivos de dúvida. Já não
  tem sentido falar do génio maligno, pois “é claro” que Deus existe e que é bom, e que nos criou
  com uma razão, capaz de conhecer com certeza, com clareza, distinção e evidência, as coisas,
  sobretudo as ideias na nossa consciência.

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  • 1. Jorge Barbosa FILOSOFIA Curso de Artes Visuais Fevereiro, 2013 C O N T R I B U TO D E D E S C A R T E S PA R A A F I LO S O F I A MODERNA Descartes, logo no início do Discurso do Método, manifesta o seu desencanto por não encontrar um conhecimento certo em filosofia. Tudo o que estudou lhe parece sem fundamento. A história da filosofia mostra uma sucessão inacabada de opiniões, que depois são refutadas numa sucessão contínua. Por isso, quer empreender, com firmeza e com segurança, a construção de uma filosofia certa e duradoura. Com esse objetivo, propõe-se eliminar previamente todas as fontes possíveis de erro e de incerteza. Embora seja sua intenção criticar a filosofia aristotélica, que dominava na sua época, a verdade é que mantém a divisão de Aristóteles das faculdades da alma: sentidos exteriores, sentido comum, memória, imaginação e entendimento. Todas essas faculdades, à exceção do entendimento, funcionam graças à união do corpo com a alma. Os sentidos dependem da ação dos objetos exteriores, que imprimem neles imagens à maneira de um carimbo em cera. Segundo Descartes, possuímos uma dupla memória, sensitiva e intelectual. A primeira depende da imaginação, que está ligada a imagens com origem no corpo, a segunda depende do entendimento. Só o entendimento é espiritual e pode funcionar separadamente do corpo. Por isso, é a única faculdade capaz de intuir clara e distintamente as ideias ou as “naturezas simples”1, prescindindo das imagens e das impressões, e a única a ser capaz de alcançar a verdade. Os sentidos e a imaginação podem ajudar-nos, mas também podem criar-nos dificuldades. A causa principal dos nossos erros provém dos sentidos e da imaginação. Desde a infância, em que vivemos sob o domínio dos sentidos, adquirimos muitos preconceitos, e é necessário eliminá-los previamente se quisermos chegar à verdade e à certeza. Daqui resulta a insistência com que Descartes tenta desligar-se dos sentidos e da imaginação, excluindo da sua investigação todos os elementos procedentes da experiência sensível, recorrendo só a elementos procedentes da sua interioridade intelectual. Para proceder com garantia de alcançar a verdade é indispensável um trabalho prévio de depuração e de libertação dos sentidos. 1 “Naturezas simples” é um termo que se refere aos últimos elementos, a que se acede através da análise, e que são conhecidos por via das ideias claras e distintas, através da intuição. Há três tipos de naturezas simples: 1) materiais, que estão só nos corpos (movimento, extensão…); 2) espirituais, que estão só na mente (pensar, duvidar, amar…); 3) comuns a ambas (a existência, o tempo…)
  • 2. Descartes prescinde da experiência sensível como ponto de partida. Para se preservar do erro e alcançar a verdade, só confia no uso puro da sua razão recolhida dentro de si mesma, funcionando de portas fechadas, desligada de qualquer tipo de contacto com o mundo da experiência sensível, tendo em vista fazer as suas deduções rigorosamente a partir de ideias claras e distintas. Não parte da realidade das coisas para chegar à ideia, mas da ideia para chegar à realidade. A sua investigação, tal como a de Kant (que veremos mais tarde), será puramente interna, tal como a percebe a razão Os Motivos para Duvidar Trata-se de colocar em dúvida os conhecimentos até então tidos como certos, até que não reste qualquer motivo para duvidar, mesmo que essa dúvida nos pareça exagerada ou até ridícula. Não será necessário recusar, uma a uma, todas a nossas ideias isoladamente - trabalho impensável -, bastará contestar a origem de onde elas provêm. Essa dúvida situa-se, então, em três níveis concretos: Os Sentidos podem enganar-nos É certamente difícil admitir que os sentidos nos enganem sempre, mas, ainda que remota, existe a possibilidade de isso acontecer, isto é, não podemos ter a certeza absoluta de que não nos enganem, porque é possível que algumas vezes o façam. Portanto, devemos considerar provisoriamente falsos todos os dados que tenham origem nos sentidos, até porque quando somos enganados por eles não temos consciência do erro em que estamos a incorrer. A Confusão entre a vigília e o sono Duvidar dos dados com origem nos sentidos permite-nos pôr em dúvida que os objetos percepcionados sejam tal como os percepcionamos, mas não nos permite duvidar da sua existência. No entanto, quem não sonhou alguma vez e não se representou em sonhos as mesmas coisas que vivenciou em estado de vigília e até com maior intensidade, sendo enganado, enquanto dormia, por essas ilusões? Parece fácil saber quando estou acordado ou a dormir, e, assim, evitar o erro. “Mas se pensar nisso com atenção, lembro-me de que muitas vezes ilusões desta natureza me enganaram enquanto dormia; e ao acordar com esse pensamento, vejo muito claramente que não há indícios certos para distinguir o sono da vigília, a tal ponto que fico baralhado e é tão grande a confusão que quase me convenço de que ainda continuo a dormir.”2 Desta dificuldade, que consiste em distinguir com toda a evidência a vigília do sono, resulta o imperativo de duvidar da existência de um mundo exterior ao meu pensamento. Assim, de novo provisoriamente, Descartes considera falsa a existência desse mundo exterior ao pensamento. A Hipótese do génio maligno É possível, diz Descartes, duvidar de todas as percepções dos sentidos, porque, às vezes, nos enganam, e, para além disso, acontece que, em certas ocasiões, não conseguimos distinguir se o que se está a passar é um sonho ou uma realidade. Deste modo, a dúvida não abrange somente uma 2 in Meditações Metafísicas, primeira meditação, Descartes
  • 3. determinada sensação, mas toda a realidade exterior ao pensamento: pode acontecer que tudo não passe de um sonho. Apesar desta enorme dúvida, há algo que pode parecer uma certeza, pelo menos, temporária: nem em sonhos é possível duvidar das verdades matemáticas, segundo as quais 2+2=4, e um quadrado não pode ter mais de quatro lados. Por outras palavras, é possível duvidar de tudo o que se conhece a posteriori, mas não parece possível duvidar do que conhecemos a priori. Mesmo assim, Descartes ainda encontra razões para prosseguir na sua dúvida metódica: inventa a hipótese de um génio maligno, de um diabrete que andasse por aí a brincar connosco, fazendo-nos ter por certo o conhecimento a priori. Ninguém nos garante que não estejamos sob o domínio de um deus maligno, “astucioso, enganador e poderoso” que nos esteja a confundir no que diz respeito às noções matemáticas. “Assim, suporei que há, não um verdadeiro Deus - que é a fonte suprema de verdade -, mas um génio maligno, tão astucioso e enganador quanto poderoso, o qual recorre a todo o seu engenho para me enganar.” 3 A hipótese do génio maligno é uma metáfora que faz com que a dúvida incida também sobre a própria razão. Por outras palavras, quem é que me garante que, quando somo 2+2 ou faço operações semelhantes, cuja conclusão se manifesta evidente, eu estou na verdade? Teremos de considerar também provisoriamente falsas - ou, pelo menos, duvidosas - as matemáticas. Em Busca da Certeza Em resumo, a nossa natureza humana pode ser de tal forma que nos engane quando acreditamos saber que algo é verdadeiro ou falso. Também é possível, então, duvidar das certezas das matemáticas. No entanto, há algo que escapa ao poder do génio maligno e à própria possibilidade de a natureza humana funcionar mal: se o deus maligno me engana, então existo; se me engano a mim mesmo, também existo, pelo que, desta forma, Descartes vai superar a dúvida hiperbólica, esta dúvida que põe em causa, não só a toda a existência exterior ao nosso pensamento, mas a própria razão matemática. Isto é, a dúvida conduz à consciência de duvidar e, por conseguinte, de pensar, e assim vai assumir que “penso, então existo”. O núcleo central da filosofia cartesiana é o estudo do fundamento em que se baseia o conhecimento humano. Com Descartes, podemos dizer que surge a epistemologia, ou teoria do conhecimento, como tema central da filosofia moderna. Quais são as verdades que podemos conhecer com certeza? Esta é a questão central do Discurso do Método, e, sobretudo, da primeira das suas Meditações. Para ele, a dúvida, tal como a consciência da ignorância para Sócrates e Platão, é o primeiro passo para todas as certezas. Abandonando a filosofia escolástica medieval e aristotélica, por as considerar incapazes de dar resposta às exigências científicas da sua época, Descartes vai inspirar-se nas matemáticas para desenvolver um método que traga a certeza ao espírito humano em todas as questões. Considerará 3 in Meditações Metafísicas, primeira meditação, Descartes
  • 4. certas só aquelas ideias que se apresentem na nossa mente com clareza (sem dúvidas para a consciência) e com distinção (passadas pelo crivo da análise). Descartes pretendia fundar o edifício da filosofia em alicerces inamovíveis, com tanta solidez que conseguisse resistir à dúvida mais radical dos cépticos, e achava que alcançaria esta sua pretensão seguindo um método estritamente racional e dedutivo, semelhante ao que ele próprio usava na matemática (sobretudo, geometria) com tão bons resultados. Para isso, precisava de um ponto de partida incontroverso, um princípio indiscutível, certo, seguro: uma primeira verdade que ninguém pudesse pôr em causa. Essa primeira verdade reúne as seguintes condições: 1. É clara: corresponde à presença e manifestação de uma ideia na inteligência que a intui de modo inequívoco e manifesto. 2. É distinta: uma representação mental não deve conter nada que pertença a outras. Distinta é uma ideia, quando as suas partes ou componentes são diferentes umas das outras e conhecidas com clareza pela consciência. 3. É evidente: os primeiros princípios na ordem das razões devem ser conhecidos por si mesmos e exigem um perfeita inteligibilidade. As ideias simples (claras e distintas) são inteligíveis por si mesmas; as ideias compostas têm de ser decompostas nos seus elementos para se tornarem inteligíveis (análise). Proposta de Interpretação O “Penso, logo existo” (“cogito”) não é um enunciado, ou uma proposição lógica. Para isso, seria indispensável que a primeira verdade de Descartes fosse “tudo o que pensa existe” e que “penso” fosse a segunda; a partir destas duas verdades, retiraria a conclusão “existo”. Discutir a sua primeira verdade (“Penso, logo existo”) estritamente do ponto de vista lógico ou analítico pode ser ocioso, ou é mesmo uma pura perda de tempo. Na verdade, a filosofia de Descartes teve uma influência poderosa, para o bem e para o mal, em toda a filosofia e ciência modernas. Como é que isso foi possível, se Descartes foi um bom geómetra, mas não tão genial que a história da geometria fosse marcada por ele, foi um fraco teólogo (a sua teoria a respeito de Deus é realmente muito pobre), a sua ontologia (filosofia do ser) é medíocre… como é que foi, então, possível que Descartes tenha desempenhado um papel tão relevante na filosofia e ciência modernas? Permitam-me que recorra a uma metáfora de Deleuze que compara os filósofos aos pássaros (e também aos peixes). Os pássaros lançam gritos e entoam cantos. Um grito de amor de um pássaro não é o mesmo que um canto nupcial. Um pássaro pode lançar um grito de aviso de perigo: isso não
  • 5. é um canto. Mas é uma mensagem. É uma imagem do seu pensamento, a respeito da realidade. Não é o pensamento, é a imagem dele. Há, como nos pássaros, gritos filosóficos da razão, e gritos filosóficos da desrazão (se me é permitido dizer assim). O “penso, logo existo” é um grito da razão, não é um canto, um discurso filosófico. Por exemplo, um outro filósofo, Leibniz, lançou um grito da razão: “tudo tem uma razão”. Isto é um grito. Deste grito resultou um longo discurso, um canto harmonioso e até, por vezes muito belo do filósofo, o seu discurso. Este grito “tudo tem uma razão” ecoou por muito tempo, e outros filósofos, como Hegel, fizeram dele um canto ainda mais belo e talvez mais confuso, mais “tipo” jazz. Dostoiewski, um escritor russo, lançou um grito da desrazão que me impressionou (há muitos, muitos anos): “Não ficarei tranquilo, nem vos deixarei tranquilos, enquanto não me forem prestadas contas de todas as vítimas da História.” (mais ou menos isto) O que é que os distingue? • Nos gritos da razão, a frase começa por “ninguém pode negar”. Ninguém pode negar que se penso, então existo. Esta coisa não suporta uma análise lógica, mas quem é que pode negar, a não ser por uma questão puramente formal, que se “penso, então existo”? Ora digam lá. “tu pensas, mas não existes”. O “penso, logo existo” pode ser uma asneira, mas olhe que a sua de admitir que penso, mas não existo não lhe fica nada atrás. Isto é um grito da razão. O canto, o discurso filosófico vem depois. • Nos gritos da desrazão, a frase começa por “eu posso negar”, posso negar que 2+2=4. Posso negar que seja impossível prestar contas por todas as vítimas da História. Posso, porque quero. Os gritos da desrazão também podem dar, e dão, origem a belos cantos. Então, o que pretende Descartes com o seu grito? Muito simplesmente, propor uma viragem fundamental na filosofia do seu tempo. O homem era “um anima racional”, ideia esta que vinha desde Aristóteles (discípulo de Platão). O que determinava o homem era a sua racionalidade, e, em nome dela, a filosofia, mantendo-se discursiva e especulativa, afastava-se da ciência emergente no século XVI e XVII (Copérnico, Galileu…). Para Descartes, o homem continua racional, mas a sua racionalidade tem de ser a da matemática. O que é complicado ou complexo, tem de ser simplificado. Só assim se conseguem resolver as grandes equações. E, se simplificarmos todas as grandes equações do universo e da vida, aquilo que resolveremos, em cada passo, será muito fácil e de evidência garantida. O seu grito, de Descartes, foi ouvido porque era o que interessava ser ouvido naquele tempo. A ciência moderna haveria de se desenvolver até pontos difíceis de imaginar por Descartes, com base no seu grito e com algum desprezo pelo seu canto. O Homem vai ser capaz, através de procedimentos de simplificação dos problemas, de resolver todos os que se lhe apresentem. Era esta a crença de Descartes, foi esta a crença dos modernos.
  • 6. Só que não é bem assim, e agora Descartes parece muito distante e desatualizado. E está de facto, sobretudo, desatualizado. Mas o seu grito ainda ecoa, e ecoa de forma estridente naqueles que, por razões estritamente analíticas, o criticam ou desprezam. As Regras do Método Descartes tem intenção de encontrar uma certeza absoluta. Desconfia dos sentidos e da imaginação e recolhe-se na interioridade da consciência. Também desconfia dos longos raciocínios, onde, subrepticiamente, se pode introduzir algum erro. As suas regras são pensadas para evitar preconceitos, precipitações, falsas conceções que provêm da educação, da impaciência na investigação, etc. Descartes quer raciocínios curtos, simples, claros, concretos, intuitivos, em que se vá passando lentamente de cada ideia para a seguinte; na primeira parte do Discurso do Método afirma que “os que andam muito devagar podem chegar muito mais longe”. E isso é o que ele propõe. Segundo Descartes, que se inspira na matemática (que respeita estas regras), as regras podem e devem ser utilizadas em todos os tipos de investigação que pretendam ser rigorosos e aceder à certeza. As regras concretas do método, que Descartes aduz, são as seguintes, enunciadas quase de forma matemática: 1. “Não admitir nunca como verdadeira coisa alguma sem saber com evidência que o seja”. 2. “Dividir cada uma das dificuldades que vou examinar em tantas partes quantas seja possível e sejam requeridas para a sua melhor resolução”. 3. “Conduzir ordenadamente os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para ir subindo a pouco e pouco, por níveis, até ao conhecimento dos mais complexos”. 4. “Proceder sempre a enumerações tão completas e revisões tão gerais, que esteja sempre seguro de não ter omitido nada”. O Significado do “cogito” O cogito é o modelo por excelência da ideia clara e distinta, que se afirma com a máxima certeza, acima de toda a dúvida, pois não é possível duvidar do pensamento próprio nem da própria existência; se duvidar, isso demonstrará que existo, pois duvidar é pensar. “Pensar, logo existo” não é um entimema ou um silogismo incompleto, com uma premissa ou conclusão subentendida. Não é tão pouco uma inferência, isto é, uma operação mental que consiste num processo psicológico, segundo o qual acreditamos ter justificação para admitir uma conclusão,
  • 7. pelo facto de aceitar uma ou várias premissas. Não é, ainda que dê essa ilusão pela sua forma “penso, logo existo”. Não é sequer um raciocínio, nem supõe uma premissa maior (“tudo o que pensa existe”). Para que a existência seja uma consequência do pensamento não é necessário nenhum silogismo, pois essa consequência é-nos imposta por intuição, por evidência imediata (não mediata nem deduzida). É um facto irrefutável, uma experiência direta e primária, uma percepção imediata, intuitiva, evidente e simultânea do pensamento e da existência. Ao pensar, ou ao exercer o acto do pensamento, o sujeito percebe-se a si mesmo como existindo, como sendo, e percebe a sua própria existência, não como a conclusão de um raciocínio, mas, como diz Descartes, como uma simples inspecção do espírito. O cogito é a expressão da simples percepção de um facto de consciência imediato, primário, concreto e particular: a existência do eu que pensa. O “penso, logo existo” equivale a dizer eu sou pensado ou eu sou uma coisa que pensa, ou eu sou um espírito, uma alma, um entendimento. No entanto, a palavra pensamento tem em Descartes um sentido muito vasto, abarcando todo o fenómeno e toda a atividade da consciência. O cogito equivale a qualquer acção sentida, experimentada pelo sujeito. Não é, então, um raciocínio, nem uma ideia abstrata universal, mas um facto concreto e imediato da consciência, em que se percebe simultaneamente o pensamento e a existência, a atividade e o ser. Neste sentido, deixando de lado a acusação de se tratar de uma tautologia (eu penso=eu existo=eu sou uma coisa que pensa=eu tenho uma alma que é pensamento), é uma verdade absolutamente certa e indubitável. Deus, Garantia do Conhecimento Humano A perfeição de Deus, diz agora Descartes, permite saber que Deus não engana o homem. Por isso, podemos acreditar no testemunho que nos oferecem os nossos sentidos, no que diz respeito à existência da res extensa (a realidade exterior ao pensamento, como o nosso corpo e todo o mundo que nos rodeia). Isto não significa que os sentidos readquiram a importância que Descartes lhes tinha retirado, e muito menos que sejam o melhor caminho de acesso ao conhecimento do mundo. A forma como Descartes aborda esta problemática de Deus é muito pobre. Mas tem uma importância fundamental para a sua filosofia. Para Descartes, é imprescindível demonstrar, o mais cedo possível, de forma clara e rápida, a existência de Deus e os seus atributos essenciais, como forma de prosseguir as suas deduções filosóficas. Para além do mais, Descartes pretende que as suas deduções vão mais além da pura intuição do cogito, e da ideia clara e distinta da res extensa (do mundo exterior à consciência). Ora, justamente por se ter mantido recolhido na interioridade da sua alma, ou da sua consciência, por ter rompido a comunicação com o mundo exterior prescindindo de toda a experiência e informação que os seus sentidos pudessem proporcionar-lhe, por isso mesmo, precisa
  • 8. de uma garantia segura para dar o salto da sua ideia de extensão (ideia de um mundo exterior à consciência) para a realidade concreta do mundo extramental. Esta é a razão da sua insistência em buscar uma prova da existência de Deus, a qual, uma vez demonstrada, lhe oferecerá um novo critério de verdade, que se acrescenta e reforça o da evidência do pensamento, e serve para garantir o processo dedutivo dos seus raciocínios ou intuições sucessivas. Descartes põe assim a verdade de Deus ao serviço da sua dedução, cujo resultado será uma ciência física que ele gostaria que fosse absolutamente certa e segura. A Física moderna nasce, assim, de um acto de fé, enunciado inicialmente por Galileu, segundo o qual o mundo, criado por Deus, obedece a leis matemáticas, e o nosso entendimento tem a capacidade de as encontrar, porque, na sua forma mais pura, o pensamento é um pensamento matemático. Só que Descartes, ao procurar provas racionais da existência de Deus, e, pensando que as encontrou, criou também a ilusão de que a existência de Deus não era só uma questão de fé, mas sobretudo de razão. Este movimento do pensamento reforçou e deu força àquilo a que haveria de se chamar ciência moderna. Na realidade, Descartes mistura o seu racionalismo com o voluntarismo divino (base da sua pobre Teologia), que dificilmente se podem compaginar. Tudo, as essências e as verdades, depende da vontade de Deus. Por isso, procura poupar a sua certeza à arbitrariedade da vontade divina. Descartes refugia-se, então, na promoção da bondade de Deus. Um deus bom, que em todos os casos procura o melhor para o bem dos homens, não permitiria que nos enganássemos nas nossas deduções, e muito menos nos deixaria à mercê de um génio maligno que se divertisse a enganar-nos. As Provas da Existência de Deus É claro que Descartes se considerava cristão, embora seja duvidoso que alguma vez tivesse tido consciência das críticas à religião que viriam a ter origem na sua teoria. As “provas” da existência de Deus seguem três caminhos diferentes: 1. A ideia do perfeito (ou de um ser perfeito) (prova cosmológica)- a ideia de ser perfeito não pode provir de um ser imperfeito; por outro lado, nenhuma alma teria consciência da sua imperfeição nem teria alguma dúvida, se não tivesse essa ideia de perfeição. Essa ideia de perfeição só pode, então, ter origem num ser absolutamente perfeito (Deus) que a teria colocado na nossa alma. “Pois, como poderia eu saber que duvido e que desejo, isto é, que algo me falta e que não sou perfeito, se não tivesse em mim a ideia de um ser mais perfeito, por comparação com o qual tenho consciência da imperfeição da minha natureza? (…) Digo que a ideia desse ser sumamente perfeito e infinito é absolutamente verdadeira; pois, ainda que por acaso pudesse fazer de conta que um ser como esse não existe, todavia, não posso fingir que a sua ideia não representa nada de real, como disse antes da ideia de frio. (…) pelo contrário, sendo esta ideia muito clara e distinta e contendo mais realidade objetiva do que todas as outras, não há ideia alguma que seja, por si mesma, mais verdadeira…” 2. A ideia da imperfeição e da dependência do meu ser - esta prova parte da contingência do próprio homem como ser finito e limitado, que não possui em si mesmo a
  • 9. causa do seu ser. Deus é, por conseguinte, a causa do nosso ser (e não somente da ideia que tenho dele) 2.1. Parte da consciência da própria imperfeição (duvido, sou ignorante…) 2.2. Eu, todo o meu ser (não só a minha mente), sou contingente. E essa contingência não resulta só da minha origem (não fui eu que dei a mim mesmo o ser), mas também da impossibilidade de continuar mantendo-me no ser. 2.3. Mas, será que dependo de Deus, ou de um ser maior do que eu, mas inferior a Deus? Descartes recusa o recurso a uma cadeia de seres, que poderia ser infinita: impossibilidade do regresso ao infinito. Isto é, se eu sou um ser que pensa, quem me fez e me mantém no ser também deve ser um ser pensante. Ora bom, se esse ser não é causa de si, outro o terá feito. Mas a série de causas não pode ser infinita. 2.4. Por conseguinte, Deus existe e é Uno; temos dele uma ideia inata, precisamente porque foi ele quem nos criou. 3. A própria ideia de Deus (da sua essência) contém em si mesma a da sua existência (argumento ontológico) - Descartes desenvolve esta prova em quatro proposições: 3.1. Deus é um ser perfeito. 3.2. Um ser perfeito não pode ter a imperfeição de não existir, nem me pode enganar. 3.3. Tudo quanto há em nós vem de Deus; portanto, também as nossas ideias claras e distintas (porque o Ser perfeito é a causa universal). 3.4. As ideias claras e distintas são afirmações divinas na consciência humana. Todas as ideias inatas, claras e distintas, são necessariamente verdadeiras, pois estão garantidas pela veracidade de Deus. Em Resumo Em Descartes, a dúvida surge como um processo, como um método. 1. A dúvida em sentido restrito e o seu processo: 1.1. Os sentidos já nos enganaram alguma vez; nada garante que não nos enganem sempre. 1.2. Não sabemos com certeza como distinguir o estado de vigília do estado de sono. 1.3. Às vezes, enganamo-nos ao raciocinar. Existe portanto lugar para dúvidas a respeito da eficácia da razão.
  • 10. 1.4. O génio maligno: é possível que exista um génio maligno que nos engane, ou até que Deus tenha criado o homem de tal forma que se engane sempre que pensa algo, por exemplo, quando pensa que 2+2=4. 2. A tábua de salvação do cepticismo: o cogito. A proposição “eu penso, logo existo” aparece como evidente e indubitável de qualquer ponto de vista, porque mesmo que me esteja a enganar, serei sempre alguém que existe, uma consciência que se engana; logo, a existência do eu, da mente pensante (não de todo o homem; Descartes ainda não sabe como justificar o próprio corpo, e muito menos os dos outros) é um dado de que não posso duvidar. 3. Regresso ao mundo: a resolução da dúvida. Para “recuperar” o mundo que, num primeiro momento tinha “perdido”, Descartes recorrerá à demonstração da existência de um Deus bom. Este Deus criou-nos e deu-nos as faculdades necessárias para conhecer as coisas. Dito isto, podemos agora confiar nos nossos sentidos, assim como na nossa capacidade racional, sobretudo naquelas ideias, que se nos apresentem com clareza e distinção na nossa mente. Isto significa, para Descartes, que agora já podemos recusar os anteriores motivos de dúvida. Já não tem sentido falar do génio maligno, pois “é claro” que Deus existe e que é bom, e que nos criou com uma razão, capaz de conhecer com certeza, com clareza, distinção e evidência, as coisas, sobretudo as ideias na nossa consciência.