Resumo
A lastimável ineficácia da contestação ao capitalismo em geral e aos efeitos das suas disfunções em particular resulta, em grande parte, do contágio dissolvente da focagem pela esquerda institucional em parcas ou más respostas à crise e se esquecer, em absoluto do sistema, como matriz de compreensão da realidade.
Procuraremos tipificar as caraterísticas essenciais do capitalismo de hoje e a natureza e o papel do Estado, para além das disputas entre a abordagem neoliberal dominante e a crítica keynesiana, sabendo-se que nenhuma dispensa a autoridade do Estado ou da classe política, como vanguarda condutora das pessoas, tomadas como inimputáveis peões dos jogos políticos.
Os Estados tendem a voltar a ter o seu conteúdo histórico de monopólio da coerção e da punção fiscal, depois de cerca de um século durante o qual exerceram funções sociais no seu âmbito de capitalista coletivo.
O que é uma esquerda. Pilares para a sua construção
1. O que é uma esquerda. Pilares para a sua construção
Resumo
A lastimável ineficácia da contestação ao capitalismo em geral e aos efeitos das suas
disfunções em particular resulta, em grande parte, do contágio dissolvente da focagem pela
esquerda institucional em parcas ou más respostas à crise e se esquecer, em absoluto do
sistema, como matriz de compreensão da realidade.
Procuraremos tipificar as caraterísticas essenciais do capitalismo de hoje e a natureza e o
papel do Estado, para além das disputas entre a abordagem neoliberal dominante e a crítica
keynesiana, sabendo-se que nenhuma dispensa a autoridade do Estado ou da classe política,
como vanguarda condutora das pessoas, tomadas como inimputáveis peões dos jogos
políticos.
Os Estados tendem a voltar a ter o seu conteúdo histórico de monopólio da coerção e da
punção fiscal, depois de cerca de um século durante o qual exerceram funções sociais no seu
âmbito de capitalista coletivo.
Sumário
1 – Introdução
2 – O capitalismo é um vírus
3 – O Estado
3.1 – No princípio estavam os deuses
3.2 – O neoliberalismo e o regresso dos deuses
3.3 – A ilegitimidade ontológica do Estado
a) O aparelho coercivo
b) A punção fiscal e o destino do saque
- - - - - - - - - - + - - - - - - - - - -
1 – Introdução
Em meados de 2010 elaborámos umas notas1 sobre os elementos estruturantes do que é uma
esquerda social e política, hoje. Passados estes anos, em Portugal, assistiu-se ao
desenvolvimento de um frágil movimento social e ao seu estiolar, enredado entre
ingenuidades e a atuação capciosa dos partidos da ala esquerda do sistema político. Essa
experiência conduz a uma atualização e desenvolvimento do que nos parecem ser aspetos
essenciais.
1 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/01/pensara-esquerda-sem-vacas-sagradas.html
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 1
2. Há quem recuse dizer-se de esquerda para não ser conotado com os partidos institucionais
que se sentam do lado esquerdo dos parlamentos e prefira dizer “não sou de esquerda nem de
direita”, não se sabendo, portanto se estão ao centro, acima ou abaixo, mais adiante ou mais
atrás. Há muito que ser de esquerda não tem o significado unívoco de apoiante da esquerda
institucional, sabendo-se para mais o caráter variável e dúbio que aquela pode revestir; por
outro lado, ter um pensamento de esquerda não exige rotulagem obrigatória sendo as suas
palavras e actos muito mais reveladoras; e, defendendo nós o confronto e a pluralidade de
opiniões, não entendemos que sejam atribuíveis direitos de exclusividade, embora no âmbito
da livre expressão de ideias que defendemos, nos demarquemos das esquerdas que não
passam de tranquilizadores da direita.
Consideramo-nos no variado leque de pessoas e grupos defensores de propostas alternativas,
no sentido da construção da democracia e das solidariedades, anticapitalistas, contra a
autoritarismo e as hierarquias; na nossa opinião é esse o cerne de uma esquerda a
engrandecer e consolidar, em oposição aos grémios eleitorais das esquerdas institucionais.
Esta atualização face a 2010 contempla uma maior clarificação da re-hierarquização do espaço
europeu, com o aumento das desigualdades entre o centro e as periferias2, bem como a
destruição social que acampou, sobretudo na periferia sul. Considera a estagnação económica
que se seguiu ao resgate do capital financeiro pelos Estados com a transformação desses
resgates em dívidas públicas e o desabar das ilusões de crescimento económico sustentado
assente na especulação imobiliária e financeira. O salvamento do capital financeiro foi o factor
essencial que conduziu à austeridade virtuosa, ao desemprego, aos cortes em direitos há
muito estabelecidos nos âmbitos laboral, salarial, na saúde, na educação, na reforma. Trata-se
de uma situação que se adivinha duradoura e que, mesmo havendo alguma recuperação não
conduzirá a uma breve devolução da situação observada em 2007.
Do ponto de vista político vão-se consolidando e aprofundando a descrença e o repúdio face
ao sistema político e ao modelo de representação típicos na Europa que, contudo não tem
conduzido a situações agudas de contestação. A ostentação autoritária em presença evidencia-se
nos tratados construídos em Bruxelas e Frankfurt com o assentimento cúmplice das classes
políticas nacionais, que replicam a sua sobranceria para com a população à qual pedem
sacrifícios, moderação e crença em reformas estruturais ou a uma retoma, ambas sempre
adiadas, para gerar um clima de tranquila ilusão ou alheamento. A ausência de intervenção da
esquerda alternativa e mesmo da institucional no seio do tecido social, tendo presente a
propaganda avassaladora dos media na defesa do atual estado de coisas, tem promovido um
crescimento da influência de ideias nacionalistas de diversos matizes, de derivas xenófobas e
fascistas que, sendo desiguais entre os vários países europeus, gera em todos uma apatia
susceptível da aceitação de práticas fascizantes nos partidos tradicionais nos governos ou
mesmo a chegada ao poder de partidos neofascistas.
2 Sobre a questão do centro e das periferias, veja-se:
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/02/soberania-soberania-nacional-e.html
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/06/o-projeto-ue-e-democracia-de-http://
grazia-tanta.blogspot.pt/2014/07/portugal-deve-sair-do-euro-sim-ou-nao-1.html
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 2
3. A negociação em curso do TTIP revela um grau de centralização e de homogeneização do
capitalismo no chamado “Ocidente”, com caraterísticas aterradoras e que integram as regiões
envolvidas num perímetro ainda mais alargado do que o da jurisdição militar da NATO. A sua
aplicação vocaciona as atuais estruturas estatais nacionais apenas para a punção fiscal e a
repressão necessária para manter o precedência das empresas sobre as pessoas. As ideias
nacionalistas, tornam-se assim românticas, obsoletas e perigosamente convenientes para um
capitalismo centralizado e globalizado, interessado em dividir para reinar e conter qualquer
contestação apenas num âmbito localizado e nacional. Por outro lado, o conglomerado
capturado no TTIP demonstra também um sinal de fraqueza pois visa o reforço de um bloco
capaz de fazer face à ascensão da China e à articulação crescente entre os BRICS, sendo de
notar o abandono em “gestão controlada” de regiões ricas em recursos como o Médio Oriente
e a África.
A procura de abolição das categorias políticas de esquerda e direita corresponde de facto, à
procura de uma aceitação da situação atual, a uma atitude compreensiva e legitimadora para
com os beneficiários das estruturas económicas e políticas e, em paralelo, um apelo à
resignação dos muitos que têm as suas vidas precarizadas, suspensas e de futuro nublado. É a
aceitação do célebre TINA – There is no alternative. Essa abolição visa, hoje, a aproximação
entre os governos e as oposições, no seio das classes políticas e a remessa das ideias de
esquerda acima referidas, para a obscuridade, como utópicas, delirantes, inaplicáveis; e sê-lo-ão
certamente se se mantiver a sua atual falta de visibilidade e influência junto da multidão,
tomando esta na acepção da linha filosófica que liga Spinoza a Negri, relevando a sua extrema
diversidade sociológica mas, unificável perante um capitalismo avassalador.
Se não há alternativa, então a política, enquanto fórmula de estudo de opções e de tomada de
decisão sobre a vida e os destinos da polis deixa de ser necessária e alimenta os discursos do
apoliticismo, da recondução da vida social a um primado da animalidade que, de facto, se
reduz a assegurar a sobrevivência individual e como espécie, gerindo o acesso à comida e
garantindo a reprodução. Tudo se poderá resolver, portanto, ao nível técnico, da gestão, dos
especialistas, dispensando a participação das pessoas concretas nas decisões sobre a sua vida
em sociedade.
Assim, a governação é equiparada à governança, à administração das empresas, com a
conveniente preocupação pela rendabilidade, dependente da competitividade, que resulta da
produtividade que, por sua vez, se conseguirá aumentar com custos mais baixos, maior carga
horária de quem trabalha e eventualmente com a introdução de taxas moderadoras para
disciplinar e contribuir para a sustentabilidade financeira dos serviços públicos. Estes, assim
montados por gestores em funções políticas ou políticos transformados em gestores, tornam
os serviços públicos equiparados a negócios privados e portanto facilmente privatizáveis.
Essa apoliticidade transmutada em critérios de gestão esconde que a rendabilidade privada se
mantém dependente de subsídios ou parcerias que incluem rendas ou tenças como se dizia
séculos atrás, pagas pelo Estado; quando não através de transformação pura e dura em preços
a vigorar em lógica de mercado, que só serão pagos por quem tiver dinheiro e não disponíveis
para todos, como direitos de cidadania. Outra questão que se esconde é que a aplicação dessa
lógica de gestão não tem implicações na carga fiscal que se mantém elevada a qual, não tendo
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 3
4. como contrapartida a disponibilidade de bens e serviços públicos e fora da lógica de mercado,
se mostra claramente ilegítima.
Se a grande fatia dos serviços públicos – saúde, educação, ação social, vias de comunicação,
fornecimento de água – é empurrada para a lógica de mercado, para que serve então a punção
fiscal se a esta corresponde apenas uma parca contrapartida? Se assim é voltamos aos tempos
dos estados pré-modernos, dos senhorios feudais, do império romano, quando a presença do
poder estatal assegurava apenas a manutenção de legiões, de soldadescas muitas vezes
constituídas por mercenários e de estradas para a sua circulação na defesa de fronteiras.
Hoje, a situação caminha a passos largos para essa situação. Os aparelhos de estado tendem a
reduzir-se à manutenção da classe política para perpetuar a ilusão da democracia; da tropa
como garante último da defesa do regime e alimentação de indústrias de armamento; de
polícias especializadas na repressão física ou na acumulação de dados pessoais de todos nós,
para utilização de governos e privados (empresas de informática ou desviados por super-espiões);
para a manutenção de uma emperrada máquina judiciária; para o financiamento
legalizado ou corrupto de negócios de empresários e banqueiros; e ainda, finalmente, para o
funcionamento da máquina da cobrança de impostos, enviesadamente concebidos do ponto
de vista técnico e social.
De certo modo, o TINA tem alguma realidade. Uma vez que não existe uma esquerda
anticapitalista e autogestionária, quem se afirma de esquerda apresenta, em regra, pendores
autoritários e hierárquicos, com propensões vanguardistas de controlo do povo e da
movimentação social, de aceitação da democracia de mercado e do seu jogo, quando não
taras nacionalistas de isolamento identitário e um saudosismo face às experiências do
“socialismo” - ocultando o seu caráter de capitalismo de estado. Quem se clama dessa
“esquerda” repetimos, não passa de um acessório da direita para proceder à gestão política e
social da grande massa da população, a favor do capital.
Esses acessórios que apostam na credibilização da inutilidade institucional, com benefícios
próprios bem fornecidos pelo Estado - gordos fundos e excepcionais direitos muito para além
do que cabe à multidão - não passam de fantasmas, coloridas imagens holográficas que
enformam uma falsificação da realidade e vocacionados para adiar ou subverter os anseios
emancipatórios da plebe.
Nos tempos que correm, é tarefa essencial promover a constituição da consciência
anticapitalista, da recusa da autoridade e do Estado, do fomento das práticas autogestionárias
e de livre associação; do antimilitarismo, da recusa do nacionalismo, do consumismo, da
rendabilidade; e a defesa da preservação do ambiente, dos direitos dos trabalhadores, das
mulheres, dos homossexuais, etc. E, com toda essa diversidade, criar redes de grupos e
comunidades autónomas na decisão, numa base de solidariedade e interajuda. Se for preciso
definir uma esquerda, é esse o seu conteúdo.
2 – O capitalismo é um vírus
Capitalismo é um termo pouco utilizado à direita ou mesmo pela esquerda institucional. Essa
ausência reflete uma aceitação implícita da receita thatcheriana do TINA – There is no
alternative e daí que todas as alternativas devam surgir dentro do mesmo sistema económico
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 4
5. e social, cujo nome nem mencionam, dada a sua má fama. De facto, o capitalismo é a
alternativa única considerada pelo sistema financeiro, pelas transnacionais, pelos capitalistas
nacionais de todas as dimensões (dos grandes aos micro), construtores das instâncias
nacionais ou internacionais de regulação (Estados e órgãos plurinacionais como a UE, a OMC e
outras), para melhor gerirem essa sua única opção de vida.
Para a perpetuação do capitalismo não seria economicamente conveniente o uso continuado
ou permanente da força militar ou policial para conter a multidão dos trabalhadores, dos
desempregados, de todos os despojados de direitos. Por isso, foi instituída a “democracia
representativa” para dar à grande maioria do povo a falsa ideia de que elegem os seus
representantes com regularidade e que é virtuosa a rotatividade entre entidades políticas que
refletem as diferenças entre um copo meio cheio e outro meio vazio; para isso se estabelecem
aparelhos partidários e poderosos grupos de media.
No folclore montado pela classe política está montada uma alternativa mediatizada,
naturalmente contida no âmbito do TINA – There is no alternative. Discute-se sobre
alternativas técnicas de aplicação prática do capitalismo neoliberal, triunfante desde o Chile de
Pinochet que recebeu um nutrido reforço em territórios após o desmembramento da URSS,
em 1991 e com a inclusão dos partidos da social-democracia, cuja máscara de esquerda se
tornava desnecessária, com o apagamento do modelo de capitalismo de estado, denominado
socialismo no seio do mandarinato. Assim, as classes políticas nacionais constituíram-se com
partidos mais à direita e menos à direita separados, não pelo paradigma económico mas, por
questões pontuais de gestão do capital; ou por questões de (ou falta de) valores ou
preconceitos, (aborto, de género, de orientação sexual) com escassa relevância para os meios
da finança ou do capital transnacional; por questões de apego à salvaguarda da pátria
(ofendida pela presença de imigrantes ou pelas interferências inerentes ao capitalismo global)
e que interessam aos escalões inferiores de capitalistas indígenas; ou ainda, sobre a bondade
de medidas keynesianas, de apoio do Estado para limar algumas arestas ao modelo neoliberal
dominante (reestruturação das dívidas públicas, nacionalização dos bancos, papel investidor
do Estado, por exemplo). É nestas questões laterais ou internas ao processo de acumulação
capitalista que se estribam e vociferam as esquerdas institucionais, sem jamais se decidirem a
lutar por outro modelo socioeconómico.
O capitalismo é invasivo, insinua-se e impõe as suas regras no espaço físico do planeta, nas
estruturas económicas, nas relações sociais, na cultura, nas práticas e ambições da multidão.
Esse caráter invasivo resulta da sua constante necessidade de expansão, de acrescentar capital
ao capital, de aumentar a produção e as vendas, de gerar lucros, de competir para desalojar a
concorrência; e de permeio utiliza de modo desastroso os recursos não renováveis do planeta,
distorce o equilíbrio da natureza e da paisagem, altera a composição química e genética dos
nossos alimentos, envenena o ar, o solo e o mar. No que diz respeito à espécie humana o
capitalismo precisa de explorar à exaustão as capacidades de criação de muitos, as veleidades
consumidoras de todos, abandonando, num lento genocídio, os primeiros logo que considera
esgotado o seu potencial produtivo e os segundos quando, empobrecidos, se tornam objeto
de custos não compensáveis, terminada a sua função produtiva e sem elevados consumos.
O enorme volume do capital financeiro em busca de remuneração sem nada produzir promove
a canibalização de empresas produtoras de bens e serviços, exigindo-lhes altos dividendos,
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 5
6. reduções de custos, despedimentos, adiamento de investimentos, fusões e um endividamento
que cresce enquanto os capitais próprios se reduzem.
Embora sejam reais os antagonismos entre capitalistas ligados à economia “real” e o sistema
financeiro, esse não é o conflito que mais deve interessar os anticapitalistas e os
autogestionários, não é daí que resultará o fim do mundo da mercadoria; embora constitua o
centro da excitação e empenho da esquerda institucional, keynesiana, ancorada no guru
Krugman ou no antepassado Keynes. Não há lugar a um mítico primado da economia “boa”
produtora de bens e serviços contra um sistema financeiro mau; mesmo antes do predomínio
do capital financeiro, as multinacionais e os capitalistas de todas as dimensões de economia
“real” já protagonizavam exploração, repressão, pobreza, destruição ambiental, autoritarismo
estatal, guerras…
Não há comandos internos ao capitalismo para a travagem na sua expansão por mais
destruição que vá provocando, bastando para o efeito recordar a onda de conflitos
intermináveis e de sofrimento que, na última década, se desenvolveu na faixa do planeta que
se estende entre o Mali e o Paquistão; ou o desmantelamento económico e social na periferia
sul da UE a partir de 2008; ou ainda a recente tragédia do ébola.
Essa pulsão para a expansão promove sensíveis alterações geopolíticas e desequilíbrios
imensos. Sempre que numa região se observa uma acumulação de capital e a sua população
não é susceptível de garantir a desejada rendabilidade aos capitalistas, as empresas
deslocalizam-se ou vendem a outras regiões equipamentos inerentes a tecnologias avançadas.
Em muitas destas começa a desenvolver-se mais rapidamente a acumulação de capital,
substituindo-se às anteriores onde ficam os edifícios inúteis, os resíduos e as áreas poluídas, os
cais abandonados, a paisagem alterada e uma população envelhecida e tornada obsoleta.
Esse processo verificou-se várias vezes, na história do capitalismo. Os EUA substituíram a Grã-
Bretanha após a primeira guerra mundial, na absorção dos capitais e como principal país
exportador. Os capitais americanos, diretamente ou através do Plano Marshall, reconstruíram
a Alemanha e, em seu torno a UE, depois de 1945, para escoarem bens alimentares e de
equipamento. E, mais recentemente, o grande crescimento da China, é baseado na cópia e no
desenvolvimento de tecnologias ocidentais e acompanhado de baixos salários e do desprezo
pelo ambiente ou pelos direitos da população; embora recentemente, a estagnação da
economia global e pressões internas estejam a encaminhar a China para uma atenção maior na
consumo da população, acompanhada por subidas salariais decretadas pelo poder.
A procura da maior rendabilidade dos capitais que propicie maior acumulação, exige uma
constante construção e destruição no seio do aparelho produtivo, nas cadeias logísticas, na
distribuição dos rendimentos, nas movimentações de pessoas, motivadas pela esperança ou
pelo desespero, sempre no contexto de grandes desigualdades regionais. O mundo é uma
mercadoria, incluindo todo o seu meio físico, vegetal, animal e humano, incluído neste todo o
conhecimento acumulado através da História.
Assim sendo, há apenas a considerar uma ação externa, proveniente de grandes grupos
humanos, para criar um outro modelo económico-social onde a satisfação de necessidades
não passe pela produção de mercadorias enquanto entes abstratos lançados numa abstração
maior chamada mercado, ao qual se atribui a propriedade mágica da autorregulação; pela
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 6
7. abolição do trabalho como atividade compulsiva que vem ocupando mais e mais tempo e
esforço aos seres humanos, forçados a desenvolver, por qualquer preço, um esforço cujo
produto é objeto de posse por um elemento inútil chamado capitalista3, ancorado no poder do
Estado e das armas.
Como se disse atrás, o capitalismo não poderia exercer o seu domínio apenas baseado numa
coerção sentida como tal pelas pessoas. Para que o sistema se perpetue é preciso uma
aceitação comodista ou identificada como tolerável pela multidão; e aí joga a constante ação
ideológica do consumismo e das virtudes da tal democracia representativa que, por se basear
em escolhas contidas nas feiras eleitorais, preferimos designar por democracias de mercado.
Essa ação ideológica consiste numa adaptação total (direito ao aborto) ou enviesada
(segurança social estatizada, herdeira distanciada e distorcida do mutualismo construído no
século XIX) de anseios provenientes das lutas dos trabalhadores e da multidão. Essa ação é
hoje facilitada pela esquerda institucional que, tendo-se afastado das reivindicações que
colocam em causa o capitalismo - com difícil eco nos cenários parlamentares ou da
concertação social - se cingem a uma análise desatualizada da realidade global do capitalismo
e, portanto com o recuo que convém ao poder.
Uma alternativa, para se consolidar como tal (não como conjunto cristalizado de consignas)
tem de partir dos que “estão em baixo” com reivindicações concretas e atualizadas,
insusceptíveis de satisfação cabal pelo poder do capital e que alimente o processo de
produção de dificuldades à acumulação capitalista e aos seus beneficiários - capitalistas, classe
política - bem como os vários agentes repressivos pagos para a defesa do capital. Uma ideia
alternativa pode ser muito justa e delineada com rigor teórico mas, se não penetrar na
multidão, gradualmente, a partir de lutas sucessivas, será apenas um desejo ou um sonho. A
luta social, mesmo circunscrita no espaço e a objetivos imediatos terá de promover a
constituição de uma rede e encaminhar-se para a prática generalizada da desobediência
adequada que perturbe o funcionamento da circulação e acumulação do capital, que obrigue à
dispersão do aparelho repressivo, até conduzir ao ponto em que a multidão, evoluindo das
reivindicações parciais passe a exigir a destruição do capitalismo, das suas instituições,
nomeadamente da propriedade privada4, o desmantelamento do aparelho repressivo e a
construção de uma nova sociedade.
3 – O Estado
3.1 – No princípio estavam os deuses
Até hoje, a existência do Estado – e não somente o capitalista - está ligada à estratificação
social, à garantia da propriedade privada, à consolidação de sociedades desiguais, à afirmação
de um par inseparável de elementos ideológicos - obediência e autoridade – contemplando o
monopólio da coerção e da repressão.
3 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2011/12/afinal-qual-funcao-social-do.html
4 Em Aragão, nos anos 30 do século passado, nas localidades onde se estabelecia o comunismo libertário, a primeira ação era a
queima dos registos de propriedade (cfr Repensar la Anarquia, Carlos Taibo)
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 7
8. O seu início, há milhares de anos, está relacionado com os privilégios requeridos por alguns (e
aceites pelos outros) considerados como capazes de estabelecer contatos com as forças
ocultas e os antepassados, num contexto global de grande desconhecimento sobre a realidade
circundante e de grande receio perante a fome, a doença, a morte, o frio, a seca, as incursões
de outros grupos humanos. Assim, os sacerdotes, xamãs, feiticeiros e outros nomes dados a
estes espertos aldrabões, cultivavam o medo e a ignorância entre os seus congéneres e, para
se dedicarem às suas altas tarefas de comunicação com os espíritos, precisavam de se isentar
dos árduos trabalhos que cabiam ao resto do clã ou tribo, exigindo sustento, mordomias e
obediência.
Os deuses sempre foram qualificados como omnipotentes, caprichosos e cruéis, qualidades
essas que os sacerdotes decidiram adoptar, em nome dos deuses, para imporem a sua
autoridade e os seus privilégios, ao povo. Daí surgiu a segmentação entre, por um lado, servos
e escravos, que trabalhavam arduamente, e por outro, os sacerdotes, incansavelmente
ocupados em traduzir os caprichos em que os deuses, entediados por uma eternidade sem
nada fazerem, envolviam os humanos.
As castas sacerdotais, para dirimir as suas teológicas dúvidas e disputas, criaram entre si um
elemento (rei) para representar os deuses, assumindo mesmo a qualidade divina. Essa
personalização terrena dos deuses tinha também a vantagem de facilitar a sua materialização
por parte da população, em reforço de todas as construções abstratas que sensibilizavam
pouco quem se dedicava para conseguir sustento para sobreviver.
Uma casta assim instituída, para se impor de modo constante à população, precisaria de
guerreiros para castigar os recalcitrantes em contribuir para a nobre missão da comunicação
com o Além; de facto a elevação dessa tarefa exigia privilégios, incompatíveis com o duro
trabalho da terra, da irrigação, de tratar do gado, etc. Esse corpo de guerreiros foi constituído
como um aparelho especializado na coação e na repressão. O Estado, como órgão político,
nascia, definido através do que veio a ser a sua primeira função: a repressão que, ainda hoje,
está no mais fundo da sua natureza, como um primordial marcador genético.
Como as populações entendiam mal que tivessem da municiar a casta (não tinham
comentadores televisivos…), os guerreiros tratavam de saquear o povo ou lançar incursões
sobre os povos das imediações, às ordens do referido aparelho primordial, para a manutenção
da casta, sem que, entretanto, esses guerreiros não se aviassem em primeira instância. Como
se denota, o único direito da população restringia-se ao de ser violentamente objeto do saque.
Os guerreiros, aproveitando-se do poder das armas para a recolha do saque, não resistiam
amiudadas vezes à tentação de substituírem os seus ordenantes, para evitar a partilha
procedendo assim à sua própria elevação como casta governante. As sucessões dinásticas, as
lutas entre nobres, sacerdotes e cortesãos – a classe política desses tempos – faziam-se com o
recurso às armas ou, mais docemente, em encontros de alcova. Inaugurava-se assim, o
rotativismo dos grupos beneficiários do saque que hoje ainda subsiste, por meios menos
sangrentos, através das farsas eleitorais.
Para evitar esta instabilidade política – algo a que os poderes atuais continuam a ser muito
sensíveis – as castas dominantes mudaram de procedimento. Criaram uma burocracia para a
recolha do saque sob a forma mais branda do imposto, cuja finalidade se cingia à manutenção
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 8
9. da casta e ao pagamento à tropa, retirando a esta a tarefa do saque e, ao mesmo tempo
oferecendo à população um duvidoso serviço de proteção face a invasores.
Para além da utilização da bestialidade militar, pouco diferenciada se aplicada contra a
população em casos de insubmissão ou contra outros povos em actos de conquista, a
legitimidade do poder assentava na ligação ao divino. Dos imperadores chineses aos reis
mesopotâmicos, aos faraós do Egipto, a Alexandre Magno (para grande irritação das suas
tropas, de cultura helénica) aos califas muçulmanos, aos reis medievais da Europa, aos sultões
otomanos ou aos monarcas europeus do absolutismo, o saque terreno e a sacralização pelo
divino sempre estiveram ligados. Quanto à sacralização do estado português feita pelo Papado
já nos referimos anteriormente5.
O dinheiro dos impostos continuava a alimentar reis, cortesãos, nobres e toda a gama de
serventuários, bem como a existência de tropa, cada vez mais sofisticada em termos de
armamento e meios de defesa – estradas romanas, Grande Muralha da China, castelos – e
ainda a máquina fiscal, o aparelho ideológico (templos para todos os deuses) e, de modo mais
esparso em obras úteis de irrigação, secagem de pântanos, arborizações, navios. A propósito
de tributação fiscal, o poder em Portugal ainda hoje se mantém muito criativo, na tradição dos
antepassados que, em 1387, criaram o imposto de sisa, o primeiro imposto nacional na
Europa.
O capitalismo veio a desenvolver substancialmente os Estados criando aparelhos judiciais e
policiais como produto da especialização na área repressiva. As necessidades de inventariação
das pessoas tornou-se importante para a cobrança dos impostos e a deteção de jovens para a
guerra, para o cumprimento do sagrado dever de defesa da pátria (nome inventado para
designar os interesses dos capitalistas locais). Os cuidados de saúde, por seu turno,
continuavam dependentes da caridade e a instrução manteve-se ausente da grande maioria,
apenas presente nos costumes e na transmissão oral dos conhecimentos, entre as gerações,
para além de algumas universidades onde dominavam os clérigos. Às dízimas e sisas vieram
juntar-se os direitos alfandegários que os aparelhos de estado cobravam para manter as cortes
e defender os capitalistas nacionais dos concorrentes estrangeiros. Como as frequentes
guerras desestabilizavam os equilíbrios orçamentais, havia financeiros para financiar a
constituição da dívida estatal e reduções no conteúdo de metais nobres na moeda para
aumentar o volume de meios de pagamento. Como em tempos mais recuados, a existência do
Estado poucos benefícios trazia para a esmagadora maioria da população.
O século XIX com o seu liberalismo, evidenciou um enorme desenvolvimento do volume e do
âmbito geográfico da circulação das mercadorias e do dinheiro, da produção para o mercado,
alimentados pela complexa atividade produtiva, resultante das técnicas que deram o nome às
duas revoluções industriais. As necessidades daí resultantes empurraram as nações mais
desenvolvidos para a massificação da utilização das escolas, com a instituição do ensino básico
público, obrigatório e gratuito, o ensino técnico (na Alemanha) enquanto os hospitais surgiam
para tratar militares feridos - como apêndices das guerras, frequentes e mais mortíferas -
antes de se constituírem em sistemas públicos de saúde surgidos pela primeira vez em
Inglaterra, somente em 1948, no âmbito da instituição do chamado modelo social europeu.
5 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/02/soberania-soberania-nacional-e.html
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 9
10. O século XIX é rico em manifestações contra o sistema capitalista ainda que, inicialmente, com
atuações românticas de retorno ao passado pré-industrial, como reação desesperada às
condições miseráveis de vida, às longas jornadas de trabalho e sem qualquer resguardo nos
casos de doença ou morte, que não o amparo familiar. Essa situação sensibilizava gente das
classes médias, cuja pressão fez o governo inglês acabar, em meados do século XIX, com o
trabalho infantil para menores de … nove anos e restringir a 48h por semana, o trabalho dos
que tivessem menos de 13 anos; na mesma época foi abolida a escravatura, na Europa e nos
EUA. Com menos filantropia mas, mais calculismo, foram estabelecidos no último quartel
daquele século, sistemas de reforma, de saúde pública, de seguros de desemprego, enquanto
muitos trabalhadores se associavam para os mesmos fins – fora da dependência dos Estados -
sob a forma de mutualismo, para a cobertura solidária de riscos, no âmbito de um projeto mais
vasto de associativismo que desconectasse os trabalhadores da produção capitalista.
Esse calculismo estava na necessidade dos capitalistas terem trabalhadores saudáveis
disponíveis e de combaterem a crescente organização e radicalização daqueles, para além da
instituição do sufrágio universal (masculino) funcionar como elemento de envolvimento com o
Estado. Por outro lado, a introdução do serviço militar obrigatório, funcionaria como elemento
de fomento do sentimento patriótico, com a subsequente mobilização para o sacrifício no altar
das disputas inter-imperialistas.
A preocupação com a saúde ou a instrução pública e o início de alguma segurança para depois
da vida ativa, constituem as primeiras manifestações de alguma utilidade do Estado para a
população e funcionaram como contrapartidas oferecidas pelas classes dominantes para o
desarmamento político e das práticas contestatárias ou revolucionárias dos trabalhadores,
como se observou com os partidos sociais-democratas em torno da I guerra mundial,
indutores do nacionalismo e do apoio popular aos “seus” capitalistas e, com os partidos
comunistas europeus, depois da II guerra mundial, quando se cingiram à defesa dos interesses
estratégicos da URSS, a “pátria do socialismo”.
A Grande Depressão nos EUA mostrou os limites do liberalismo e da espiral financeira, com
fortes quebras nos níveis da atividade económica, a falência de 25000 bancos e altíssimos
índices de desemprego, que se repercutem também na Europa e nos países colonizados ou
dependentes. A solução encontrada para salvar o capitalismo foi a intervenção massiva do
Estado nos EUA, através do New Deal, tal como na Alemanha nazi, enquanto na URSS se
consolidava um capitalismo de estado, com a fusão das funções burocráticas e políticas com as
funções económicas numa única estrutura, o partido-estado.
A intervenção do Estado através do New Deal assumiu formas novas. As obras públicas em
grande número e dimensão serviram de impulsionador da economia através do chamado
efeito multiplicador e davam trabalho a milhões de pessoas desempregadas. Por outro lado, o
Estado estabeleceu uma política social inovadora, com a fixação de um salário mínimo e
seguros de doença e aposentação. O Estado assumia assim um papel determinante como
investidor, como indutor de consumo público e privado e simultaneamente atraía os
sindicatos, com a aceitação desta estratégia, para aceitarem também a ordem capitalista. No
entanto, só a corrida aos armamentos, primeiro, com a venda à Inglaterra a partir de 1939 e
depois, com a entrada dos próprios EUA na guerra, com a mobilização de milhões de soldados,
só então, sublinhamos, os índices económicos melhoraram e o desemprego atingiu valores
“aceitáveis”. O Estado foi determinante para que se superasse a crise causada pelos
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 10
11. capitalistas garantindo-lhes a procura de bens e serviços, através de investimentos públicos,
gastos militares e uma redistribuição do rendimento - destinada esta última a ser anulada pela
inflação – elementos essenciais que vieram a ser teorizados por Keynes e seus seguidores.
Na Alemanha, a corrida aos armamentos e a construção de infraestruturas necessárias para a
guerra, dirigida por um Estado totalitário, aumentou o emprego e reduziu o desemprego …
com a ajuda do internamento ou assassínio de anarquistas, comunistas, judeus, homossexuais,
para além da utilização de trabalho forçado, mais próximas da escravatura do que do
funcionamento do “mercado” de trabalho. Esta política laboral embora com uma aplicação
cruelmente original integraria também o que se veio a chamar de keynesianismo. Não
esqueçamos que na mesma época as potências coloniais utilizavam largamente o trabalho
forçado nas suas colónias, como instrumento de crescimento económico.
No final da II guerra mundial sobrou uma Europa destruída e a consolidação do poder dos EUA,
que já havia substituído a Inglaterra como principal potência mundial a nível comercial e
financeiro; e daí surgiu um fluxo enorme de capitais norte-americanos para a reconstrução e a
reconstituição das estruturas do capital na Europa, ao mesmo tempo que se desenhava o fim
dos impérios coloniais. Esse elemento financeiro, por impulso dos EUA, integrou-se em
instâncias plurinacionais como a OCDE a CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a
Comunidade Económica Europeia e o Euratom e gerou uma rápida recuperação aos níveis das
infraestruturas, do emprego e dos rendimentos, com forte envolvimento das burocracias
estatais e de empresas nacionalizadas. Por outro lado, o prestígio da URSS conseguido com o
combate aos nazis tornava apelativo para muitos o seu modelo económico centrado num
poder estatal omnipresente, estendido à Europa de Leste e, pouco depois à China.
A competição entre os dois blocos políticos rapidamente gerou na Europa alianças militares
antagónicas, dirigidas pelas grandes potências tutelares. Para conter a atração dos
trabalhadores pelo modelo social vizinho foi criado o modelo social europeu (apesar de ter
várias formas, como a escandinava, a renana, a nipónica e não abranger os países ibéricos ou a
Grécia), com férias pagas, segurança no emprego, altos salários, segurança social, com
concertação social entre patrões e sindicatos, constituídos em trindade porque arbitrados pelo
Estado. A defesa do modelo ficou a cargo de partidos, ora de cariz social-democrata ou
socialista, ora populares ou democratas-cristãos, com ligeiras diferenças entre si mas, atentos
à necessidade de manter o dito modelo para evitar avanços esquerdistas (Paris 1968, Itália
anos 70, Portugal 1974/5) ou a atração do capitalismo de estado vigente no Leste, através dos
partidos comunistas, até ao surgimento de alguns distanciamentos destes, como por exemplo
do PC Italiano.
O final dos “gloriosos 30 anos” de crescimento ficaram esgotados no princípio da década de 70
e o dito modelo social europeu nas suas diversas interpretações locais mostrou-se muito caro
para as necessidades de acumulação capitalista, para mais quando o encerramento do canal
do Suez (1967-75) alterava completamente a logística do comércio marítimo e elevava os
preços do petróleo. As teses neoliberais constituíram um verdadeiro modelo social, teorizado
por Friedrich Hayek - que germinou particularmente no seu feudo em Chicago - e que
patrocinava então (como hoje) a defesa da desregulamentação da atividade económica, o
comércio livre, com a consideração do mercado como portador da virtude da autorregulação,
confinando a atuação do Estado ao âmbito clássico do exercício da repressão, da cobrança de
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 11
12. impostos e da garantia do livre funcionamento dos mercados, incluindo particularmente, a
necessária e conveniente intervenção no chamado mercado do trabalho.
A primeira e trágica aplicação prática das teses neoliberais operou-se no Chile (1973) após o
golpe fascista de Pinochet, posteriormente rodeado de economistas formados em Chicago,
anunciando-se como arautos da distribuição regressiva do rendimento, a favor das
multinacionais e dos capitalistas nativos; a comparação no gráfico seguinte com a média da
América Latina recordará que Pinochet não sendo o único ditador da região, se mostrava
bastante “eficiente”.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Miracle_of_Chile
A aplicação do catecismo neoliberal – privatizações, desregulação e Estado mínimo – surgiu na
Europa com Thatcher em 1979 e, nos EUA, com Reagan no ano seguinte; propagou-se como
um vírus pelas classes políticas e, adoptado pelo FMI e pelo Banco Mundial, foi imposto como
resolução dos problemas de endividamento, a partir de então, nos países pobres ou
dependentes, em benefício do capital financeiro e facilitando a compra de recursos e
empresas públicas pelas multinacionais. Foram determinantes as formas brutais como
Thatcher e Reagan usaram o poder repressivo do Estado para lidar com as greves dos mineiros
e dos controladores aéreos, respetivamente, como clara amostra do tratamento que os
neoliberais dão ao “recurso” trabalho, para criarem valor nos balanços das empresas, dos
bancos e nas contas particulares dos milionários.
Os desenvolvimentos tecnológicos no tratamento da informação e nas comunicações tiveram
impactos enormes na economia e na sociabilidade, a nível global. O capital financeiro
aproveitou para crescer de modo inaudito, dominando o planeta e arrastando na volúpia
especulativa as multinacionais, o capital mafioso, os interesses imobiliários e os capitalistas em
geral – e até a multidão - todos domesticados pelo acesso fácil ao crédito. Esses
desenvolvimentos vieram indiretamente a minar o controlo das economias nacionais pelos
capitalistas nativos, a reduzir a margem de intervenção dos respetivos aparelhos de estado e a
tornar obsoleto o conceito de soberania nacional, conceptualizado no seguimento do impulso
inicial do capitalismo.
Em 1991, o capitalismo, já então na dominante forma neoliberal teve um brinde; o
desmantelamento da URSS e a falência do capitalismo de estado, incapaz de promover
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13. qualquer laivo de democracia (mesmo meramente formal como praticado nos países de
modelo neoliberal), hábil para a construção de infraestruturas ou armamento mas,
insusceptível de competir com os níveis de bem-estar e consumo observados nos países de
capitalismo neoliberal. Gorbachov não foi a tempo de imitar Deng Xiaoping que, após a morte
de Mao Tse-Tung havia promovido a coabitação de uma economia liberal de exportação
baseada em baixos salários e fortes desigualdades regionais, sem perda do domínio da enorme
e tentacular burocracia estatal alicerçada no PCC.
A desaparição do capitalismo de estado como modelo alternativo (aplicado ainda na sua forma
mais pura na monarquia norte-coreana) teve efeitos de ordem política. Os tradicionais
partidos “comunistas” ou “operários” ocidentais desfizeram-se ou sobrevivem como peças de
museu; os partidos socialistas/sociais-democratas que haviam protagonizado o modelo social
europeu adoptaram o neoliberalismo e aproximaram-se dos tradicionais partidos da direita,
para competirem na ocupação do aparelho de estado; e nos países que abandonaram o
capitalismo de estado, os burocratas reinantes foram protagonistas de uma conversão radical
e rápida à nova religião neoliberal, para beneficiarem com os favores concedidos às
multinacionais.
3.2 – O neoliberalismo e o regresso dos deuses
O modelo neoliberal tem vindo a exigir, portanto, um redimensionamento global dos
aparelhos de Estado e a sua reconfiguração, com a privatização de serviços essenciais para a
população (saúde, educação, abastecimento de água ou eletricidade, vias de comunicação,
telecomunicações e também nas áreas sociais), com a contratação de empresas para o
exercício de funções (serviços informáticos, consultadoria ou fornecimento de mão de obra em
regime de precariedade) para além de contratos e adjudicações a empresas privadas, em
condições que mais se assemelham à constituição de rendas perpétuas, tal como eram
atribuídas em tempos pré-capitalistas a elementos do clero e da nobreza. O capitalismo
colocou o mercado no pódio celeste, e substituiu os altares pelo écran televisivo, como formas
de pastoreio das consciências.
O Estado capitalista neoliberal de hoje tende a centrar-se em dois tipos de funções essenciais:
as desempenhadas pelo aparelho coercivo e a punção fiscal, associada à aplicação do seu
produto.
a) O aparelho coercivo
O aparelho coercivo desempenha a mais antiga das funções do Estado, como se disse atrás;
desenvolveu-se, diversificou-se enormemente e é composto pelo sistema judiciário, as polícias
e as forças armadas. Teoricamente, o Estado detém o monopólio da coerção embora estejam
abertas oportunidades para serviços prestados por privados, em regime de contratos de
concessão ou fornecimento de serviços.
O sistema judiciário tem uma atuação mais independente e menos desacreditada nos países
mais ricos ou, onde existe uma maior capacidade crítica da população e dos media; porém, nos
países subalternos perdeu toda a independência inerente à divisão dos poderes definida nos
compêndios, contribuindo - por ação ou omissão - para o branqueamento dos desmandos do
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 13
14. poder e da corrupção6 fornecendo fortes contributos para o descrédito da dita democracia
representativa ou de mercado.
São os governos - acolitados por gabinetes jurídicos tão obscuros como milionários, onde paira
grande quantidade de membros da classe política em posições de recuo ou em acumulação
promíscua - que constroem o ordenamento jurídico e processual que convém aos interesses
do capital; note-se, por exemplo, que os tribunais de pequena instância foram criados quando
se tornou necessário dirimir conflitos que tinham as grandes operadoras de telecomunicações
como partes.
Aquele ordenamento torna a aplicação da justiça enredada em normativos geradores de
lentidão procedimental, em leis complexas, desconexas e eivadas de alçapões para facilitar os
ricos, os clientes dos escritórios de advogados e os corruptos; não deixando de exibir, no
entanto, arrogância e rigor com os pobres, pequenos delinquentes e causas menores.
Lateralmente, existe uma justiça paralela, assente em tribunais arbitrais que funcionam para
os diferendos económicos com juízes escolhidos pelas partes litigantes, à margem do sistema
judiciário; uma justiça privada, de facto, para grandes empresas. Há ainda a possibilidade,
também na área económica, de as partes contratantes escolherem a jurisdição aplicável em
caso de conflito que poderá não ser a do país residente mas, a de uma área exterior, onde a
legislação seja a conveniente para quem detenha mais poder no âmbito desse contrato.
Esta última situação será bastante agravada se o TTIP for adoptado pela UE. No seu projeto
está prevista a possibilidade de qualquer empresa que se sinta lesada por limitações colocadas
à sua atuação num dado país, poder recorrer a arbitragens exteriores, privadas, designadas
“mecanismos de resolução de litígios” contra o Estado daquele país que repercutirá os custos
na população; nesse âmbito, multiplicar-se-ão casos como atualmente o de fundos abutres
contra a Argentina nas mãos de um tribunal norte-americano encimado por um juiz acérrimo
defensor dos direitos do capital sobre tudo o mais e, com argumentos demenciais.
A promiscuidade entre o Tribunal Constitucional português (no qual a maioria dos juízes é
expressamente nomeada pela classe política) e o poder executivo é evidente nas suas
resoluções salomónicas, onde se fazem prodígios de equilíbrio que mantenham a instituição
com alguma dignidade, contrariando parcialmente o governo mas, tendo particular atenção às
conveniências da governação mesmo que o direito e a justiça sejam maltratados.
A polícia tem vindo a desenvolver uma vasta gama de corpos especializados para além dos
pachorrentos polícias de giro, todos porém, ensinados a ter mão pesada e gatilho ligeiro para
eventuais delinquentes, exaltados de pele escura ou nos chamados “bairros problemáticos”. É
verdadeiramente escandaloso que um país de baixa criminalidade como Portugal, sobretudo
da violenta, esteja no quarto lugar no indicador polícias/100000 habitantes (454.2), pouco
atrás da Itália e da Turquia, embora mais separado do campeão, a Rússia, com 564.6 polícias7
por igual número de habitantes. Gradualmente, a polícia de choque, tem beneficiado de
grandes investimentos em formação e equipamento ao ponto de, em atuação, mais se
assemelharem a figurantes dos filmes de Kurosawa.
6 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/09/porque-corrupcao-porque-em-portugal.html
7 http://www.bloomberg.com/visual-data/best-and-worst/most-heavily-policed-countries
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 14
15. A polícia dita secreta (SIS) revelou-se poder ser utilizada nas rivalidades entre grupos
económicos nativos, porque há sempre quem saiba “privatizar” as informações armazenadas.
Por outro lado, vão-se desenvolvendo as taras da videovigilância, das escutas telefónicas, da
observação massiva do correio eletrónico, da participação nas redes sociais, da cópia “pirata”
de conteúdos, por decisão da suserania dos EUA para, a partir dos episódios das Torres
Gêmeas. Os aparelhos de estado avançam – e de modo coordenado entre si - numa cruzada de
supervisão da vida de todos, mandando-se para as urtigas os direitos elementares à
privacidade, de que as democracias de mercado tanto se arrogam defender.
Finalmente, as forças armadas, constituem um caro brinquedo na sua generalidade8, como
indutoras da obediência cega, da autoridade, do reacionarismo9 mas, úteis para o apoio em
ações da NATO, quando esta entende mobilizar um pelotão luso para lugares tão distanciados
dos interesses dos portugueses como o Afeganistão, o Uganda ou o Mali. As forças armadas
são também um bom foco para a prática de negócios escuros envolvendo a importação de
equipamentos militares.
Na falta de ocupação e utilidade visível, as forças armadas apresentam-se, periodicamente,
bem ataviados, em ridículos desfiles diante da fina flor da classe política, como na celebração
do dia da “raça” deste ano10.
b) A punção fiscal e o destino do saque
O Estado é o beneficiário de uma relação única. As pessoas são coagidas a entregar-lhe parte
substancial do seu rendimento sem qualquer explicação credível ou especificação que denote
a sua futura utilização; nem as pessoas têm qualquer intervenção sobre o seu destino
concreto. O autoritarismo estatal verifica-se na recolha do imposto e na sua aplicação prática;
não há uma relação bilateral, de direitos e deveres, apenas a perpretação de um saque.
As pessoas são consideradas tecnicamente como “obrigados fiscais” designação que expressa
essa profunda desigualdade entre as pessoas e o Estado, dito representante de “todos nós”.
Por isso, quem precisar de uma escola nas imediações, ao pagar os seus impostos,
provavelmente terá o seu contributo “investido” num tanque de guerra, num pagamento de
consultadoria, num banco em dificuldades ou em juros de dívida; e não terá qualquer via para
contestar um gasto considerado inútil, excessivo ou um investimento não efetuado, mesmo se
inscrito no orçamento.
A classe política sabe-se com poder para usar o dinheiro dos impostos como quiser. Sabe que
pode gastar mais do que o que lhe foi entregue, contrair empréstimos, proceder a contratos
ruinosos ou conceder benefícios fiscais, atribuir rendas e privilégios (incluindo aos seus
próprios membros), sem qualquer mandato para além das votações genéricas do orçamento,
efetuadas em sessões parlamentares teatralizadas entre membros da classe política. O
espetáculo transforma-se em farsa quando se sabe que o orçamento é previamente aprovado
(sem recurso) pela Comissão Europeia, enquanto a dívida pública ultrapassar os 60% do PIB,
8 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/07/para-que-servem-as-forcas-armadas.html
9 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/08/o-militarismo-instrumento-politico-e_18.html
10 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/06/o-dia-da-raca-e-exibicao-circense-na.html
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 15
16. situação que, de modo otimista se sabe irá ter uma vigência de dezenas de anos. Podem ainda
referir-se as promessas feitas em campanha eleitoral que todos sabem (votantes e mandarins)
ser uma encenação, cujo conteúdo todos irão esquecer ou, se necessário, revogado por algum
estudo elaborado à medida ou outro subterfúgio, para justificar o não cumprimento do
prometido.
O orçamento é efetuado sob a orientação do capital financeiro e dos grupos económicos com
acesso ou controlo sobre os membros do governo, no sentido da obtenção de benefícios
fiscais, da definição da carga fiscal ou contributiva sobre o trabalho, do volume destinado a
apoios sociais, contratos, investimentos de “interesse público” - a financiar pela banca ou com
adjudicação antecipadamente comprometida - e ainda concessões, privatizações ou aquisições
de serviços e equipamentos. O interesse público até poderá estar contido em algumas das
prescrições orçamentais concretas mas, no seu conjunto, o orçamento não é construído tendo
como primeiro objetivo o interesse coletivo. Como popularizado pelo actual primeiro-ministro,
a chegada ao governo visa o acesso ao “pote”, onde continuamente se derrama o dinheiro dos
impostos.
A garantida continuidade do fluxo financeiro imanente à punção fiscal é também uma situação
única. As pessoas nascem e morrem e as empresas podem falir. O Estado, por muitas
dificuldades financeiras que tenha, não vai à falência; tem sempre como suporte, susceptível
de saque, o património e os rendimentos da população.
Um contrato em que o Estado figura como devedor é uma maravilha para os credores.
Primeiro, porque o domínio ou a influência do capital financeiro e dos grupos económicos ou
nativos sobre a classe política garante condições muito favoráveis (com maior ou menor
envolvimento de corrupção), como se observou recentemente em Portugal com os contratos
swap e as parcerias público-privadas. Depois, porque a presença da classe política no exercício
da punção fiscal garante que os contratos serão cumpridos, quer porque os credores nele
incluem formas de evitar deslizes, como se disse atrás ( a) O aparelho coercivo) e ainda
beneficiam da supervisão estratégica da UE, do BCE ou a mais operacional como a da extinta
troika. E finalmente porque os mandarins, em regra, por obediência aos seus mandantes,
tratam de dirigir o esforço financeiro para os trabalhadores e o população pobre, poupando no
possível as empresas e os empresários, enquanto entes superiores, porque criadores de
emprego e riqueza, como consta nos salmos repetidos pelos media.
Qualquer transformação política radical que contemple o não cumprimento por parte de um
país, este, para se furtar ao ostracismo e sanções do capital global ou é um país de grande
dimensão com relevância própria ou inclui a sua atuação num concerto de povos de vários
países acossados, susceptível de promover perturbações graves nos mercados financeiros, tão
agressivos e dinâmicos quanto frágeis.
3.3 – A ilegitimidade ontológica do Estado
A ilegitimidade do Estado pode ser observada sob vários pontos de vista.
Há uma ilegitimidade basilar que é a existência de um aparelho que se auto-reproduz,
portador dos poderes de exercício de autoridade, de coação e de repressão sobre as pessoas,
que toma, implicitamente, como seus súbditos. A apropriação daquele aparelho pela classe
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 16
17. política, promove a sua fusão com o próprio Estado, tornando-se regra a existência de
partidos-estado, mesmo quando formalmente surgem em eleições, como distintos. A
relevância principal da classe política, do ponto de vista do sistema capitalista, resulta de ser o
consignatário do capital financeiro, das multinacionais e do capital nativo, sem descurar os
interesses pessoais ou grupais dos seus membros. Outra das suas mais relevantes funções é a
da perpetuidade do sistema e da sua própria como classe, que designam de modo simpático
por “estabilidade política”, assente no convencimento da multidão sobre a bondade da
organização política que mascara a geral ausência de democracia.
Como já dissemos atrás, a classe política toma também decisões que satisfazem necessidades
da população mas, não é esse o seu principal objetivo; este consiste na sua própria reprodução
como corpo privilegiado pelo acesso e distribuição do conteúdo do “pote” o que convém
também aos capitalistas que têm influência nos mandarins.
Uma das ações desse corpo privilegiado, especificamente, da classe política, consiste em
organizar eleições - no caso das chamadas democracias representativas – para a escolha dos
seus membros que irão decidir sobre as necessidades coletivas da população. Esses eleitos,
jamais considerarão a hipótese de colocar a população a tomar decisões concretas; e, menos
ainda a vincularem-se a elas, a tomarem-se como mandatários da população, que teria,
naturalmente, o direito de revogar os seus mandatos, a qualquer momento, num contexto de
não perpetuidade da representação numa classe política – o que se chama democracia direta.
A adopção da democracia direta significaria a vacuidade do Estado, como detentor da
autoridade o que arrastaria a evidente percepção da inutilidade da classe política. Recorde-se
a dificuldade de se organizarem referendos de iniciativa popular, sendo todos, os poucos
efetuados em Portugal, da iniciativa do poder. Abordámos recentemente a construção
legislativa com que a classe política portuguesa se defende da realização de referendos por si
não desejados11.
O Estado e os seus donos geram, em permanência uma cultura de obediência à sua figura,
segmentações e desigualdades sociais e económicas entre a população, como um deus
exigente e caprichoso, acima das pessoas, incluindo nessa cultura a afirmação e a promoção de
uma menoridade natural que o povo terá. A desinformação introduzida por essa cultura é
tanta sobre o que será a democracia que há quem diga: “o Estado, somos todos nós (os
elementos do povo)”.
A democracia representativa, teorizada por Max Weber como a única forma admissível nas
sociedades modernas, resume-se ao método de escolha dos mandarins, não à prática social da
democracia, da decisão coletiva exercida pelos seus diretos interessados. Ao assumir essa
posição elitista, Weber não só legitima a existência de um ente, o Estado, exterior e acima da
população, como considera aquela, marcada pela ignorância, pela pusilanimidade, pela
irresponsabilidade de resolver os seus próprios problemas. E legitima a existência de um escol,
uma classe política para, na acepção mais lisonjeira, gerir e decidir paternalmente a favor da
ignara plebe; o que equivale, para o leninismo e seus derivados, à vanguarda operária que,
ungida pelos deuses, haverá de conduzir o resto do povo à glória, apropriando-se, de permeio
de privilégios e rendimentos a que os não-ungidos não têm o direito.
11 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/07/portugal-deve-sair-do-euro-sim-ou-nao-1.html
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 17
18. A aplicação das leis emanadas do Estado defende menos os interesses das pessoas comuns,
acometidas com sobranceria, com coimas, custas e juros enquanto “obrigados fiscais” do que
empresas e capitalistas, beneficiários da permissividade que permite a evasão e o subterfúgio
de anulações ou prescrições de dívida ao Estado ou à Segurança Social12. Por outro lado, as
polícias podem reprimir atitudes criminosas mas, quantos deles resultam das disfunções
produzidas pelo capitalismo, pelas desigualdades, pelo desemprego, pelos anátemas sociais,
pela insegurança e pela miséria? Porque não serão justiçados políticos responsáveis por actos
lesivos para milhões de pessoas e é preso um simples carteirista apanhado no Metro? Ou um
chamado empresário que despede trabalhadores, no seguimento agredidos com o anátema e
a humilhação, por parte da classe política que lhes “concede” um subsídio?
Em Portugal, a carga fiscal direta sobre a população não possidente (IVA e IRS, na sua grande
parte) ou indireta, porque repercutida nos preços finais pelas empresas (impostos sobre os
produtos petrolíferos, sobre veículos, entre outros) é de longe superior à sua parte no
rendimento nacional (44.8% em 2013); o que revela o caráter regressivo do sistema fiscal e
que o Estado é um instrumento claro de recriação sistemática de desigualdades e injustiças.
Como isso não é um elemento ocasional mas, uma caraterística que lhe é imanente, o Estado
situa-se em contínua oposição e agressão à multidão, reduzindo-lhe a qualidade de vida que
poderia gozar como resultado do esforço dos trabalhadores, coartando-lhe direitos, exigindo
sacrifícios, no sentido de suprir os desequilíbrios financeiros que a classe política e o capital
geraram para alimentar o processo de acumulação capitalista, em crise. Nada disto se prende
com a atividade de um gang específico na condução do aparelho estatal; jamais qualquer
oposição de direita ou da esquerda institucional fará algo que seja substancialmente diferente,
uma vez que os partidos do sistema capitalista e de democracia de mercado estão formatados
para viver dentro do sistema e do sistema. Em suma, a gestão financeira corrente do Estado é
portadora de uma ilegitimidade gritante, porque a sua existência não visa o bem-estar da
população; em Portugal ou qualquer outro país.
A introdução entre as responsabilidades do Estado, no que concerne a serviços de saúde e
educação (entre outros) destinados a toda a população, representou a colocação no Estado de
grandes responsabilidades na geração de bem-estar das populações. E daí, alguma
legitimidade por um lapso de tempo que terá durado cerca de um século, desde a tomada de
medidas para mitigar o sofrimento e elevar a esperança de vida dos trabalhadores industriais,
em meados do século XIX e a década de 70 do século passado, com o capitalismo neoliberal
iniciado com a experiência fascista no Chile e com Thatcher e Reagan.
Porém, o domínio da praga neoliberal na gestão do capital alterou as coisas, colocando nas
empresas o exclusivo das responsabilidades na produção de todos os bens ou serviços, em
concorrência, esperando-se que o deus mercado garanta a qualidade conveniente por um
menor custo. E nessa lógica, a produção de batata frita terá a mesma universalidade e
dignidade social de um serviço médico ou de uma escola, medindo-se todos pelos critérios da
produtividade, da rendabilidade, da eficiente combinação de recursos que é atribuída, por
axioma, ao mercado. Neste contexto, a criatividade neoliberal vai-se expandido para as áreas
infraestruturais tão sociais como os transportes, no âmbito dos quais o ditoso mercado
necessita do encaminhamento de fundos públicos para as empresas concessionadas, sob a
12 http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/07/a-divida-seguranca-social-o-longo.html
GRAZIA.TANTA@GMAIL.COM 26/10/2014 18
19. forma de indemnizações compensatórias, em acumulação ou não com aumentos de preços;
mesmo que isso incentive à utilização de transporte próprio, irracional em termos ambientais
e estritamente económicos de custo social. O mesmo sucede no caso da captação e
distribuição da água cujo principal efeito é, em regra, um forte aumento dos preços com o
corte do abastecimento em caso de dificuldades económicas das pessoas. O equivalente
sucede na saúde ou na educação, áreas em que a introdução das empresas no circuito é
imposta à esmagadora maioria da população, tendo como base um menor financiamento
público direto, compensado, por transferências para as empresas, de custos com a utilização
de serviços privados, apelativos dado o desinvestimento público. Fala-se do modelo da “livre
escolha” que permite a viabilização de negócios privados com dinheiro público ou o onerar da
população com os custos do recurso a escolas, clínicas privadas ou seguros de saúde, estes
últimos, peritos na arte de empurrar para o serviço estatal, patologias de tratamento
prolongado ou oneroso. O modelo das parcerias público-privadas é mais uma criação
neoliberal de favorecimento de grupos económicos poderosos e dos bancos cujos contratos
com o Estado permitem-lhes beneficiar de vultuosas rendas.
Seria lógico que a população, ao suportar diretamente junto de empresas privadas, os custos
de grande parte dos serviços antes pagos através da tributação fiscal, visse a punção fiscal
reduzir-se. Mas não é isso que acontece, nomeadamente porque o endividamento dos Estados
é grande e perpétuo, permitindo verdadeiras rendas ao capital financeiro, para além das
tradicionais benesses aos capitalistas autóctones, sempre a clamar por ajudas que mantenham
a sua competitividade.
O capital financeiro, como credor, zela pela segurança dos reembolsos (a longo prazo
garantida dada a perpetuidade dos Estados, com a sua multidão de “obrigados fiscais” como
forçado amparo); e sobretudo pelo regular municiamento dos juros que se vão vencendo.
Como credor trata de supervisionar as contas do devedor utilizando instituições
supranacionais (Comissão Europeia, BCE, FMI) para garantir esse pagamento, orientando em
seu proveito, a aplicação do dinheiro dos impostos.
O instrumento essencial para esse processo de desnatação é o saldo primário, que espelha a
diferença entre receitas e gastos públicos, de funcionamento ou investimento, excluídos os
encargos com a dívida. Essa diferença, que se pretende positiva (excesso de receita) será
afecta ao pagamento de juros de dívida; se não for suficiente para tal, o capital financeiro e as
suas referidas instituições delegadas tratam de estudar o instrumento mais adequado para
aumentar aquele saldo, impondo as suas escolhas ao governo - aumentar impostos, privatizar
empresas ou reduzir gastos, com cortes salariais ou em pensões, despedimentos e reduções de
encargos com a saúde ou a educação, manutenção de vias públicas, etc.
O saldo primário é um indicador essencial de domínio do capital financeiro e é um barómetro
da subordinação dos países com todos os inconvenientes para a população, empobrecida,
reduzida nos seus direitos, com dificuldades de encontrar trabalho e mesmo de se reproduzir,
caindo na degradação social, do espaço público e do ambiente. A mesma população sofre, em
acumulação, a pressão ascendente da punção fiscal e a redução dos serviços que aquela
deveria pagar ou a sua passagem para meros serviços mercantis. Sendo assim, o Estado tende
a reduzir substancialmente a suas funções de utilidade social e perde a sua legitimidade
enquanto proclamado zelador da satisfação das necessidades coletivas.
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20. E daí a defesa (e a saudade) de muitos, pelos tempos de vigência do modelo social europeu,
mesmo na versão limitada que foi ensaiada em Portugal. O tempo não volta atrás nem a
História se repete; falta à multidão a criatividade e a mobilização para construir uma fórmula
de organização social que não contemple uma instituição denominada Estado, em constante
depenação pela classe política, nem a presença de capitalistas em qualquer fase do processo
de satisfação de necessidades.
O capitalismo pode viver com a acumulação protagonizada pelo Estado, dirigido por uma
classe de burocratas, com um papel secundário para as empresas privadas. Porém, mesmo no
capitalismo mais concentrado, globalizado e centralizado como o de hoje, a acumulação não
pode dispensar a prestimável contribuição do Estado, mesmo reduzido à sua função coerciva e
de punção fiscal que legitima, através da autoridade, a redistribuição regressiva do rendimento
e da riqueza da população a favor dos capitalistas. Por outro lado, não pode existir uma
sociedade só com capitalistas e mandarins, com robots e sem trabalhadores mas, pode
certamente ser construída uma sociedade com pessoas utilizando todos os seus recursos
tecnológicos e de conhecimento para reduzir o tempo e o esforço produtivo; sem que se sinta
a falta de capitalistas e de políticos.
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