SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 112
Baixar para ler offline
Relatório Estágio
Mestrado em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário
Trabalho realizado sob a orientação do
Doutor Artur Manuel Sarmento Manso
Universidade do Minho
Instituto de Educação
Outubro de 2011
Domingos José Matos Sousa Faria
A Tradição Socrática na Sala de Aula
DECLARAÇÃO
Nome: Domingos José Matos Sousa Faria
Endereço electrónico: df@domingosfaria.net Telefone: 917169737
Número do Bilhete de Identidade: 13204268
Título do Relatório:
A Tradição Socrática na Sala de Aula
Orientador:
Doutor Artur Manuel Sarmento Manso
Ano de conclusão: 2011
Designação do Mestrado:
Mestrado em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário
É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO INTEGRAL DESTA RELATÓRIO APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO,
MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE.
Universidade do Minho, ___/___/______
Assinatura: ________________________________________________
iii
“E se eu disser que o maior bem que pode haver para um homem é,
todos os dias, discorrer sobre a excelência e sobre outros temas acerca
dos quais me ouvíeis dialogar, investigando-me a mim e aos outros. E se
eu vos disser que uma vida sem pensar não é digna de ser vivida por
um homem, ainda menos vos terei persuadido. É como digo, homens,
não sois fáceis de convencer!”
Platão, Apologia de Sócrates, 38a.
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço à orientadora cooperante do meu estágio, Maria Clara Gomes, pelas vivas
discussões críticas que tivemos, as quais me permitiram repensar melhor nas metodologias a
utilizar na sala de aula e na melhor forma de leccionar alguns dos conteúdos científicos. Estou
também muito grato com os professores de filosofia da Escola Secundária Alberto Sampaio,
onde realizei o meu estágio, pelo facto de me acolherem calorosamente, por me convidarem
para proferir algumas conferências na escola, e por me solicitarem a participar activamente
noutras actividades extracurriculares. Lembro com muita gratidão a turma em que leccionei
filosofia, a qual me deu um profundo gozo ensinar, nomeadamente ao incentivar os alunos a
pensar de forma crítica, criativa e autónoma.
Agradeço ao meu supervisor de estágio, Artur Manso, por toda a disponibilidade no
acompanhamento do meu estágio. Estou-lhe grato sobretudo pelas discussões que tivemos em
relação às minhas opções metafilosóficas e didácticas que me estimularam a justificar melhor as
posições e teses que eu defendo.
A Aires Almeida, João Carlos Silva, João Paulo Maia, Patrícia Fernandes, Rolando
Almeida, Tomás Magalhães Carneiro, entre outros, estou bastante grato pelos comentários e
críticas que fizeram às ideias que defendo neste texto. Agradeço a Desidério Murcho por me
indicar algumas das referências bibliográficas que examinei criticamente e que me ajudaram a
fundamentar ainda melhor as minhas ideias.
Estou imensamente reconhecido pelo grande apoio de Fátima e José Faria.
Agradeço, por fim, a Vera Ribeiro por todo o acompanhamento e presença.
v
RESUMO EM PORTUGUÊS
O presente trabalho intitulado A Tradição Socrática na Sala de Aula é o relatório de
estágio em Ensino da Filosofia no Ensino Secundário que decorreu no ano lectivo de 2010/2011
na Escola Secundária Alberto Sampaio – Braga, numa turma do 10º ano, onde se leccionou
ética, filosofia política e filosofia da religião. Nele se defende que a melhor forma de ensinar
filosofia no ensino secundário é praticar na sala de aula a tradição socrática, ou seja, a tradição
que estimula a compreensão, a discussão e o exame crítico entre os alunos dos problemas,
teorias, argumentos e conceitos da filosofia.
O relatório divide-se em quatro capítulos. No primeiro esclarecemos os problemas que
impulsionaram esta reflexão, o plano que se seguiu e o contexto onde se praticou a tradição
socrática. No segundo capítulo, reflectimos sobre os vícios mais recorrentes no ensino da
filosofia. No terceiro capítulo abordamos pormenorizadamente a herança, a natureza, a
relevância e os elementos da filosofia de tradição socrática. Finalmente, no quarto capítulo,
relatamos o que concretizamos na prática quanto ao método do ensino da filosofia aqui
defendido.
Para além dos capítulos centrais, o relatório contém, ainda, uma introdução, uma
conclusão, uma bibliografia e um apartado de anexos.
Palavras-Chave: Relatório de Estágio, Didáctica da Filosofia, Metodologia Socrática.
vi
RESUMO EM INGLÊS
The present paper, entitled The Socratic Tradition in the Classroom, is the report of the
internship in Teaching Philosophy in High School which took place in the academic year of
2010/2011 in the Alberto Sampaio High School - Braga, during the course of which ethics,
political philosophy and religion were taught. It is argued therein that the best way to teach
philosophy in secondary school is to practice the Socratic tradition within the classroom, which is
to say the tradition that stimulates the understanding, discussion and critical examination among
students of the problems, theories, arguments and concepts of philosophy.
The report is divided into four chapters. The first aims to clarify the problems that
triggered this reflection, the plan which followed and the context in which the Socratic tradition
was put into practice. In the second chapter, we reflected on the most recurrent vices in the
teaching of philosophy. In the third chapter, we address in detail the heritage, nature, relevance
and the elements in the philosophy of Socratic tradition. Finally, in the fourth chapter, we report
what we achieved in practice regarding the method for teaching philosophy defended herein.
Apart from the central chapters, the report contains, in addition, an introduction, a
bibliography and a supplement of annexes.
Keywords: Internship Report, Philosophy Didactics, Socratic Methodology.
vii
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS.................................................................................................IV
RESUMO EM PORTUGUÊS........................................................................................V
RESUMO EM INGLÊS ..............................................................................................VI
INTRODUÇÃO...........................................................................................................1
1. O PROBLEMA, O PLANO E O CONTEXTO..............................................................3
2. OS VÍCIOS NO ENSINO DA FILOSOFIA..................................................................9
2.1. OS DOIS EXTREMOS .......................................................................................................9
2.2. AS METODOLOGIAS SOFÍSTICAS..................................................................................16
3. A CONCEPÇÃO SOCRÁTICA DE ENSINO.............................................................29
3.1. A HERANÇA SOCRÁTICA ...............................................................................................29
3.2. A NATUREZA E RELEVÂNCIA DA FILOSOFIA DE TRADIÇÃO SOCRÁTICA..........................43
3.3. OS ELEMENTOS DA FILOSOFIA ....................................................................................53
4. A PRÁTICA DA TRADIÇÃO SOCRÁTICA ...............................................................60
4.1. A ESTRUTURA DAS AULAS ............................................................................................60
4.2. AVALIAÇÃO DA PRÁTICA...............................................................................................68
CONCLUSÃO ..........................................................................................................73
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................76
ANEXOS .................................................................................................................80
ANEXO 1 – ALGUNS RESULTADOS DA FICHA SÓCIO-ECONÓMICA DA TURMA.................81
ANEXO 2 – EXEMPLO DE UMA PLANIFICAÇÃO................................................................82
ANEXO 3 – EXEMPLO DE UM PLANO DE AULA................................................................84
ANEXO 4 – EXEMPLO DE UM MATERIAL PARA LECCIONAÇÃO ........................................86
ANEXO 5 – EXEMPLO DE UMA SÍNTESE TEXTUAL...........................................................90
ANEXO 6 – EXEMPLO DE UMA SÍNTESE ESQUEMÁTICA..................................................91
ANEXO 7 – EXEMPLO DE EXCERTO E GUIÃO DE LEITURA...............................................93
ANEXO 8 – EXEMPLO DE UMA FICHA FORMATIVA ..........................................................94
ANEXO 9 – EXEMPLO DE UMA FICHA DE AVALIAÇÃO QUALITATIVA ................................95
ANEXO 10 – QUESTIONÁRIO...........................................................................................96
ANEXO 11 – RESULTADOS DO QUESTIONÁRIO ...............................................................98
1
INTRODUÇÃO
A Tradição Socrática na Sala de Aula reflecte a metodologia, a didáctica e a prática que
considero adequadas na leccionação da filosofia no ensino secundário. Penso que a leccionação
da filosofia deve procurar fundamentalmente ensinar os alunos a pensar e a examinar
criticamente ideias, por isso o ensino da filosofia deve estar inserido na tradição encetada por
Sócrates, ou seja, na tradição de um constante exame crítico. Assim, as finalidades primordiais
deste texto são as seguintes: 1) Defender a tradição socrática no ensino da filosofia em contexto
de sala de aula, 2) refutar as principais metodologias e atitudes que desvirtuam um bom ensino
da filosofia, 3) relatar como se desenvolveu a minha experiência de leccionação ao procurar que
os alunos compreendam e discutam os problemas, teorias, argumentos e conceitos da filosofia,
num clima de liberdade e de pensamento crítico. Estas finalidades foram devidamente
aprofundadas ao longo de quatro capítulos.
No primeiro capítulo abordo o problema, o plano, e o contexto, tentando clarificar os
problemas principais, didácticos e metafilosóficos, que estimularam esta reflexão. Como
resposta aos problemas iniciais, esclareço a tese que defenderei ao longo de todo o texto:
Concretizar na sala de aula a tradição socrática, evidenciando que é uma tese corroborada pela
legislação em vigor e pelas orientações existentes sobre o ensino da filosofia. A seguir faço
referência ao plano que esbocei para orientar a minha acção, tanto na vertente investigativa
como na pedagógica, expondo os objectivos e as estratégias que adoptei. Por fim, apresento o
contexto em que se desenvolveu o plano: A escola, os seus documentos, a turma e os alunos.
No segundo capítulo apresento o que, em minha opinião, não deve ser o ensino da
filosofia, dividindo em duas categorias os vícios que podem desvirtuar a tradição socrática na
sala de aula. A primeira refere-se a dois extremos que se podem adoptar ao ensinar filosofia: Por
um lado, existe a concepção mecanicista de ensino, em que apenas interessa debitar e
reproduzir fielmente a matéria, originando perversões como o historicismo, o dogmatismo, e a
infalibilidade. Por outro lado, existe a concepção orgânica de ensino, em que se despreza a
exposição de conteúdos e se valoriza apenas a descoberta por parte do aluno, podendo o debate
sério e rigoroso de ideias degenerar em mero senso comum, pelo facto de se desconhecer os
instrumentos básicos do filosofar e as informações teóricas relevantes. A segunda categoria de
vícios refere-se às metodologias sofísticas que frequentemente acabam por invadir e corromper o
2
ensino da filosofia, em que denuncio as estratégias de manipulação mental, as atitudes de
relativismo cognitivo, de subjectivismo e de postura estética ou decorativa.
No terceiro capítulo exponho o que entendo dever ser o ensino da filosofia. Num
primeiro ponto recorro a uma das principais fontes da prática filosófica, Sócrates, o qual fez da
filosofia uma actividade crítica, reforçando ser pertinente inserir os alunos na herança socrática,
assumindo as atitudes, entre outras, de douta ignorância, de questionamento e de exame crítico.
Para analisar estas atitudes, exploro a estrutura dos diálogos socráticos. Num segundo ponto
procuro elucidar em particular a actividade de exame crítico socrático, clarificando o conceito de
―crítica‖ e as suas aplicações à filosofia e ao seu ensino, referindo a relevância que a filosofia
como actividade crítica pode ter na vida do ser humano e da sociedade. No último ponto
apresento os elementos constituintes da filosofia de tradição socrática, ou seja, os problemas, as
teorias, os argumentos e os conceitos, analisando-se também a validade, solidez e cogência
argumentativa. O ensino da filosofia deve ser sobretudo a leccionação crítica destes seus
elementos constituintes.
No quarto capítulo descrevo o modo como concretizei na sala de aula a tradição
socrática, evitando os vícios objectados do segundo capítulo e trazendo para a prática os
elementos defendidos no terceiro capítulo. Numa primeira parte explico detalhadamente a
estrutura e os momentos principais da minha leccionação da filosofia. Para além disso, realizo
pequenos excursos sobre as regras que se devem assumir na sala de aula para que as
discussões críticas decorram proficuamente, sobre os recursos pedagógicos e materiais
didácticos utilizados na leccionação, e sobre a avaliação dos alunos. Na segunda parte procedo
a uma avaliação global do plano do relatório. Para isso, foi importante o recurso a estratégias de
observação e de inquérito para sondar os dados para a avaliação que evidenciaram a valorização
por parte dos alunos desta metodologia socrática na sala de aula.
Na conclusão apresento uma síntese da minha tese e confronto-a com uma das
principais objecções, realizando, ainda, uma súmula das principais ideias que foram
apresentadas ao longo dos capítulos e a discussão de uma das principais limitações para a
implantação apropriada da tradição socrática na sala de aula.
Para ser coerente com a tradição socrática o meu desejo é que estas ideias não sejam
acatadas passiva e acriticamente, mas que sejam discutas, analisadas e examinadas
criticamente pelos leitores.
3
1. O PROBLEMA, O PLANO E O CONTEXTO
A reflexão filosófica começa sempre por problemas que se tentam resolver. Na reflexão
que agora enceto também existe um problema central para o qual pretendo encontrar uma
solução razoável. O problema pode ser formulado da seguinte forma:
Como se deve leccionar filosofia no ensino secundário?
Este é um problema didáctico ou metodológico que se prende fundamentalmente com o
modo, métodos, técnicas e práticas de ensinar filosofia. Posso subdividir este problema em
muitas outras questões, como por exemplo: Quais as melhores estratégias e práticas de ensino
em filosofia em contexto escolar? Que representações têm os alunos sobre as diversas
estratégias de ensino da filosofia? Porém, subjacente a todas estas questões didácticas encontra-
se o seguinte problema metafilosófico:
O que é a filosofia?
A metafilosofia é uma disciplina filosófica que estuda a própria filosofia e a sua natureza;
ou seja, é uma filosofia da filosofia. Mas, por que razão é importante dedicar-me a investigar
qual é a natureza da filosofia? Considero que a investigação metafilosófica é muito pertinente,
pois sobre uma determinada concepção da filosofia forma-se consequentemente uma
determinada concepção didáctica. Ou seja, existem consequências directas entre o modo de
entender a natureza da filosofia e o modo de a ensinar. Por exemplo, se eu entender a filosofia
como um corpo de conhecimentos absolutamente consensuais e substanciais, então o modo de
ensinar filosofia será quase só a transmissão fiel destes conteúdos. No entanto, se eu entender a
filosofia não como um conjunto de conteúdos dogmáticos ou infalíveis, mas essencialmente
como uma actividade crítica, então o modo de ensinar filosofia alterar-se-á, ficando agora
assente no desenvolvimento de competências de pensamento e exame crítico por parte dos
alunos. Portanto, se quero reflectir de modo fundamentado na questão didáctica inicial, não
poderei menosprezar de forma alguma a questão metafilosófica.
Mas qual é a relevância de tratar estes problemas didácticos e metafilosóficos?
Considero que existem duas boas razões para trabalhar seriamente estes problemas. Uma
4
primeira razão, talvez mais pessoal, é a seguinte: Como vou leccionar filosofia no ensino
secundário é conveniente analisar, reflectir e saber quais são as melhores estratégias de ensino
para esta disciplina. Porém, julgo que estes não são problemas que apenas me interessam a
mim, mas a um público bastante alargado. Aliás, penso que reflectir sobre estes problemas
iniciais é incontornável para qualquer professor que pretenda leccionar bem filosofia ou qualquer
outra área curricular. Face a determinados conteúdos que o professor tenha de leccionar tem
sempre de se questionar, mesmo que não seja explicitamente, de que forma quer ensinar a
matéria. Pode achar pertinente que os alunos apenas decorem aquilo que o professor está a
transmitir, ou pode querer que os alunos descubram e aprendam por si mesmos as matérias, ou
pode ainda pensar que é mais plausível uma posição intermédia, entre outras possibilidades.
Portanto, estas são questões basilares sobre as quais os professores não podem escapar, por
mais que o desejem.
Uma segunda razão, talvez mais geral, é a seguinte: Não reflectir seriamente sobre estes
problemas didácticos pode conduzir à aceitação acrítica de uma qualquer metodologia para
ensinar filosofia ou qualquer outra disciplina. Desta forma pode-se estar sujeito a seguir
metodologias que acabam por ser perversas para os alunos, prejudicando-os seriamente na
aprendizagem e no desenvolvimento como cidadãos. (Em todo o capítulo 2 denuncio algumas
das principais metodologias do ensino da filosofia que me parecem nocivas e prejudiciais).
Assim, estes problemas iniciais aparecem-me como imperativos sobre os quais vale a pena
reflectir.
Penso que é pertinente clarificar desde já qual é a minha posição pessoal em relação
aos problemas iniciais. De uma forma sintética, posso esclarecer que irei defender a seguinte
tese: Como a filosofia é fundamentalmente uma actividade crítica, então o seu ensino deve
estimular os alunos não apenas a compreender os problemas e as ideias dos filósofos, mas
sobretudo a discutir e a examinar criticamente esses problemas e ideias. Portanto, defenderei
uma metodologia activa, em que se coloca os alunos a questionar, a pensar sobre problemas, a
procurar razões, a apontar objecções, a analisar argumentos, a examinar criticamente a
plausibilidade das teorias, a discutir e a fundamentar ideias. A esta tese chamo ―tradição
socrática na sala de aula‖, tal como o título o indica, pois é uma metodologia e uma atitude
didáctica que se aproxima muito daquilo que Sócrates nos habitou a fazer há cerca de dois mil e
quinhentos anos, ou seja, a examinar criticamente ideias. Desenvolverei esta tese de forma
pormenorizada ao longo dos próximos capítulos.
5
Para já é importante referir que esta tese não contradiz a legislação educativa em vigor,
indo mesmo ao encontro daquilo que advoga a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986) nos
seus princípios gerais e organizativos. A este propósito vale a pena citar o ponto 5 do artigo 2º,
que refere: ―A educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista,
respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando
cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e
de se empenharem na sua transformação progressiva‖. Portanto, constata-se na Lei de Bases o
apelo para a formação de cidadãos que sejam capazes de pensar por si de forma crítica e
criativa e que sejam capazes de intervir de forma activa e profícua na sociedade. Fica aqui então
o desafio para a formação de pessoas autónomas, interventivas, críticas e com uma cultura mais
alargada. Considero que a filosofia tem aqui um enorme papel no currículo, quanto à formação
geral, exactamente pelo papel que tem e que deverá continuar a ter, na promoção do
pensamento e exame crítico, bem como no concomitante incentivo de um espírito de abertura e
diálogo nos alunos.
Ora, se o estímulo do pensamento crítico nos alunos é bastante enriquecedor para a
formação dos cidadãos e da sociedade em geral, então penso que não se pode perder a
oportunidade de leccionar a filosofia de uma forma crítica, aberta e dialogante. Pelo contrário, o
silenciamento deste espírito crítico, coagindo-se as pessoas a atitudes de dogmatismo ou
endoutrinamento, costuma ser a raiz de muitos males pessoais e sociais. A propósito destas
ideias, Koïchiro Matsuura, director-geral da UNESCO entre 1999 e 2009, refere de forma
pertinente:
―¿Qué puede ser la enseñanza de la filosofía, sino la de la libertad y de la razón crítica? En efecto, la
filosofía implica el ejercicio de la libertad gracias a la reflexión. Se trata, por ende, de juzgar sobre la base
de la razón y no de expresar meras opiniones, no solo de saber sino también de comprender el sentido y
los principios del saber, de actuar para desarrollar el sentido crítico, baluarte por excelencia contra toda
forma de pasión doctrinaria‖ (UNESCO 2007: ix).
De facto, considero que é bastante plausível esta ideia da filosofia como uma escola da
liberdade e da razão crítica e, consequentemente, o seu ensino deve ser realizado sobretudo de
uma forma crítica, livre e dialógica. O programa oficial de filosofia para o ensino secundário
6
corrobora igualmente esta minha tese, apesar das suas evidentes limitações1
, quando realça nos
seus objectivos gerais aspectos como: Promover ―um pensamento informado, metódico e
crítico‖; ―desenvolver um pensamento autónomo e emancipado‖; ―analisar a problemática sobre
a qual um texto toma posição, identificando o tema/problema‖; ―analisar a estrutura lógico-
argumentativa de um texto, pesquisando os argumentos, dando conta do percurso
argumentativo, explorando possíveis objecções e refutações‖; ―assumir posição pessoal
relativamente às teses e argumentos em confronto‖, entre outros (Almeida 2001: 9-10).
Portanto, fica claro que a tese que adopto como resposta aos problemas iniciais é de certa
forma aceite tanto pela Lei de Bases do Sistema Educativo e pelas orientações da UNESCO, bem
como pelo programa oficial de filosofia. No entanto, com isto ainda não se prova que esta tese é
a mais plausível; para já só salientei que não existe contradição entre a minha tese e a legislação
ou outros documentos orientadores do ensino da filosofia, como também é o caso do documento
Orientações para a Leccionação do Programa de Filosofia (2005).
Para mostrar a razoabilidade desta tese e para responder às questões iniciais de uma
forma ponderada esbocei um plano que contempla os seguintes objectivos: 1) Reflectir sobre as
melhores estratégias didácticas e metodológicas para o ensino da filosofia; 2) Proceder a uma
reflexão metafilosófica; 3) Avaliar criticamente a utilização da estratégia e metodologia socrática
na leccionação da filosofia em contexto de sala de aula; 4) Analisar as representações dos
alunos sobre as estratégias a utilizar na aula de filosofia; 5) Aplicar as melhores estratégias
didácticas na leccionação da ética, da filosofia política e da filosofia da religião.
Para cumprir os objectivos deste plano adoptei, entre outras, as seguintes estratégias: A)
Reflexão e exame crítico da literatura referente às estratégias de ensino da filosofia; B) Aplicação
das melhores estratégias de ensino de filosofia à leccionação da ética, da filosofia política e da
filosofia da religião (a concretizar durante o meu período de estágio); C) Averiguação e avaliação
por observação – principalmente observando aulas para ver se os alunos reagem melhor à
metodologia socrática ou a métodos mais expositivos e informativos – e por inquérito (anexo 10)
– questionando os momentos da aula que os alunos mais gostam, os métodos e estratégias que
preferem e que os ajudam na aprendizagem e prática da filosofia.
1
Desidério Murcho (2003), entre outros, apontam alguns defeitos no actual programa de filosofia, como o facto de privilegiar demasiado a
exegese e o comentário de textos; ficar muito agarrado aos contextos histórico-culturais secundarizando-se assim a fundamental discussão de
ideias; tratar por vezes de temas que não são apropriadamente filosóficos, mas antes de âmbito sociológico ou antropológico; misturar e
confundir disciplinas filosóficas, até sendo alterada as designações tradicionais; evitar problemas, teorias e argumentos centrais da filosofia; ser
demasiado vago e ambíguo; entre muitas outras limitações mais específicas relacionadas com a natureza da filosofia, do seu ensino e avaliação.
7
Como se pode constatar no meu plano, existe por um lado a vertente de investigação e
por outro a vertente pedagógica. Ou seja, no que refere à vertente de investigação procurei
examinar como se deve e como não se deve ensinar filosofia no ensino secundário, o que
corresponde sobretudo aos capítulos 2 e 3 deste relatório. No que se refere à vertente
pedagógica procurei aplicar na leccionação em contexto de sala de aula o que reflecti sobre o
ensino da filosofia, como se poderá ver no capítulo 4. Estas duas vertentes estão intimamente
relacionadas, uma vez que o resultado a que chegar na vertente investigativa irá ter
consequências directas na vertente pedagógica, ou seja, na forma como lecciono a filosofia.
A vertente pedagógica foi desenvolvida ao longo do meu estágio na Escola Secundária
Alberto Sampaio. Esta escola encontra-se na freguesia de S. Lázaro na cidade de Braga e
adoptou o nome de Alberto Sampaio, minhoto pertencente à geração de 70 e à ―escola
coimbrã‖, destacando-se nas áreas da história e etnografia. A Escola Secundária Alberto
Sampaio capta alunos de diversos estratos sociais, sobretudo da zona centro e sul da cidade de
Braga. Para cumprir a sua missão educativa oferece um vasto elenco de apoios aos alunos,
como a biblioteca, o centro de recursos, as salas de estudo, o acompanhamento dos alunos e o
apoio pedagógico acrescido, as palestras sobre os mais diversos assuntos, as actividades de
enriquecimento curricular (entre as quais se podem salientar o desporto escolar, as oficinas, os
clubes, os ateliers, a revista Defacto), entre outros. É uma escola bem equipada, com quadros
interactivos, computadores, projectores, auditórios, tendo sido completamente renovada. Tem,
portanto, condições para ser uma escola de excelência. Esta excelência está bem patente no
relatório de avaliação externa (Fernandes 2007), em que recebeu ―muito bom‖ em todos os
âmbitos: Resultados escolares, prestação do serviço educativo, organização e gestão escolar,
liderança, capacidade de auto-regulação e melhoria da escola.
Dos objectivos gerais do Projecto Educativo (2008: 15) da Escola Secundária Alberto
Sampaio evidencio dois: 1) ―Promover uma cultura de liberdade, participação, reflexão e
avaliação‖; 2) ―Criar condições que permitam a consolidação e aprofundamento da autonomia
pessoal conducente a uma realização individual e socialmente gratificante‖. Estes objectivos
estão igualmente consagrados nos valores fundamentais do Regulamento Interno (2010) da
Escola Secundária Alberto Sampaio, nomeadamente nos pontos 3 e 4 do 2º artigo. São também
estes aspectos que procurei cultivar na escola e na sala de aula ao longo da leccionação.
Quero ainda referir que o manual de filosofia adoptado por esta escola ajuda de facto na
promoção de uma cultura de liberdade, autonomia e de reflexão crítica patentes tanto no
8
Projecto Educativo, como no Regulamento Interno desta escola. Considero que A Arte de Pensar
(2010) é um dos manuais existentes que mais estimula a uma discussão livre e crítica de ideias,
fomentando nos alunos a adopção de posições pessoais autónomas e cuidadosamente
fundamentadas.
A turma em que leccionei, e em que apliquei as estratégias didácticas que defendo ao
longo dos próximos capítulos, foi o 10º E, constituída por 27 alunos, sendo 17 do sexo feminino
e 10 do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 14 e os 17 anos, mas a maioria
ronda os 15 anos. Procurei atender às peculiaridades de cada aluno, às suas atitudes e
dificuldades, de modo a ajudá-los numa melhor aprendizagem da filosofia; a este propósito a
ficha sócio-económica da turma (anexo 1) teve também bastante utilidade para começar a
analisar o perfil da turma. Como se pode ver, são alunos adolescentes, muitas vezes demasiado
formatados (ou endoutrinados) pelos pais, pela escola e pela sociedade2
, que têm muito a
ganhar com um ensino da filosofia que seja crítico e que os ajude a reflectir sobre a realidade, a
examinar as diferentes mundividências, a procurar boas razões para defenderem as suas
posições, a saber argumentar; em suma, defendo um ensino da filosofia que ajuda na formação
de cidadãos críticos, livres, autónomos.
Chegou, então, o momento de começar a reflectir criticamente sobre o assunto do
relatório: O que se entende por tradição socrática na sala de aula?
2
A propósito desde endoutrinamento e do antídoto da filosofia a este endoutrinamento, é pertinente sublinhar o que uma aluna me disse no final
do ano lectivo: ―Acho que desde pequenos os nossos pais nos «obrigam» a seguir uma religião sem termos opção de escolha, e muitas
perguntas que fazemos eles não nos conseguem responder, não nos conseguem dar razões porque se calhar nem eles as têm, e com a filosofia
da religião pensamos melhor nas nossas crenças, nas nossas perguntas sem resposta‖.
9
2. OS VÍCIOS NO ENSINO DA FILOSOFIA
Começarei por reflectir sobre aquilo que expressamente não faz parte da tradição
filosófica milenar iniciada por Sócrates e que pode perverter seriamente um bom ensino da
filosofia. Neste capítulo vou denunciar alguns vícios no ensino da filosofia como a concepção
mecanicista do ensino, a perspectiva orgânica, as metodologias sofísticas antigas e pós-
modernas de manipulação mental, de relativismo, de subjectivismo e de atitude estética ou
decorativa, entre outros.
2.1. Os dois extremos
O ensino da filosofia pode cair em dois extremos. Seguindo a terminologia de T. W.
Moore (1982), num dos extremos está a ―concepção mecanicista‖ de ensino, em que tudo o
que interessa é debitar conteúdos; no outro extremo, está a ―concepção orgânica‖, em que se
despreza a componente expositiva do professor, sendo os alunos chamados a construírem por
eles mesmos o conhecimento. Considero que cada uma destas concepções de ensino, se
funcionarem isoladamente, podem conduzir a muitas perversões no ensino da filosofia.
A concepção mecanicista de ensino emerge a partir da perspectiva antropológica do ser
humano como um mecanismo, ou mais especificamente como um ―sistema de inputs e
outputs‖, em que o professor pode formatar e modelar completamente o aluno. Deste modo, o
professor, que é a autoridade e que possui o conhecimento, faz a exposição da matéria e o
aluno limita-se a assimilar e a repetir. A relação pedagógica aqui existente é unilateral: O
professor é um agente activo que transmite determinadas unidades de informação e o aluno é
um receptáculo passivo que meramente guarda e repete essa informação. Assim, o aluno
funciona de forma análoga a um computador: O professor insere os inputs de informação que
são guardados no disco rígido (cérebro) do aluno, e mais tarde (por exemplo nos testes) o
professor pede ao aluno para fazer os outputs das informações, ou seja, imprimir o que estava
guardado em arquivo.
Esta perspectiva mecanicista no ensino da filosofia até pode ser considerada por muitos
como algo vantajoso; pois, pensa-se que os professores têm um repositório completo de
conteúdos que pode ser exposto aos alunos e estes últimos obtêm a aprovação na disciplina ao
10
reproduzirem acrítica e fielmente esses conteúdos. Concebe-se, assim, a filosofia como tendo
um corpo de resultados amplamente consensuais que podem ser transmitidos tal como na
biologia ou na física (esquecendo-se aliás que nas fronteiras destas disciplinas muitas questões
estão em discussão, e até muito mais na filosofia em que a maioria dos problemas continuam
em aberto e os resultados consensuais são pouquíssimos)3
.
No entanto, será ainda filosofia a transmissão mecânica de conteúdos? Penso que esta
concepção de ensino é contrária à atitude filosófica, podendo mesmo constituir um impedimento
para a filosofia de tradição socrática. Entre outras perversões, enumero brevemente os
problemas que a concepção mecanicista pode trazer para o ensino da filosofia: O historicismo, o
dogmatismo, e uma suposta infalibilidade.
Com o historicismo reduz-se a filosofia apenas à sua história; e em vez de se ensinar
filosofia, ensina-se somente história da filosofia ou história das ideias. Assim, em vez de
estimular o exame crítico das ideias dos filósofos, o professor limita-se a ficar pelas questões
hermenêuticas e pelos contextos históricos. Nesta perspectiva os alunos não são convidados a
analisar a plausibilidade das teorias e argumentos que os filósofos ao longo da história
avançaram, mas apenas são chamados a coleccionar e a reproduzir acriticamente uma história
de ideias para os testes ou trabalhos. Por exemplo, seguindo o historicismo e a estratégia
mecanicista de ensino, os alunos não são estimulados para querer saber se o que Stuart Mill ou
Kant dizem relativamente à fundamentação da moral é plausível ou não; tudo o que se pede aos
alunos é para assimilarem o que o professor expõe destes filósofos para depois debitarem de
forma exacta nas fichas de avaliação.
Para além desta situação, o historicismo e o mecanicismo podem fomentar algo mais
grave como, por exemplo, alunos que repetem o que lêem e ouvem, mas que não compreendem
e pensam sobre o que estão a decorar e a repetir. Deste modo, a escola demite-se de formar
cidadãos autónomos e com pensamento crítico para começar a lançar para a sociedade
papagaios ou operadores de símbolos do quarto chinês de Searle4
. Mas como é que ao repetir
ideias feitas e ao evitar a discussão crítica de ideias se pode formar cidadãos e profissionais
solidamente preparados para resolverem os problemas reais da sociedade?!
3
Pelo facto de se afirmar que a maioria dos problemas da filosofia está em aberto e que os resultados consensuais são escassos não se está a
advogar necessariamente um elogio ao questionamento sem rumo desprezando-se os resultados. Pelo contrário, o que se pretende é saber se
uma determinada teoria ou argumento é consensual e substancialmente plausível ou não, se por exemplo Deus existe ou não, e para isso
―tentamos e voltamos a tentar e voltamos a tentar‖ como costuma argumentar Desidério Murcho (2008).
4
O quarto chinês é uma experiência mental apresentada por John Searle (1980) para criticar a inteligência artificial forte, argumentando a
impossibilidade de estados mentais genuínos nos computadores adequadamente programados para tal efeito. Para isso, o autor imagina uma
pessoa fechada dentro de um quarto que formal e sintacticamente combina bem símbolos chineses (ao seguir determinadas regras) mas que
não percebe nem fala realmente chinês. De forma análoga, penso que podemos ter estudantes que debitem bem nos testes e trabalhos, mas
que não compreendem nem fazem minimamente filosofia.
11
O dogmatismo é outro problema do ensino mecanicista. Neste tipo de ensino o aluno
não pode colocar coisa alguma em causa; pois, tudo o que tem de fazer é reproduzir fielmente.
No entanto, isto leva a considerar a informação transmitida como sagrada e quem se atrever a
colocar em causa algo ou até mesmo a ser criativo com essa informação é imediatamente um
blasfemo sendo excomungado (ou reprovado). Ora, isto leva a uma concepção do ensino da
filosofia como sendo uma espécie de propaganda ou catequese, sem liberdade de pensamento,
em que os discípulos têm que acatar passiva e acriticamente tudo o que lhes dizem os mestres
―iluminados‖. Acresce ainda que a atitude dogmática de ensino contribui para formar pessoas
cegas à discussão racional e adversas ao exame crítico das ideias, principalmente das suas
crenças5
e opiniões mais queridas. Parece, então, que o dogmatismo pode conduzir à formação
de cidadãos fundamentalistas, intolerantes, incapazes de dialogar com os seus pares e de
avaliar ideias para a construção de uma melhor sociedade. Mas, porventura não será um
aviltamento toda esta atitude de enfiar informação no cérebro dos alunos sem lhes dar qualquer
oportunidade para analisar, avaliar, questionar, pensar criticamente?!
Em concomitância com a atitude dogmática pode surgir um outro vício: A pretensa
infalibilidade. Esta ideia sugere que aquilo que os professores transmitem e aquilo que os
filósofos defendem é absolutamente certo e imune de erro. Assim, será um sacrilégio os
estudantes questionarem e colocarem em causa as teorias e argumentos de Kant ou de outro
filósofo. Pensa-se, por exemplo, que Kant demonstrou de uma vez por todas que não podemos
provar que Deus existe nem que Deus não existe, como se estivéssemos a falar de uma verdade
indisputável e definitivamente provada. Mas, será a teoria de Kant mais plausível do que as
teorias de muitos outros filósofos que ao longo da história (e ainda hoje) argumentam contra e a
favor da existência de Deus? Com isto parece-se esquecer que ―uma verdade banal acerca dos
seres humanos é que erram: enganam-se e iludem-se‖ (Murcho 2011: 25). Ou seja, olvida-se as
limitações sempre inerentes ao ser humano e transmite-se a infeliz ideia que os filósofos e as
pessoas são deuses com omnisciência e, portanto, que não podem errar. No entanto, pode-se
constatar que esta atitude arrogante levou a muitas atrocidades ao longo da história: Pense-se,
por exemplo, nas cruzadas e inquisições católicas durante a idade média, ou nas ditaduras nazis
e fascistas do século XX, ou até nas discriminações aleatórias dos negros e das mulheres. E tudo
isto em nome da infalibilidade.
5
Ao falar de crença não estou a referir-me às crenças religiosas ou à fé, mas sim à crença num sentido mais lato. Ou seja, uma crença é uma
qualquer representação da realidade, que um sujeito cognitivo faz, passível de ser verdadeira ou falsa. Por exemplo, dizer que existe um mundo
exterior à nossa mente é uma crença, que é susceptível de ser verdadeira ou falsa, ou de estar bem justificada ou não.
12
Porém, considero que a filosofia não tem nada a ver com historicismos, dogmatismos ou
infalibilidades e o seu ensino não pode cair nestes vícios. A filosofia não pode cair no vício do
historicismo, pois a filosofia não é uma mera colecção de ideias que se debitam passiva e
acriticamente. A filosofia não pode cair no vício do dogmatismo, pois a filosofia (de tradição
socrática) procura estimular as pessoas a avaliar criticamente e sem receio as suas crenças,
bem como analisa outras perspectivas ou mundividências diferentes das suas para responderem
aos grandes problemas filosóficos. Na filosofia não deve haver medo dos argumentos opostos ou
de outras visões de mundo, nem da discussão livre e rigorosa de ideias, pois a finalidade é uma
maior aproximação da verdade. E a filosofia não pode cair no vício da infalibilidade, uma vez que
os seres humanos erram e são limitados, e por isso mesmo é necessário reavaliar
constantemente as nossas ideias e as da sociedade em geral.
Será, então, a concepção mecanicista plausível para o ensino da filosofia? Penso que
não; pois, parte de uma concepção antropológica errada, isto é, o ser humano entendido como
uma máquina que se limita a receber e debitar mecanicamente a informação de uma forma
totalmente passiva, acrítica, e ausente de criatividade. Para além disso podem estar associados
alguns vícios que já argumentei não serem de todo os mais adequados para um bom ensino da
filosofia. Considero que ser humano não é ser uma mera engrenagem ou artefacto, mas sim um
agente activo, autónomo, criativo, crítico, dialógico... Será, assim, mais adequada para o ser
humano a concepção orgânica de ensino?
A concepção orgânica de ensino parte da perspectiva do humano como um organismo
que se desenvolve por si ao estar inserido num ambiente adequado. É o oposto da concepção
mecanicista, pois aqui já não há uma ênfase centrada na transmissão de informação, mas sim
na descoberta. Aliás, é desprezada a componente expositiva dos conteúdos, para se valorizar
sobretudo o trabalho prático do aluno e a sua construção do conhecimento. A relação
pedagógica também se altera substancialmente: Deixamos de ter o professor autoritário numa
relação unilateral com os alunos, para termos um professor que se dilui nas funções de colega
supervisor, acompanhando as actividades dos alunos e ajudando quando para isso for solicitado.
Nesta concepção orgânica de ensino é importante envolver o aluno num ambiente
propício para seu próprio desenvolvimento, com actividades que facilitem de um modo
autónomo a aquisição e criação do conhecimento. Para a concretização desta metodologia de
ensino o professor pode, por exemplo, propor trabalhos de grupo colaborativos em que os alunos
são estimulados livremente a responder a um determinado problema ou a resolver uma
13
determinada tarefa, por tentativa-erro, fazendo desta forma uma descoberta e aprendizagem
mútua. Constata-se claramente que aqui são os alunos que fazem o seu próprio percurso de
aprendizagem, não sendo coagidos pelo professor, deixando de ser receptáculos ou máquinas
repetidoras de um corpo de conhecimento totalmente delimitado.
Pode considerar-se que esta perspectiva orgânica é vantajosa; pois, parece que colocar
os alunos por si mesmos a descobrirem e a criarem as suas aprendizagens é algo que os motiva
e envolve. Os alunos estão agora dentro do processo de ensino e são convidados livremente a
fazerem o seu próprio caminho. Aliás, muitas vezes esta é a única concepção de ensino que
parece funcionar: Veja-se, por exemplo, a aprendizagem prática de andar de bicicleta onde, por
mais exposição mecanicista teórica que exista, o aluno só aprenderá a andar bicicleta treinando
e descobrindo por si mesmo, por tentativa-erro. Para além disso, em filosofia esta perspectiva
pode encontrar consideráveis vantagens: Os alunos são estimulados a responder directamente a
um determinado problema filosófico e a avaliar colaborativamente com os restantes membros da
turma a plausibilidade das suas próprias respostas. De facto, parece evidente o factor activo,
autónomo, crítico e criativo, que a concepção organicista de ensino promove. Mas será a
concepção organicista, se a concebermos como modelo único e suficiente de educação, a
estratégia mais adequada para um bom ensino da filosofia?
Penso também que a concepção orgânica de ensino da filosofia enfrenta alguns
problemas. Uma das principais críticas é a seguinte: A perspectiva orgânica em filosofia pode
constituir uma boa estratégia de colocar os alunos a pensar crítica e activamente sobre um
determinado problema; no entanto, os alunos encetam este processo sem quaisquer referências
e ignoram as melhores respostas e teorias que se conceberam ao longo da história, como se
começasse tudo a partir do zero. Ora, ao prescindir-se por completo dos aspectos expositivos do
ensino, ignorando-se por conseguinte os instrumentos básicos de fazer filosofia (como saber
lógica formal e informal, saber negar proposições ou saber avaliar a cogência argumentativa,
entre outros) e ao ignorar-se algumas das melhores teorias filosóficas que se construíram ao
longo da história, o debate de ideias pode cair numa mera conversa de café superficial e
desinteressante com muitos erros e confusões básicas. Assim, não será que estaremos a baixar
a qualidade das discussões em filosofia pelo facto da concepção orgânica de ensino impedir a
existência de qualquer exposição de conteúdos que podem enriquecer o debate de ideias?
Desidério Murcho parece responder a esta questão na seguinte passagem:
14
―Mesmo que em filosofia não tenhamos o género de resultados que temos na ciência, temos outro tipo de
resultados: alternativas teóricas sofisticadas cuidadosamente pensadas, argumentos rigorosamente
explorados, distinções e análises clarificadoras. Se ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer
filosofia outra vez como os primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os passos – o que é desavisado
porque podemos fazer melhor do que eles fizeram se partirmos das suas investigações‖ (Murcho 2010:
20).
Parece-me plausível esta ideia de que o desconhecimento bibliográfico relevante acaba
por fazer a discussão perder a qualidade; pois, ao proporcionar-se isto na sala de aula acaba-se
apenas por brincar aos filósofos e esquece-se as grandes teorias, argumentos e objecções que
se têm tentado avançar ao longo dos séculos para responder aos problemas filosóficos. Será,
então, de todo despropositado o ensino destas teorias, argumentos e refutações que os filósofos
apresentaram ao longo da história? Acho que não; porque os alunos podem aprender a fazer
filosofia ao analisarem criticamente também as teorias e os erros que foram realizados pelos
filósofos, para desta forma não caírem nos mesmos erros, para proporem outras soluções e para
terem uma compreensão mais lata da realidade. Aliás, considero que certamente os alunos
ficam a ganhar ao conhecerem o progresso realizado em filosofia, os instrumentos básicos da
filosofia e as melhores teorias e argumentos da filosofia, estando assim habilitados para
saberem avaliar os argumentos e as suas limitações, para fazerem clarificações (como a
distinção entre mal moral e mal natural), para darem uma possível contribuição pessoal crítica e
criativa às teorias e problemas filosóficos, em suma para se discutirem ideias com maior
competência e rigor.
Penso que algo muito mais grave acontece quando sob a designação de concepção
orgânica de ensino e de criação de ambientes agradáveis à aprendizagem, se sugere ao aluno
actividades meramente lúdicas que acabam por se afastar completamente do horizonte filosófico.
Assim, podemos ter alunos que se entretêm bastante com as palavras-cruzadas, as sopas de
letras, os puzzles, entre outros, mas que não entram minimamente no que é relevante a nível
filosófico: A discussão crítica dos problemas, teorias, argumentos e conceitos da filosofia. Até se
pode considerar que as palavras-cruzadas podem ser úteis para chamar atenção para um
determinado conceito ou definição, mas penso que ficar por aí é extremamente empobrecedor.
Aulas repletas destas actividades lúdicas podem ser muito divertidas para os alunos, mas será
que ainda estaremos a fazer filosofia? Considero que a sala de aula não é propriamente um circo
ou um mero espaço de entretenimento, mas sim um lugar onde se deve fazer aprendizagens
15
relevantes e aquisições de um pensamento autónomo, crítico e criativo. Portanto, parece que a
concepção orgânica de ensino também pode conduzir a algumas perversões sérias que afectam
bastante a qualidade da filosofia.
Será, então, a concepção orgânica plausível para o ensino da filosofia? Penso que não,
sobretudo por dois motivos: 1) O desconhecimento dos instrumentos filosóficos e de
informações teóricas relevantes pode baixar substancialmente a qualidade da filosofia; e 2) pode-
se correr o risco da aula tornar-se um mero entretenimento sem uma aprendizagem relevante da
filosofia. Para além disso, a concepção orgânica parece subalternizar demasiado a função de
professor, tornando-se num mero colega consultor entre os colegas ou alunos da turma quase
em igualdade de circunstância.
Desta reflexão posso concluir que tanto a concepção mecanicista como a concepção
orgânica de ensino são inadequadas para um bom ensino da filosofia. Como tentei argumentar
cada uma destas perspectivas de ensino, ao funcionarem de modo isolado, podem conduzir a
perigosos vícios que desvirtuam completamente o ensino da filosofia. Por um lado, a concepção
mecanicista pode levar a um entendimento da filosofia como um mero clube dos filósofos
mortos em que os alunos se limitam a decorar e a repetir teorias de uma forma acrítica e
passiva. Mas será que os grandes filósofos como, por exemplo, Aristóteles, Santo Agostinho,
Descartes ou mais recentemente Alvin Plantinga se limitam a debitar e a repetir as teorias dos
outros filósofos? Parece evidente que não; pois eles pensam criticamente sobre problemas
filosóficos, dão as suas contribuições criativas, defendem as suas ideias de uma forma
fundamentada e até examinam as teorias dos filósofos antecessores, quer para as melhorar,
quer para as refutar. Por outro lado, a concepção orgânica pode conduzir a discussões filosóficas
que não passam do mero senso comum opinativo, ao desprezar-se por completo a componente
expositiva do ensino, bem como se pode ser seduzido por actividades que são meros
entretenimentos mas sem qualquer relevância filosófica. Portanto, nem a concepção de ensino
mecanicista, nem a orgânica, me parecem plausíveis para um bom ensino da filosofia; são dois
extremos com muitos perigos.
Talvez não haja receitas mágicas na pedagogia nem estratégias absolutamente perfeitas
para ensinar filosofia. Mas certamente existem caminhos de ensino mais plausíveis do que
outros. Se funcionarem isoladamente as perspectivas mecanicistas e orgânicas parecem pouco
credíveis. No entanto, penso que poderemos evitar os extremos (e as suas perversões) e
escolher, por conseguinte, o melhor destas duas concepções de ensino. Portanto, a minha
16
proposta na continuação deste texto vai incidir na eleição do meio-termo, ou seja, na
complementaridade que pode existir entre a concepção mecanicista e orgânica de ensino. Assim,
parece-me mais razoável uma perspectiva de ensino que atenda em concomitância para a
dimensão expositiva e para o aspecto da descoberta. No ensino da filosofia podem existir
vantagens com esta complementaridade; pois, ensina-se aos alunos os problemas, teorias,
argumentos e conceitos da filosofia, e em simultâneo ensina-se a examinar criticamente esses
problemas, teorias, argumentos e conceitos. Nesta concepção de ensino os alunos não se
limitam apenas a compreender ideias, mas são estimulados a discutirem as ideias por si de uma
forma crítica e fundamentada. A esta complementaridade, que eleva a qualidade do ensino da
filosofia e que não tende a cair em simplismos pedagógicos, chamarei ―tradição socrática‖, uma
vez que parece aproximar-se da atitude de um dos pais da filosofia: Sócrates.
2.2. As metodologias sofísticas
Em oposição directa à tradição socrática evidencia-se a tradição sofística e as
metodologias a ela associadas. Sob a designação de metodologias sofísticas não pretendo
apenas salientar o movimento cultural que surgiu na Grécia Antiga, mas também sublinhar
correntes contemporâneas que partilham de alguma forma o ideal da sofística e que podem
estar presentes tanto na concepção mecanicista como orgânica de ensino. Surge, então, a
questão: Por que razão não utilizar as metodologias sofísticas no ensino da filosofia em vez das
metodologias socráticas? Para responder a esta pergunta vou analisar crítica e brevemente
alguns dos tópicos principais da sofística clássica e contemporânea, no intuito de mostrar que a
tradição sofística conduz a algumas atitudes que acabam por perverter completamente a
natureza da filosofia. Deste modo, considero que as metodologias sofísticas devem ser banidas
da sala de aula.
Os sofistas foram professores da Grécia Antiga, que surgiram em meados do século V a.
C., que asseguravam a instrução dos jovens e os preparavam para a vida adulta. Eles foram
divulgadores de teorias, mas sobretudo capacitavam os seus alunos para o exercício político,
dando-lhes ferramentas básicas para a habilidade de persuadir, bem como estratégias de
retórica e oratória. Por exemplo, Protágoras, um dos mais importantes sofistas, defende que o
seu ―ensino destina-se à boa gestão dos assuntos particulares – de modo a administrar com
17
competência a própria casa – e dos assuntos da cidade – de modo a fazê-lo o melhor possível
quer por acções quer por palavras‖ (Platão, Protágoras, 319a). Deste modo, parece-me que a
sofística apresenta vantagens consideráveis: Ensinavam cultura variada (o que é um aspecto
relevante uma vez que não havia um sistema público de ensino superior), instruíam os jovens
com um currículo alargado (gramática, dialéctica, retórica, aritmética, geometria, astronomia,
música), preparavam os alunos para falarem e discutirem nos tribunais e assembleias, fazendo-
se pagar pelos seus serviços (o que me parece justo).
O que não considero justo são as metodologias utilizadas pelos sofistas que não olham a
meios para atingirem os seus fins de serem bem-sucedidos e eficientes nas disputas públicas,
mas sem atenderem à verdade. Portanto, o que lhes interessava não era chegar à verdade, mas
sim ganhar a todo o custo a discussão por mais incoerentes e inverosímeis que sejam as suas
teses. Desta forma, a arte de argumentar torna-se apenas numa arte marcial, numa espécie de
pugilismo, que faz recurso de sofismas, falácias, manipulações, apelo às emoções e sentimentos,
entre outras ferramentas, para derrotar os adversários. Deixamos de ter, do mesmo modo, uma
arte de pensar e de estimular um exame crítico racional para passarmos a ter uma arte de
dissimular, enganar ou ludibriar. O filósofo Colin McGinn denuncia claramente, na seguinte
passagem, a estratégia manipuladora utilizada pelos sofistas:
―Os sofistas propunham-se, mediante um pagamento, ganhar qualquer discussão, especialmente em
tribunal, por quaisquer meios de que dispusessem. O seu objectivo não era a favor da verdade, usando
apenas argumentos válidos e premissas verdadeiras; sentiam-se à vontade para conquistar o assentimento
por quaisquer meios possíveis, usando truques retóricos, falácias atraentes, apelo aos sentimentos, medo,
preconceitos e tudo o mais. Em vez de usar apenas os meios da persuasão racional, empenhando as
faculdades racionais do público, recorriam a métodos de manipulação psicológica. Lisonjeavam e
seduziam, fodendo o juízo do público e não tinham quaisquer escrúpulos em usar falácias e falsidades.
Além disso, também lhe ensinariam a fazer o mesmo: a tornar-se, você mesmo, um fode-juízos. A
essência da sua técnica era persuadir, não apelando às faculdades racionais mas recorrendo à emoção
(soa-lhe familiar?)‖ (McGinn 2008: 31-32).
A questão da manipulação mental não é algo que diga respeito apenas aos sofistas da
Grécia Antiga. Na sociedade contemporânea pode-se constatar a continuação destas estratégias,
por exemplo, na política e nos governos totalitários em que as pessoas sofrem uma lavagem
cerebral para se encaixarem na engrenagem do sistema (a este propósito pode ver-se o exemplo
da obra 1984 de George Orwell em que as pessoas são coagidas a ―amar‖ o Big Brother). Outro
18
exemplo desta manipulação surge nas religiões que podem não ter escrúpulos para recorrer a
medos (como a morte e o inferno), a ansiedades e a outras emoções, para assim controlarem as
pessoas segundo os seus preceitos (por exemplo, na obra Até onde se pode ir? de David Lodge
são retratados alguns jovens católicos que foram coagidos a reprimir a sexualidade vivendo
assim angustiados e infelizes). Nesta estratégia é banida a discussão racional, para a adopção
de mecanismos de manipulação que perpetuam determinados preconceitos6
e ilusões.
Será, então, adequado ensinar filosofia com metodologias sofísticas? Parece que não,
pois as estratégias sofísticas ensinam essencialmente a manipular mentes e isso constitui uma
violência e agressão tremenda para o ser humano. Aqui a pessoa sente-se invadida, explorada,
violada, vítima de um logro que lhe paralisa o pensamento crítico e lhe tira a liberdade,
obrigando-a a fazer ou aceitar aquilo que ela racionalmente não quer. Fazendo recurso à
linguagem kantiana posso dizer que as estratégias sofísticas tratam o ser humano meramente
como um meio, como um objecto que pode ser usado a belo prazer pelos sofistas. No entanto
isso é um acto desonesto e imoral, pois a pessoa é tratada como se fosse moralmente
irrelevante, sendo desrespeitada na sua autonomia e racionalidade.
Pelo contrário, faz parte da natureza da filosofia, na sua tradição milenar, o recurso da
discussão racional, da liberdade de expressão, do pensamento crítico, claro e rigoroso,
apresentando razões e argumentos para sustentar as teorias. Ora, se eu apresentar ao leitor
bons argumentos e razões para defender as minhas posições, sem utilizar falácias nem
ambiguidades, e se o estimulo a examinar criticamente o que eu defendo, então não estou a
manipulá-lo, nem a ser desonesto ou imoral.
Porém, o problema das metodologias sofísticas não está apenas no grave aspecto da
manipulação mental. Existem outros pormenores que estão intrinsecamente ligados aos sofistas
(e agora também aos pós-modernos) e que podem acabar por perverter completamente o ensino
da filosofia. Nomeadamente considero que é importante analisar atitudes presentes nos sofistas,
como o relativismo cognitivo, o subjectivismo, e a atitude estética, que ainda hoje invadem o
ensino em geral e a filosofia em particular.
―O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas
que não são, enquanto não são‖ é a máxima mais famosa de Protágoras. Esta afirmação
expressa o relativismo e subjectivismo defendido pelos sofistas. Como esclarece Anthony Kenny
6
Os preconceitos são ideias que assumimos como verdadeiras ou correctas, mas sem termos razões ou argumentos para isso; assim, temos
preconceitos quando não pensamos criticamente nas razões a favor e contra uma determinada ideia. Por exemplo, talvez muitos pensem que
Deus existe, mas nunca procuraram examinar isso ou nem sequer procuraram ver se existem boas razões para acreditar em Deus.
19
(1998: 45) ―isto significa que aquilo que, seja pela percepção, seja pelo pensamento, parece a
uma determinada pessoa ser verdade, é verdade para essa pessoa. Isto acaba com a verdade
objectiva: nada pode ser absolutamente verdadeiro, mas apenas relativamente a um indivíduo‖.
De facto, esta é uma atitude sofística presente em muitos alunos e professores que difundem a
ideia que em filosofia tudo é muito relativo e subjectivo. Mas, será realmente que em filosofia
tudo é muito relativo sendo assim impossível avaliar objectivamente teorias?
A ideia principal deste relativismo cognitivo, presente sobretudo nas actuais correntes
pós-modernas (com Derrida, Kuhn, Rorty, etc), é que tudo são perspectivas e narrativas,
―estando todas as opiniões a par no que respeita à plausibilidade ou verdade‖ (Murcho 2004).
Deste modo, qualquer crença é tão boa como qualquer outra, todas as opiniões estão em pé de
igualdade, tudo vale o mesmo, tudo é texto, tudo é aceitável, pois, de acordo com os sofistas e
pós-modernos, os critérios de verdade são relativos aos diferentes contextos, práticas ou
narrativas. Segundo eles é uma fraude ou fantasia pretender impor um conjunto de verdades
universais sobre a realidade ou pretender um padrão imparcial para avaliar diferentes crenças e
opiniões, uma vez que não nos conseguimos afastar dos nossos preconceitos e perspectivas
sociais, políticas, culturais, linguísticas, históricas, entre outros. Aliás, consideram que é opressor
querer o ideal da verdade universal, pois faz esquecer que estamos inseridos naturalmente em
diversas práticas e narrativas, mas essa atitude é ela própria uma operação política e de poder.
Portanto, como explica Simon Blackburn (2001b), ―tudo o que há são diferentes pontos de vista,
cada um dos quais é «verdadeiro» para aqueles que os defendem‖ ou para aqueles que
partilham uma determinada prática ou narrativa. Ora, se tudo é relativo a uma determinada
perspectiva, não havendo padrões imparciais de avaliação da plausibilidade e da verdade, então
todos os discursos e opiniões são igualmente legítimos. Por exemplo, será tão verdadeiro o
padre na aldeia dizer que o ser humano foi criado directamente por Deus a partir do barro, como
o professor de biologia dizer que o ser humano surgiu devido a um enorme processo de
evolução gradual de acordo com a selecção natural.
Esta ideia de que todas as narrativas são igualmente legítimas até pode seduzir muita
gente por parecer uma atitude muito tolerante. Desta forma, supostamente respeita-se opiniões
e práticas alheias e até parece que se está a construir um mundo com mais paz. Mas, será
efectivamente assim? Parece que não, pois, por exemplo ao defendermos que todas as práticas
e narrativas são aceitáveis estamos a permitir que algumas pessoas continuem a discriminar as
mulheres, até com práticas desumanizantes como a mutilação genital, ou permitiremos outras
20
formas de exploração e violência que certos grupos defendem. Aliás, será legítima toda a
narrativa fundamentalista religiosa que faz recurso do terrorismo? Se defendermos o relativismo
temos de aceitar que esta é uma prática tão aceitável como qualquer outra, no entanto parece
contraproducente e irracional defender que essa é uma narrativa legítima, uma vez que o
terrorismo só conduz a sofrimentos de pessoas inocentes que são mortas de uma forma
totalmente arbitrária e injusta. De igual forma, dizer que o nazismo é mais uma narrativa entre
outras e que por isso deve ser legítima e aceitável parece ser absurdo, tendo em conta todas as
atrocidades cometidas durante o holocausto. Então, o relativismo, em vez de ser fonte de
tolerância e paz, é muitas vezes um mero legitimador da intolerância e violência que as pessoas
podem exercer entre elas e os outros. Assim, a construção de um mundo melhor é frustrado
pelo relativismo, como argumenta Desidério Murcho (2006: 61): ―Se afinal ninguém tem razão
porque a razão é uma ficção, se não há verdades objectivas porque tudo é uma construção
social, não vale a pena mexer uma palha em prol de um mundo melhor para o maior número de
pessoas – porque nem é irracional explorar e maltratar nem é realmente verdade que há
pessoas exploradas e maltratadas‖.
Para além disso, o relativismo cognitivo conduz a posições logicamente contraditórias
como o caso do padre da aldeia e do professor de biologia. Neste caso, ou Deus criou
directamente o ser humano (Adão) a partir do barro, ou este surgiu através dos mecanismos
naturais da evolução sem qualquer intervenção divina. É uma contradição dizer que tanto a
proposição do padre como a do biólogo são igualmente verdadeiras, pois negam-se uma à outra.
No entanto, para os relativistas devemos aceitar estas duas proposições uma vez que são
diferentes formas de verdade que têm os seus próprios critérios. Porém, na realidade como será
possível o ser humano surgir directamente por intervenção divina e simultaneamente sem
qualquer intervenção divina? Estes relativismos normalmente parecem conduzir a contra-sensos
sem sentido e acabam por gerar confusões, como o facto de muitas pessoas legitimarem
simultaneamente a veracidade da astronomia e da astrologia, ou considerarem que as previsões
do tarot são tão legítimas e verdadeiras como as previsões meteorológicas, olvidando-se que
tanto o tarot como a astrologia não passam de embustes absurdos.
O ensino da filosofia, encarado pelas metodologias do relativismo cognitivo, também
sofre de sérias consequências perversas. Se em filosofia tudo é relativo, então cada filósofo será
encarado como uma ilha que terá razão apenas do seu ponto de vista. Assim, as posições e
teorias filosóficas são encaradas como paradigmas incomensuráveis, em que cada filósofo terá
21
―razão dentro do seu próprio sistema‖ (Murcho 2002: 75). Porém, uma vez que as teorias
filosóficas são encaradas como ilhas incomensuráveis, não as poderemos avaliar criticamente
(pois, só se pode discutir ideias se pensarmos que existem ideias melhores e outras piores que
se possam submeter a uma discussão pública e imparcial). Por conseguinte, não vale a pena
analisar a plausibilidade de uma determinada teoria, nem sondar uma resposta cada vez mais
verosímil para responder a um determinado problema filosófico, pois, tudo são perspectivas ou
narrativas igualmente verdadeiras e plausíveis. Acaba, assim, a discussão e o exame crítico de
ideias, e dita-se a morte da filosofia, sobrando apenas a história e a hermenêutica de textos.
Deste modo, o ensino da filosofia deixa de estimular o pensamento crítico das ideias para
requerer meros comentários de texto ou assimilação acrítica de algumas ideias dispersas dos
filósofos.
Como se pode verificar, este relativismo cognitivo paralisa o pensamento crítico e faz
desistir da procura da verdade, pois afinal não existem respostas ou teorias mais plausíveis do
que outras, sendo tudo simetricamente plausível, aceitável, legítimo. Porém, pensar que todos os
discursos ou teorias filosóficas se equivalem é errado; pois, existem teorias filosóficas que
respondem melhor a um determinado problema, apresentando argumentos solidamente
construídos e boas razões para sustentar a teoria, respondendo a possíveis objecções e
alargando a nossa compreensão da realidade. E existem outras teorias que são fracas, pois não
apresentam boas razões ou estão repletas de falácias, não sendo minimamente consequentes.
Imaginemos que temos a opinião de um estudante que diz que Deus existe porque sim e a de
um outro estudante que defende que Deus não existe apresentando boas razões e argumentos.
Certamente seria tolo dizer que estas opiniões estão totalmente em simetria no que se refere à
plausibilidade. A ideia infundada de que Deus existe não é tão boa como a ideia, sustentada por
boas razões e argumentos, de que Deus não existe.
Assim, parece que nem tudo vale: Existem algumas ideias mais fundamentadas do que
outras, existem algumas teorias que são plausivelmente certas e outra que são erradas. No
entanto, o relativismo cognitivo ao dizer que todas as narrativas se equivalem, que são
igualmente verdadeiras, não estará afinal a reduzir o discurso a uma atitude de arrogante
infalibilidade, pois afinal nunca poderemos estar errados? Mas não somos deuses omniscientes
e infalíveis! Pelo facto, de podermos estar errados, bem como pelo facto de algumas teorias
filosóficas serem mais plausíveis do que outras, é que vale a pena avaliar e discutir pública e
criticamente as ideias, submetendo as nossas próprias opiniões à avaliação e apreciação por
22
parte dos nossos pares. E o ensino da filosofia não pode menosprezar esta componente
fundamental que o relativismo tenta iludir.
Mas, o relativismo cognitivo é ele mesmo incoerente. Afirma que tudo é relativo,
querendo que a sua própria teoria não seja relativa, mas sim objectivamente verdadeira e
universal. Porém, se defende que tudo é relativo, então a sua própria teoria é também relativa,
sendo falsa para quem não aceitar esta teoria. Logo, o relativista não consegue provar que tudo
é relativo. De qualquer forma, é perigoso ensinar filosofia a partir de estratégias de inspiração
relativista. Se tudo for relativo, então não poderemos avaliar criticamente ideias, não podemos
debater teorias e argumentos para ver quais são os mais plausíveis, nem poderemos procurar
respostas cada vez melhores para tentar resolver os problemas filosóficos, acabando os próprios
ideais de verdade, racionalidade e objectividade por ser rejeitados.
O subjectivismo, que é afectado pela mesma incoerência do relativismo, costuma estar
presente na mentalidade de alguns alunos e de alguma cultura do senso comum, divulgando-se
a ideia de que em filosofia é tudo muito subjectivo. Mas, o que querem dizer com subjectivo?
Talvez pretendam transmitir a ideia de que o valor de verdade das proposições filosóficas não é
independente dos seres humanos, mas é apenas uma questão de aleatoriedade, de
agradabilidade, de gosto, de preferência pessoal. Desta forma, X é verdadeiro se, e só se, eu
aceito ou gosto de X. Por exemplo, tal como uma pessoa pode gostar de café e outra gostar de
chá sem haver qualquer razão para isso (pois é uma mera questão subjectiva de gosto em que
não há opiniões melhores e piores), também podemos ter alunos que preferem a teoria ética
utilitarista em vez da ética das virtudes ou da ética deontológica por uma simples questão de
gosto pessoal sem haver razões para essa escolha. A filosofia torna-se, assim, um acto de
aceitar e ―acreditar na primeira ideia que nos agrada, sem que tenhamos boas razões para
acreditar nela, para além do conforto que nos proporciona‖ (Murcho 2002: 83).
Afirmar que a filosofia é uma mera questão de subjectividade, em que nada mais
importa na verdade de uma teoria que o sentimento ou conforto pessoal, até pode ter algumas
vantagens. Pode-se alegar, por exemplo, que o subjectivismo promove a liberdade dos sujeitos,
pois não existe uma verdade exterior que se lhes imponha. Portanto, cada um é livre de seguir
os seus gostos e sentimentos aceitando as ideias que mais confortem ou agradem. Seguindo
este raciocínio, os alunos podem aceitar como teoria verdadeira a existência do livre-arbítrio e
outros a existência do determinismo; no entanto, não aceitam estas teorias com base em boas
23
razões (analisando com acuidade argumentos a favor e contra a teoria), mas simplesmente
seguindo os seus gostos, preferência, e preconceitos pessoais.
Porém, esta atitude subjectivista em filosofia é afectada por sérias objecções. Uma das
principais críticas tem a ver com a infalibilidade. Se é certo e verdade aquilo que aprovamos
pessoalmente, então nunca poderemos estar errados. Mas, pensar isso é ingénuo, uma vez que
não estamos imunes ao erro e a realidade não pode acatar em simultâneo posições
contraditórias: Ou o mundo exterior é um facto ou é uma ilusão, ou Deus existe ou Deus não
existe, ou é certo mutilar genitalmente as mulheres ou é errado, etc... Certamente a realidade
não será assim tão simples e tão preto e branco como a estou a caracterizar, mas se Deus na
realidade não existir, então não é por alguém achar conforto na existência de Deus que ele passa
por conseguinte a existir na realidade. Ou não é por alguém gostar pessoalmente de mutilar os
genitais femininos que isso se torna uma prática correcta.
Com o subjectivismo acaba igualmente qualquer discussão de ideias e, assim, finda a
própria actividade filosófica. Se a verdade e o correcto dependem apenas da aprovação, das
preferências e gostos pessoais, então não poderemos tentar mostrar aos outros que uma certa
ideia é plausível ou errada. Tudo o que podemos manifestar é preferências individuais: Eu gosto
que o ser humano tenha liberdade, eu gosto que Deus exista, eu gosto que os animais não-
humanos sejam respeitados. Outra pessoa poderia manifestar preferências completamente
opostas das minhas, mas de qualquer forma nunca estaríamos a discutir ideias e a fazer filosofia.
Isto seria uma mera exposição de preconceitos pessoais.
Normalmente quando dizemos que gostamos de café e outros que preferem chá não
nos importamos por dizer que isto são gostos subjectivos. No entanto, quando existem homens
que aprovam a violação de mulheres e quando existem outros homens que não aprovam tais
actos, parece absurdo dizer que isto é um mera questão subjectiva. Se os gostos das pessoas
são meramente subjectivos e assim igualmente aceitáveis e aleatórios, então as preferências por
violar ou por respeitar mulheres serão igualmente aceitáveis. Porém, este é um raciocínio errado.
Quem tem a preferência por violar mulheres não consegue justificar a sua ideia com o mesmo
nível de cogência argumentativa e plausibilidade do que aqueles que pensam que essa prática é
errada. E de facto parece muito difícil objectar a ideia de que a violação traz na realidade
sofrimentos inúteis para a mulher, tratando-a como um mero meio e desrespeitando-a na sua
autonomia. Por isso, pensa-se que a violação é um acto imoral e as razões que sustentam tal
ideia são independentes das perspectivas, preferências e gostos individuais. Com este pequeno
24
raciocínio filosófico de ética aplicada não recorri aos meus gostos ou subjectividade para mostrar
que a violação é imoral. Logo, a proposição que diz que em filosofia tudo é subjectivo só pode
ser falsa.
Mas será que em filosofia poderemos ser razoavelmente objectivos? Penso que sim e
considero que essa deveria ser uma prática na sala de aula. Quando alguém está perante um
problema filosófico e quando pensa ou examina imparcialmente razões a favor e contra uma
determinada teoria, averiguando de uma forma cuidadosamente reflectida o que é mais plausível,
não está a manifestar uma mera questão de gosto, mas sim a pensar de forma objectiva. Assim,
se alguém disser que uma teoria ou ideia é plausível podemos exigir: Por que razão essa teria ou
ideia é plausível? Se essa pessoa não mostrar boas razões para aceitarmos que essa teoria é
plausível, então podemos rejeitar essa opinião uma vez que é infundada, mesmo que tenha sido
formulada por um profundo gosto pessoal. Um gosto pessoal subjectivo não precisa de razões
para o suportar, tal como a simples questão do preferir café ou chá. No entanto, para sermos
objectivos em filosofia precisamos de apresentar boas razões, analisar objecções, pensar
criticamente sobre diversas ideias, não sendo as opiniões filosóficas um mero gosto pessoal,
mas sim frutos de uma avaliação ponderada e imparcial.
Penso, então, que podemos expressar a objectividade da filosofia a partir desta
proposição: Uma teoria filosófica é plausível ou aceitável se for sustentada por razões melhores
que as teorias alternativas. Portanto, a plausibilidade e a aceitabilidade de uma teoria não
dependem de preferências ou gostos subjectivos, mas são suportadas por razões. E tal
plausibilidade é objectiva no sentido em que é plausível independentemente do que possamos
querer subjectivamente, sendo que a resposta plausível ou aceitável a uma questão filosófica
será aquela que terá do seu lado o ―peso da razão‖, como costuma sublinhar o filósofo James
Rachels (2003: 67). Ou seja, se existirem razões suficientemente poderosas que sustentem uma
determinada teoria filosófica e se não existirem objecções ou outras teorias que tenham o
mesmo peso, então poderemos dizer que essa teoria é plausível, aceitável, credível. Portanto, o
aceitável ou o correcto não é uma questão de gosto ou de conforto pessoal, mas:
―Descobrimos antes o que é certo ou o que se deve fazer examinando as razões ou os argumentos que,
numa dada questão, podem ser avançados a favor de cada um dos lados – é certo fazer [e aceitar] aquilo
que está apoiado pelas melhores razões para o fazer [e aceitar]. Basta que possamos identificar e avaliar
as razões a favor e contra (…) e que cheguemos a conclusões racionais‖ (Rachels 2005: 255).
25
No entanto, quando defendo a objectividade em filosofia não estou a dizer que já se
alcançaram todas as respostas para os grandes problemas filosóficos, ou que existe um enorme
consenso quanto às teorias plausíveis, ou que podemos ser infalíveis, ou sequer que podemos
ser completamente objectivos. Pelo contrário, a maioria dos problemas filosóficos ainda continua
em aberto, poucas são as teorias consideradas consensualmente plausíveis, a falibilidade parece
estar sempre inerente ao ser humano, e seremos sempre de alguma forma subjectivos (pois, por
mais que queiramos ser puramente objectivos e imparciais teremos sempre alguns elementos
de subjectividade e parcialidade). Mas, podemos tentar ser objectivos mesmo não sabendo tudo,
mesmo sendo falíveis e até mesmo tendo elementos intrínsecos de subjectividade. Aliás, mesmo
não existindo qualquer algoritmo mágico que resolva mecanicamente todos os nossos problemas
e questões filosóficas, considero que a objectividade pode ser um bom método para se
discutirem melhor as teorias, para se avaliarem com mais imparcialidade, para haver uma
tentativa de maior aproximação da verdade. Pelo menos com a objectividade pode haver algum
progresso. O subjectivismo estagna o pensamento, pois defende que tudo é aceitável, uma vez
que é tudo uma questão de preferência ou gosto pessoal; mas isto não resolve os grandes
problemas filosóficos. Porém, o objectivismo, ao considerar que existem razões melhor e piores,
ao permitir um exame imparcial e público das ideias, possibilita avaliar e constatar a existência
de teorias que tentam responder de forma mais plausível e outras que não respondem com o
mesmo grau de plausibilidade às questões filosóficas. Parece existir, assim, um progresso, uma
tentativa de responder cada vez melhor aos problemas, de uma forma mais cogente e razoável.
Ora, esta forma de encarar objectivamente a filosofia traz benefícios para a sala de aula:
Permite discutir ideias, analisar a plausibilidade dos argumentos e teorias, estimular o exame
crítico dos alunos e, por conseguinte, faz da filosofia uma actividade muito mais útil, deixando de
ser aquela disciplina onde tudo é subjectivo.
Para além do relativismo e subjectivismo existe a atitude estética (Murcho 2002: 84-86)
que pode perverter igualmente o ensino da filosofia. O objectivo principal da atitude estética em
filosofia e no seu ensino opõe-se substancialmente à atitude de exame crítico, característica
principal da tradição socrática, que procura analisar se uma determinada teoria é plausível e
verdadeira. Pois, na atitude estética tudo o que interessa é a produção de textos esteticamente
agradáveis, repletos de jogos de palavras, de ambiguidades, de ornamentos e rendilhados
literários, de modo a sugerir coisas inspiradoras. A filosofia torna-se, deste modo, em mera
poesia e literatura, onde já não interessa saber quem tem razão ou qual é a resposta mais
26
plausível, mas apenas importa ter um discurso interessante, brilhante literariamente e sobre o
qual nos possamos emocionar.
Do mesmo modo, na atitude estética a filosofia deixa de ser aquela arte de reflexão
crítica e abandona-se, assim, a actividade de examinar todas as nossas opiniões e crenças para
a filosofia se tornar numa simples poesia conceptual. Aliás, como defende Gilles Deleuze (1991:
10-14) ―a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos‖. No entanto, segundo
Deleuze, esta disciplina que se caracteriza pela arte de criar conceitos não pode ser uma
disciplina de aprender a pensar, nem sequer de reflexão, ―porque ninguém tem necessidade de
filosofia para reflectir sobre o que quer que seja‖. Portanto, toda a actividade filosófica resume-se
à criação estética de conceitos ou filosofemas. Porém, nesta atitude não se criam os conceitos
para termos uma melhor compreensão da realidade, do ser humano, da vida, entre outros, mas
fabricam-se conceitos por mera atitude estética; ou como explicou Simon Blackburn (2001a)
numa entrevista, a ―observação de Deleuze dá a ideia que a filosofia é uma actividade
puramente decorativa, como os arranjos florais‖. Ora, se a filosofia é apenas uma arte decorativa,
então não interessam os elementos cognitivos do discurso, isto é, não se procura saber se as
ideias defendidas pelos filósofos são plausíveis, nem interessa reflectir e pensar em novas
teorias que respondam aos problemas filosóficos de uma forma mais cogente e mais próxima da
verdade.
Esta arte decorativa ou estética de fazer filosofia, que é sobretudo uma actividade
acognitiva, pode ter a sua razão de ser devido a certa mentalidade de ―cientismo‖ influenciada
pelo positivismo. O cientismo defende que só podemos alcançar teorias efectivamente
verdadeiras e resultados substanciais utilizando os métodos empíricos, tal como na física ou na
biologia. Ora, como a filosofia é uma disciplina a priori, ou seja que se faz fundamentalmente
pelo pensamento, então tais métodos empíricos e a posteriori não se podem aplicar. Logo, não
podemos alcançar teorias genuinamente verdadeiras em filosofia. Deste modo, se a filosofia não
está no domínio cognitivo das disciplinas que alcançam resultados substanciais e teorias
verdadeiras, então apenas lhe resta ficar pelo domínio das actividades decorativas ou estéticas.
No entanto, este argumento não é plausível e a primeira premissa, que afirma que só
conseguimos ter teorias verdadeiras recorrendo a métodos empíricos, é falsa e incoerente. Por
um lado, é incoerente, pois quando se defende que só podemos ter teorias verdadeiras
utilizando métodos empíricos quer-se defender que esta é uma teoria verdadeira, mas para isso
não se está a recorrer a métodos empíricos, mas sim a um método filosófico, argumentativo e a
27
priori. Logo, está a pressupor-se implicitamente o que se quer negar explicitamente. Por outro
lado, é falsa, pois é fácil conceber a negação da primeira premissa, afirmando que poderemos
alcançar ou aproximarmo-nos de algumas verdades sem recorrer a métodos empíricos. Por
exemplo, para defender que a acção de violar uma mulher é um acto imoral basta pensar e
recorrer a razões a priori, embora possa utilizar alguma informação empírica7
. Portanto, parece
que a filosofia não tem de estar relegada para uma arte acognitiva decorativa. Muito pelo
contrário, é possível em filosofia avaliar criticamente que algumas teorias são mais plausíveis do
que outras, que algumas se aproximam mais da verdade do que outras, sendo a filosofia uma
actividade cognitiva legítima. É claro que não há um método infalível para atingir de forma
automática a verdade, mas seria um salto lógico afirmar a partir desta premissa que não é
possível alcançar qualquer plausibilidade ou aproximação da verdade. Assim, tudo o que
podemos fazer é pensar e repensar novamente as teorias, de forma a examinar com mais rigor a
plausibilidade e veracidade das mesmas. Porém, considero que constitui um enorme empecilho
para a procura da verdade colocar como estratégia fundamental a arte decorativa em vez desta
arte de pensar e examinar criticamente as ideias.
A atitude estética apresenta sérias perversões para o ensino da filosofia: Os alunos
limitam-se a ter reacções emocionais aos textos e às teorias filosóficas, sem haver uma relevante
compreensão dos mesmos e sem existir a concomitante avaliação crítica. Assim, há apenas
sentimentos de amor ou paixão por um determinado filósofo ou por uma determinada teoria que
se considera subjectivamente interessante, mas não se procura perceber se a perspectiva
utilitarista de Stuart Mill é mais razoável ou não do que a deontológica de Kant, nem perceber se
a resposta de Rawls é mais plausível ou não do que a de Nozick ao problema da justiça social,
nem saber se a teoria do sentido da vida de Tolstoi é mais plausível ou não do que a teoria de
Susan Wolf, entre outros. Em vez do exame crítico, ensina-se os alunos a ler os textos e as
teorias filosóficas como se fossem apenas poemas sem qualquer valor cognitivo para ser
discutido, limitando-se os alunos a reagir emocionalmente, a apreciar os recursos estilísticos, a
fruírem do rendilhado estético e decorativo do texto filosófico. No entanto, esta atitude constitui
um aviltamento da tradição filosófica milenar de discussão livre e crítica de ideias, impedindo-se
os alunos do acto de examinar teorias filosóficas, de avaliar a cogência argumentativa, e de
pensar por si mesmos nas respostas para os grandes problemas filosóficos; em suma, coarcta-
se a possibilidade de autonomia dos alunos para um pensamento crítico, criativo, claro e
7
Na secção 3.2 deste texto pode-se encontrar com mais pormenor o desenvolvimento desta ideia da filosofia como uma actividade a priori.
28
rigoroso. Deste modo, parece-me mais razoável encarar a filosofia ―como teorização,
argumentação e análise cuidadosa das nossas crenças, por mais queridas que sejam‖, em vez
de encarar a filosofia como decorativa em que se ―procura apenas um discurso interessante‖
(Murcho 2009).
Ao defender que a filosofia e o seu ensino devem assentar sobretudo no exame crítico
das ideias não estou a menosprezar de forma alguma a possibilidade de haver textos que
utilizem abundantemente recursos estilísticos ou estéticos. O que defendo mais concretamente é
que a possível atenção a esses recursos decorativos não se sobreponha ao essencial no ensino
da filosofia que é a compreensão e discussão crítica de ideias. É óbvio que as pessoas são livres
de não quererem examinar de uma forma crítica diversas ideias filosóficas preferindo ficar pelos
adornos decorativos, pela linguagem obscura, ou pelos jogos de palavras, de modo a sentirem
emoções com isso. No entanto, não era este o projecto original da filosofia que se encetou de
modo óbvio com Sócrates, nem é esta atitude que tem relevância cognitiva. O projecto original
da filosofia é ter uma vida examinada, avaliando constantemente as nossas crenças e opiniões,
procurando respostas cada vez mais plausíveis para os problemas filosóficos que enfrentamos e
isso permite efectivamente uma maior compreensão da realidade.
Em suma, as metodologias sofísticas, antigas e pós-modernas, conduzem a sérias
perversões para o ensino da filosofia. Deste modo, em vez de se utilizar a arte de manipulação
mental proponho a arte de pensar e argumentar; em vez do relativismo cognitivo proponho que é
possível aproximarmo-nos da verdade; em vez do subjectivismo proponho o objectivismo; e em
vez da atitude estética e decorativa proponho uma atitude de clareza, de rigor, de exame crítico.
São estas as atitudes que considero relevantes a cultivar na sala de aula e que vão ao encontro
da tradição socrática.
29
3. A CONCEPÇÃO SOCRÁTICA DE ENSINO
Ao abordar aquilo que o ensino da filosofia não deve ser, sondei indirectamente aquilo
que o ensino da filosofia deverá ser; ou seja, ele deve atender tanto à exposição de conteúdos
como à descoberta crítica e criativa do aluno, bem como deve fomentar no aluno a procura e a
tentativa de aproximação à verdade com objectividade, clareza e rigor. Para isso é fundamental a
arte de pensar, isto é, assumir uma atitude argumentativa e de exame crítico. Ora, são estas
atitudes que penso que fazem parte da grande tradição socrática. Por isso, ao longo deste
capítulo vou tentar mostrar como a atitude argumentativa e de exame crítico se relacionam com
a vida filosófica de Sócrates, indicando a relevância desta tradição para o ensino da filosofia.
3.1. A herança socrática
Sócrates (c. 469-399 a.C.) opõe-se aos Sofistas e às suas metodologias. Ao abordar a
herança socrática não tenho intenção de fazer uma exaustiva biografia intelectual de Sócrates,
mas apenas pretendo sublinhar alguns aspectos do seu legado que me parecem que marcaram
para sempre a tradição filosófica. E ao pensar na sua herança vejo essencialmente um ser
humano que procurou estimular o pensamento crítico na Ágora, querendo avaliar e examinar
constantemente as crenças e opiniões que as pessoas defendiam acriticamente. Durante a sua
vida, Sócrates esteve totalmente empenhado em fazer com que os outros soubessem pensar por
si mesmos segundo a razão. Em concomitância, pretendia discursos coerentes, sem as
manipulações dos sofistas, sem falácias e contradições, sem preconceitos, sem um saber último
e infalível, mas procurando aproximadamente a verdade ou a plausibilidade de uma determinada
ideia que se vai desvelando através do exame crítico e da discussão.
A atitude filosófica de Sócrates não é arrogante ao ponto de advogar que tem a
sabedoria absoluta para ser imposta sobre todos os outros; pelo contrário, tem consciência dos
seus limites, da falibilidade humana, chegando mesmo a afirmar que à partida nada sabe e que
a aproximação do saber se revela através do diálogo, do exame e da discussão das ideias. Esta
douta ignorância, que é simultaneamente interrogativa, serve para acordar as pessoas dos seus
dogmas rigidamente formulados, para despojar as verdades aceites acriticamente, para que
assim cada um se dê conta daquilo que realmente é, bem como para procurar a verdade de
30
uma forma mais livre e razoável. E, de acordo com Abbagnano (1963: 101), ―o meio de
promover nos outros este reconhecimento da própria ignorância, que é a condição da pesquisa,
é a ironia‖.
Nos diálogos platónicos8
manifesta-se normalmente um Sócrates não conformista que se
inquieta com os preconceitos, querendo por conseguinte examinar e questionar essas ideias
acríticas e não reflectidas de modo a aferir a sua plausibilidade e verdade. Desta forma, parte
continuadamente da interrogação, da análise cuidadosa dos conceitos e da argumentação,
investigando falácias e contradições. Esta sua atitude de exame crítico das ideias, preocupado
mais em questionar do que em responder, caracteriza ―a bem conhecida ironia de Sócrates‖
(Platão, República, 337a). Porém, esta ironia não é uma mera brincadeira de jogar com as
palavras, mas sim ―uma atitude bastante séria, a instância contínua de pôr sempre tudo em
discussão, o encaminhamento para o «exame», que, à partida, não pressupõe nada‖ (Adorno
1970: 76). De igual forma, a ironia socrática é um bom antídoto para combater o desaforo de ter
últimas palavras, dogmas, e certezas infalíveis, fazendo-nos lembrar que afinal erramos e que
nada sabemos de uma forma totalmente inabalável. Por isso, a ironia é também considerada
como um acto de desnudar, podendo-se pensar numa analogia, como faz Werner Jaeger (1936:
484), entre o exame médico e o exame socrático: Ambos pressupõem um desnudamento para
se ver e analisar melhor; no caso específico do exame socrático implica haver um desnudar de
preconceitos e de crenças dogmáticas, bem como de uma abertura à discussão, de modo a ser
possível analisar e avaliar de uma forma crítica a razoabilidade das ideias.
No entanto, para Sócrates não interessa apenas a discussão pela própria discussão ou
um questionamento sem rumo que não leva a lado nenhum, mas sim a discussão que seja
fecunda, que acabe por ajudar a dar à luz (maiêutica) as ideias mais plausíveis e verdadeiras.
Como aliás corrobora Romano Guardini (1943: 23-24), esta discussão socrática não visa
desqualificar ou difamar o outro, mas sim ajudá-lo, libertá-lo e abri-lo à verdade. Aliás, Sócrates
compara-se com as parteiras, tal como a sua mãe Fenárete, na arte de fazer nascer; no entanto
a arte do exame socrático difere da arte das parteiras no facto ―de tomar conta das almas e não
dos corpos dos que estão a parir. E o mais importante desta nossa arte está em poder verificar
completamente se o pensamento do jovem pariu uma fantasia ou mentira, ou se foi capaz de
8
Para abordar os elementos fundamentais da atitude socrática de fazer filosofia vou focar sobretudo alguns livros de Platão. Como Sócrates nada
escreveu, preciso de recorrer a outras fontes para investigar este pai da filosofia. Para além de Platão, que foi discípulo de Sócrates, também
existem outras fontes que descrevem a atitude socrática, como Xenofonte, Aristófanes e Aristóteles. No entanto, para os objectivos que me
proponho investigar é suficiente recorrer a Platão, o qual parece descrever de forma brilhante aquilo que comummente é característico de
Sócrates: O exame crítico.
31
gerar também uma autêntica verdade‖ (Platão, Teeteto, 150c). Portanto, o exame socrático
ajuda os outros a conceberem as suas ideias, mas também faz com que as avaliem e testem a
fim de se proceder a uma distinção entre as ideias autênticas, as quais se devem acatar, e as
que são preconceituosas ou falsas, as quais se devem abandonar. Mas, para que a discussão
seja fecunda e para que nasçam ideias plausíveis é preciso muito esforço e trabalho de reflexão,
podendo-se mesmo gerar algum sofrimento até se dar à luz ideias mais razoáveis; como refere
Sócrates: ―Os que se associam a mim sofrem algo idêntico às mulheres que estão a dar à luz:
de facto, têm dores de parto e ficam cheios de dificuldades, durante noites e dias, e muito mais
do que elas‖ (Platão, Teeteto, 151a). No entanto, apesar das dores de parto, as pessoas que se
examinam criticamente ganham uma melhor compreensão da realidade e uma capacidade para
reverem constantemente as suas opiniões em busca de respostas mais satisfatórias.
O próprio diálogo, em concomitância com a ironia e a maiêutica, é algo muito
característico deste legado socrático; pois é no diálogo que Sócrates convida os seus
interlocutores a pensarem cuidadosamente nas ideias, a reverem as suas opiniões, a reflectirem
melhor sobre aquilo que eles acham que sabem e que normalmente não passa de um mero
preconceito. Para Sócrates é no diálogo ou na discussão de ideias que está a própria actividade
filosófica; ao permitir o exame das nossas crenças e opiniões em conjunto com os outros, o
diálogo possibilita igualmente revelar os nossos próprios erros teóricos que sozinhos não
conseguimos ver. Constata-se no diálogo socrático uma enorme diferença com a sofística, que
em vez de querer utilizar estratégias manipulativas e atitudes relativistas, subjectivistas e
decorativas, faz apenas recurso do exame crítico em discussão com os outros para analisar, de
uma forma objectiva, até que ponto as opiniões se aproximam da verdade ou se são meramente
farsas. Deste modo, parece-me que são estes os objectivos principais do diálogo socrático:
Examinar criticamente as ideias, analisar aquelas que são mais plausíveis, apontar aquelas que
são meros preconceitos, para haver uma maior aproximação à verdade e compreensão da
realidade.
Normalmente os diálogos socráticos seguem a seguinte estrutura: Problema, teoria e
argumentos, objecções, reformulação da teoria e argumentos. Assim, os diálogos ou discussões
de ideias iniciam-se sempre por um problema como, por exemplo, o que é o conhecimento? O
que é a justiça? O que é a piedade? Estaremos sempre obrigados a obedecer às leis? O que é o
bem? O que é o amor? Será a alma imoral? Etc. Por conseguinte, Sócrates perguntava se os
seus interlocutores sabiam responder de forma rigorosa à questão inicial; se usavam
32
frequentemente um determinado termo, como o de conhecimento ou de justiça, é porque
deveriam saber qual era efectivamente o seu significado. Quando os interlocutores respondiam
ao problema, com as suas teorias e argumentos, Sócrates mostrava-se muito satisfeito; porém,
levantava objecções a essas respostas mostrando que afinal não eram razoáveis, ou que
incorriam em contradições, ou até que levavam a consequências inadmissíveis. Para isso
Sócrates costumava fazer recurso do método de contra-exemplos, isto é, indicava um
determinado exemplo que refutava uma definição universal ou uma teoria, que se pretendia
aplicar a todos os casos, dada pelos interlocutores9
. Ao serem refutados, os interlocutores
recuavam no que tinham dito, reconhecendo muitas vezes que na verdade estavam equivocados
e tentavam reformular as suas respostas ou propor novas, avançando-se até se ter respostas
mais satisfatórias. Também é verdade que por vezes não se chegava a nenhum resultado, como
no diálogo com Laques em que não se conseguiu definir a essência de coragem; no entanto,
sempre permitiam desconstruir alguns preconceitos e pseudo-saberes. Werner Jaeger confirma,
com outras palavras, esta estrutura geral do diálogo socrático que aqui esbocei:
―Sócrates parte sempre daquilo que o interlocutor ou os homens de modo geral aceitam. Esta aceitação
serve de «base» ou hipótese, após o que se desenvolvem as consequências que dela resultam,
confrontando-as com outros dados da nossa consciência, considerados factos estabelecidos. Um facto
essencial deste progresso mental dialéctico é a descoberta das contradições em que incorremos ao aceitar
determinadas teses. Estas contradições obrigam-nos a analisar uma vez mais a exactidão dos dados
aceites como verdadeiros, para os rever ou abandonar, conforme os casos‖ (Jaeger 1936: 523).
Para constatar esta estrutura e objectivos do diálogo socrático nada melhor que ver
brevemente na prática o desenvolvimento do próprio diálogo e da discussão das ideias. Por
exemplo, no diálogo com Teeteto, Sócrates começa pelo problema que se pretende resolver:
―Diz-me então, bem e com nobreza: o que te parece que seja o saber?‖ (Platão, Teeteto, 146c).
O seu interlocutor, Teeteto, respondeu que os saberes são assuntos como a geometria, as artes
do sapateiro e de outros artesãos, entre outros. No entanto, Sócrates contesta a resposta de
Teeteto afirmando que não era isso que tinha perguntado, não era ―um saber «de quê», nem a
sua quantidade; pois não queremos enumerá-los, já que estávamos a querer conhecer o que é o
9
Um exemplo: No diálogo com Laques define-se coragem do seguinte modo: ―Aquele que decidir, na linha de combate, enfrentar o inimigo a pé
firme, em vez de se retirar, esse, bem o sabes, será corajoso‖ (Platão, Laques, 190e). Porém, pode-se lançar um contra-exemplo a esta
definição: Podem existir pessoas que enfrentam o inimigo a pé firme por motivos como a mera teimosia e imprudência, pondo assim
desnecessariamente em risco as suas vidas. Pelo contrário, pessoas verdadeiramente corajosas sabem quando se devem retirar como sabem
quando se deve enfrentar firmemente o inimigo (a este propósito Sócrates dá o exemplo dos Lacedemónios que são corajosos tanto por recuar
como por enfrentar o inimigo [191c]). Deste modo a definição do general Laques não funciona.
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula
A tradicao-socratica-na-sala-de-aula

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Mais procurados (6)

Instruções da Disciplina para Contabilidade 1o. semestre 2011
Instruções da Disciplina para Contabilidade 1o. semestre 2011Instruções da Disciplina para Contabilidade 1o. semestre 2011
Instruções da Disciplina para Contabilidade 1o. semestre 2011
 
Monografia -ilza_versýýo_20001122_22h00
Monografia  -ilza_versýýo_20001122_22h00Monografia  -ilza_versýýo_20001122_22h00
Monografia -ilza_versýýo_20001122_22h00
 
Guia do professor sentidos12
Guia do professor sentidos12Guia do professor sentidos12
Guia do professor sentidos12
 
Manual Normalizacao TCC
Manual Normalizacao TCCManual Normalizacao TCC
Manual Normalizacao TCC
 
Estudo sobre leitura no 6º ano
Estudo sobre leitura no 6º anoEstudo sobre leitura no 6º ano
Estudo sobre leitura no 6º ano
 
Funções trigonométricas
Funções trigonométricasFunções trigonométricas
Funções trigonométricas
 

Destaque

Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos
Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos
Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos
lucia_nunes
 

Destaque (20)

Portal do professor eleições de um municipio
Portal do professor   eleições de um municipioPortal do professor   eleições de um municipio
Portal do professor eleições de um municipio
 
A filosofia de platão
A filosofia de platãoA filosofia de platão
A filosofia de platão
 
Estatuto do idoso
Estatuto do idosoEstatuto do idoso
Estatuto do idoso
 
consumo e consumismo qual o papel do consumidor consciente
 consumo e consumismo qual o papel do consumidor consciente consumo e consumismo qual o papel do consumidor consciente
consumo e consumismo qual o papel do consumidor consciente
 
Felicidade
FelicidadeFelicidade
Felicidade
 
O uso público da Razão
O uso público da RazãoO uso público da Razão
O uso público da Razão
 
Felicidade sustentável epicuro e_a_felicidade
Felicidade sustentável  epicuro e_a_felicidadeFelicidade sustentável  epicuro e_a_felicidade
Felicidade sustentável epicuro e_a_felicidade
 
Razão na filosofia
Razão na filosofiaRazão na filosofia
Razão na filosofia
 
Agir racional - Razão e Sociedade
Agir racional - Razão e SociedadeAgir racional - Razão e Sociedade
Agir racional - Razão e Sociedade
 
Unidade 2 razão
Unidade 2   razãoUnidade 2   razão
Unidade 2 razão
 
Livro de sociologia 2015 sec. xxi
Livro de sociologia 2015   sec. xxiLivro de sociologia 2015   sec. xxi
Livro de sociologia 2015 sec. xxi
 
Aula2909
Aula2909Aula2909
Aula2909
 
Aborto2010
Aborto2010Aborto2010
Aborto2010
 
Violencia0610
Violencia0610Violencia0610
Violencia0610
 
Violencia1310
Violencia1310Violencia1310
Violencia1310
 
Aula2710
Aula2710Aula2710
Aula2710
 
Violencia0610
Violencia0610Violencia0610
Violencia0610
 
Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos
Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos
Amor no Namoro e Sexualidade e Afetos
 
Aula 3 - A Razão
Aula 3 - A RazãoAula 3 - A Razão
Aula 3 - A Razão
 
Aulas de sociologia ensino médio para o 3 ano
Aulas de sociologia ensino médio para o 3 anoAulas de sociologia ensino médio para o 3 ano
Aulas de sociologia ensino médio para o 3 ano
 

Semelhante a A tradicao-socratica-na-sala-de-aula

Portfolio prática morfofisio final
Portfolio prática  morfofisio finalPortfolio prática  morfofisio final
Portfolio prática morfofisio final
Regis Ferreira
 
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicampTese de duarcides ferreira mariosa na unicamp
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp
citacoesdosprojetos
 
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
luciaguaranys
 
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
luciaguaranys
 
O processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratório
O processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratórioO processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratório
O processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratório
Arie Storch
 
Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011
Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011
Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011
luciaguaranys
 
Guia de estrutura_apresetacao_ipe
Guia de estrutura_apresetacao_ipeGuia de estrutura_apresetacao_ipe
Guia de estrutura_apresetacao_ipe
Alexandre Lima
 

Semelhante a A tradicao-socratica-na-sala-de-aula (20)

Portfolio prática morfofisio final
Portfolio prática  morfofisio finalPortfolio prática  morfofisio final
Portfolio prática morfofisio final
 
Resenha 2a.aula 16 08-11 severino cap ii-v1
Resenha 2a.aula 16 08-11 severino cap ii-v1Resenha 2a.aula 16 08-11 severino cap ii-v1
Resenha 2a.aula 16 08-11 severino cap ii-v1
 
Plano de Ensino de Filosofia / 1º ano
Plano de Ensino  de Filosofia   / 1º ano Plano de Ensino  de Filosofia   / 1º ano
Plano de Ensino de Filosofia / 1º ano
 
Fund.da pesquisa em educação
Fund.da pesquisa em educaçãoFund.da pesquisa em educação
Fund.da pesquisa em educação
 
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicampTese de duarcides ferreira mariosa na unicamp
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp
 
Plano de Ensino de Filosofia - Ensino Médio - 3º ano
Plano de Ensino de Filosofia - Ensino Médio - 3º ano Plano de Ensino de Filosofia - Ensino Médio - 3º ano
Plano de Ensino de Filosofia - Ensino Médio - 3º ano
 
O que é Seminário
O que é SeminárioO que é Seminário
O que é Seminário
 
Interdisciplinaridade
InterdisciplinaridadeInterdisciplinaridade
Interdisciplinaridade
 
Monografia Fátima Pedagogia 2012
Monografia Fátima Pedagogia 2012Monografia Fátima Pedagogia 2012
Monografia Fátima Pedagogia 2012
 
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp 2007
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp 2007Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp 2007
Tese de duarcides ferreira mariosa na unicamp 2007
 
000307467
000307467000307467
000307467
 
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
 
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
Programa Disciplina para Administração 2o. Semestre 2011
 
A LEITURA NA SALA DE AULA: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O GÊNERO TIRA
A LEITURA NA SALA DE AULA: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O GÊNERO TIRAA LEITURA NA SALA DE AULA: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O GÊNERO TIRA
A LEITURA NA SALA DE AULA: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O GÊNERO TIRA
 
O processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratório
O processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratórioO processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratório
O processo de bolonha e a universidade de aveiro: estudo exploratório
 
Metodologia da pesquisa em ciências da educação
Metodologia da pesquisa em ciências da educação Metodologia da pesquisa em ciências da educação
Metodologia da pesquisa em ciências da educação
 
Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011
Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011
Programa da Disciplina para Administração 1o. Semestre 2011
 
Monografia Jeane Pedagogia 2010
Monografia Jeane Pedagogia 2010Monografia Jeane Pedagogia 2010
Monografia Jeane Pedagogia 2010
 
Guia de estrutura_apresetacao_ipe
Guia de estrutura_apresetacao_ipeGuia de estrutura_apresetacao_ipe
Guia de estrutura_apresetacao_ipe
 
GERIATRICA. idoso pdf
GERIATRICA. idoso                    pdfGERIATRICA. idoso                    pdf
GERIATRICA. idoso pdf
 

Mais de MARISE VON FRUHAUF HUBLARD

Mais de MARISE VON FRUHAUF HUBLARD (20)

Animação sobre a segunda guerra mundial
Animação sobre a segunda guerra mundialAnimação sobre a segunda guerra mundial
Animação sobre a segunda guerra mundial
 
Bioética
BioéticaBioética
Bioética
 
Arte e estética
Arte e estéticaArte e estética
Arte e estética
 
A filosofia e seu ensino
A filosofia e seu ensinoA filosofia e seu ensino
A filosofia e seu ensino
 
A filosofia e seu ensino
A filosofia e seu ensinoA filosofia e seu ensino
A filosofia e seu ensino
 
A filosofia na educação básica
A filosofia na educação básicaA filosofia na educação básica
A filosofia na educação básica
 
A atitude científica
A atitude científicaA atitude científica
A atitude científica
 
A arte da guerra
A arte da guerraA arte da guerra
A arte da guerra
 
Karl marx (materialismo histórico)
Karl marx (materialismo histórico)Karl marx (materialismo histórico)
Karl marx (materialismo histórico)
 
Sociologia em Movimento
Sociologia em MovimentoSociologia em Movimento
Sociologia em Movimento
 
Consumo vs consumismo
Consumo vs consumismoConsumo vs consumismo
Consumo vs consumismo
 
Caderno pedagógico de sociologia sta catarina
Caderno pedagógico de sociologia sta catarinaCaderno pedagógico de sociologia sta catarina
Caderno pedagógico de sociologia sta catarina
 
Regras da_abnt_para_formatacao_de_trabalhos_academicos
 Regras da_abnt_para_formatacao_de_trabalhos_academicos Regras da_abnt_para_formatacao_de_trabalhos_academicos
Regras da_abnt_para_formatacao_de_trabalhos_academicos
 
O leviatã de thomas hobbes
O leviatã de thomas hobbesO leviatã de thomas hobbes
O leviatã de thomas hobbes
 
As teorias liberais e socialistas na idade moderna
As teorias liberais e socialistas na idade modernaAs teorias liberais e socialistas na idade moderna
As teorias liberais e socialistas na idade moderna
 
Aulas de sociologia ensino médio para 1 anos
Aulas de sociologia ensino médio para 1 anosAulas de sociologia ensino médio para 1 anos
Aulas de sociologia ensino médio para 1 anos
 
Aulas de sociologia ensino médio para o 2 ano em.
Aulas de sociologia ensino médio   para o 2 ano em.Aulas de sociologia ensino médio   para o 2 ano em.
Aulas de sociologia ensino médio para o 2 ano em.
 
Tempo histórico e tempo lógico na
Tempo histórico e tempo lógico naTempo histórico e tempo lógico na
Tempo histórico e tempo lógico na
 
dicionario-de-filosofia-e-ciencias-culturais
 dicionario-de-filosofia-e-ciencias-culturais dicionario-de-filosofia-e-ciencias-culturais
dicionario-de-filosofia-e-ciencias-culturais
 
Apostila de sociologia para o 1º ano ensino médio
Apostila de sociologia para o 1º ano ensino médioApostila de sociologia para o 1º ano ensino médio
Apostila de sociologia para o 1º ano ensino médio
 

Último

Sistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturas
Sistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturasSistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturas
Sistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturas
rfmbrandao
 
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptxOs editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
TailsonSantos1
 
O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...
O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...
O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...
azulassessoria9
 
ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024
ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024
ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024
azulassessoria9
 

Último (20)

Sistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturas
Sistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturasSistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturas
Sistema articular aula 4 (1).pdf articulações e junturas
 
Apresentação | Símbolos e Valores da União Europeia
Apresentação | Símbolos e Valores da União EuropeiaApresentação | Símbolos e Valores da União Europeia
Apresentação | Símbolos e Valores da União Europeia
 
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptxOs editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
 
Slides Lição 6, Betel, Ordenança para uma vida de obediência e submissão.pptx
Slides Lição 6, Betel, Ordenança para uma vida de obediência e submissão.pptxSlides Lição 6, Betel, Ordenança para uma vida de obediência e submissão.pptx
Slides Lição 6, Betel, Ordenança para uma vida de obediência e submissão.pptx
 
Educação Financeira - Cartão de crédito665933.pptx
Educação Financeira - Cartão de crédito665933.pptxEducação Financeira - Cartão de crédito665933.pptx
Educação Financeira - Cartão de crédito665933.pptx
 
P P P 2024 - *CIEJA Santana / Tucuruvi*
P P P 2024  - *CIEJA Santana / Tucuruvi*P P P 2024  - *CIEJA Santana / Tucuruvi*
P P P 2024 - *CIEJA Santana / Tucuruvi*
 
O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...
O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...
O estudo do controle motor nada mais é do que o estudo da natureza do movimen...
 
ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024
ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024
ATIVIDADE 2 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024
 
INTERTEXTUALIDADE atividade muito boa para
INTERTEXTUALIDADE   atividade muito boa paraINTERTEXTUALIDADE   atividade muito boa para
INTERTEXTUALIDADE atividade muito boa para
 
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdfApresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
 
O desenvolvimento é um conceito mais amplo, pode ter um contexto biológico ou...
O desenvolvimento é um conceito mais amplo, pode ter um contexto biológico ou...O desenvolvimento é um conceito mais amplo, pode ter um contexto biológico ou...
O desenvolvimento é um conceito mais amplo, pode ter um contexto biológico ou...
 
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfCurrículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
 
M0 Atendimento – Definição, Importância .pptx
M0 Atendimento – Definição, Importância .pptxM0 Atendimento – Definição, Importância .pptx
M0 Atendimento – Definição, Importância .pptx
 
Historia de Portugal - Quarto Ano - 2024
Historia de Portugal - Quarto Ano - 2024Historia de Portugal - Quarto Ano - 2024
Historia de Portugal - Quarto Ano - 2024
 
LENDA DA MANDIOCA - leitura e interpretação
LENDA DA MANDIOCA - leitura e interpretaçãoLENDA DA MANDIOCA - leitura e interpretação
LENDA DA MANDIOCA - leitura e interpretação
 
O que é arte. Definição de arte. História da arte.
O que é arte. Definição de arte. História da arte.O que é arte. Definição de arte. História da arte.
O que é arte. Definição de arte. História da arte.
 
Caderno de exercícios Revisão para o ENEM (1).pdf
Caderno de exercícios Revisão para o ENEM (1).pdfCaderno de exercícios Revisão para o ENEM (1).pdf
Caderno de exercícios Revisão para o ENEM (1).pdf
 
Cartão de crédito e fatura do cartão.pptx
Cartão de crédito e fatura do cartão.pptxCartão de crédito e fatura do cartão.pptx
Cartão de crédito e fatura do cartão.pptx
 
Sistema de Bibliotecas UCS - Cantos do fim do século
Sistema de Bibliotecas UCS  - Cantos do fim do séculoSistema de Bibliotecas UCS  - Cantos do fim do século
Sistema de Bibliotecas UCS - Cantos do fim do século
 
Monoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptx
Monoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptxMonoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptx
Monoteísmo, Politeísmo, Panteísmo 7 ANO2.pptx
 

A tradicao-socratica-na-sala-de-aula

  • 1. Relatório Estágio Mestrado em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário Trabalho realizado sob a orientação do Doutor Artur Manuel Sarmento Manso Universidade do Minho Instituto de Educação Outubro de 2011 Domingos José Matos Sousa Faria A Tradição Socrática na Sala de Aula
  • 2. DECLARAÇÃO Nome: Domingos José Matos Sousa Faria Endereço electrónico: df@domingosfaria.net Telefone: 917169737 Número do Bilhete de Identidade: 13204268 Título do Relatório: A Tradição Socrática na Sala de Aula Orientador: Doutor Artur Manuel Sarmento Manso Ano de conclusão: 2011 Designação do Mestrado: Mestrado em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO INTEGRAL DESTA RELATÓRIO APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE. Universidade do Minho, ___/___/______ Assinatura: ________________________________________________
  • 3. iii “E se eu disser que o maior bem que pode haver para um homem é, todos os dias, discorrer sobre a excelência e sobre outros temas acerca dos quais me ouvíeis dialogar, investigando-me a mim e aos outros. E se eu vos disser que uma vida sem pensar não é digna de ser vivida por um homem, ainda menos vos terei persuadido. É como digo, homens, não sois fáceis de convencer!” Platão, Apologia de Sócrates, 38a.
  • 4. iv AGRADECIMENTOS Agradeço à orientadora cooperante do meu estágio, Maria Clara Gomes, pelas vivas discussões críticas que tivemos, as quais me permitiram repensar melhor nas metodologias a utilizar na sala de aula e na melhor forma de leccionar alguns dos conteúdos científicos. Estou também muito grato com os professores de filosofia da Escola Secundária Alberto Sampaio, onde realizei o meu estágio, pelo facto de me acolherem calorosamente, por me convidarem para proferir algumas conferências na escola, e por me solicitarem a participar activamente noutras actividades extracurriculares. Lembro com muita gratidão a turma em que leccionei filosofia, a qual me deu um profundo gozo ensinar, nomeadamente ao incentivar os alunos a pensar de forma crítica, criativa e autónoma. Agradeço ao meu supervisor de estágio, Artur Manso, por toda a disponibilidade no acompanhamento do meu estágio. Estou-lhe grato sobretudo pelas discussões que tivemos em relação às minhas opções metafilosóficas e didácticas que me estimularam a justificar melhor as posições e teses que eu defendo. A Aires Almeida, João Carlos Silva, João Paulo Maia, Patrícia Fernandes, Rolando Almeida, Tomás Magalhães Carneiro, entre outros, estou bastante grato pelos comentários e críticas que fizeram às ideias que defendo neste texto. Agradeço a Desidério Murcho por me indicar algumas das referências bibliográficas que examinei criticamente e que me ajudaram a fundamentar ainda melhor as minhas ideias. Estou imensamente reconhecido pelo grande apoio de Fátima e José Faria. Agradeço, por fim, a Vera Ribeiro por todo o acompanhamento e presença.
  • 5. v RESUMO EM PORTUGUÊS O presente trabalho intitulado A Tradição Socrática na Sala de Aula é o relatório de estágio em Ensino da Filosofia no Ensino Secundário que decorreu no ano lectivo de 2010/2011 na Escola Secundária Alberto Sampaio – Braga, numa turma do 10º ano, onde se leccionou ética, filosofia política e filosofia da religião. Nele se defende que a melhor forma de ensinar filosofia no ensino secundário é praticar na sala de aula a tradição socrática, ou seja, a tradição que estimula a compreensão, a discussão e o exame crítico entre os alunos dos problemas, teorias, argumentos e conceitos da filosofia. O relatório divide-se em quatro capítulos. No primeiro esclarecemos os problemas que impulsionaram esta reflexão, o plano que se seguiu e o contexto onde se praticou a tradição socrática. No segundo capítulo, reflectimos sobre os vícios mais recorrentes no ensino da filosofia. No terceiro capítulo abordamos pormenorizadamente a herança, a natureza, a relevância e os elementos da filosofia de tradição socrática. Finalmente, no quarto capítulo, relatamos o que concretizamos na prática quanto ao método do ensino da filosofia aqui defendido. Para além dos capítulos centrais, o relatório contém, ainda, uma introdução, uma conclusão, uma bibliografia e um apartado de anexos. Palavras-Chave: Relatório de Estágio, Didáctica da Filosofia, Metodologia Socrática.
  • 6. vi RESUMO EM INGLÊS The present paper, entitled The Socratic Tradition in the Classroom, is the report of the internship in Teaching Philosophy in High School which took place in the academic year of 2010/2011 in the Alberto Sampaio High School - Braga, during the course of which ethics, political philosophy and religion were taught. It is argued therein that the best way to teach philosophy in secondary school is to practice the Socratic tradition within the classroom, which is to say the tradition that stimulates the understanding, discussion and critical examination among students of the problems, theories, arguments and concepts of philosophy. The report is divided into four chapters. The first aims to clarify the problems that triggered this reflection, the plan which followed and the context in which the Socratic tradition was put into practice. In the second chapter, we reflected on the most recurrent vices in the teaching of philosophy. In the third chapter, we address in detail the heritage, nature, relevance and the elements in the philosophy of Socratic tradition. Finally, in the fourth chapter, we report what we achieved in practice regarding the method for teaching philosophy defended herein. Apart from the central chapters, the report contains, in addition, an introduction, a bibliography and a supplement of annexes. Keywords: Internship Report, Philosophy Didactics, Socratic Methodology.
  • 7. vii ÍNDICE AGRADECIMENTOS.................................................................................................IV RESUMO EM PORTUGUÊS........................................................................................V RESUMO EM INGLÊS ..............................................................................................VI INTRODUÇÃO...........................................................................................................1 1. O PROBLEMA, O PLANO E O CONTEXTO..............................................................3 2. OS VÍCIOS NO ENSINO DA FILOSOFIA..................................................................9 2.1. OS DOIS EXTREMOS .......................................................................................................9 2.2. AS METODOLOGIAS SOFÍSTICAS..................................................................................16 3. A CONCEPÇÃO SOCRÁTICA DE ENSINO.............................................................29 3.1. A HERANÇA SOCRÁTICA ...............................................................................................29 3.2. A NATUREZA E RELEVÂNCIA DA FILOSOFIA DE TRADIÇÃO SOCRÁTICA..........................43 3.3. OS ELEMENTOS DA FILOSOFIA ....................................................................................53 4. A PRÁTICA DA TRADIÇÃO SOCRÁTICA ...............................................................60 4.1. A ESTRUTURA DAS AULAS ............................................................................................60 4.2. AVALIAÇÃO DA PRÁTICA...............................................................................................68 CONCLUSÃO ..........................................................................................................73 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................76 ANEXOS .................................................................................................................80 ANEXO 1 – ALGUNS RESULTADOS DA FICHA SÓCIO-ECONÓMICA DA TURMA.................81 ANEXO 2 – EXEMPLO DE UMA PLANIFICAÇÃO................................................................82 ANEXO 3 – EXEMPLO DE UM PLANO DE AULA................................................................84 ANEXO 4 – EXEMPLO DE UM MATERIAL PARA LECCIONAÇÃO ........................................86 ANEXO 5 – EXEMPLO DE UMA SÍNTESE TEXTUAL...........................................................90 ANEXO 6 – EXEMPLO DE UMA SÍNTESE ESQUEMÁTICA..................................................91 ANEXO 7 – EXEMPLO DE EXCERTO E GUIÃO DE LEITURA...............................................93 ANEXO 8 – EXEMPLO DE UMA FICHA FORMATIVA ..........................................................94 ANEXO 9 – EXEMPLO DE UMA FICHA DE AVALIAÇÃO QUALITATIVA ................................95 ANEXO 10 – QUESTIONÁRIO...........................................................................................96 ANEXO 11 – RESULTADOS DO QUESTIONÁRIO ...............................................................98
  • 8. 1 INTRODUÇÃO A Tradição Socrática na Sala de Aula reflecte a metodologia, a didáctica e a prática que considero adequadas na leccionação da filosofia no ensino secundário. Penso que a leccionação da filosofia deve procurar fundamentalmente ensinar os alunos a pensar e a examinar criticamente ideias, por isso o ensino da filosofia deve estar inserido na tradição encetada por Sócrates, ou seja, na tradição de um constante exame crítico. Assim, as finalidades primordiais deste texto são as seguintes: 1) Defender a tradição socrática no ensino da filosofia em contexto de sala de aula, 2) refutar as principais metodologias e atitudes que desvirtuam um bom ensino da filosofia, 3) relatar como se desenvolveu a minha experiência de leccionação ao procurar que os alunos compreendam e discutam os problemas, teorias, argumentos e conceitos da filosofia, num clima de liberdade e de pensamento crítico. Estas finalidades foram devidamente aprofundadas ao longo de quatro capítulos. No primeiro capítulo abordo o problema, o plano, e o contexto, tentando clarificar os problemas principais, didácticos e metafilosóficos, que estimularam esta reflexão. Como resposta aos problemas iniciais, esclareço a tese que defenderei ao longo de todo o texto: Concretizar na sala de aula a tradição socrática, evidenciando que é uma tese corroborada pela legislação em vigor e pelas orientações existentes sobre o ensino da filosofia. A seguir faço referência ao plano que esbocei para orientar a minha acção, tanto na vertente investigativa como na pedagógica, expondo os objectivos e as estratégias que adoptei. Por fim, apresento o contexto em que se desenvolveu o plano: A escola, os seus documentos, a turma e os alunos. No segundo capítulo apresento o que, em minha opinião, não deve ser o ensino da filosofia, dividindo em duas categorias os vícios que podem desvirtuar a tradição socrática na sala de aula. A primeira refere-se a dois extremos que se podem adoptar ao ensinar filosofia: Por um lado, existe a concepção mecanicista de ensino, em que apenas interessa debitar e reproduzir fielmente a matéria, originando perversões como o historicismo, o dogmatismo, e a infalibilidade. Por outro lado, existe a concepção orgânica de ensino, em que se despreza a exposição de conteúdos e se valoriza apenas a descoberta por parte do aluno, podendo o debate sério e rigoroso de ideias degenerar em mero senso comum, pelo facto de se desconhecer os instrumentos básicos do filosofar e as informações teóricas relevantes. A segunda categoria de vícios refere-se às metodologias sofísticas que frequentemente acabam por invadir e corromper o
  • 9. 2 ensino da filosofia, em que denuncio as estratégias de manipulação mental, as atitudes de relativismo cognitivo, de subjectivismo e de postura estética ou decorativa. No terceiro capítulo exponho o que entendo dever ser o ensino da filosofia. Num primeiro ponto recorro a uma das principais fontes da prática filosófica, Sócrates, o qual fez da filosofia uma actividade crítica, reforçando ser pertinente inserir os alunos na herança socrática, assumindo as atitudes, entre outras, de douta ignorância, de questionamento e de exame crítico. Para analisar estas atitudes, exploro a estrutura dos diálogos socráticos. Num segundo ponto procuro elucidar em particular a actividade de exame crítico socrático, clarificando o conceito de ―crítica‖ e as suas aplicações à filosofia e ao seu ensino, referindo a relevância que a filosofia como actividade crítica pode ter na vida do ser humano e da sociedade. No último ponto apresento os elementos constituintes da filosofia de tradição socrática, ou seja, os problemas, as teorias, os argumentos e os conceitos, analisando-se também a validade, solidez e cogência argumentativa. O ensino da filosofia deve ser sobretudo a leccionação crítica destes seus elementos constituintes. No quarto capítulo descrevo o modo como concretizei na sala de aula a tradição socrática, evitando os vícios objectados do segundo capítulo e trazendo para a prática os elementos defendidos no terceiro capítulo. Numa primeira parte explico detalhadamente a estrutura e os momentos principais da minha leccionação da filosofia. Para além disso, realizo pequenos excursos sobre as regras que se devem assumir na sala de aula para que as discussões críticas decorram proficuamente, sobre os recursos pedagógicos e materiais didácticos utilizados na leccionação, e sobre a avaliação dos alunos. Na segunda parte procedo a uma avaliação global do plano do relatório. Para isso, foi importante o recurso a estratégias de observação e de inquérito para sondar os dados para a avaliação que evidenciaram a valorização por parte dos alunos desta metodologia socrática na sala de aula. Na conclusão apresento uma síntese da minha tese e confronto-a com uma das principais objecções, realizando, ainda, uma súmula das principais ideias que foram apresentadas ao longo dos capítulos e a discussão de uma das principais limitações para a implantação apropriada da tradição socrática na sala de aula. Para ser coerente com a tradição socrática o meu desejo é que estas ideias não sejam acatadas passiva e acriticamente, mas que sejam discutas, analisadas e examinadas criticamente pelos leitores.
  • 10. 3 1. O PROBLEMA, O PLANO E O CONTEXTO A reflexão filosófica começa sempre por problemas que se tentam resolver. Na reflexão que agora enceto também existe um problema central para o qual pretendo encontrar uma solução razoável. O problema pode ser formulado da seguinte forma: Como se deve leccionar filosofia no ensino secundário? Este é um problema didáctico ou metodológico que se prende fundamentalmente com o modo, métodos, técnicas e práticas de ensinar filosofia. Posso subdividir este problema em muitas outras questões, como por exemplo: Quais as melhores estratégias e práticas de ensino em filosofia em contexto escolar? Que representações têm os alunos sobre as diversas estratégias de ensino da filosofia? Porém, subjacente a todas estas questões didácticas encontra- se o seguinte problema metafilosófico: O que é a filosofia? A metafilosofia é uma disciplina filosófica que estuda a própria filosofia e a sua natureza; ou seja, é uma filosofia da filosofia. Mas, por que razão é importante dedicar-me a investigar qual é a natureza da filosofia? Considero que a investigação metafilosófica é muito pertinente, pois sobre uma determinada concepção da filosofia forma-se consequentemente uma determinada concepção didáctica. Ou seja, existem consequências directas entre o modo de entender a natureza da filosofia e o modo de a ensinar. Por exemplo, se eu entender a filosofia como um corpo de conhecimentos absolutamente consensuais e substanciais, então o modo de ensinar filosofia será quase só a transmissão fiel destes conteúdos. No entanto, se eu entender a filosofia não como um conjunto de conteúdos dogmáticos ou infalíveis, mas essencialmente como uma actividade crítica, então o modo de ensinar filosofia alterar-se-á, ficando agora assente no desenvolvimento de competências de pensamento e exame crítico por parte dos alunos. Portanto, se quero reflectir de modo fundamentado na questão didáctica inicial, não poderei menosprezar de forma alguma a questão metafilosófica. Mas qual é a relevância de tratar estes problemas didácticos e metafilosóficos? Considero que existem duas boas razões para trabalhar seriamente estes problemas. Uma
  • 11. 4 primeira razão, talvez mais pessoal, é a seguinte: Como vou leccionar filosofia no ensino secundário é conveniente analisar, reflectir e saber quais são as melhores estratégias de ensino para esta disciplina. Porém, julgo que estes não são problemas que apenas me interessam a mim, mas a um público bastante alargado. Aliás, penso que reflectir sobre estes problemas iniciais é incontornável para qualquer professor que pretenda leccionar bem filosofia ou qualquer outra área curricular. Face a determinados conteúdos que o professor tenha de leccionar tem sempre de se questionar, mesmo que não seja explicitamente, de que forma quer ensinar a matéria. Pode achar pertinente que os alunos apenas decorem aquilo que o professor está a transmitir, ou pode querer que os alunos descubram e aprendam por si mesmos as matérias, ou pode ainda pensar que é mais plausível uma posição intermédia, entre outras possibilidades. Portanto, estas são questões basilares sobre as quais os professores não podem escapar, por mais que o desejem. Uma segunda razão, talvez mais geral, é a seguinte: Não reflectir seriamente sobre estes problemas didácticos pode conduzir à aceitação acrítica de uma qualquer metodologia para ensinar filosofia ou qualquer outra disciplina. Desta forma pode-se estar sujeito a seguir metodologias que acabam por ser perversas para os alunos, prejudicando-os seriamente na aprendizagem e no desenvolvimento como cidadãos. (Em todo o capítulo 2 denuncio algumas das principais metodologias do ensino da filosofia que me parecem nocivas e prejudiciais). Assim, estes problemas iniciais aparecem-me como imperativos sobre os quais vale a pena reflectir. Penso que é pertinente clarificar desde já qual é a minha posição pessoal em relação aos problemas iniciais. De uma forma sintética, posso esclarecer que irei defender a seguinte tese: Como a filosofia é fundamentalmente uma actividade crítica, então o seu ensino deve estimular os alunos não apenas a compreender os problemas e as ideias dos filósofos, mas sobretudo a discutir e a examinar criticamente esses problemas e ideias. Portanto, defenderei uma metodologia activa, em que se coloca os alunos a questionar, a pensar sobre problemas, a procurar razões, a apontar objecções, a analisar argumentos, a examinar criticamente a plausibilidade das teorias, a discutir e a fundamentar ideias. A esta tese chamo ―tradição socrática na sala de aula‖, tal como o título o indica, pois é uma metodologia e uma atitude didáctica que se aproxima muito daquilo que Sócrates nos habitou a fazer há cerca de dois mil e quinhentos anos, ou seja, a examinar criticamente ideias. Desenvolverei esta tese de forma pormenorizada ao longo dos próximos capítulos.
  • 12. 5 Para já é importante referir que esta tese não contradiz a legislação educativa em vigor, indo mesmo ao encontro daquilo que advoga a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986) nos seus princípios gerais e organizativos. A este propósito vale a pena citar o ponto 5 do artigo 2º, que refere: ―A educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva‖. Portanto, constata-se na Lei de Bases o apelo para a formação de cidadãos que sejam capazes de pensar por si de forma crítica e criativa e que sejam capazes de intervir de forma activa e profícua na sociedade. Fica aqui então o desafio para a formação de pessoas autónomas, interventivas, críticas e com uma cultura mais alargada. Considero que a filosofia tem aqui um enorme papel no currículo, quanto à formação geral, exactamente pelo papel que tem e que deverá continuar a ter, na promoção do pensamento e exame crítico, bem como no concomitante incentivo de um espírito de abertura e diálogo nos alunos. Ora, se o estímulo do pensamento crítico nos alunos é bastante enriquecedor para a formação dos cidadãos e da sociedade em geral, então penso que não se pode perder a oportunidade de leccionar a filosofia de uma forma crítica, aberta e dialogante. Pelo contrário, o silenciamento deste espírito crítico, coagindo-se as pessoas a atitudes de dogmatismo ou endoutrinamento, costuma ser a raiz de muitos males pessoais e sociais. A propósito destas ideias, Koïchiro Matsuura, director-geral da UNESCO entre 1999 e 2009, refere de forma pertinente: ―¿Qué puede ser la enseñanza de la filosofía, sino la de la libertad y de la razón crítica? En efecto, la filosofía implica el ejercicio de la libertad gracias a la reflexión. Se trata, por ende, de juzgar sobre la base de la razón y no de expresar meras opiniones, no solo de saber sino también de comprender el sentido y los principios del saber, de actuar para desarrollar el sentido crítico, baluarte por excelencia contra toda forma de pasión doctrinaria‖ (UNESCO 2007: ix). De facto, considero que é bastante plausível esta ideia da filosofia como uma escola da liberdade e da razão crítica e, consequentemente, o seu ensino deve ser realizado sobretudo de uma forma crítica, livre e dialógica. O programa oficial de filosofia para o ensino secundário
  • 13. 6 corrobora igualmente esta minha tese, apesar das suas evidentes limitações1 , quando realça nos seus objectivos gerais aspectos como: Promover ―um pensamento informado, metódico e crítico‖; ―desenvolver um pensamento autónomo e emancipado‖; ―analisar a problemática sobre a qual um texto toma posição, identificando o tema/problema‖; ―analisar a estrutura lógico- argumentativa de um texto, pesquisando os argumentos, dando conta do percurso argumentativo, explorando possíveis objecções e refutações‖; ―assumir posição pessoal relativamente às teses e argumentos em confronto‖, entre outros (Almeida 2001: 9-10). Portanto, fica claro que a tese que adopto como resposta aos problemas iniciais é de certa forma aceite tanto pela Lei de Bases do Sistema Educativo e pelas orientações da UNESCO, bem como pelo programa oficial de filosofia. No entanto, com isto ainda não se prova que esta tese é a mais plausível; para já só salientei que não existe contradição entre a minha tese e a legislação ou outros documentos orientadores do ensino da filosofia, como também é o caso do documento Orientações para a Leccionação do Programa de Filosofia (2005). Para mostrar a razoabilidade desta tese e para responder às questões iniciais de uma forma ponderada esbocei um plano que contempla os seguintes objectivos: 1) Reflectir sobre as melhores estratégias didácticas e metodológicas para o ensino da filosofia; 2) Proceder a uma reflexão metafilosófica; 3) Avaliar criticamente a utilização da estratégia e metodologia socrática na leccionação da filosofia em contexto de sala de aula; 4) Analisar as representações dos alunos sobre as estratégias a utilizar na aula de filosofia; 5) Aplicar as melhores estratégias didácticas na leccionação da ética, da filosofia política e da filosofia da religião. Para cumprir os objectivos deste plano adoptei, entre outras, as seguintes estratégias: A) Reflexão e exame crítico da literatura referente às estratégias de ensino da filosofia; B) Aplicação das melhores estratégias de ensino de filosofia à leccionação da ética, da filosofia política e da filosofia da religião (a concretizar durante o meu período de estágio); C) Averiguação e avaliação por observação – principalmente observando aulas para ver se os alunos reagem melhor à metodologia socrática ou a métodos mais expositivos e informativos – e por inquérito (anexo 10) – questionando os momentos da aula que os alunos mais gostam, os métodos e estratégias que preferem e que os ajudam na aprendizagem e prática da filosofia. 1 Desidério Murcho (2003), entre outros, apontam alguns defeitos no actual programa de filosofia, como o facto de privilegiar demasiado a exegese e o comentário de textos; ficar muito agarrado aos contextos histórico-culturais secundarizando-se assim a fundamental discussão de ideias; tratar por vezes de temas que não são apropriadamente filosóficos, mas antes de âmbito sociológico ou antropológico; misturar e confundir disciplinas filosóficas, até sendo alterada as designações tradicionais; evitar problemas, teorias e argumentos centrais da filosofia; ser demasiado vago e ambíguo; entre muitas outras limitações mais específicas relacionadas com a natureza da filosofia, do seu ensino e avaliação.
  • 14. 7 Como se pode constatar no meu plano, existe por um lado a vertente de investigação e por outro a vertente pedagógica. Ou seja, no que refere à vertente de investigação procurei examinar como se deve e como não se deve ensinar filosofia no ensino secundário, o que corresponde sobretudo aos capítulos 2 e 3 deste relatório. No que se refere à vertente pedagógica procurei aplicar na leccionação em contexto de sala de aula o que reflecti sobre o ensino da filosofia, como se poderá ver no capítulo 4. Estas duas vertentes estão intimamente relacionadas, uma vez que o resultado a que chegar na vertente investigativa irá ter consequências directas na vertente pedagógica, ou seja, na forma como lecciono a filosofia. A vertente pedagógica foi desenvolvida ao longo do meu estágio na Escola Secundária Alberto Sampaio. Esta escola encontra-se na freguesia de S. Lázaro na cidade de Braga e adoptou o nome de Alberto Sampaio, minhoto pertencente à geração de 70 e à ―escola coimbrã‖, destacando-se nas áreas da história e etnografia. A Escola Secundária Alberto Sampaio capta alunos de diversos estratos sociais, sobretudo da zona centro e sul da cidade de Braga. Para cumprir a sua missão educativa oferece um vasto elenco de apoios aos alunos, como a biblioteca, o centro de recursos, as salas de estudo, o acompanhamento dos alunos e o apoio pedagógico acrescido, as palestras sobre os mais diversos assuntos, as actividades de enriquecimento curricular (entre as quais se podem salientar o desporto escolar, as oficinas, os clubes, os ateliers, a revista Defacto), entre outros. É uma escola bem equipada, com quadros interactivos, computadores, projectores, auditórios, tendo sido completamente renovada. Tem, portanto, condições para ser uma escola de excelência. Esta excelência está bem patente no relatório de avaliação externa (Fernandes 2007), em que recebeu ―muito bom‖ em todos os âmbitos: Resultados escolares, prestação do serviço educativo, organização e gestão escolar, liderança, capacidade de auto-regulação e melhoria da escola. Dos objectivos gerais do Projecto Educativo (2008: 15) da Escola Secundária Alberto Sampaio evidencio dois: 1) ―Promover uma cultura de liberdade, participação, reflexão e avaliação‖; 2) ―Criar condições que permitam a consolidação e aprofundamento da autonomia pessoal conducente a uma realização individual e socialmente gratificante‖. Estes objectivos estão igualmente consagrados nos valores fundamentais do Regulamento Interno (2010) da Escola Secundária Alberto Sampaio, nomeadamente nos pontos 3 e 4 do 2º artigo. São também estes aspectos que procurei cultivar na escola e na sala de aula ao longo da leccionação. Quero ainda referir que o manual de filosofia adoptado por esta escola ajuda de facto na promoção de uma cultura de liberdade, autonomia e de reflexão crítica patentes tanto no
  • 15. 8 Projecto Educativo, como no Regulamento Interno desta escola. Considero que A Arte de Pensar (2010) é um dos manuais existentes que mais estimula a uma discussão livre e crítica de ideias, fomentando nos alunos a adopção de posições pessoais autónomas e cuidadosamente fundamentadas. A turma em que leccionei, e em que apliquei as estratégias didácticas que defendo ao longo dos próximos capítulos, foi o 10º E, constituída por 27 alunos, sendo 17 do sexo feminino e 10 do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 14 e os 17 anos, mas a maioria ronda os 15 anos. Procurei atender às peculiaridades de cada aluno, às suas atitudes e dificuldades, de modo a ajudá-los numa melhor aprendizagem da filosofia; a este propósito a ficha sócio-económica da turma (anexo 1) teve também bastante utilidade para começar a analisar o perfil da turma. Como se pode ver, são alunos adolescentes, muitas vezes demasiado formatados (ou endoutrinados) pelos pais, pela escola e pela sociedade2 , que têm muito a ganhar com um ensino da filosofia que seja crítico e que os ajude a reflectir sobre a realidade, a examinar as diferentes mundividências, a procurar boas razões para defenderem as suas posições, a saber argumentar; em suma, defendo um ensino da filosofia que ajuda na formação de cidadãos críticos, livres, autónomos. Chegou, então, o momento de começar a reflectir criticamente sobre o assunto do relatório: O que se entende por tradição socrática na sala de aula? 2 A propósito desde endoutrinamento e do antídoto da filosofia a este endoutrinamento, é pertinente sublinhar o que uma aluna me disse no final do ano lectivo: ―Acho que desde pequenos os nossos pais nos «obrigam» a seguir uma religião sem termos opção de escolha, e muitas perguntas que fazemos eles não nos conseguem responder, não nos conseguem dar razões porque se calhar nem eles as têm, e com a filosofia da religião pensamos melhor nas nossas crenças, nas nossas perguntas sem resposta‖.
  • 16. 9 2. OS VÍCIOS NO ENSINO DA FILOSOFIA Começarei por reflectir sobre aquilo que expressamente não faz parte da tradição filosófica milenar iniciada por Sócrates e que pode perverter seriamente um bom ensino da filosofia. Neste capítulo vou denunciar alguns vícios no ensino da filosofia como a concepção mecanicista do ensino, a perspectiva orgânica, as metodologias sofísticas antigas e pós- modernas de manipulação mental, de relativismo, de subjectivismo e de atitude estética ou decorativa, entre outros. 2.1. Os dois extremos O ensino da filosofia pode cair em dois extremos. Seguindo a terminologia de T. W. Moore (1982), num dos extremos está a ―concepção mecanicista‖ de ensino, em que tudo o que interessa é debitar conteúdos; no outro extremo, está a ―concepção orgânica‖, em que se despreza a componente expositiva do professor, sendo os alunos chamados a construírem por eles mesmos o conhecimento. Considero que cada uma destas concepções de ensino, se funcionarem isoladamente, podem conduzir a muitas perversões no ensino da filosofia. A concepção mecanicista de ensino emerge a partir da perspectiva antropológica do ser humano como um mecanismo, ou mais especificamente como um ―sistema de inputs e outputs‖, em que o professor pode formatar e modelar completamente o aluno. Deste modo, o professor, que é a autoridade e que possui o conhecimento, faz a exposição da matéria e o aluno limita-se a assimilar e a repetir. A relação pedagógica aqui existente é unilateral: O professor é um agente activo que transmite determinadas unidades de informação e o aluno é um receptáculo passivo que meramente guarda e repete essa informação. Assim, o aluno funciona de forma análoga a um computador: O professor insere os inputs de informação que são guardados no disco rígido (cérebro) do aluno, e mais tarde (por exemplo nos testes) o professor pede ao aluno para fazer os outputs das informações, ou seja, imprimir o que estava guardado em arquivo. Esta perspectiva mecanicista no ensino da filosofia até pode ser considerada por muitos como algo vantajoso; pois, pensa-se que os professores têm um repositório completo de conteúdos que pode ser exposto aos alunos e estes últimos obtêm a aprovação na disciplina ao
  • 17. 10 reproduzirem acrítica e fielmente esses conteúdos. Concebe-se, assim, a filosofia como tendo um corpo de resultados amplamente consensuais que podem ser transmitidos tal como na biologia ou na física (esquecendo-se aliás que nas fronteiras destas disciplinas muitas questões estão em discussão, e até muito mais na filosofia em que a maioria dos problemas continuam em aberto e os resultados consensuais são pouquíssimos)3 . No entanto, será ainda filosofia a transmissão mecânica de conteúdos? Penso que esta concepção de ensino é contrária à atitude filosófica, podendo mesmo constituir um impedimento para a filosofia de tradição socrática. Entre outras perversões, enumero brevemente os problemas que a concepção mecanicista pode trazer para o ensino da filosofia: O historicismo, o dogmatismo, e uma suposta infalibilidade. Com o historicismo reduz-se a filosofia apenas à sua história; e em vez de se ensinar filosofia, ensina-se somente história da filosofia ou história das ideias. Assim, em vez de estimular o exame crítico das ideias dos filósofos, o professor limita-se a ficar pelas questões hermenêuticas e pelos contextos históricos. Nesta perspectiva os alunos não são convidados a analisar a plausibilidade das teorias e argumentos que os filósofos ao longo da história avançaram, mas apenas são chamados a coleccionar e a reproduzir acriticamente uma história de ideias para os testes ou trabalhos. Por exemplo, seguindo o historicismo e a estratégia mecanicista de ensino, os alunos não são estimulados para querer saber se o que Stuart Mill ou Kant dizem relativamente à fundamentação da moral é plausível ou não; tudo o que se pede aos alunos é para assimilarem o que o professor expõe destes filósofos para depois debitarem de forma exacta nas fichas de avaliação. Para além desta situação, o historicismo e o mecanicismo podem fomentar algo mais grave como, por exemplo, alunos que repetem o que lêem e ouvem, mas que não compreendem e pensam sobre o que estão a decorar e a repetir. Deste modo, a escola demite-se de formar cidadãos autónomos e com pensamento crítico para começar a lançar para a sociedade papagaios ou operadores de símbolos do quarto chinês de Searle4 . Mas como é que ao repetir ideias feitas e ao evitar a discussão crítica de ideias se pode formar cidadãos e profissionais solidamente preparados para resolverem os problemas reais da sociedade?! 3 Pelo facto de se afirmar que a maioria dos problemas da filosofia está em aberto e que os resultados consensuais são escassos não se está a advogar necessariamente um elogio ao questionamento sem rumo desprezando-se os resultados. Pelo contrário, o que se pretende é saber se uma determinada teoria ou argumento é consensual e substancialmente plausível ou não, se por exemplo Deus existe ou não, e para isso ―tentamos e voltamos a tentar e voltamos a tentar‖ como costuma argumentar Desidério Murcho (2008). 4 O quarto chinês é uma experiência mental apresentada por John Searle (1980) para criticar a inteligência artificial forte, argumentando a impossibilidade de estados mentais genuínos nos computadores adequadamente programados para tal efeito. Para isso, o autor imagina uma pessoa fechada dentro de um quarto que formal e sintacticamente combina bem símbolos chineses (ao seguir determinadas regras) mas que não percebe nem fala realmente chinês. De forma análoga, penso que podemos ter estudantes que debitem bem nos testes e trabalhos, mas que não compreendem nem fazem minimamente filosofia.
  • 18. 11 O dogmatismo é outro problema do ensino mecanicista. Neste tipo de ensino o aluno não pode colocar coisa alguma em causa; pois, tudo o que tem de fazer é reproduzir fielmente. No entanto, isto leva a considerar a informação transmitida como sagrada e quem se atrever a colocar em causa algo ou até mesmo a ser criativo com essa informação é imediatamente um blasfemo sendo excomungado (ou reprovado). Ora, isto leva a uma concepção do ensino da filosofia como sendo uma espécie de propaganda ou catequese, sem liberdade de pensamento, em que os discípulos têm que acatar passiva e acriticamente tudo o que lhes dizem os mestres ―iluminados‖. Acresce ainda que a atitude dogmática de ensino contribui para formar pessoas cegas à discussão racional e adversas ao exame crítico das ideias, principalmente das suas crenças5 e opiniões mais queridas. Parece, então, que o dogmatismo pode conduzir à formação de cidadãos fundamentalistas, intolerantes, incapazes de dialogar com os seus pares e de avaliar ideias para a construção de uma melhor sociedade. Mas, porventura não será um aviltamento toda esta atitude de enfiar informação no cérebro dos alunos sem lhes dar qualquer oportunidade para analisar, avaliar, questionar, pensar criticamente?! Em concomitância com a atitude dogmática pode surgir um outro vício: A pretensa infalibilidade. Esta ideia sugere que aquilo que os professores transmitem e aquilo que os filósofos defendem é absolutamente certo e imune de erro. Assim, será um sacrilégio os estudantes questionarem e colocarem em causa as teorias e argumentos de Kant ou de outro filósofo. Pensa-se, por exemplo, que Kant demonstrou de uma vez por todas que não podemos provar que Deus existe nem que Deus não existe, como se estivéssemos a falar de uma verdade indisputável e definitivamente provada. Mas, será a teoria de Kant mais plausível do que as teorias de muitos outros filósofos que ao longo da história (e ainda hoje) argumentam contra e a favor da existência de Deus? Com isto parece-se esquecer que ―uma verdade banal acerca dos seres humanos é que erram: enganam-se e iludem-se‖ (Murcho 2011: 25). Ou seja, olvida-se as limitações sempre inerentes ao ser humano e transmite-se a infeliz ideia que os filósofos e as pessoas são deuses com omnisciência e, portanto, que não podem errar. No entanto, pode-se constatar que esta atitude arrogante levou a muitas atrocidades ao longo da história: Pense-se, por exemplo, nas cruzadas e inquisições católicas durante a idade média, ou nas ditaduras nazis e fascistas do século XX, ou até nas discriminações aleatórias dos negros e das mulheres. E tudo isto em nome da infalibilidade. 5 Ao falar de crença não estou a referir-me às crenças religiosas ou à fé, mas sim à crença num sentido mais lato. Ou seja, uma crença é uma qualquer representação da realidade, que um sujeito cognitivo faz, passível de ser verdadeira ou falsa. Por exemplo, dizer que existe um mundo exterior à nossa mente é uma crença, que é susceptível de ser verdadeira ou falsa, ou de estar bem justificada ou não.
  • 19. 12 Porém, considero que a filosofia não tem nada a ver com historicismos, dogmatismos ou infalibilidades e o seu ensino não pode cair nestes vícios. A filosofia não pode cair no vício do historicismo, pois a filosofia não é uma mera colecção de ideias que se debitam passiva e acriticamente. A filosofia não pode cair no vício do dogmatismo, pois a filosofia (de tradição socrática) procura estimular as pessoas a avaliar criticamente e sem receio as suas crenças, bem como analisa outras perspectivas ou mundividências diferentes das suas para responderem aos grandes problemas filosóficos. Na filosofia não deve haver medo dos argumentos opostos ou de outras visões de mundo, nem da discussão livre e rigorosa de ideias, pois a finalidade é uma maior aproximação da verdade. E a filosofia não pode cair no vício da infalibilidade, uma vez que os seres humanos erram e são limitados, e por isso mesmo é necessário reavaliar constantemente as nossas ideias e as da sociedade em geral. Será, então, a concepção mecanicista plausível para o ensino da filosofia? Penso que não; pois, parte de uma concepção antropológica errada, isto é, o ser humano entendido como uma máquina que se limita a receber e debitar mecanicamente a informação de uma forma totalmente passiva, acrítica, e ausente de criatividade. Para além disso podem estar associados alguns vícios que já argumentei não serem de todo os mais adequados para um bom ensino da filosofia. Considero que ser humano não é ser uma mera engrenagem ou artefacto, mas sim um agente activo, autónomo, criativo, crítico, dialógico... Será, assim, mais adequada para o ser humano a concepção orgânica de ensino? A concepção orgânica de ensino parte da perspectiva do humano como um organismo que se desenvolve por si ao estar inserido num ambiente adequado. É o oposto da concepção mecanicista, pois aqui já não há uma ênfase centrada na transmissão de informação, mas sim na descoberta. Aliás, é desprezada a componente expositiva dos conteúdos, para se valorizar sobretudo o trabalho prático do aluno e a sua construção do conhecimento. A relação pedagógica também se altera substancialmente: Deixamos de ter o professor autoritário numa relação unilateral com os alunos, para termos um professor que se dilui nas funções de colega supervisor, acompanhando as actividades dos alunos e ajudando quando para isso for solicitado. Nesta concepção orgânica de ensino é importante envolver o aluno num ambiente propício para seu próprio desenvolvimento, com actividades que facilitem de um modo autónomo a aquisição e criação do conhecimento. Para a concretização desta metodologia de ensino o professor pode, por exemplo, propor trabalhos de grupo colaborativos em que os alunos são estimulados livremente a responder a um determinado problema ou a resolver uma
  • 20. 13 determinada tarefa, por tentativa-erro, fazendo desta forma uma descoberta e aprendizagem mútua. Constata-se claramente que aqui são os alunos que fazem o seu próprio percurso de aprendizagem, não sendo coagidos pelo professor, deixando de ser receptáculos ou máquinas repetidoras de um corpo de conhecimento totalmente delimitado. Pode considerar-se que esta perspectiva orgânica é vantajosa; pois, parece que colocar os alunos por si mesmos a descobrirem e a criarem as suas aprendizagens é algo que os motiva e envolve. Os alunos estão agora dentro do processo de ensino e são convidados livremente a fazerem o seu próprio caminho. Aliás, muitas vezes esta é a única concepção de ensino que parece funcionar: Veja-se, por exemplo, a aprendizagem prática de andar de bicicleta onde, por mais exposição mecanicista teórica que exista, o aluno só aprenderá a andar bicicleta treinando e descobrindo por si mesmo, por tentativa-erro. Para além disso, em filosofia esta perspectiva pode encontrar consideráveis vantagens: Os alunos são estimulados a responder directamente a um determinado problema filosófico e a avaliar colaborativamente com os restantes membros da turma a plausibilidade das suas próprias respostas. De facto, parece evidente o factor activo, autónomo, crítico e criativo, que a concepção organicista de ensino promove. Mas será a concepção organicista, se a concebermos como modelo único e suficiente de educação, a estratégia mais adequada para um bom ensino da filosofia? Penso também que a concepção orgânica de ensino da filosofia enfrenta alguns problemas. Uma das principais críticas é a seguinte: A perspectiva orgânica em filosofia pode constituir uma boa estratégia de colocar os alunos a pensar crítica e activamente sobre um determinado problema; no entanto, os alunos encetam este processo sem quaisquer referências e ignoram as melhores respostas e teorias que se conceberam ao longo da história, como se começasse tudo a partir do zero. Ora, ao prescindir-se por completo dos aspectos expositivos do ensino, ignorando-se por conseguinte os instrumentos básicos de fazer filosofia (como saber lógica formal e informal, saber negar proposições ou saber avaliar a cogência argumentativa, entre outros) e ao ignorar-se algumas das melhores teorias filosóficas que se construíram ao longo da história, o debate de ideias pode cair numa mera conversa de café superficial e desinteressante com muitos erros e confusões básicas. Assim, não será que estaremos a baixar a qualidade das discussões em filosofia pelo facto da concepção orgânica de ensino impedir a existência de qualquer exposição de conteúdos que podem enriquecer o debate de ideias? Desidério Murcho parece responder a esta questão na seguinte passagem:
  • 21. 14 ―Mesmo que em filosofia não tenhamos o género de resultados que temos na ciência, temos outro tipo de resultados: alternativas teóricas sofisticadas cuidadosamente pensadas, argumentos rigorosamente explorados, distinções e análises clarificadoras. Se ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez como os primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os passos – o que é desavisado porque podemos fazer melhor do que eles fizeram se partirmos das suas investigações‖ (Murcho 2010: 20). Parece-me plausível esta ideia de que o desconhecimento bibliográfico relevante acaba por fazer a discussão perder a qualidade; pois, ao proporcionar-se isto na sala de aula acaba-se apenas por brincar aos filósofos e esquece-se as grandes teorias, argumentos e objecções que se têm tentado avançar ao longo dos séculos para responder aos problemas filosóficos. Será, então, de todo despropositado o ensino destas teorias, argumentos e refutações que os filósofos apresentaram ao longo da história? Acho que não; porque os alunos podem aprender a fazer filosofia ao analisarem criticamente também as teorias e os erros que foram realizados pelos filósofos, para desta forma não caírem nos mesmos erros, para proporem outras soluções e para terem uma compreensão mais lata da realidade. Aliás, considero que certamente os alunos ficam a ganhar ao conhecerem o progresso realizado em filosofia, os instrumentos básicos da filosofia e as melhores teorias e argumentos da filosofia, estando assim habilitados para saberem avaliar os argumentos e as suas limitações, para fazerem clarificações (como a distinção entre mal moral e mal natural), para darem uma possível contribuição pessoal crítica e criativa às teorias e problemas filosóficos, em suma para se discutirem ideias com maior competência e rigor. Penso que algo muito mais grave acontece quando sob a designação de concepção orgânica de ensino e de criação de ambientes agradáveis à aprendizagem, se sugere ao aluno actividades meramente lúdicas que acabam por se afastar completamente do horizonte filosófico. Assim, podemos ter alunos que se entretêm bastante com as palavras-cruzadas, as sopas de letras, os puzzles, entre outros, mas que não entram minimamente no que é relevante a nível filosófico: A discussão crítica dos problemas, teorias, argumentos e conceitos da filosofia. Até se pode considerar que as palavras-cruzadas podem ser úteis para chamar atenção para um determinado conceito ou definição, mas penso que ficar por aí é extremamente empobrecedor. Aulas repletas destas actividades lúdicas podem ser muito divertidas para os alunos, mas será que ainda estaremos a fazer filosofia? Considero que a sala de aula não é propriamente um circo ou um mero espaço de entretenimento, mas sim um lugar onde se deve fazer aprendizagens
  • 22. 15 relevantes e aquisições de um pensamento autónomo, crítico e criativo. Portanto, parece que a concepção orgânica de ensino também pode conduzir a algumas perversões sérias que afectam bastante a qualidade da filosofia. Será, então, a concepção orgânica plausível para o ensino da filosofia? Penso que não, sobretudo por dois motivos: 1) O desconhecimento dos instrumentos filosóficos e de informações teóricas relevantes pode baixar substancialmente a qualidade da filosofia; e 2) pode- se correr o risco da aula tornar-se um mero entretenimento sem uma aprendizagem relevante da filosofia. Para além disso, a concepção orgânica parece subalternizar demasiado a função de professor, tornando-se num mero colega consultor entre os colegas ou alunos da turma quase em igualdade de circunstância. Desta reflexão posso concluir que tanto a concepção mecanicista como a concepção orgânica de ensino são inadequadas para um bom ensino da filosofia. Como tentei argumentar cada uma destas perspectivas de ensino, ao funcionarem de modo isolado, podem conduzir a perigosos vícios que desvirtuam completamente o ensino da filosofia. Por um lado, a concepção mecanicista pode levar a um entendimento da filosofia como um mero clube dos filósofos mortos em que os alunos se limitam a decorar e a repetir teorias de uma forma acrítica e passiva. Mas será que os grandes filósofos como, por exemplo, Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes ou mais recentemente Alvin Plantinga se limitam a debitar e a repetir as teorias dos outros filósofos? Parece evidente que não; pois eles pensam criticamente sobre problemas filosóficos, dão as suas contribuições criativas, defendem as suas ideias de uma forma fundamentada e até examinam as teorias dos filósofos antecessores, quer para as melhorar, quer para as refutar. Por outro lado, a concepção orgânica pode conduzir a discussões filosóficas que não passam do mero senso comum opinativo, ao desprezar-se por completo a componente expositiva do ensino, bem como se pode ser seduzido por actividades que são meros entretenimentos mas sem qualquer relevância filosófica. Portanto, nem a concepção de ensino mecanicista, nem a orgânica, me parecem plausíveis para um bom ensino da filosofia; são dois extremos com muitos perigos. Talvez não haja receitas mágicas na pedagogia nem estratégias absolutamente perfeitas para ensinar filosofia. Mas certamente existem caminhos de ensino mais plausíveis do que outros. Se funcionarem isoladamente as perspectivas mecanicistas e orgânicas parecem pouco credíveis. No entanto, penso que poderemos evitar os extremos (e as suas perversões) e escolher, por conseguinte, o melhor destas duas concepções de ensino. Portanto, a minha
  • 23. 16 proposta na continuação deste texto vai incidir na eleição do meio-termo, ou seja, na complementaridade que pode existir entre a concepção mecanicista e orgânica de ensino. Assim, parece-me mais razoável uma perspectiva de ensino que atenda em concomitância para a dimensão expositiva e para o aspecto da descoberta. No ensino da filosofia podem existir vantagens com esta complementaridade; pois, ensina-se aos alunos os problemas, teorias, argumentos e conceitos da filosofia, e em simultâneo ensina-se a examinar criticamente esses problemas, teorias, argumentos e conceitos. Nesta concepção de ensino os alunos não se limitam apenas a compreender ideias, mas são estimulados a discutirem as ideias por si de uma forma crítica e fundamentada. A esta complementaridade, que eleva a qualidade do ensino da filosofia e que não tende a cair em simplismos pedagógicos, chamarei ―tradição socrática‖, uma vez que parece aproximar-se da atitude de um dos pais da filosofia: Sócrates. 2.2. As metodologias sofísticas Em oposição directa à tradição socrática evidencia-se a tradição sofística e as metodologias a ela associadas. Sob a designação de metodologias sofísticas não pretendo apenas salientar o movimento cultural que surgiu na Grécia Antiga, mas também sublinhar correntes contemporâneas que partilham de alguma forma o ideal da sofística e que podem estar presentes tanto na concepção mecanicista como orgânica de ensino. Surge, então, a questão: Por que razão não utilizar as metodologias sofísticas no ensino da filosofia em vez das metodologias socráticas? Para responder a esta pergunta vou analisar crítica e brevemente alguns dos tópicos principais da sofística clássica e contemporânea, no intuito de mostrar que a tradição sofística conduz a algumas atitudes que acabam por perverter completamente a natureza da filosofia. Deste modo, considero que as metodologias sofísticas devem ser banidas da sala de aula. Os sofistas foram professores da Grécia Antiga, que surgiram em meados do século V a. C., que asseguravam a instrução dos jovens e os preparavam para a vida adulta. Eles foram divulgadores de teorias, mas sobretudo capacitavam os seus alunos para o exercício político, dando-lhes ferramentas básicas para a habilidade de persuadir, bem como estratégias de retórica e oratória. Por exemplo, Protágoras, um dos mais importantes sofistas, defende que o seu ―ensino destina-se à boa gestão dos assuntos particulares – de modo a administrar com
  • 24. 17 competência a própria casa – e dos assuntos da cidade – de modo a fazê-lo o melhor possível quer por acções quer por palavras‖ (Platão, Protágoras, 319a). Deste modo, parece-me que a sofística apresenta vantagens consideráveis: Ensinavam cultura variada (o que é um aspecto relevante uma vez que não havia um sistema público de ensino superior), instruíam os jovens com um currículo alargado (gramática, dialéctica, retórica, aritmética, geometria, astronomia, música), preparavam os alunos para falarem e discutirem nos tribunais e assembleias, fazendo- se pagar pelos seus serviços (o que me parece justo). O que não considero justo são as metodologias utilizadas pelos sofistas que não olham a meios para atingirem os seus fins de serem bem-sucedidos e eficientes nas disputas públicas, mas sem atenderem à verdade. Portanto, o que lhes interessava não era chegar à verdade, mas sim ganhar a todo o custo a discussão por mais incoerentes e inverosímeis que sejam as suas teses. Desta forma, a arte de argumentar torna-se apenas numa arte marcial, numa espécie de pugilismo, que faz recurso de sofismas, falácias, manipulações, apelo às emoções e sentimentos, entre outras ferramentas, para derrotar os adversários. Deixamos de ter, do mesmo modo, uma arte de pensar e de estimular um exame crítico racional para passarmos a ter uma arte de dissimular, enganar ou ludibriar. O filósofo Colin McGinn denuncia claramente, na seguinte passagem, a estratégia manipuladora utilizada pelos sofistas: ―Os sofistas propunham-se, mediante um pagamento, ganhar qualquer discussão, especialmente em tribunal, por quaisquer meios de que dispusessem. O seu objectivo não era a favor da verdade, usando apenas argumentos válidos e premissas verdadeiras; sentiam-se à vontade para conquistar o assentimento por quaisquer meios possíveis, usando truques retóricos, falácias atraentes, apelo aos sentimentos, medo, preconceitos e tudo o mais. Em vez de usar apenas os meios da persuasão racional, empenhando as faculdades racionais do público, recorriam a métodos de manipulação psicológica. Lisonjeavam e seduziam, fodendo o juízo do público e não tinham quaisquer escrúpulos em usar falácias e falsidades. Além disso, também lhe ensinariam a fazer o mesmo: a tornar-se, você mesmo, um fode-juízos. A essência da sua técnica era persuadir, não apelando às faculdades racionais mas recorrendo à emoção (soa-lhe familiar?)‖ (McGinn 2008: 31-32). A questão da manipulação mental não é algo que diga respeito apenas aos sofistas da Grécia Antiga. Na sociedade contemporânea pode-se constatar a continuação destas estratégias, por exemplo, na política e nos governos totalitários em que as pessoas sofrem uma lavagem cerebral para se encaixarem na engrenagem do sistema (a este propósito pode ver-se o exemplo da obra 1984 de George Orwell em que as pessoas são coagidas a ―amar‖ o Big Brother). Outro
  • 25. 18 exemplo desta manipulação surge nas religiões que podem não ter escrúpulos para recorrer a medos (como a morte e o inferno), a ansiedades e a outras emoções, para assim controlarem as pessoas segundo os seus preceitos (por exemplo, na obra Até onde se pode ir? de David Lodge são retratados alguns jovens católicos que foram coagidos a reprimir a sexualidade vivendo assim angustiados e infelizes). Nesta estratégia é banida a discussão racional, para a adopção de mecanismos de manipulação que perpetuam determinados preconceitos6 e ilusões. Será, então, adequado ensinar filosofia com metodologias sofísticas? Parece que não, pois as estratégias sofísticas ensinam essencialmente a manipular mentes e isso constitui uma violência e agressão tremenda para o ser humano. Aqui a pessoa sente-se invadida, explorada, violada, vítima de um logro que lhe paralisa o pensamento crítico e lhe tira a liberdade, obrigando-a a fazer ou aceitar aquilo que ela racionalmente não quer. Fazendo recurso à linguagem kantiana posso dizer que as estratégias sofísticas tratam o ser humano meramente como um meio, como um objecto que pode ser usado a belo prazer pelos sofistas. No entanto isso é um acto desonesto e imoral, pois a pessoa é tratada como se fosse moralmente irrelevante, sendo desrespeitada na sua autonomia e racionalidade. Pelo contrário, faz parte da natureza da filosofia, na sua tradição milenar, o recurso da discussão racional, da liberdade de expressão, do pensamento crítico, claro e rigoroso, apresentando razões e argumentos para sustentar as teorias. Ora, se eu apresentar ao leitor bons argumentos e razões para defender as minhas posições, sem utilizar falácias nem ambiguidades, e se o estimulo a examinar criticamente o que eu defendo, então não estou a manipulá-lo, nem a ser desonesto ou imoral. Porém, o problema das metodologias sofísticas não está apenas no grave aspecto da manipulação mental. Existem outros pormenores que estão intrinsecamente ligados aos sofistas (e agora também aos pós-modernos) e que podem acabar por perverter completamente o ensino da filosofia. Nomeadamente considero que é importante analisar atitudes presentes nos sofistas, como o relativismo cognitivo, o subjectivismo, e a atitude estética, que ainda hoje invadem o ensino em geral e a filosofia em particular. ―O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são‖ é a máxima mais famosa de Protágoras. Esta afirmação expressa o relativismo e subjectivismo defendido pelos sofistas. Como esclarece Anthony Kenny 6 Os preconceitos são ideias que assumimos como verdadeiras ou correctas, mas sem termos razões ou argumentos para isso; assim, temos preconceitos quando não pensamos criticamente nas razões a favor e contra uma determinada ideia. Por exemplo, talvez muitos pensem que Deus existe, mas nunca procuraram examinar isso ou nem sequer procuraram ver se existem boas razões para acreditar em Deus.
  • 26. 19 (1998: 45) ―isto significa que aquilo que, seja pela percepção, seja pelo pensamento, parece a uma determinada pessoa ser verdade, é verdade para essa pessoa. Isto acaba com a verdade objectiva: nada pode ser absolutamente verdadeiro, mas apenas relativamente a um indivíduo‖. De facto, esta é uma atitude sofística presente em muitos alunos e professores que difundem a ideia que em filosofia tudo é muito relativo e subjectivo. Mas, será realmente que em filosofia tudo é muito relativo sendo assim impossível avaliar objectivamente teorias? A ideia principal deste relativismo cognitivo, presente sobretudo nas actuais correntes pós-modernas (com Derrida, Kuhn, Rorty, etc), é que tudo são perspectivas e narrativas, ―estando todas as opiniões a par no que respeita à plausibilidade ou verdade‖ (Murcho 2004). Deste modo, qualquer crença é tão boa como qualquer outra, todas as opiniões estão em pé de igualdade, tudo vale o mesmo, tudo é texto, tudo é aceitável, pois, de acordo com os sofistas e pós-modernos, os critérios de verdade são relativos aos diferentes contextos, práticas ou narrativas. Segundo eles é uma fraude ou fantasia pretender impor um conjunto de verdades universais sobre a realidade ou pretender um padrão imparcial para avaliar diferentes crenças e opiniões, uma vez que não nos conseguimos afastar dos nossos preconceitos e perspectivas sociais, políticas, culturais, linguísticas, históricas, entre outros. Aliás, consideram que é opressor querer o ideal da verdade universal, pois faz esquecer que estamos inseridos naturalmente em diversas práticas e narrativas, mas essa atitude é ela própria uma operação política e de poder. Portanto, como explica Simon Blackburn (2001b), ―tudo o que há são diferentes pontos de vista, cada um dos quais é «verdadeiro» para aqueles que os defendem‖ ou para aqueles que partilham uma determinada prática ou narrativa. Ora, se tudo é relativo a uma determinada perspectiva, não havendo padrões imparciais de avaliação da plausibilidade e da verdade, então todos os discursos e opiniões são igualmente legítimos. Por exemplo, será tão verdadeiro o padre na aldeia dizer que o ser humano foi criado directamente por Deus a partir do barro, como o professor de biologia dizer que o ser humano surgiu devido a um enorme processo de evolução gradual de acordo com a selecção natural. Esta ideia de que todas as narrativas são igualmente legítimas até pode seduzir muita gente por parecer uma atitude muito tolerante. Desta forma, supostamente respeita-se opiniões e práticas alheias e até parece que se está a construir um mundo com mais paz. Mas, será efectivamente assim? Parece que não, pois, por exemplo ao defendermos que todas as práticas e narrativas são aceitáveis estamos a permitir que algumas pessoas continuem a discriminar as mulheres, até com práticas desumanizantes como a mutilação genital, ou permitiremos outras
  • 27. 20 formas de exploração e violência que certos grupos defendem. Aliás, será legítima toda a narrativa fundamentalista religiosa que faz recurso do terrorismo? Se defendermos o relativismo temos de aceitar que esta é uma prática tão aceitável como qualquer outra, no entanto parece contraproducente e irracional defender que essa é uma narrativa legítima, uma vez que o terrorismo só conduz a sofrimentos de pessoas inocentes que são mortas de uma forma totalmente arbitrária e injusta. De igual forma, dizer que o nazismo é mais uma narrativa entre outras e que por isso deve ser legítima e aceitável parece ser absurdo, tendo em conta todas as atrocidades cometidas durante o holocausto. Então, o relativismo, em vez de ser fonte de tolerância e paz, é muitas vezes um mero legitimador da intolerância e violência que as pessoas podem exercer entre elas e os outros. Assim, a construção de um mundo melhor é frustrado pelo relativismo, como argumenta Desidério Murcho (2006: 61): ―Se afinal ninguém tem razão porque a razão é uma ficção, se não há verdades objectivas porque tudo é uma construção social, não vale a pena mexer uma palha em prol de um mundo melhor para o maior número de pessoas – porque nem é irracional explorar e maltratar nem é realmente verdade que há pessoas exploradas e maltratadas‖. Para além disso, o relativismo cognitivo conduz a posições logicamente contraditórias como o caso do padre da aldeia e do professor de biologia. Neste caso, ou Deus criou directamente o ser humano (Adão) a partir do barro, ou este surgiu através dos mecanismos naturais da evolução sem qualquer intervenção divina. É uma contradição dizer que tanto a proposição do padre como a do biólogo são igualmente verdadeiras, pois negam-se uma à outra. No entanto, para os relativistas devemos aceitar estas duas proposições uma vez que são diferentes formas de verdade que têm os seus próprios critérios. Porém, na realidade como será possível o ser humano surgir directamente por intervenção divina e simultaneamente sem qualquer intervenção divina? Estes relativismos normalmente parecem conduzir a contra-sensos sem sentido e acabam por gerar confusões, como o facto de muitas pessoas legitimarem simultaneamente a veracidade da astronomia e da astrologia, ou considerarem que as previsões do tarot são tão legítimas e verdadeiras como as previsões meteorológicas, olvidando-se que tanto o tarot como a astrologia não passam de embustes absurdos. O ensino da filosofia, encarado pelas metodologias do relativismo cognitivo, também sofre de sérias consequências perversas. Se em filosofia tudo é relativo, então cada filósofo será encarado como uma ilha que terá razão apenas do seu ponto de vista. Assim, as posições e teorias filosóficas são encaradas como paradigmas incomensuráveis, em que cada filósofo terá
  • 28. 21 ―razão dentro do seu próprio sistema‖ (Murcho 2002: 75). Porém, uma vez que as teorias filosóficas são encaradas como ilhas incomensuráveis, não as poderemos avaliar criticamente (pois, só se pode discutir ideias se pensarmos que existem ideias melhores e outras piores que se possam submeter a uma discussão pública e imparcial). Por conseguinte, não vale a pena analisar a plausibilidade de uma determinada teoria, nem sondar uma resposta cada vez mais verosímil para responder a um determinado problema filosófico, pois, tudo são perspectivas ou narrativas igualmente verdadeiras e plausíveis. Acaba, assim, a discussão e o exame crítico de ideias, e dita-se a morte da filosofia, sobrando apenas a história e a hermenêutica de textos. Deste modo, o ensino da filosofia deixa de estimular o pensamento crítico das ideias para requerer meros comentários de texto ou assimilação acrítica de algumas ideias dispersas dos filósofos. Como se pode verificar, este relativismo cognitivo paralisa o pensamento crítico e faz desistir da procura da verdade, pois afinal não existem respostas ou teorias mais plausíveis do que outras, sendo tudo simetricamente plausível, aceitável, legítimo. Porém, pensar que todos os discursos ou teorias filosóficas se equivalem é errado; pois, existem teorias filosóficas que respondem melhor a um determinado problema, apresentando argumentos solidamente construídos e boas razões para sustentar a teoria, respondendo a possíveis objecções e alargando a nossa compreensão da realidade. E existem outras teorias que são fracas, pois não apresentam boas razões ou estão repletas de falácias, não sendo minimamente consequentes. Imaginemos que temos a opinião de um estudante que diz que Deus existe porque sim e a de um outro estudante que defende que Deus não existe apresentando boas razões e argumentos. Certamente seria tolo dizer que estas opiniões estão totalmente em simetria no que se refere à plausibilidade. A ideia infundada de que Deus existe não é tão boa como a ideia, sustentada por boas razões e argumentos, de que Deus não existe. Assim, parece que nem tudo vale: Existem algumas ideias mais fundamentadas do que outras, existem algumas teorias que são plausivelmente certas e outra que são erradas. No entanto, o relativismo cognitivo ao dizer que todas as narrativas se equivalem, que são igualmente verdadeiras, não estará afinal a reduzir o discurso a uma atitude de arrogante infalibilidade, pois afinal nunca poderemos estar errados? Mas não somos deuses omniscientes e infalíveis! Pelo facto, de podermos estar errados, bem como pelo facto de algumas teorias filosóficas serem mais plausíveis do que outras, é que vale a pena avaliar e discutir pública e criticamente as ideias, submetendo as nossas próprias opiniões à avaliação e apreciação por
  • 29. 22 parte dos nossos pares. E o ensino da filosofia não pode menosprezar esta componente fundamental que o relativismo tenta iludir. Mas, o relativismo cognitivo é ele mesmo incoerente. Afirma que tudo é relativo, querendo que a sua própria teoria não seja relativa, mas sim objectivamente verdadeira e universal. Porém, se defende que tudo é relativo, então a sua própria teoria é também relativa, sendo falsa para quem não aceitar esta teoria. Logo, o relativista não consegue provar que tudo é relativo. De qualquer forma, é perigoso ensinar filosofia a partir de estratégias de inspiração relativista. Se tudo for relativo, então não poderemos avaliar criticamente ideias, não podemos debater teorias e argumentos para ver quais são os mais plausíveis, nem poderemos procurar respostas cada vez melhores para tentar resolver os problemas filosóficos, acabando os próprios ideais de verdade, racionalidade e objectividade por ser rejeitados. O subjectivismo, que é afectado pela mesma incoerência do relativismo, costuma estar presente na mentalidade de alguns alunos e de alguma cultura do senso comum, divulgando-se a ideia de que em filosofia é tudo muito subjectivo. Mas, o que querem dizer com subjectivo? Talvez pretendam transmitir a ideia de que o valor de verdade das proposições filosóficas não é independente dos seres humanos, mas é apenas uma questão de aleatoriedade, de agradabilidade, de gosto, de preferência pessoal. Desta forma, X é verdadeiro se, e só se, eu aceito ou gosto de X. Por exemplo, tal como uma pessoa pode gostar de café e outra gostar de chá sem haver qualquer razão para isso (pois é uma mera questão subjectiva de gosto em que não há opiniões melhores e piores), também podemos ter alunos que preferem a teoria ética utilitarista em vez da ética das virtudes ou da ética deontológica por uma simples questão de gosto pessoal sem haver razões para essa escolha. A filosofia torna-se, assim, um acto de aceitar e ―acreditar na primeira ideia que nos agrada, sem que tenhamos boas razões para acreditar nela, para além do conforto que nos proporciona‖ (Murcho 2002: 83). Afirmar que a filosofia é uma mera questão de subjectividade, em que nada mais importa na verdade de uma teoria que o sentimento ou conforto pessoal, até pode ter algumas vantagens. Pode-se alegar, por exemplo, que o subjectivismo promove a liberdade dos sujeitos, pois não existe uma verdade exterior que se lhes imponha. Portanto, cada um é livre de seguir os seus gostos e sentimentos aceitando as ideias que mais confortem ou agradem. Seguindo este raciocínio, os alunos podem aceitar como teoria verdadeira a existência do livre-arbítrio e outros a existência do determinismo; no entanto, não aceitam estas teorias com base em boas
  • 30. 23 razões (analisando com acuidade argumentos a favor e contra a teoria), mas simplesmente seguindo os seus gostos, preferência, e preconceitos pessoais. Porém, esta atitude subjectivista em filosofia é afectada por sérias objecções. Uma das principais críticas tem a ver com a infalibilidade. Se é certo e verdade aquilo que aprovamos pessoalmente, então nunca poderemos estar errados. Mas, pensar isso é ingénuo, uma vez que não estamos imunes ao erro e a realidade não pode acatar em simultâneo posições contraditórias: Ou o mundo exterior é um facto ou é uma ilusão, ou Deus existe ou Deus não existe, ou é certo mutilar genitalmente as mulheres ou é errado, etc... Certamente a realidade não será assim tão simples e tão preto e branco como a estou a caracterizar, mas se Deus na realidade não existir, então não é por alguém achar conforto na existência de Deus que ele passa por conseguinte a existir na realidade. Ou não é por alguém gostar pessoalmente de mutilar os genitais femininos que isso se torna uma prática correcta. Com o subjectivismo acaba igualmente qualquer discussão de ideias e, assim, finda a própria actividade filosófica. Se a verdade e o correcto dependem apenas da aprovação, das preferências e gostos pessoais, então não poderemos tentar mostrar aos outros que uma certa ideia é plausível ou errada. Tudo o que podemos manifestar é preferências individuais: Eu gosto que o ser humano tenha liberdade, eu gosto que Deus exista, eu gosto que os animais não- humanos sejam respeitados. Outra pessoa poderia manifestar preferências completamente opostas das minhas, mas de qualquer forma nunca estaríamos a discutir ideias e a fazer filosofia. Isto seria uma mera exposição de preconceitos pessoais. Normalmente quando dizemos que gostamos de café e outros que preferem chá não nos importamos por dizer que isto são gostos subjectivos. No entanto, quando existem homens que aprovam a violação de mulheres e quando existem outros homens que não aprovam tais actos, parece absurdo dizer que isto é um mera questão subjectiva. Se os gostos das pessoas são meramente subjectivos e assim igualmente aceitáveis e aleatórios, então as preferências por violar ou por respeitar mulheres serão igualmente aceitáveis. Porém, este é um raciocínio errado. Quem tem a preferência por violar mulheres não consegue justificar a sua ideia com o mesmo nível de cogência argumentativa e plausibilidade do que aqueles que pensam que essa prática é errada. E de facto parece muito difícil objectar a ideia de que a violação traz na realidade sofrimentos inúteis para a mulher, tratando-a como um mero meio e desrespeitando-a na sua autonomia. Por isso, pensa-se que a violação é um acto imoral e as razões que sustentam tal ideia são independentes das perspectivas, preferências e gostos individuais. Com este pequeno
  • 31. 24 raciocínio filosófico de ética aplicada não recorri aos meus gostos ou subjectividade para mostrar que a violação é imoral. Logo, a proposição que diz que em filosofia tudo é subjectivo só pode ser falsa. Mas será que em filosofia poderemos ser razoavelmente objectivos? Penso que sim e considero que essa deveria ser uma prática na sala de aula. Quando alguém está perante um problema filosófico e quando pensa ou examina imparcialmente razões a favor e contra uma determinada teoria, averiguando de uma forma cuidadosamente reflectida o que é mais plausível, não está a manifestar uma mera questão de gosto, mas sim a pensar de forma objectiva. Assim, se alguém disser que uma teoria ou ideia é plausível podemos exigir: Por que razão essa teria ou ideia é plausível? Se essa pessoa não mostrar boas razões para aceitarmos que essa teoria é plausível, então podemos rejeitar essa opinião uma vez que é infundada, mesmo que tenha sido formulada por um profundo gosto pessoal. Um gosto pessoal subjectivo não precisa de razões para o suportar, tal como a simples questão do preferir café ou chá. No entanto, para sermos objectivos em filosofia precisamos de apresentar boas razões, analisar objecções, pensar criticamente sobre diversas ideias, não sendo as opiniões filosóficas um mero gosto pessoal, mas sim frutos de uma avaliação ponderada e imparcial. Penso, então, que podemos expressar a objectividade da filosofia a partir desta proposição: Uma teoria filosófica é plausível ou aceitável se for sustentada por razões melhores que as teorias alternativas. Portanto, a plausibilidade e a aceitabilidade de uma teoria não dependem de preferências ou gostos subjectivos, mas são suportadas por razões. E tal plausibilidade é objectiva no sentido em que é plausível independentemente do que possamos querer subjectivamente, sendo que a resposta plausível ou aceitável a uma questão filosófica será aquela que terá do seu lado o ―peso da razão‖, como costuma sublinhar o filósofo James Rachels (2003: 67). Ou seja, se existirem razões suficientemente poderosas que sustentem uma determinada teoria filosófica e se não existirem objecções ou outras teorias que tenham o mesmo peso, então poderemos dizer que essa teoria é plausível, aceitável, credível. Portanto, o aceitável ou o correcto não é uma questão de gosto ou de conforto pessoal, mas: ―Descobrimos antes o que é certo ou o que se deve fazer examinando as razões ou os argumentos que, numa dada questão, podem ser avançados a favor de cada um dos lados – é certo fazer [e aceitar] aquilo que está apoiado pelas melhores razões para o fazer [e aceitar]. Basta que possamos identificar e avaliar as razões a favor e contra (…) e que cheguemos a conclusões racionais‖ (Rachels 2005: 255).
  • 32. 25 No entanto, quando defendo a objectividade em filosofia não estou a dizer que já se alcançaram todas as respostas para os grandes problemas filosóficos, ou que existe um enorme consenso quanto às teorias plausíveis, ou que podemos ser infalíveis, ou sequer que podemos ser completamente objectivos. Pelo contrário, a maioria dos problemas filosóficos ainda continua em aberto, poucas são as teorias consideradas consensualmente plausíveis, a falibilidade parece estar sempre inerente ao ser humano, e seremos sempre de alguma forma subjectivos (pois, por mais que queiramos ser puramente objectivos e imparciais teremos sempre alguns elementos de subjectividade e parcialidade). Mas, podemos tentar ser objectivos mesmo não sabendo tudo, mesmo sendo falíveis e até mesmo tendo elementos intrínsecos de subjectividade. Aliás, mesmo não existindo qualquer algoritmo mágico que resolva mecanicamente todos os nossos problemas e questões filosóficas, considero que a objectividade pode ser um bom método para se discutirem melhor as teorias, para se avaliarem com mais imparcialidade, para haver uma tentativa de maior aproximação da verdade. Pelo menos com a objectividade pode haver algum progresso. O subjectivismo estagna o pensamento, pois defende que tudo é aceitável, uma vez que é tudo uma questão de preferência ou gosto pessoal; mas isto não resolve os grandes problemas filosóficos. Porém, o objectivismo, ao considerar que existem razões melhor e piores, ao permitir um exame imparcial e público das ideias, possibilita avaliar e constatar a existência de teorias que tentam responder de forma mais plausível e outras que não respondem com o mesmo grau de plausibilidade às questões filosóficas. Parece existir, assim, um progresso, uma tentativa de responder cada vez melhor aos problemas, de uma forma mais cogente e razoável. Ora, esta forma de encarar objectivamente a filosofia traz benefícios para a sala de aula: Permite discutir ideias, analisar a plausibilidade dos argumentos e teorias, estimular o exame crítico dos alunos e, por conseguinte, faz da filosofia uma actividade muito mais útil, deixando de ser aquela disciplina onde tudo é subjectivo. Para além do relativismo e subjectivismo existe a atitude estética (Murcho 2002: 84-86) que pode perverter igualmente o ensino da filosofia. O objectivo principal da atitude estética em filosofia e no seu ensino opõe-se substancialmente à atitude de exame crítico, característica principal da tradição socrática, que procura analisar se uma determinada teoria é plausível e verdadeira. Pois, na atitude estética tudo o que interessa é a produção de textos esteticamente agradáveis, repletos de jogos de palavras, de ambiguidades, de ornamentos e rendilhados literários, de modo a sugerir coisas inspiradoras. A filosofia torna-se, deste modo, em mera poesia e literatura, onde já não interessa saber quem tem razão ou qual é a resposta mais
  • 33. 26 plausível, mas apenas importa ter um discurso interessante, brilhante literariamente e sobre o qual nos possamos emocionar. Do mesmo modo, na atitude estética a filosofia deixa de ser aquela arte de reflexão crítica e abandona-se, assim, a actividade de examinar todas as nossas opiniões e crenças para a filosofia se tornar numa simples poesia conceptual. Aliás, como defende Gilles Deleuze (1991: 10-14) ―a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos‖. No entanto, segundo Deleuze, esta disciplina que se caracteriza pela arte de criar conceitos não pode ser uma disciplina de aprender a pensar, nem sequer de reflexão, ―porque ninguém tem necessidade de filosofia para reflectir sobre o que quer que seja‖. Portanto, toda a actividade filosófica resume-se à criação estética de conceitos ou filosofemas. Porém, nesta atitude não se criam os conceitos para termos uma melhor compreensão da realidade, do ser humano, da vida, entre outros, mas fabricam-se conceitos por mera atitude estética; ou como explicou Simon Blackburn (2001a) numa entrevista, a ―observação de Deleuze dá a ideia que a filosofia é uma actividade puramente decorativa, como os arranjos florais‖. Ora, se a filosofia é apenas uma arte decorativa, então não interessam os elementos cognitivos do discurso, isto é, não se procura saber se as ideias defendidas pelos filósofos são plausíveis, nem interessa reflectir e pensar em novas teorias que respondam aos problemas filosóficos de uma forma mais cogente e mais próxima da verdade. Esta arte decorativa ou estética de fazer filosofia, que é sobretudo uma actividade acognitiva, pode ter a sua razão de ser devido a certa mentalidade de ―cientismo‖ influenciada pelo positivismo. O cientismo defende que só podemos alcançar teorias efectivamente verdadeiras e resultados substanciais utilizando os métodos empíricos, tal como na física ou na biologia. Ora, como a filosofia é uma disciplina a priori, ou seja que se faz fundamentalmente pelo pensamento, então tais métodos empíricos e a posteriori não se podem aplicar. Logo, não podemos alcançar teorias genuinamente verdadeiras em filosofia. Deste modo, se a filosofia não está no domínio cognitivo das disciplinas que alcançam resultados substanciais e teorias verdadeiras, então apenas lhe resta ficar pelo domínio das actividades decorativas ou estéticas. No entanto, este argumento não é plausível e a primeira premissa, que afirma que só conseguimos ter teorias verdadeiras recorrendo a métodos empíricos, é falsa e incoerente. Por um lado, é incoerente, pois quando se defende que só podemos ter teorias verdadeiras utilizando métodos empíricos quer-se defender que esta é uma teoria verdadeira, mas para isso não se está a recorrer a métodos empíricos, mas sim a um método filosófico, argumentativo e a
  • 34. 27 priori. Logo, está a pressupor-se implicitamente o que se quer negar explicitamente. Por outro lado, é falsa, pois é fácil conceber a negação da primeira premissa, afirmando que poderemos alcançar ou aproximarmo-nos de algumas verdades sem recorrer a métodos empíricos. Por exemplo, para defender que a acção de violar uma mulher é um acto imoral basta pensar e recorrer a razões a priori, embora possa utilizar alguma informação empírica7 . Portanto, parece que a filosofia não tem de estar relegada para uma arte acognitiva decorativa. Muito pelo contrário, é possível em filosofia avaliar criticamente que algumas teorias são mais plausíveis do que outras, que algumas se aproximam mais da verdade do que outras, sendo a filosofia uma actividade cognitiva legítima. É claro que não há um método infalível para atingir de forma automática a verdade, mas seria um salto lógico afirmar a partir desta premissa que não é possível alcançar qualquer plausibilidade ou aproximação da verdade. Assim, tudo o que podemos fazer é pensar e repensar novamente as teorias, de forma a examinar com mais rigor a plausibilidade e veracidade das mesmas. Porém, considero que constitui um enorme empecilho para a procura da verdade colocar como estratégia fundamental a arte decorativa em vez desta arte de pensar e examinar criticamente as ideias. A atitude estética apresenta sérias perversões para o ensino da filosofia: Os alunos limitam-se a ter reacções emocionais aos textos e às teorias filosóficas, sem haver uma relevante compreensão dos mesmos e sem existir a concomitante avaliação crítica. Assim, há apenas sentimentos de amor ou paixão por um determinado filósofo ou por uma determinada teoria que se considera subjectivamente interessante, mas não se procura perceber se a perspectiva utilitarista de Stuart Mill é mais razoável ou não do que a deontológica de Kant, nem perceber se a resposta de Rawls é mais plausível ou não do que a de Nozick ao problema da justiça social, nem saber se a teoria do sentido da vida de Tolstoi é mais plausível ou não do que a teoria de Susan Wolf, entre outros. Em vez do exame crítico, ensina-se os alunos a ler os textos e as teorias filosóficas como se fossem apenas poemas sem qualquer valor cognitivo para ser discutido, limitando-se os alunos a reagir emocionalmente, a apreciar os recursos estilísticos, a fruírem do rendilhado estético e decorativo do texto filosófico. No entanto, esta atitude constitui um aviltamento da tradição filosófica milenar de discussão livre e crítica de ideias, impedindo-se os alunos do acto de examinar teorias filosóficas, de avaliar a cogência argumentativa, e de pensar por si mesmos nas respostas para os grandes problemas filosóficos; em suma, coarcta- se a possibilidade de autonomia dos alunos para um pensamento crítico, criativo, claro e 7 Na secção 3.2 deste texto pode-se encontrar com mais pormenor o desenvolvimento desta ideia da filosofia como uma actividade a priori.
  • 35. 28 rigoroso. Deste modo, parece-me mais razoável encarar a filosofia ―como teorização, argumentação e análise cuidadosa das nossas crenças, por mais queridas que sejam‖, em vez de encarar a filosofia como decorativa em que se ―procura apenas um discurso interessante‖ (Murcho 2009). Ao defender que a filosofia e o seu ensino devem assentar sobretudo no exame crítico das ideias não estou a menosprezar de forma alguma a possibilidade de haver textos que utilizem abundantemente recursos estilísticos ou estéticos. O que defendo mais concretamente é que a possível atenção a esses recursos decorativos não se sobreponha ao essencial no ensino da filosofia que é a compreensão e discussão crítica de ideias. É óbvio que as pessoas são livres de não quererem examinar de uma forma crítica diversas ideias filosóficas preferindo ficar pelos adornos decorativos, pela linguagem obscura, ou pelos jogos de palavras, de modo a sentirem emoções com isso. No entanto, não era este o projecto original da filosofia que se encetou de modo óbvio com Sócrates, nem é esta atitude que tem relevância cognitiva. O projecto original da filosofia é ter uma vida examinada, avaliando constantemente as nossas crenças e opiniões, procurando respostas cada vez mais plausíveis para os problemas filosóficos que enfrentamos e isso permite efectivamente uma maior compreensão da realidade. Em suma, as metodologias sofísticas, antigas e pós-modernas, conduzem a sérias perversões para o ensino da filosofia. Deste modo, em vez de se utilizar a arte de manipulação mental proponho a arte de pensar e argumentar; em vez do relativismo cognitivo proponho que é possível aproximarmo-nos da verdade; em vez do subjectivismo proponho o objectivismo; e em vez da atitude estética e decorativa proponho uma atitude de clareza, de rigor, de exame crítico. São estas as atitudes que considero relevantes a cultivar na sala de aula e que vão ao encontro da tradição socrática.
  • 36. 29 3. A CONCEPÇÃO SOCRÁTICA DE ENSINO Ao abordar aquilo que o ensino da filosofia não deve ser, sondei indirectamente aquilo que o ensino da filosofia deverá ser; ou seja, ele deve atender tanto à exposição de conteúdos como à descoberta crítica e criativa do aluno, bem como deve fomentar no aluno a procura e a tentativa de aproximação à verdade com objectividade, clareza e rigor. Para isso é fundamental a arte de pensar, isto é, assumir uma atitude argumentativa e de exame crítico. Ora, são estas atitudes que penso que fazem parte da grande tradição socrática. Por isso, ao longo deste capítulo vou tentar mostrar como a atitude argumentativa e de exame crítico se relacionam com a vida filosófica de Sócrates, indicando a relevância desta tradição para o ensino da filosofia. 3.1. A herança socrática Sócrates (c. 469-399 a.C.) opõe-se aos Sofistas e às suas metodologias. Ao abordar a herança socrática não tenho intenção de fazer uma exaustiva biografia intelectual de Sócrates, mas apenas pretendo sublinhar alguns aspectos do seu legado que me parecem que marcaram para sempre a tradição filosófica. E ao pensar na sua herança vejo essencialmente um ser humano que procurou estimular o pensamento crítico na Ágora, querendo avaliar e examinar constantemente as crenças e opiniões que as pessoas defendiam acriticamente. Durante a sua vida, Sócrates esteve totalmente empenhado em fazer com que os outros soubessem pensar por si mesmos segundo a razão. Em concomitância, pretendia discursos coerentes, sem as manipulações dos sofistas, sem falácias e contradições, sem preconceitos, sem um saber último e infalível, mas procurando aproximadamente a verdade ou a plausibilidade de uma determinada ideia que se vai desvelando através do exame crítico e da discussão. A atitude filosófica de Sócrates não é arrogante ao ponto de advogar que tem a sabedoria absoluta para ser imposta sobre todos os outros; pelo contrário, tem consciência dos seus limites, da falibilidade humana, chegando mesmo a afirmar que à partida nada sabe e que a aproximação do saber se revela através do diálogo, do exame e da discussão das ideias. Esta douta ignorância, que é simultaneamente interrogativa, serve para acordar as pessoas dos seus dogmas rigidamente formulados, para despojar as verdades aceites acriticamente, para que assim cada um se dê conta daquilo que realmente é, bem como para procurar a verdade de
  • 37. 30 uma forma mais livre e razoável. E, de acordo com Abbagnano (1963: 101), ―o meio de promover nos outros este reconhecimento da própria ignorância, que é a condição da pesquisa, é a ironia‖. Nos diálogos platónicos8 manifesta-se normalmente um Sócrates não conformista que se inquieta com os preconceitos, querendo por conseguinte examinar e questionar essas ideias acríticas e não reflectidas de modo a aferir a sua plausibilidade e verdade. Desta forma, parte continuadamente da interrogação, da análise cuidadosa dos conceitos e da argumentação, investigando falácias e contradições. Esta sua atitude de exame crítico das ideias, preocupado mais em questionar do que em responder, caracteriza ―a bem conhecida ironia de Sócrates‖ (Platão, República, 337a). Porém, esta ironia não é uma mera brincadeira de jogar com as palavras, mas sim ―uma atitude bastante séria, a instância contínua de pôr sempre tudo em discussão, o encaminhamento para o «exame», que, à partida, não pressupõe nada‖ (Adorno 1970: 76). De igual forma, a ironia socrática é um bom antídoto para combater o desaforo de ter últimas palavras, dogmas, e certezas infalíveis, fazendo-nos lembrar que afinal erramos e que nada sabemos de uma forma totalmente inabalável. Por isso, a ironia é também considerada como um acto de desnudar, podendo-se pensar numa analogia, como faz Werner Jaeger (1936: 484), entre o exame médico e o exame socrático: Ambos pressupõem um desnudamento para se ver e analisar melhor; no caso específico do exame socrático implica haver um desnudar de preconceitos e de crenças dogmáticas, bem como de uma abertura à discussão, de modo a ser possível analisar e avaliar de uma forma crítica a razoabilidade das ideias. No entanto, para Sócrates não interessa apenas a discussão pela própria discussão ou um questionamento sem rumo que não leva a lado nenhum, mas sim a discussão que seja fecunda, que acabe por ajudar a dar à luz (maiêutica) as ideias mais plausíveis e verdadeiras. Como aliás corrobora Romano Guardini (1943: 23-24), esta discussão socrática não visa desqualificar ou difamar o outro, mas sim ajudá-lo, libertá-lo e abri-lo à verdade. Aliás, Sócrates compara-se com as parteiras, tal como a sua mãe Fenárete, na arte de fazer nascer; no entanto a arte do exame socrático difere da arte das parteiras no facto ―de tomar conta das almas e não dos corpos dos que estão a parir. E o mais importante desta nossa arte está em poder verificar completamente se o pensamento do jovem pariu uma fantasia ou mentira, ou se foi capaz de 8 Para abordar os elementos fundamentais da atitude socrática de fazer filosofia vou focar sobretudo alguns livros de Platão. Como Sócrates nada escreveu, preciso de recorrer a outras fontes para investigar este pai da filosofia. Para além de Platão, que foi discípulo de Sócrates, também existem outras fontes que descrevem a atitude socrática, como Xenofonte, Aristófanes e Aristóteles. No entanto, para os objectivos que me proponho investigar é suficiente recorrer a Platão, o qual parece descrever de forma brilhante aquilo que comummente é característico de Sócrates: O exame crítico.
  • 38. 31 gerar também uma autêntica verdade‖ (Platão, Teeteto, 150c). Portanto, o exame socrático ajuda os outros a conceberem as suas ideias, mas também faz com que as avaliem e testem a fim de se proceder a uma distinção entre as ideias autênticas, as quais se devem acatar, e as que são preconceituosas ou falsas, as quais se devem abandonar. Mas, para que a discussão seja fecunda e para que nasçam ideias plausíveis é preciso muito esforço e trabalho de reflexão, podendo-se mesmo gerar algum sofrimento até se dar à luz ideias mais razoáveis; como refere Sócrates: ―Os que se associam a mim sofrem algo idêntico às mulheres que estão a dar à luz: de facto, têm dores de parto e ficam cheios de dificuldades, durante noites e dias, e muito mais do que elas‖ (Platão, Teeteto, 151a). No entanto, apesar das dores de parto, as pessoas que se examinam criticamente ganham uma melhor compreensão da realidade e uma capacidade para reverem constantemente as suas opiniões em busca de respostas mais satisfatórias. O próprio diálogo, em concomitância com a ironia e a maiêutica, é algo muito característico deste legado socrático; pois é no diálogo que Sócrates convida os seus interlocutores a pensarem cuidadosamente nas ideias, a reverem as suas opiniões, a reflectirem melhor sobre aquilo que eles acham que sabem e que normalmente não passa de um mero preconceito. Para Sócrates é no diálogo ou na discussão de ideias que está a própria actividade filosófica; ao permitir o exame das nossas crenças e opiniões em conjunto com os outros, o diálogo possibilita igualmente revelar os nossos próprios erros teóricos que sozinhos não conseguimos ver. Constata-se no diálogo socrático uma enorme diferença com a sofística, que em vez de querer utilizar estratégias manipulativas e atitudes relativistas, subjectivistas e decorativas, faz apenas recurso do exame crítico em discussão com os outros para analisar, de uma forma objectiva, até que ponto as opiniões se aproximam da verdade ou se são meramente farsas. Deste modo, parece-me que são estes os objectivos principais do diálogo socrático: Examinar criticamente as ideias, analisar aquelas que são mais plausíveis, apontar aquelas que são meros preconceitos, para haver uma maior aproximação à verdade e compreensão da realidade. Normalmente os diálogos socráticos seguem a seguinte estrutura: Problema, teoria e argumentos, objecções, reformulação da teoria e argumentos. Assim, os diálogos ou discussões de ideias iniciam-se sempre por um problema como, por exemplo, o que é o conhecimento? O que é a justiça? O que é a piedade? Estaremos sempre obrigados a obedecer às leis? O que é o bem? O que é o amor? Será a alma imoral? Etc. Por conseguinte, Sócrates perguntava se os seus interlocutores sabiam responder de forma rigorosa à questão inicial; se usavam
  • 39. 32 frequentemente um determinado termo, como o de conhecimento ou de justiça, é porque deveriam saber qual era efectivamente o seu significado. Quando os interlocutores respondiam ao problema, com as suas teorias e argumentos, Sócrates mostrava-se muito satisfeito; porém, levantava objecções a essas respostas mostrando que afinal não eram razoáveis, ou que incorriam em contradições, ou até que levavam a consequências inadmissíveis. Para isso Sócrates costumava fazer recurso do método de contra-exemplos, isto é, indicava um determinado exemplo que refutava uma definição universal ou uma teoria, que se pretendia aplicar a todos os casos, dada pelos interlocutores9 . Ao serem refutados, os interlocutores recuavam no que tinham dito, reconhecendo muitas vezes que na verdade estavam equivocados e tentavam reformular as suas respostas ou propor novas, avançando-se até se ter respostas mais satisfatórias. Também é verdade que por vezes não se chegava a nenhum resultado, como no diálogo com Laques em que não se conseguiu definir a essência de coragem; no entanto, sempre permitiam desconstruir alguns preconceitos e pseudo-saberes. Werner Jaeger confirma, com outras palavras, esta estrutura geral do diálogo socrático que aqui esbocei: ―Sócrates parte sempre daquilo que o interlocutor ou os homens de modo geral aceitam. Esta aceitação serve de «base» ou hipótese, após o que se desenvolvem as consequências que dela resultam, confrontando-as com outros dados da nossa consciência, considerados factos estabelecidos. Um facto essencial deste progresso mental dialéctico é a descoberta das contradições em que incorremos ao aceitar determinadas teses. Estas contradições obrigam-nos a analisar uma vez mais a exactidão dos dados aceites como verdadeiros, para os rever ou abandonar, conforme os casos‖ (Jaeger 1936: 523). Para constatar esta estrutura e objectivos do diálogo socrático nada melhor que ver brevemente na prática o desenvolvimento do próprio diálogo e da discussão das ideias. Por exemplo, no diálogo com Teeteto, Sócrates começa pelo problema que se pretende resolver: ―Diz-me então, bem e com nobreza: o que te parece que seja o saber?‖ (Platão, Teeteto, 146c). O seu interlocutor, Teeteto, respondeu que os saberes são assuntos como a geometria, as artes do sapateiro e de outros artesãos, entre outros. No entanto, Sócrates contesta a resposta de Teeteto afirmando que não era isso que tinha perguntado, não era ―um saber «de quê», nem a sua quantidade; pois não queremos enumerá-los, já que estávamos a querer conhecer o que é o 9 Um exemplo: No diálogo com Laques define-se coragem do seguinte modo: ―Aquele que decidir, na linha de combate, enfrentar o inimigo a pé firme, em vez de se retirar, esse, bem o sabes, será corajoso‖ (Platão, Laques, 190e). Porém, pode-se lançar um contra-exemplo a esta definição: Podem existir pessoas que enfrentam o inimigo a pé firme por motivos como a mera teimosia e imprudência, pondo assim desnecessariamente em risco as suas vidas. Pelo contrário, pessoas verdadeiramente corajosas sabem quando se devem retirar como sabem quando se deve enfrentar firmemente o inimigo (a este propósito Sócrates dá o exemplo dos Lacedemónios que são corajosos tanto por recuar como por enfrentar o inimigo [191c]). Deste modo a definição do general Laques não funciona.