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BRENNAN MANNING
Convite à
Loucura
Traduzido por
Sueli Saraiva
Preparado por Amigo Anônimo
www.semeadores.net
Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única
finalidade de oferecer leitura edificante a todos aqueles que não tem
condições econômicas para comprar.
Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo
apenas para avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e
livrarias, adquirindo os livros.
Semeadores da Palavra e-books evangélicos
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CONVITE À LOUCURA
Categoria: Espiritualidade
Copyright © 2005, por Brennan Manning
Publicado originalmente por Harper San Francisco,
uma divisão da Harper Collins Publishers, Nova York, EUA
Título original: The importance of being foolish
Editora responsável: Silvia Justino
Editor-assistente: Omar de Souza
Preparação de texto: José Carlos Siqueira
Revisão de provas: Aldo Menezes
Supervisão de produção: Lilian Melo
Colaboração: Miriam de Assis
Capa: Douglas Lucas
Imagem: Stockphotos
Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional (Sociedade Bíblica Internacional),
salvo indicação específica.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Manning, Brennan
Convite à loucura / Brennan Manning; traduzido por
Sueli Saraiva —
São Paulo: Mundo Cristão, 2007.
Título original: The importance of being foolish
ISBN 85-7325-464-5
ISBN 978-85-7325-464-8
1. Conduta de vida 2. Espiritualidade 3. Jesus Cristo –
Ensinamentos
4. Santa Cruz 5. Vida cristã I. Título.
07-1439 CDD–248.4
Índice para catálogo sistemático:
1. Vida cristã: Espiritualidade: Cristianismo 248.4
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998.
É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios
(eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito,
da editora.
Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela:
Associação Religiosa Editora Mundo Cristão
Rua Antônio Carlos Tacconi, 79, São Paulo, SP, Brasil, CEP 04810-020
Telefone: (11) 2127-4147 — Home page: www.mundocristao.com.br
Editora associada a:
• Associação de Editores Cristãos
• Câmara Brasileira do Livro
• Evangelical Christian Publishers Association
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Conteúdo
Agradecimentos .................................................................................................................... 5
Introdução............................................................................................................................. 5
PARTE UM – O MODO COMO VIVEMOS .......................................................................................... 7
Capítulo um – Verdade ........................................................................................................ 7
Capítulo dois – Transparência .......................................................................................... 19
Capítulo três – Distrações ................................................................................................. 27
PARTE DOIS – A MENTE DE CRISTO ............................................................................................. 36
Capítulo quatro – A descoberta do pai .............................................................................. 36
Capítulo cinco – Um coração misericordioso .................................................................... 41
Capítulo seis – A obra do Reino ......................................................................................... 48
PARTE TRÊS – O PODER DA CRUZ ................................................................................................ 60
Capítulo sete – A sabedoria da ressurreição ..................................................................... 60
EPÍLOGO – A REVOLUÇÃO ............................................................................................................. 68
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A G R A D E C I M E N T O S
É difícil se separar dos filhos. Em 1976, a Dimension Books publicou Gentle
Revolutionaries: Breaking Through to Christian Maturity [Revolucionários moderados: Abrindo
caminho para a maturidade cristã]. Cheio de paixão e convicção, eu queria mostrar como a igreja
estava deixando escapar os pontos centrais sobre as boas-novas de Jesus para nós.
Recentemente, quando me deparei com esse filho abandonado (já que o livro estava esgotado),
descobri que ainda era importante que a igreja ouvisse essa mensagem.
Ao mesmo tempo, acredito que aprendi a expor as coisas com um pouco mais de graça e
humildade do que fiz em meu tempo de juventude. Assim, com ajuda de Carla Barnhill e de meus
amigos da Harper San Francisco, em especial Cindy DiTiberio, revisei, atualizei e fiz ajustes no
antigo trabalho, de forma que agora ele está pronto, assim espero, para uma nova geração de
leitores. Portanto, para aqueles que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, por favor,
prossigam a leitura.
I N T R O D U Ç Ã O
É extraordinário o que um simples convite da Casa Branca pode fazer para entorpecer as
faculdades críticas", advertia o falecido Reinhold Niebuhr. Uma advertência grave! O privilégio
de pregar para o presidente é tão prestigioso que a maioria dos clérigos usa a oportunidade para
retribuir a gentileza. Em uma atmosfera de admiração mútua, a religião se dissolve num Sonrisal
verbal, e a pregação profética se torna praticamente impossível.
O pedido de outros cristãos para escrever um livro sobre a mente de Jesus traz
armadilhas semelhantes, embora muito menos sofisticadas. Ao querer agradar a todos, fico
muito tentado a escrever algo insípido, uma exposição crivada de clichês, metáforas torturantes
e histórias sem sentido. Então todos ficarão felizes e gloriosamente satisfeitos.
No entanto, este livro foi escrito a partir da crença de que Jesus Cristo viveu, morreu e
ressuscitou para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de cristãos que viveriam sob o
domínio do Espírito; homens e mulheres que seriam tochas humanas acesas com o fogo do amor
por Cristo, profetas e amantes inflamados com o Espírito ardente do Deus vivo. Oferecer uma
obra inócua seria uma prostituição do evangelho, um insulto a Deus e um grave desserviço ao
leitor.
Durante dois anos, tive o privilégio de viver com uma comunidade cristã conhecida como
Irmãozinhos de Jesus e ver o tema deste livro se desenvolver nas tarefas mais simples do mundo
comum. A vida de um irmãozinho tem como modelo a vida oculta de Jesus de Nazaré, os muitos
anos que ele passou na obscuridade dedicada ao trabalho manual e à oração antes de embarcar
no ministério público de pregar, ensinar e curar.
Passei os primeiros seis meses na pequena aldeia de Saint-Rémy, na França, a uns 150
quilômetros a sudeste de Paris. No inverno, recolhia esterco nas fazendas vizinhas e lavava
pratos num restaurante local. As noites eram envoltas em silêncio, na adoração em ação de
graças e na meditação das Escrituras. Os dias passavam num ritmo contínuo de envolvimento
com o mundo e afastamento dele. Foi uma iniciação gradual rumo a uma vida contemplativa sem
clausura e entre os pobres.
Nosso grupo de sete (dois franceses, um alemão, um espanhol, um eslavo, um coreano e
eu) mudou-se para Farlete, outra pequena aldeia no deserto de Zaragoza, na Espanha. Nos 12
meses em que vivemos ali, passamos a amar o calor, a simplicidade e a profunda amizade de um
~ 6 ~
remoto povoado espanhol com uma população de seiscentos habitantes. No verão,
trabalhávamos de 10 a 12 horas por dia na colheita de trigo ou em trabalhos de construção,
revezando turnos como cozinheiro na fraternidade e economizando dinheiro suficiente para
comprar bebidas para a festa que marcava O fim da colheita.
Nossa harmonia com os aldeões era profunda porque não somente compartilhávamos a
pobreza, a labuta, o pão amargo e a ansiedade sobre a colheita, mas também a alegria do
nascimento de um bebê, pelas núpcias dos recém-casados e uma multidão de experiências
menores tecidas na base da vida rural.
Durante o ano, muitas vezes ficávamos temporariamente sozinhos, retirados em uma
montanha alta e rochosa que, além de muito distante da vida urbana, também é um dos mais
remotos eremitérios da Europa. Em muitas e longas horas de oração nas cavernas, eu percebia
de uma nova maneira que o conhecimento redentor de Jesus Cristo substitui todo o resto,
permitindo-nos experimentar uma liberdade que não é restringida pelos limites de um mundo
que se encontra aprisionado.
Ao mesmo tempo, reconheci que muitas das importantes questões teológicas na igreja de
hoje não são importantes, nem teológicas, e que, num tempo caracterizado (em algumas partes)
pela confusão, encenações baratas e infidelidade, o que Jesus exige não é mais retórica, mas
renovação pessoal, fidelidade ao evangelho e comportamento produtivo. Conforme disse o
cardeal Paul-Emile Léger em seu adeus a Montreal: "O tempo de falar acabou".1
Essa é a premissa fundamental em torno da qual os 230 discípulos que compõem os
Irmãozinhos de Jesus organizam sua vida. Os irmãozinhos aprendem a separar o essencial do
secundário e a perceber que esse modo particular de vida é simplesmente uma conseqüência
exterior de um imenso, apaixonado e determinado amor à pessoa de Jesus.
Viver entre as mais pobres e desamparadas das pessoas como um trabalhador braçal,
sem trajes clericais, passar dias e semanas no deserto em espontâneo louvor a Deus, comunicar-
se através de valores de amizade que não podem ser comunicados pela pregação, tudo isso
satisfaz não um desejo de novidade, mas uma compulsão de amor. Alguns poderiam chamar a
isso loucura. Eu chamo de verdadeira sabedoria do Deus de amor.
1 O cardeal Léger foi arcebispo de Montreal, Canadá, até 1967, quando renunciou a sua posição como príncipe da Igreja Católica e
partiu para a Africa a fim de trabalhar com leprosos e crianças deficientes. Ele morreu em 1991. (N. da T.)
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PARTE UM
O M O DO C O M O V IV E M OS
CAPÍTULO UM
VE R D A D E
A narrativa evangélica sobre a purificação do templo é uma cena desconcertante (Jo
2:13-22). Ela nos apresenta o retrato de um Salvador enfurecido. O Cordeiro submisso de Deus
que disse "Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de
coração" (Mt 11:29) improvisou um chicote e circulou furiosamente pelo templo, destruindo
bancas e mostruários, espancando os mercadores e dizendo: "Saiam daqui! Aqui não é o Wal-
Mart. Vocês não transformarão um espaço sagrado num passeio de consumo! Mentirosos! Visitar
o templo é um sinal de reverência a meu Pai. Fora daqui!".
Ainda mais desconcertante é o amor intenso de Jesus pela verdade. Onde o dinheiro, o
poder e o prazer mandam, o corpo da verdade sangra de mil feridas. Muitos de nós temos
mentido a nós mesmos por tanto tempo que nossas reconfortantes ilusões e justificativas
assumiram uma aura de verdade; nós as apertamos em nosso peito como uma criança aperta um
ursinho favorito.
Não está convencido? Considere então um homem que cita o apóstolo Paulo sobre um
pouco de vinho ser bom para o estômago ao falar de seu terceiro martíni no almoço. Ou a defesa
veemente de um "cristão liberal" sobre a nudez em O último tango em Paris, a violência em Pulp
fiction — Tempo de violência ou a cena de sexo oral em Garotos de programa porque eles "se
integram perfeitamente ao enredo e são realizações estéticas".
Ou então o honesto diácono da igreja que aceita trapacear e sonegar em seus negócios
porque "é o único modo de ser competitivo". Ou todas as igrejas nas quais o delírio sobre a falta
de culpa é uma realidade, a maestria na exegese bíblica é uma santidade, o tamanho da
congregação é a prova de sua autenticidade e por aí afora. Não existe limite para as defesas que
inventamos contra a transgressão da verdade em nossa vida.
A questão dolorosa que enfrentamos na igreja de hoje é se o amor de Deus pode ser
comprado tão barato. O primeiro passo na busca da verdade não é a resolução moral de evitar o
hábito da mentirinha — por mais desagradável que uma deformação de caráter possa ser. Não
se trata de uma decisão sobre deixar de enganar os outros, e sim da decisão de parar de nos
enganar.
A menos que tenhamos a mesma paixão inexorável pela verdade que Jesus demonstrou
no templo, estamos destruindo nossa fé, traindo o Senhor e nos enganando. O auto-engano é
inimigo da integridade, pois ficamos impedidos de nos ver como realmente somos. Ele encobre
nossa falta de crescimento no Espírito da verdade, impedindo-nos de compreender nossa real
personalidade.
Muitos anos atrás, testemunhei o poder do auto-engano reeditado de forma dramática no
centro de reabilitação de alcoólicos de uma pequena cidade americana. O trecho é extraído de
~ 8 ~
meu livro O evangelho maltrapilho. O cenário: uma sala de recreação ampla e de dois andares na
orla de uma colina com vista para um lago artificial. Estavam lá reunidos 25 dependentes
químicos. Nosso líder era um experiente conselheiro, hábil terapeuta e membro veterano da
equipe. Seu nome: Sean Murphy-O' Connor,2 mas ele normalmente anunciava sua chegada
dizendo:
— É ele mesmo. Vamos trabalhar.
Sean mandou que um paciente chamado Max assumisse a "cadeira de interrogatório" no
centro do grupo disposto em "U". Max, um homem franzino e de baixa estatura, era um cristão
nominal, casado e com cinco filhos, proprietário e presidente de sua empresa, rico, afável e
dotado de uma pose notável.
Desde quando você tem bebido como um porco, Max? — Murphy-O'Connor havia
começado o interrogatório.
Isso é injusto — Max recolheu-se.
Veremos. Quero saber da sua história com a bebida. Quanta cachaça por dia?
Max reacendeu seu cachimbo.
Tomo duas Marias com os rapazes antes do almoço e dois Martins depois que o
escritório fecha, às cinco. Depois...
O que são Marias e Martins? — interrompeu Murphy-O'Connor.
Bloody Marys: vodca, suco de tomate, uma pitada de limão e de Worcestershire, um
toque de extrato de pimenta vermelha; e martinis: gim, extra-seco, gelado com uma azeitona e
uma espremida de limão.
Obrigado, Maria Martins. Prossiga.
Minha esposa gosta de um drinque antes do jantar. Viciei-a em Martini há muitos anos.
Claro que ela os chama de "aperitivos" — sorriu Max. — Vocês naturalmente entendem o
eufemismo, não é verdade, senhores?
Ninguém respondeu.
Como eu ia dizendo, tomamos dois martínis antes do jantar e mais dois antes de dormir.
Um total de oito drinques por dia, Max? — quis saber Murphy- O'Connor.
Exatamente. Nem uma gota a mais nem a menos.
Você é mentiroso.
Sem se abalar, Max explicou:
Vou fingir que não ouvi isso. Estou na ocupação há vinte e tantos anos e construí minha
reputação em cima da honestidade, não da falsidade. As pessoas sabem que minha palavra é de
confiança.
Já chegou a esconder uma garrafa em casa? — perguntou Benjamim, um índio navajo do
Novo México.
Não seja ridículo. Tenho um bar na minha sala de estar maior que um traseiro de
elefante. Nada pessoal, sr. Murphy-O'Connor.
Max sentia que havia recuperado o controle. Estava sorrindo.
Você guarda bebida na garagem, Max?
Naturalmente. Tenho de repor o estoque. Um homem na minha posição recebe muita
gente em casa — o executivo arrogante havia reassumido.
Quantas garrafas na garagem?
Não sei dizer a quantidade com precisão. Assim, de improviso, eu diria dois engradados
de Smirnoff, um engradado de gim Beefeater, algumas garrafas de bourbon e de uísque e um
punhado de licores.
2 No original, "Croesus O'Connor". (N. do R.)
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O interrogatório prosseguiu por mais vinte minutos. Max eximia-se e esquivava-se,
minimizava, racionalizava e justificava seu hábito de beber. Finalmente, apanhado por um
implacável interrogatório cruzado, ele admitiu que guardava uma garrafa de vodca no criado-
mudo, uma garrafa de gim na mala para fins de viagem, outra no banheiro para fins medicinais e
três mais no escritório para ter o que oferecer aos clientes. Ele trejeitava ocasionalmente, mas
nunca perdia sua postura confiante.
— Senhores — sorriu Max, — acho que todos nós já nos demos o direito de dourar a
pílula uma vez ou outra nessa vida — foi como ele colocou, dando a entender que apenas
homens de envergadura podiam dar-se ao luxo de rir de si mesmos.
Você é mentiroso — ecoou outra voz.
Não é preciso ficar vingativo, Charlie — retrucou Max. — Lembre-se da passagem do
evangelho de João sobre o cisco no olho do seu irmão e a viga no seu. E aquela outra em Mateus
sobre o roto falando do rasgado.
(Senti-me compelido a informar Max que a comparação entre o cisco e a tábua não se
encontrava no evangelho de João, mas no de Mateus, e que a história do roto e do rasgado era
um provérbio secular que não constava nos evangelhos. Senti, porém, que um espírito de
presunção e um ar de superioridade espiritual haviam me envolvido de repente, como um
nevoeiro. Decidi abrir mão da correção fraternal. Afinal, eu não estava em Hazelden fazendo uma
pesquisa para um livro. Eu era apenas um bêbado incorrigível como Max.)
— Tragam-me um telefone — disse Murphy-O'Connor.
Um telefone foi trazido num carrinho para a sala. Murphy-O'Connor consultou um bloco
de notas e discou um número interurbano para a cidade de Max. O receptor era amplificado
eletronicamente, de modo que a pessoa do outro lado da linha podia ser ouvida claramente por
todos no salão do lago.
Hank Shea?
Ele mesmo. Quem está falando?
Meu nome é Sean Murphy-O'Connor. Sou conselheiro de um centro de reabilitação de
drogas e álcool no Meio-Oeste. Você se recorda de um cliente chamado Max? (Pausa) Ótimo. Com
a permissão da família dele, estou pesquisando a história de Max com a bebida. Como você
trabalha como barman nesse lugar todas as tardes, fiquei pensando se você saberia me dizer
aproximadamente quantos drinques o Max consome por dia?
Conheço o Max muito bem, mas você tem certeza de que tem permissão para me
interrogar?
Tenho uma declaração assinada. Pode falar.
— Max é um cara fantástico. Gosto demais dele. Ele despeja trinta contos no balcão
toda tarde. O Max tomas os seus seis martinis básicos, compra mais uns drinques e sempre me
deixa uma gorjeta de cinco dólares. Grande sujeito.
Max pôs-se de pé num salto. Erguendo a mão direita desafiadoramente, ele despejou um
caudal de palavrões digno de um estivador. Ele atacou os ancestrais de Murphy-O'Connor,
colocou em dúvida a legitimidade de Charlie e a integridade de toda a unidade de tratamento.
Ele agarrou-se ao sofá e cuspiu no tapete.
Então, num feito notável, recuperou imediatamente a compostura. Max sentou-se e
observou, sem nenhuma afetação, que até mesmo Jesus havia perdido a paciência no templo ao
ver os saduceus comercializarem pombas e bolos. Depois de uma prédica improvisada sobre a
ira justificada, ele reabasteceu o cachimbo, imaginando que o interrogatório havia terminado.
Você já tratou mal algum dos seus filhos? — Fred perguntou.
Fico feliz que você tenha levantado esse assunto, Fred. Tenho uma profunda ligação com
meus quatro garotos. No último dia de Ação de Graças levei-os para uma expedição de pescaria
nas Rochosas. Quatro dias de vida dura no mato. Foi memorável. Dois de meus filhos formaram-
se em Harvard, você sabe, e Max Jr. está no terceiro ano da...
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Não foi o que eu perguntei. Pelo menos uma vez na vida todo pai trata mal um de seus
filhos. Tenho 62 anos e posso assegurar que é assim. Agora dê-nos um exemplo específico.
Seguiu-se uma longa pausa. Finalmente:
Bem, fui um tanto duro com minha filha de nove anos na última véspera de Natal.
O que aconteceu?
Não lembro. Apenas fico com uma sensação de pesar quando penso nisso.
Onde aconteceu? Quais eram as circunstâncias?
— Espere aí um minuto — a voz de Max ergueu-se com fúria. — Já disse que não
lembro. Só não consigo me livrar dessa sensação ruim.
Sem alarde, Murphy-O'Connor discou mais uma vez para a cidade de Max e falou com a
esposa dele.
— Sean Murphy-O'Connor falando, minha senhora. Estamos no meio de uma terapia
de grupo e seu marido acaba de contar que tratou mal sua filha na véspera do Natal passado. A
senhora poderia fornecer os detalhes, por favor?
Uma voz suave encheu a sala.
— Sim, posso contar-lhe a coisa toda. Parece que foi ontem. Nossa filha Debbie
queria um par de sapatos de presente de Natal. Na tarde de 24 de dezembro meu marido levou-a
de carro até a cidade, deu-lhe sessenta dólares e disse que ela comprasse o melhor par de
sapatos que houvesse na loja. Foi exatamente o que ela fez. Quando entrou novamente na
caminhonete que meu marido estava dirigindo, ela beijou-o no rosto e disse que ele era o melhor
pai do mundo. Max estava orgulhoso como um pavão e decidiu celebrar no caminho de volta
para casa. Ele parou no Cork'n'Bottle, um bar que fica a alguns quilômetros da nossa casa, e disse
a Debbie que voltava já. Era um dia limpo e extremamente frio, cerca de vinte graus abaixo de
zero, por isso Max deixou o motor funcionando e fechou as portas do lado de fora de modo que
ninguém pudesse entrar. Isso era um pouco depois das três da tarde, e...
Silêncio.
— Sim?
O som de uma respiração pesada encheu a sala de recreação. A voz esmoreceu. Ela estava
chorando.
— Meu marido encontrou no bar alguns velhos colegas do exército. Envolvido na
euforia da reunião, perdeu a noção de tempo, de propósito e de tudo o mais. Ele saiu do
Cork'n'Bottle à meia-noite. Bêbado. O motor havia parado de funcionar e as janelas do carro
estavam bloqueadas com o gelo. A pequena Debbie tinha graves ulcerações de frio nas orelhas e
nos dedos da mão. Quando a levamos ao hospital, os médicos tiveram de operar. Amputaram o
polegar e o indicador da mão direita. Ela vai ficar surda pelo resto da vida.
Max parecia estar tendo um ataque do coração. Ele lutava para manter-se de pé, fazendo
movimentos desajeitados e descoordenados. Os óculos voaram para a direita e o cachimbo, para
a esquerda. Ele caiu de quatro, soluçando histericamente.
Murphy-O'Connor levantou-se e disse suavemente:
— Vamos circulando.
Vinte e quatro alcoólicos e viciados subiram a escadaria de oito degraus. Viramos à
esquerda, reunimo-nos ao longo da amurada do mezanino e olhamos para baixo. Ninguém
consegue esquecer o que viu naquele dia, 24 de abril, exatamente ao meio-dia. Max ainda estava
de quatro. Seus soluços haviam crescido a berros. Murphy-O'Connor aproximou-se dele,
pressionou seu pé contra o tórax de Max e empurrou. Max rolou de costas no chão.
— Seu canalha miserável — urrou Murphy-O'Connor. — Tem uma porta à sua
direita e uma janela à sua esquerda. Tome o que for mais rápido. Saia daqui antes que eu vomite.
Não dirijo um centro de reabilitação para mentirosos.
Se isso soa como uma resposta cruel, devemos lembrar da filosofia desse centro de
reabilitação baseado no amor disciplinar. Ela está alicerçada na convicção, nascida de longa
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experiência, de que nenhuma recuperação efetiva pode ser iniciada até que a pessoa admita que
é impotente a respeito do álcool e que a sua vida se tornou ingovernável.
A alternativa ao evitar a verdade de sua situação é sempre alguma forma de
autodestruição. Para Max havia três opções: loucura, morte prematura ou abstinência. Contudo,
nenhuma opção era possível até que o inimigo fosse identificado mediante uma interação
dolorosa, impiedosa, com seus semelhantes. O auto-engano precisava ser desmascarado em todo
o seu absurdo.
A continuação da história é interessante. Max suplicou e obteve permissão para ficar.
Então começou a passar pela mais notável transformação de personalidade que o grupo já havia
testemunhado. O homem se tornou honesto e mais sincero, mais aberto, mais afetuoso e mais
sensível do que era antes. O amor disciplinar o tornou real e a verdade o libertou.
O desfecho de sua história é ainda mais interessante. Uma noite antes de Max terminar o
tratamento, outro homem, Fred, passou pelo seu quarto. A porta estava entreaberta. Max estava
sentando à sua escrivaninha lendo o romance Watership Down [Rio abaixo]. Fred bateu e o
cumprimentou. Durante alguns minutos, Max permaneceu fixo no livro. Quando ele levantou os
olhos, suas bochechas estavam riscadas de lágrimas.
— Fred — disse, a voz embargada, — acabo de orar pela primeira vez em minha vida.
Em autobiografia, Agostinho mostrou a estreita relação entre a busca pela verdade e a
conversão do coração. Max não pôde encontrar a verdade do Deus vivo até enfrentar a realidade
de seu alcoolismo. Com base na perspectiva bíblica, Max era um mentiroso. Na filosofia, o oposto
da verdade é um erro; na Bíblia, o contrario da verdade é uma mentira. A mentira de Max
consistia em dar a aparência de existência ao que de fato não existia: um inofensivo ato de beber
socialmente. A verdade, para ele, era equivalente a livrar-se das aparências para reconhecer a
realidade de seu alcoolismo.
No evangelho de João, o mentiroso obstinadamente recusa-se a ver a luz e a verdade, e
mergulha nas trevas. O Diabo é o pai das mentiras: "Ele foi homicida desde o princípio e não se
apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é
mentiroso e pai da mentira" (Jo 8:44).
O Diabo é o grande ilusionista. Ele enverniza a verdade: "Se afirmarmos que estamos sem
pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" (1 Jo 1:8). Incita-nos a dar
importância ao que não tem importância, veste com falso resplendor o que é menos importante
e nos desvia do que é insuperavelmente verdadeiro. O Diabo nos faz viver num mundo de ilusão,
devaneios e sombras.
O conflito entre o pai das mentiras e a verdade, que é Jesus Cristo, permeia todo o
evangelho de João. O Senhor não somente derrotou o mentiroso, mas nos deu parte de sua
vitória através do Espírito Santo: a exaltação de Jesus Cristo na cruz liberta o Espírito. O triunfo
pascal não somente expiou nossos pecados e nos justificou diante de Deus, mas trouxe o
derramamento do Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5:5). O Espírito nos capacita a derrotar a
mentira, o auto-engano e a desonestidade; nos torna agradáveis para a verdade de Deus e nos
leva a experimentar as realidades eternas.
O falecido Jean Daniélou escreveu: "A verdade consiste numa mente que dá às coisas a
importância que elas têm na realidade". O que é verdadeiramente real para o crente é Deus.
Quando Max foi levado a confrontar a verdade de seu alcoolismo e aceitá-la, atravessou uma
porta em direção ao reconhecimento da realidade soberana de Deus e declarou: "Acabo de orar
pela primeira vez em minha vida".
As conseqüências disso para o cristão sincero que busca ter a mente de Cristo Jesus (Fp
2:5) e a plenitude da vida no Espírito Santo são amplas. Para a maioria de nós, o mais real é o
mundo da existência material, sendo o mundo de Deus o mais irreal. Trata-se de um fato tão
colossal, uma subversão tão radical, que o mentiroso (no sentido bíblico) é geralmente
considerado normal em nossa sociedade. Pois a dimensão religiosa da vida é um tipo de
acessório opcional, pura questão de gosto. E a fé é uma aceitação indiferente a uma empoeirada
casa de penhores de declarações dogmáticas.
~ 12 ~
O que é importa neste mundo são as pessoas influentes, as pessoas que agem e jogam
com o que há de melhor nelas, pessoas que assumem a responsabilidade de seus atos e dirigem o
próprio destino. O poderoso é o que faz as coisas, não os que estão alquebrados e carentes.
Tais motivos, você poderia dizer, são os dos ateus: somos diferentes. Acreditamos na
religião, na fé. Talvez. No entanto, existe uma classe de mentirosos que estão abertos ao Espírito
de Jesus, mas de modo superficial. Eles recebem tudo, mas nada permanece enraizado.
Defendem a renovação eclesiástica e a mudança pela mudança. Reparam o cisco no olho das
lideranças, mas não a viga no próprio olho. Eles são a favor da vida no que diz respeito ao feto
por nascer, mas contra a vida em relação ao muçulmano, ao pecador e ao culpado.
São como borboletas que sorvem de mil cálices de flores diferentes. Pessoas confiantes
no momento: hoje andando sobre as nuvens, amanhã morrendo de depressão. Elas se guiam
pelo que é novo e nadam a favor da correnteza. Seu imperativo moral mais elevado é manter
uma boa dianteira. Nunca lhes sugira que o custo do discipulado é alto, que não existe
Pentecostes barato. Cristãos cata-ventos, nos quais não se pode confiar, formam uma legião.
Mas nosso interesse nestas páginas é o cristão sincero, cuja fé é sólida e arraigada. Jesus
Cristo é (ou está a ponto de se tomar) a pessoa mais importante de sua vida. Sua oração não é
pretensão nem fachada. É uma pessoa inteligente no sentido bíblico, que conhece a realidade
como ela é. Nas Escrituras, a inteligência não consiste em desempenho mais brilhante da mente,
mas em reconhecer a realidade onipresente de Deus. "Diz o tolo em seu coração: 'Deus não
existe'" (Sl 14:1).
Da perspectiva bíblica, um grande teólogo pode ser considerado um estúpido, enquanto
uma lavadeira analfabeta que louva a Deus pelo pôr do sol é vista como infinitamente mais
inteligente. O cristão referido nestas páginas, qualquer que seja sua situação ou condição de
vida, será considerado inteligente e interessado na busca da verdade.
O FIM DO DESLUMBRAMENTO
Em uma noite fria, iluminada pelo brilho das estrelas, eu estava ansioso na escuridão à
espera do nascer do sol. As areias do deserto brilhavam como açúcar prateado. O vento me
sussurrava o nome dele repetidas vezes: "Aba, Aba". A vigília terminava e minha vida nunca mais
seria a mesma. Numa caverna solitária no deserto de Zaragoza, conheci Deus como meu Pai. Eu
era novamente uma criança perdida em deslumbramento, amor e louvor.
Tornar-se uma criancinha novamente (conforme Jesus ordenou que deveria acontecer) é
recuperar um sentimento de surpresa, deslumbramento e vasto deleite com toda a realidade.
Olhe para o rosto de uma criança na manhã de Natal quando ela entra na sala transformada pela
passagem do Papai Noel à meia-noite. Ou quando ela descobre a moeda debaixo do travesseiro,
vê o primeiro arco-íris ou cheira a primeira rosa. Poucos de nós prendem a respiração em
momentos como esses, como um dia fizemos. A passagem pelo corredor do tempo nos fez
maiores e todo o resto menor, menos impressionante.
Conhecemos nossa força de vontade e nossa disposição. Adquirimos certo domínio sobre
a natureza, sobre as doenças. Pelo milagre da tecnologia moderna, somos capazes de
experimentar visões, sons e acontecimentos outrora disponíveis somente para Colombo, Vasco
da Gama e outros aventureiros. Havia um tempo, em passado não muito distante, quando um
temporal fazia homens crescidos estremecer e sentir-se pequenos.
Mas Deus está sendo empurrado para fora do seu mundo pela ciência. Quanto mais o
homem sabe sobre meteorologia, menos inclinado fica a orar num temporal. Aviões voam agora
em cima, embaixo e ao redor de todo tipo de tempestade. Os satélites reduzem as tormentas,
uma vez aterrorizantes, a eventos fotográficos. Que infâmia (se um temporal pudesse ser
infamado) ser reduzido de teofania a um incômodo!
Até mesmo o espaço sideral tem gradualmente deixado de nos impressionar. Falamos
sobre sondas em Marte com a mesma empolgação como se estivéssemos enviando máquinas
fotográficas para o East Village, em Nova York. Estamos saturados, incapazes de nos maravilhar
e de sentir medo. Essa diminuição da capacidade de se impressionar pode ser um sinal de
~ 13 ~
maturidade, uma conseqüência necessária e saudável do progresso. Mas me sinto propenso a
pensar que isso revela perda de equilíbrio.
Uma pessoa verdadeiramente equilibrada mantém a capacidade de se deslumbrar e a
vontade de expressar essa admiração na própria confissão de sua condição de criatura, o
reconhecimento espontâneo de que ela é um ser humano, e não um deus; um ser com limitações
que, longe de ter abarcado o infinito, é feliz e desesperadamente subjugado por ele.
Nossa insípida reação à realidade é ainda menos entusiasmada quando nos deparamos
com Jesus Cristo e analisamos o modo de vida cristão. Embora sejamos confrontados com uma
moral tão sublime e exigente que parece totalmente impossível, não ficamos impressionados
pelo estilo de vida que Cristo nos apresentou. Ele nos orienta que o padrão do modo de vida
cristão é o ágape. "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos"
(Jo 15:13).
Na fala paulina, o amor de Jesus é kenosis, total auto-esvaziamento. E Cristo diz
categoricamente: "Amem-se uns aos outros. Como eu os amei" (Jo 13:34). Ainda que ele
proponha uma intensidade de bondade e de santidade diante da qual podemos apenas
murmurar "Quem então pode ser salvo?", persiste, de nossa parte, uma impressionante ausência
de assombro. Somos semelhantes ao atleta desafiado a correr cem metros em cinco segundos.
Depois de várias tentativas fracassadas, ele põe a culpa nas condições da pista e se queixa do
tênis apertado. O fato de que o projeto é humanamente impossível parece nunca o afetar.
Precisamos de certo tempo para assimilar tudo o que é exigido de nós. Analisemos
rapidamente algumas das demandas radicais registradas nos evangelhos sinóticos:
Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém
quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa. [... ] Dê a
quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado.
Mateus 5:39-40,42
Em tais passagens, Jesus descreve a resposta que o cristão deve dar quando provocado
por alguém não crente. Mas seus ensinamentos não são meramente passivos: "Amem os seus
inimigos [mesmo um Saddam Hussein] e orem por aqueles que os perseguem" (Mt5:44).
Jesus apresenta o divino Pai como nosso modelo. Assim como Deus derrama paz e
bondade do mesmo modo sobre o justo e injusto, assim também nós devemos fazer. Qualquer
um pode amar seus amigos, aqueles com quem tem afinidade e reciprocidade. A verdadeira
piedade exige muito, muito mais. O Sermão do Monte continua:
Se o seu olho direito o fizer pecar, arranque-o e lance-o fora. [...] Se a sua mão
direita o fizer pecar, corte-a e lance-a fora.
Mateus 5:29-30
Quando vier o chamado de Cristo, nossa resposta deve ser sincera: "Senhor, deixa-me ir
primeiro sepultar meu pai", pediu o discípulo. "Mas Jesus lhe disse: 'Siga-me, e deixe que os
mortos sepultem os seus próprios mortos'" (Mt 8:21-22).
Na renúncia — renúncia absoluta —, a família está incluída: "Se alguém vem a mim e
ama o seu pai. sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais
do que a mim, não pode ser meu discípulo" (Lc 14:26). Jesus disse:
Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os
perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e
regozijem-se, porque grande é a sua recompensa nos céus.
Mateus 5:11-12
~ 14 ~
Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.
Mateus 10:34
Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou.
João 15:18
Mais e mais, os preceitos se sucedem. Declarações extravagantes, exageradas. O Cristo de
Deus não veio trazer a paz, mas a espada. Ele nos teria vestido não com túnicas, mas com a
armadura de Deus. Ele contradiz nossas conclusões que afirmam que prosa é poesia, fala é
canção, miopia é visão clara e as coisas tangíveis, visíveis e perecíveis podem ser a realização
apropriada para um ser que inalou o impulso criativo de Deus.
A única reação sadia ao padrão evangélico de santidade é o temor e a perplexidade que
beiram a aflição. Deveríamos nos sentir envergonhados pela Palavra, porque ela nos diz muito
do que não queremos ouvir. Mas por que a maioria de nós não fica envergonhada? Por que a
Palavra não nos exalta, amedronta e choca? Não é porque a desconhecemos — nós a ouvimos
semana após semana. Por que ela não nos força a reavaliar a vida? Estamos de volta às nossas
ilusões. Michel Quoist diz:
Estamos satisfeitos com nossa vidinha decente. Estamos contentes com nossos
bons hábitos: nós os tomamos por virtudes. Estamos contentes com nossos
pequenos esforços: nós os tomamos por progresso. Estamos orgulhosos de
nossas atividades: elas nos fazem pensar que estamos nos doando. Estamos
impressionados por nossa influência: imaginamos que ela transformará vidas.
Estamos orgulhosos do que damos, entretanto ocultamos o que retemos.
Podemos até mesmo estar confundindo um conjunto de egoísmos coincidentes
com verdadeira amizade.
Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos vêem, os
aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são
ressuscitados e as boas novas são pregadas aos pobres.
Lucas 7:22
Todas as estruturas da igreja devem revelar a marca do amor de Cristo dedicado aos
pobres. Ao ignorar essa árdua sentença, a própria igreja se torna empobrecida, assim como bem
pouco confiável e bem pouco convincente para pregar o evangelho com clareza e visão, e
também infantilmente presa às quinquilharias da reputação, às conversas vazias da diplomacia,
aos favores degradantes dos ricos, à idolatria das estruturas e à posição de proeminência.
Uma segunda teoria afirma que Jesus propõe princípios, em vez de regras. Ele não fala
sobre aplicações práticas. Ele simplesmente propõe uma meta, um quadro ideal em direção ao
qual devemos nos esforçar. Isso reduz Cristo ao nível de um romântico visionário: o ensino dele
é bonito na teoria, mas nada prático na realidade. Com certeza, se o evangelho de Jesus fosse
vivido, não haveria mais guerras internacionais, nem distúrbios nacionais ou disputas
domésticas. No entanto, Cristo foi apenas um admirável reformador com muitas idéias
grandiosas.
Em seguida, temos a solução da cidadania de segunda classe. Essa visão defende que a
doutrina ética de Jesus foi proposta somente para uma classe particular. Há duas classes de
cidadania no Reino de Deus: o perfeito e o comum. O último não é chamado para a perfeição. No
entanto, o Sermão do Monte enfaticamente proclama a vocação universal de todos os cristãos à
santidade. Não existe distinção entre o santo e o comum.
~ 15 ~
Em verdade, essas razões para rejeitar o caminho de Jesus são mais palatáveis do que
aquela usada por muitos cristãos: a ética evangélica é perturbadora demais, problemática
demais para sobreviver. Vamos empurrá-la para debaixo do tapete e esquecê-la. Se você falar
dela como é, as pessoas se afastarão.
Somos relutantes em estruturar nossa doutrina moral em torno do evangelho. Por
exemplo, em três lugares diferentes, o Novo Testamento nos diz muito claramente que nossos
pecados são perdoados na mesma proporção em que perdoamos aos outros. Essa verdade é
descrita vividamente na parábola do servo impiedoso. Ele deve mais de 10 milhões de dólares ao
seu mestre, enquanto outro servo, colega seu, deve-lhe a soma comparativamente insignificante
de 25 dólares. Há uma desproporção enorme entre as dívidas. No entanto, apesar de seu mestre
graciosamente perdoar-lhe a dívida, o primeiro servo não perdoa a de seu devedor. A moral é
clara: se não perdoarmos nossos inimigos, nós mesmos não seremos perdoados (cf. Lc 6:37).
Por muito tempo, a teologia da confissão dos pecados não foi apresentada nessa
perspectiva. No entanto, temos nos preocupado com o número de vezes e os tipos precisos de
pecado que têm o perdão garantido. Consideramos os limites ultrapassados e a divisão
equitativa da culpa. Quando perdoamos de fato, muito freqüentemente o fazemos também com
um espírito de superioridade, usando o perdão como algo a se manter suspenso sobre a cabeça
daqueles a quem permitimos por condescendência sair de uma situação difícil.
O Novo Testamento só é relevante se captarmos o significado fundamental das
exigências radicais do evangelho, apesar de, ao mesmo tempo, compreender que nunca
poderemos cumpri-las completamente. Nenhum de nós pode dizer "cumpri todos os
mandamentos". Até certo ponto, nós sempre falhamos.
Pense mais uma vez no perdão. Em nosso coração, nenhum de nós perdoa
completamente nosso inimigo do modo que deveríamos. Após a ressurreição, no encontro entre
Jesus e os apóstolos nas praias do mar de Tiberíades, quando se poderia esperar, como diz
Raymond Brown, "o impacto da glória insuportável", Jesus serve peixes e pães. Não há nenhuma
menção, aparentemente nem mesmo nenhuma lembrança, da traição deles. Jamais uma
repreensão ou mesmo uma referência indireta à covardia dos discípulos no tempo de teste.
Nenhuma saudação sarcástica como: "Bem, meus amigos dos momentos bons apenas...".
Nenhuma disposição para vingança, despeito ou repreensão humilhante. Apenas palavras de
calor e ternura.
O mesmo aconteceu no cenáculo, onde Jesus disse: "Paz seja com vocês". Isso é mais que
perdão. O silêncio de Jesus é primoroso. Para aprender o significado da amizade sincera, da
delicadeza no diálogo, da sensibilidade em relação aos sentimentos dos outros e do amor que
"não guarda rancor" (ICo 13:5) é preciso ouvir o perdão no coração de Jesus quando ele diz a
Maria Madalena e à outra Maria na manhã da Páscoa: "Vão dizer a meus irmãos..." (Mt 28:10).
As demandas do evangelho nos levam à vívida consciência de nossa fraqueza e
imperfeição. Elas nos aturdem, reduzem a auto-supervalorização e nos fazem perceber quão
limitados somos. Essa percepção — quando permitimos que se infiltre no coração — nos afasta
da presunção, da complacência e de uma auto-suficiência que nos envenenam espiritualmente.
A Palavra de Deus nos desperta para as nossas carências. Enquanto não submetermos
nossa vida ao julgamento do evangelho e aos padrões de bondade e de virtude estabelecidas por
Jesus, não poderá haver uma consciência profunda de que somos pecadores carentes de
misericórdia. Quantos de nós de fato experimentaram a verdade de estar salvos — de que nós
não nos salvamos, e na verdade somos pobres e fracos pecadores com falhas hereditárias e
virtudes limitadas; não somos filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericórdia do
Criador.
Se as demandas radicais da vida cristã nunca forem propostas e, em vez disso, nos
conformarmos com o cumprimento morno de um conjunto frouxo de preceitos, quão facilmente
nos tornaremos farisaicos e hipócritas. Tentamos nos salvar por nossas obras. Nunca
experimentamos o mistério da redenção ou dependência amorosa de Deus.
Segundo nossos padrões invulneráveis de justiça e honra, estamos desempenhando
muito bem no jogo cristão. Com que freqüência um cristão piedoso ora: "Perdoa-me, Senhor,
~ 16 ~
porque pequei. Faz um ano desde minha última confissão. Fui à igreja todos os domingos e não
fiz nada proibido. Não posso me lembrar de nada mais"? Esse tipo de confissão é uma terrível
deturpação da doutrina cristã.
Se fechamos os olhos para as demandas radicais do Novo Testamento em nossa doutrina
e ignoramos as implicações embaraçosas do preceito do amor universal, tornamos o
cristianismo muito fácil e retiramos seu significado. Passamos a ser tão culpados quanto os
fariseus, ignorando as questões importantes das difíceis leis da caridade, da misericórdia e da fé,
enquanto cumprimos as leis positivas da igreja, que significam apenas os limites do
compromisso cristão.
As demandas radicais de Jesus nos fazem lembrar diariamente nossas faltas e perceber
que a salvação é dom gracioso de Deus. Neste ponto, chegamos ao núcleo da revelação. Se o
evangelho nos diz qualquer coisa, se a igreja proclama somente uma coisa ano após ano, é que a
salvação é um dom gracioso de Deus. O evangelho é a alegre notícia da redenção graciosa.
Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo
de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram povo, mas agora são povo de
Deus; não haviam recebido misericórdia, mas agora a receberam.
1 Pedro 2:9-10
Não fomos transportados para o reino do Filho amado de Deus por nosso
mérito, mas por sua misericórdia:
Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé — e isto não vem de vocês, é
dom de Deus — não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação
de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus
preparou antes para nós as praticarmos.
Efésios 2:8-10
O evangelho nos agradeceria de uma vez por todas se entendêssemos que o slogan do
Exército da Salvação, "Jesus salva", está muito mais próximo da mente e do coração de Cristo do
que da legalidade e da moralidade.
A BÊNÇÃO
O mesmo tema está contido na primeira bem-aventurança: "Bem-aventurados os pobres
em espírito, pois deles é o Reino dos céus" (Mt 5:3). Em seu sentido primitivo, a primeira bem-
aventurança jamais pretendeu moralizar ou ameaçar ("afaste-se do dinheiro, da materialidade e
de todas as necessidades pessoais ou outras").
Tampouco a primeira bem-aventurança aspirava ser uma simples promessa de
compensação como qualquer pastor itinerante poderia propor ("viva como um pobre e
alcançarás o céu"). Ao contrário, a bem-aventurança era uma alegre notícia, a grande boa nova
de que a era messiânica se instaurara na história, a proclamação de que o dia da salvação há
muito esperado finalmente chegara.
A questão crucial para determinar o sentido original dessa bem-aventurança é entender
quem são os pobres que Jesus declarou bem-aventurados? Devemos entender "pobres" num
sentido social, como os que são literalmente destituídos, empobrecidos, indigentes? Ou Jesus usa
"pobres" num sentido religioso, para se referir àqueles que dependem inteiramente de Deus
para tudo o que possuem e que percebem o próprio demérito e, desse modo, aceitam a salvação
como o dom de Deus em Cristo Jesus?
Para compreender seu real significado, a passagem não pode ser tomada isoladamente.
Antes, deve estar situado dentro do contexto de todo o evangelho, Jesus anuncia que os pobres
~ 17 ~
têm um lugar privilegiado no reino. Vamos comparar o pobre da primeira bem-aventurança com
as duas outras classes privilegiadas no evangelho.
O evangelho de Mateus nos fala que as crianças têm um direito especial no amor de Deus;
Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: "Quem é o
maior no Reino dos céus?" Chamando uma criança, colocou-a no meio dele, disse:
"Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como
crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como
esta criança, este é o maior no Reino dos céus.
Mateus 18:1-4
Não há dúvida de que é necessário aprender a ser como uma criança para entrar no
reino. Mas para se captar todo o vigor da expressão "como crianças", nós precisamos perceber
que a atitude judaica para com as crianças no tempo de Cristo era drasticamente diferente
daquela que existe hoje. Temos a tendência a idealizar a infância, vê-la como a idade feliz da
inocência, despreocupação e fé simples. Na comunidade judaica dos tempos do Novo
Testamento, a criança era considerada sem nenhuma importância, não merecendo nenhuma
atenção ou favor A criança era considerada com desprezo.
Para o discípulo de Jesus, ser como uma criança significa aceitar a si mesmo como pouco
apreciado, sem importância. Esta compreensão de nós mesmos muda não somente o modo como
vemos nosso valor, mas também o modo como vemos a graça salvadora de Deus. Se a criança
judia recebesse dez centavos de mesada do pai no fim da semana, ela não os consideraria
pagamento por varrer a casa, lavar a louça e assar o pão. Era um presente completamente
imerecido, um gesto de absoluta generosidade de seu pai.
Jesus deu a esses pequenos desprezados o privilégio de seu reino e os apresentou como
modelos para os discípulos. Eles deviam aceitar o dom do reino da mesma maneira que uma
criança aceita a mesada. Se as crianças eram privilegiadas, não era porque tinham merecido tal
privilégio, mas simplesmente porque Deus se agradava delas. A misericórdia do Senhor fluiu
para elas total e completamente em razão da graça imerecida e da preferência divina.
Outro texto importante destaca o privilégio das crianças. O hino de louvor diz: "Eu te
louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos e as
revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado" (Lc 10:21).
A bênção de Deus recai sobre as crianças porque são criaturas desprezadas, não por
causa de suas boas qualidades. Elas podem estar cientes de sua pouca importância, mas este não
é o motivo pelo qual as revelações lhes são dadas. Jesus expressamente atribui a bênção que elas
recebem à boa vontade do Pai, à eudokia divina. Os dons não são dados pela mais leve qualidade
ou virtude pessoal. Eles são pura generosidade.
A bem-aventurança dos pequeninos, portanto, oferece uma clara compreensão do
significado da bem-aventurança dos pobres. Na mentalidade da época do Novo Testamento,
pobreza e infância eram consideradas com igual desprezo. No entanto, Jesus diz que Deus
prefere os desfavorecidos- Deus se agrada em dar um lugar privilegiado no reino àqueles que o
mundo considera os mais desgraçados.
Uma luz adicional é lançada sobre a primeira bem-aventurança, de modo surpreendente,
pelo privilégio dos pecadores. Jesus está sentado à mesa na casa de Levi. Os escribas e fariseus
interrogam porque Jesus come com os cobradores de impostos e pecadores. "Jesus lhes disse:
'Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim para
chamar justos, mas pecadores'" (Mc 2:17).
Os pecadores a quem Jesus dirigia a sua missão messiânica eram verdadeiros pecadores.
Eles não tinham feito coisa alguma para merecer a salvação. Ainda assim, eles se abriram para o
dom que lhes foi oferecido. Os presunçosos, em contrapartida, depositam sua confiança naquilo
que fazem por merecer a partir dos próprios esforços, fechando o coração para a mensagem de
salvação.
~ 18 ~
Mas a salvação que Jesus prometeu não pode ser conquistada. Não pode haver barganha
com Deus, como numa atmosfera trivial de mesa de pôquer: "Eu fiz isto, então você me deve
aquilo". Jesus destrói totalmente a noção jurídica de que nossas obras exigem um pagamento em
troca. Esse ensinamento está claramente estabelecido na parábola dos trabalhadores na vinha.
Quando eles ficam sabendo que os homens que trabalharam apenas uma hora receberão o
mesmo salário daqueles que labutaram o dia todo, os trabalhadores reclamam ao proprietário:
"Estes homens contratados por último trabalharam apenas uma hora, e o
senhor os igualou a nós, que suportamos o peso do trabalho e o calor do dia". Mas
ele respondeu a um deles: "Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não
concordou em trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar
ao que foi contratado por último o mesmo que lhe dei. Não tenho o direito de
fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou
generoso?".
Mateus 20:12-15
Nossas obras insignificantes não nos dão o direito de negociar com Deus. Tudo depende
da boa vontade do Senhor. A salvação oferecida por Jesus é puramente gratuita, dirigida
especialmente para os que não têm nenhum direito a ela, aqueles que são tão conscientes de seu
demérito que devem confiar na misericórdia de Deus. Os presunçosos acreditam que
conquistam a salvação pelo cumprimento da lei. Recusando-se a deixar tal loucura, eles rejeitam
o amor misericordioso do Deus redentor.
E na miséria do pecador que Jesus vê a possibilidade de salvação. "Deles é o reino de
Deus". Se na Rússia antiga o pecador era enviado para a Sibéria, na igreja ele é chamado para o
reino. É um puro dom para quem não têm direito a ele. Esse é o próprio coração do evangelho e
tema fundamental das bem-aventuranças: a falta de valor dos beneficiários do reino. Dizer que
somos cifras não significa rebaixar nossa dignidade, mas destacar a gratuidade absoluta da
promessa de Deus.
Desse modo, a condição privilegiada das crianças e dos pecadores derrama considerável
luz sobre o significado primitivo da primeira bem-aventurança. Abençoados são os pobres.
Abençoados são vocês, conscientes de sua falta de mérito e prontamente abertos à misericórdia
divina.
A primeira bem-aventurança, portanto, não é uma promessa ou uma ameaça. Jesus
alegremente proclama o amanhecer de uma nova era, a era messiânica que veio afinal. "Vocês,
pobres; vocês, nadas; vocês, de pouca importância pelos padrões do mundo — vocês são
abençoados. E a boa vontade de meu Pai de lhes conceder um lugar privilegiado no reino, não
porque trabalharam tão arduamente, ou porque dizem, fazem ou tornam todas as coisas certas,
mas porque meu Pai quer vocês".
A pobreza de espírito nos é apresentada como a predisposição indispensável para o
discípulo de Jesus. No momento em que ficamos diante de Deus, gaguejando como o profeta
Jeremias, com os pés no chão, conscientes de nossa pequenez e fraqueza, reconhecendo que
Jesus salva, então a alta santidade recomendada por Jesus — "Sejam perfeitos como perfeito é o
Pai celestial de vocês" (Mt 5:48) — começa a florescer dentro de nós. A principal postura do
cristão é uma disposição infantil para com Deus, e nossa principal atitude, a de ação de graças.
Esse tipo de posição contrasta de forma nítida com o pensamento de muitos cristãos que
desenvolveram um falso sentimento de segurança por cumprirem as leis da igreja. Conforme
afirmou John McKenzie:
A moralidade destrói a religião deles. Eles sofrem de um problema legalista.
Acreditam que o cumprimento das prescrições externas da lei garante
automaticamente o cumprimento do propósito da lei. Mas, caso a minha adesão
às leis (da qual posso verdadeiramente precisar) não me ajudar a atingir o
~ 19 ~
objetivo final de minha vida, que é conhecer Cristo Jesus e viver o evangelho,
então uma mera conformidade externa faz muito pouco, se é que faz alguma
coisa.
Minha experiência do Pai, durante meu tempo com os Irmãozinhos de Jesus, não resultou
em nenhum progresso súbito ou dramático em termos de virtude ou perfeição moral em minha
vida. Após aquela experiência, posso não ter ficado nem um pouco melhor do que antes, mas, de
algum modo, a vida tinha mudado. Tudo simplesmente foi transformado porque aceitei o fato de
que sou aceito. Paul Tillich chama a isso graça.
Que diferença significativa quando trazemos essa compreensão à adoração! Somos os
adoradores do amor redentor e da misericórdia do Deus que nos aceita. Somos imersos em
gratidão e dependência. Nosso próprio ser é uma celebração, uma ação de graças permanente e
perpétua a Deus. Os salmos nos lembram que, toda vez que o povo de Deus se reunir, uma
atitude de alegre ação de graças deve ser a oferta de gratidão da assembléia (Sl 95:2; 100:4;
147:7). Se a comunhão significa ação de graças, o cristianismo significa pessoas alegremente
agradecidas.
O cristão jubiloso é aquele que mantém um sentimento de temor e deslumbramento
diante de Deus, que experimentou o sentimento de pertencer a uma comunidade redimida. Ele
tem uma vívida gratidão de fé nesse grande dom. Esse crente se abriu para a verdade de que
tudo o que possui vem de Deus, de que é completamente dependente de Cristo, de que "Jesus
salva".
Naturalmente, em um certo dia, pode acontecer de ele adorar mais com desânimo do que
com qualquer outra coisa. Neste vale de lágrimas, nenhuma vida cristã é uma espiral contínua e
ascendente rumo ao topo da montanha. Porém, a orientação básica do cristão é a da alegria e da
gratidão. Esse é o legado do mistério pascal, da morte e ressurreição de Jesus. Não somos os
filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericórdia de Deus.
Essa é a marca que colocamos em cada celebração de adoração. Quando o dom da
redenção graciosa se mostra sob o véu do símbolo, o clamor paulino emerge espontaneamente
do coração: "Como Deus é rico em misericórdia! Com que excesso de amor ele nos amou" (cf. Ef
2:4).
Quando a luz dessa verdade impressionante se acende em nossa consciência, muitos de
nós ficam profundamente comovidos durante alguns momentos ou horas; no entanto, retomam
às ocupações normais de sua existência corriqueira sem atingir o esclarecimento. Não é o caso
de Charles de Foucauld, o padre cuja vida e ministério inspiraram a formação dos Irmãozinhos
de Jesus. A experiência abriu sua mente. E sinalizou o amanhecer de uma vida nova. Uma imensa
alegria encheu seu coração, maior do que qualquer felicidade que ele alguma vez conhecera.
O que torna sua vida diferente da nossa é que seu sentimento de deslumbramento nunca
desapareceu: "Tão logo acreditei que havia um Deus, compreendi que nada mais poderia fazer, a
não ser viver exclusivamente para ele: minha vocação religiosa data do mesmo momento de
minha fé".
CAPÍTULO DOIS
T R A N S P A R Ê N C I A
Compreender a verdade do evangelho é lançar sobre nossa face tanto a tristeza quanto a
gratidão. Viver como Jesus viveu é partir do chão em direção ao mundo. "A imitação de Jesus
~ 20 ~
Cristo", escreve George Montague, "exige a verdadeira assimilação de suas atitudes interiores e
seu modo de pensar".
Romano Guardini declarou certa vez que Francisco de Assis "permitiu que, na sua
personalidade, Jesus Cristo se tornasse transparente". Se for esse o significado de viver como
cristão, por que as personalidades de tantos cristãos piedosos, decentes e corretos são tão
opacas? Por que a paz de Cristo Jesus não reina em nosso coração, uma vez que fomos
"chamados para viver em paz, como membros de um só corpo" (Cl 3:15)?
Por que a bondade, a compaixão e a confiança que Grande-Medrosa viu brilhando nos
olhos do Pastor3 não brilham em nossos olhos? Por que nossa alegria, entusiasmo e gratidão
contagiantes não afetam os outros com o amor por Cristo Jesus? Por que o encanto esplendoroso
do Senhor não flui de nossa personalidade? Por que não somos janelas para a obra de Deus? Por
que não somos transparentes?
Ter a mente de Cristo Jesus, pensar seus pensamentos, compartilhar seus ideais, sonhar
seus sonhos, pulsar com seus desejos, substituir nossas reações naturais em relação às outras
pessoas e situações pelo interesse de Jesus; e, ainda, assumir o sistema mental de Cristo tão
completamente que "A vida que agora [Filho] vivo no corpo, vivo-a pela fé no [Filho] de Deus,
que me amou e se entregou por mim" (Gl 2:20). Tudo isso não é o segredo ou o caminho para a
transparência. E a própria transparência.
Muitas vezes nossa preocupação com os três desejos humanos mais básicos —
segurança, prazer e poder — é o manto que encobre a transparência. A infinita luta para ter
dinheiro suficiente, bons sentimentos e prestígio rende uma colheita rica de aflição, frustração,
desconfiança, raiva, ciúme, ansiedade, medo e ressentimento. Esses poderosos desejos
amparados pela emoção causam 99% do sofrimento auto-infligido e desnecessário em nossa
vida. Eles focalizam continuamente nossa atenção no "eu" e nos impedem de ser transparentes,
ofuscando a luz e obscurecendo "a glória de Deus na face de Cristo" (2Co 4:6).
João, o evangelista, fala do pecador como alguém em estado de trevas. "[Ele] anda nas
trevas; não sabe para onde vai, porque as trevas o cegaram" (lJo 2:11). E o "eu" autogovernado
que nos mantém presos numa série de movimentos e contramovimentos competitivos que nos
induzem a manipular as pessoas e controlar as situações, o que, para a maioria de nós, destrói a
paz e a serenidade interna de nossa vida.
Preso na busca por segurança, prazer e poder, nosso pensamento a cada momento está
concentrado na sombria perseguição a uma felicidade ilusória, e ficamos, assim, desatentos ao
Senhor da Luz. Nossos olhos não estão fixos em Cristo Jesus, mas em nosso "eu". Nós nos
conformamos com um passeio de montanha-russa, com divertidos picos e vales vertiginosos,
entremeados com longos períodos de quedas, empurrões e sofrimentos de diferentes graus.
Desde o início de seu ministério público, Jesus elevou a mente de seus ouvintes para
além do nível do desejo básico e os advertiu para não se distraírem pelo excessivo interesse das
coisas materiais:
Portanto, não se preocupem, dizendo: "Que vamos comer?" ou "Que vamos
beber?" ou "Que vamos vestir?" Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas;
mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro
lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão
acrescentadas. Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará
as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.
Mateus 6:31-34
No simbolismo bíblico, o coração é o olho do corpo. Os olhos ansiosos, agitados,
embaçados de muitos cristãos representam as manifestações de um coração anuviado pelas
3 Grande-Medrosa (Much Afraid) e Pastor (Shepherd) são personagens do romanee Hinds'Feet on High Places (traduzido em
português como Pés como os da corça nos lugares altos [São Paulo: Vida, 1989]), de Hannah Hurnard, uma alegoria sobre o esforço de
elevação dos cristãos. (N. da T.)
~ 21 ~
preocupações deste mundo. Os olhos límpidos de outros irradiam a simplicidade e a alegria de
um coração fixo em Jesus Cristo, a Luz do mundo.
Quando o autor de Hebreus ordena ao leitor "[Tenhamos] os olhos fitos em Jesus, autor e
consumador da nossa fé" (Hb 12:2), ele não somente dá uma prescrição simples para a
transparência cristã, mas insiste numa reavaliação de todo o sistema de valores da pessoa,
compreendendo que "onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração" (Lc 12:34).
O apóstolo Paulo teve a audácia de se vangloriar: "Nós, porém, temos a mente de Cristo"
(ICo 2:16). A sua vanglória era validada por sua vida. A partir da conversão de Paulo, Jesus Cristo
ocupou sua mente e seu coração. Cristo era a força cuja influência estava incessantemente em
ação perante os olhos de Paulo (Fp 3:21). Ele era uma pessoa cuja voz Paulo podia reconhecer
(2Co 13:3), que o fortalecia nos momentos de fraqueza (2Co 12:9), o iluminava, mostrava o
significado das coisas e o consolava (ICo 1:4-5). Levado ao desespero pelos ataques difamadores
dos falsos apóstolos, Paulo aceitava as visões e revelações do Senhor Jesus (2Co 12:1). Para
Paulo, a pessoa de Jesus desvendava os mistérios da vida e da morte (Cl 3:3).
No romance de Harper Lee, To Kill a Mockingbird,4 Atticus Finch diz: "Você nunca
entenderá um homem até que esteja no seu lugar e olhe o mundo pelos olhos dele". Paulo olhou
pelos olhos de Jesus Cristo com tal sensibilidade que Cristo se tornou o "eu" do apóstolo (Gl
2:20).
Por que não poderia ser assim com todo cristão que anda no Espírito? Paulo insiste em
que essa é a operação normal do Espírito em nossa vida. A transparência é a epifania de Cristo
Jesus em nossa vida: eis o sentido da bela imagem registrada em 2Coríntios. Amédée Brunot
escreve em Saint Paul and His Message:5
Em uma das passagens mais bem acabadas de sua correspondência, cujas
leveza e lucidez sugerem o cálido raio de sol da Grécia sobre os mármores do
Partenon, Paulo compara a mediação de Cristo a uma luz cujos raios brilham
através de seus servos humanos e os transfigura (2Co 3:4ss.). O resplendor de
Moisés quando ele desceu do Sinai não é nada comparado à transfiguração do
cristão. Essa transfiguração torna-se uma transparência na qual as faces se
misturam e os afetos se fundem. Trata-se de um abraço apaixonado (Fp 3:12-13).
De agora em diante, o coração do cristão bate afinado com o coração de Cristo.
Paulo foi um testemunho vivo de um fenômeno não extraordinário na existência
humana: nós nos tornamos semelhantes àqueles a quem amamos.
A VIDA DE CRISTO
"No último e mais importante dia da festa, Jesus levantou-se e disse em alta voz: 'Se
alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior
fluirão rios de água viva'" (Jo 7:37-38). Uma vez que Jesus ainda estava preso pelas limitações
humanas da carne mortal, ele não pôde se tornar, nas corajosas palavras de Paulo, "o Filho de
Deus com poder" (Rm 1:4). Ele não pôde ser glorificado até que fosse crucificado. Todo o
propósito de seu sofrimento, de sua morte e ressurreição redentoras era o de compartilhar
conosco os frutos de seu triunfo pascal.
Na glorificação de Jesus há o que Edward Schillebeeckx chamou de "transferência de
poder": o Pai concede seu poder real a Cristo, a quem torna o Kyrios. O Senhor Jesus, então,
derrama o Espírito Santo para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de profetas e
amantes que se renderá ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro, que viverá em
fidelidade cada vez maior à Palavra irresistível, onipresente. Um povo que entrará no centro de
4 Traduzido em português como O sol é para todos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. (N. da T.)
5 Traduzido em português como São Paulo e sua mensagem. São Paulo: Flamboyant. (N. da T)
~ 22 ~
tudo aquilo que é, no próprio coração e mistério de Deus, no centro daquela chama que consome
e purifica e deixa tudo incandescente com paz, alegria, coragem e amor excessivo.
"Não apaguem o Espírito", exorta Paulo (lTs 5:19). Resistir ao Espírito Santo é anular o
poder do mistério pascal e zombar do maior ato de amor que o mundo já conheceu. No
evangelho de João, o único pecado mencionado é blasfêmia — a rejeição consciente, deliberada,
do Espírito de Deus.
Ainda conforme o franciscano Robert Powell e outros observaram, a igreja vem sendo
atualizada, mas não renovada. A igreja, como um todo, ainda vasculha o horizonte esperando o
brilho ígneo do novo Pentecostes. O comunista que aceita Karl Marx, mas não sua doutrina,
pouco difere do cristão que aceita Jesus Cristo, mas se recusa a moldar sua vida de acordo com o
ensinamento de Cristo.
Paulo escreveu aos filipenses: "Pois, como já lhes disse repetidas vezes, e agora repito
com lágrimas, há muitos que vivem como inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a
perdição, o seu deus é o estômago e eles têm orgulho do que é vergonhoso; só pensam nas coisas
terrenas" (Fp 3:18-19). Paulo ainda chora por causa da debilidade, da extrema falta de
sinceridade, do adultério espiritual, da indiferença à oração, da ignorância sobre a Palavra de
Deus, da religiosidade acomodada e da indolência apostólica que mancham a vida cristã no
mundo de hoje.
Quando Jesus Cristo se revela através do evangelho, o qual é ativo e fecundo, ele pede
uma resposta espontânea. Sua mensagem não é uma renovação de garantia para continuarmos
fazendo exatamente o que temos feito, mas, escreve Edward O'Connor, "uma convocação para o
trabalho de eliminar de nossa vida, com fidelidade e perseverança, tudo em nós que é contrário à
obra e vontade do seu Espírito Santo para nós". Fé significa que estamos prontos para agir na
Palavra. Jesus é cristalino:
Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no Reino dos céus, mas
apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão
naquele dia: "Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não
expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?" Então eu lhes direi
claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!
Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem
prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordáramos
rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha
seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas palavras e não as pratica é
como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva,
transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu.
E foi grande a sua queda.
Mateus 7:21-27
A fé autêntica, evangélica, não pode ser separada de uma disposição de agir na Palavra
de Deus conforme as oportunidades se apresentarem. Sempre que a fé é aceita apenas como um
sistema fechado de doutrinas bem definidas, nós perdemos contato com o Deus vivo. A fé que
salva é uma rendição a Deus. "Dizer 'sim' na fé implica um constante pôr-se a caminho", escreve
Bernard Haring, "uma disposição sempre renovada para receber a Palavra de Jesus e agir nela".
S0ren Kierkegaard, o pai do existencialismo cristão, descreve dois tipos de cristãos: os
que imitam Jesus Cristo e um segundo tipo de pouco valor, aquele que fica contente em admirar
o primeiro.
A distinção de Raymond Nogar entre as "pessoas de pinturas" e as "pessoas de dramas"
coincide com Kierkegaard. As pessoas de pinturas vêem o evangelho em segurança, a uma certa
distância, como alguém aprecia a Ultima ceia de Salvador Dali na Galeria Nacional de Arte, em
Washington. As pessoas de dramas não são meras espectadoras, mas, como o público atento que
~ 23 ~
assiste à tragédia grega Antígona, elas são atingidas pessoalmente no drama da morte e
ressurreição de Jesus.
Muitas vezes, a retórica que usamos para descrever nossa vida em Cristo exibe apenas
uma leve semelhança com o que realmente somos. Orgulhamo-nos do que estamos oferecendo,
pois isso esconde o que estamos sonegando. Permitimo-nos acreditar que, só porque somos
capazes de um sentimento piedoso, somos capazes de amar. Thomas Merton escreve:
Uma dimensão dessa conveniente espiritualidade é nossa total insistência em
ideais e intenções, em completo divórcio com a realidade, com as ações e o
compromisso social. Tudo o que interiormente desejamos, tudo com o que
sonhamos, tudo o que imaginamos: isso é o belo, o divino e o verdadeiro.
Pensamentos bonitos são suficientes. Eles substituem tudo o mais, incluindo a
caridade, até mesmo a vida em si.
O que assistimos é a avareza, a ganância desmedida e a exploração do pobre no seio da
comunidade. Freqüentemente, nossa reação é denunciar os outros e nos afastar deles; no
entanto, todos estamos envolvidos.
O evangelho exige de nós honestidade dolorosa. Nada mais do que isto: devemos ser
sinceros. Vá à luta pelo dinheiro e torne-se um hedonista ("Comamos e bebamos, porque
amanhã morreremos") ou arrependa-se e retorne ao espírito do evangelho. Somos chamados
para viver como profetas e amantes no Espírito de Jesus Cristo. Não podemos viver uma
mentira, pois estaremos enganando a igreja universal e a congregação local sobre aquilo que
esperam de nós. Thomas Merton observa:
O que o evangelho de Jesus Cristo nos oferece não é uma falsa paz que nos
permita evitar a luz implacável do julgamento, mas a graça para corajosamente
aceitar a verdade amarga que nos é revelada. Abandonar nossa inércia, nosso
egoísmo e submeter-nos completamente às demandas do Espírito, rogando
sinceramente por ajuda e dedicando-nos generosamente a cada esforço que Deus
exigir de nós.
Paulo escreve aos tessalonicenses: "Como homens aprovados por Deus para nos confiar
o evangelho, não falamos para agradar pessoas, mas a Deus, que prova o nosso coração" (ITs
2:4). Eis a essência da perfeita sinceridade: não se preocupar com nada, exceto com o
julgamento de Deus sobre nossas ações; não mudar nossa atitude para satisfazer a pessoa que
está conosco; não defender uma opinião quando se está só e adotar outra em público, mas falar e
agir como na presença de Deus, que pode provar nosso coração. Sinceridade significa procurar
tornar o homem externo cada vez mais de acordo com o homem interno; ser simplesmente
verdadeiro consigo mesmo, de forma que nenhum aspecto humano possa nos tornar falsos.
No início da história cristã, Agostinho acusou: "Muitos que chegam perto do caminho da
fé afastam-se amedrontados pela vida perversa dos maus e falsos cristãos. Quantos, meus
irmãos, vocês acham que são os que querem se tornar cristãos, mas são repelidos pelos maus
modos dos cristãos?".
Se aquele que está atrás da verdade descobre que os cristãos estão do mesmo modo
ensimesmados, repletos de culpa, desesperados, inseguros de seus fundamentos e assombrados
pelos mesmos medos — semelhantes a muitos que, no mar, se sentem num ambiente hostil e,
assim, vêem-se desorientados —, não é de admirar que tal indivíduo não sinta atração pela
igreja. Uma mulher de 23 anos, fazendo um trabalho acadêmico na Universidade de Paris,
escreveu o seguinte:
Para mim, um cristão é ou um homem que vive em Cristo ou um impostor.
Vocês, cristãos, não percebem que é com relação a isto — ao testemunho quase
~ 24 ~
superficial que vocês dão de Deus — que nós os julgamos. Vocês deveriam
irradiar Cristo. Sua fé deveria fluir para nós como um rio de vida. Deveriam nos
contaminar com seu amor por ele. E assim, então, que Deus, que era impossível,
se tornaria possível para o ateu e para aqueles de nós cuja fé oscila. Não podemos
evitar o choque, o transtorno e a confusão que sentimos ao ver um cristão que
seja, de fato, como Cristo. E não o perdoamos quando ele não o é.
A mulher, sem o saber, reiterou o que o cardeal Emmanuel Suhard escreveu numa
pastoral em 1947: "A grande marca de um cristão é aquela que nenhuma outra característica
pode substituir, isto é, o exemplo de uma vida que só pode ser explicada em termos divinos".
É sintomático que, apesar de a igreja existir há 2 mil anos, a maioria das pessoas ainda
ignore o cristianismo. Por quê? Porque a presença visível de Jesus Cristo raramente está
presente nos cristãos como um todo. Nunca iremos levar as pessoas para Jesus Cristo e para o
evangelho simplesmente fazendo discursos sobre ambos. Edward Schillebeeckx é categórico: "...
as pessoas, falando sem rodeios, estão fartas de nossa pregação. Elas querem uma fonte de força
para sua vida. Somente poderemos oferecer essa força tornando-a ativamente presente em
nossa própria vida".
O contato com os cristãos deve ser uma experiência capaz de provar às pessoas que o
evangelho é um poder que transforma toda a vida. Em vez disso, nossa presença no mundo é
freqüentemente marcada por total falta de sinceridade, diluição da graça e fracasso para agir na
Palavra.
A Palavra de Deus não faz rodeios: "Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o
seu primeiro amor. Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no
princípio" (Ap 2:4-5). Paulo expressa desgosto e apreensão semelhantes sobre a fé dos coríntios:
"O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de
vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo" (2Co 11:3).
Aqui se vê um homem que verdadeiramente agia na Palavra de Deus. Paulo se importava
apenas com o julgamento de Jesus Cristo e não com o julgamento dos homens. E preocupava-se
mais com a satisfação ou insatisfação do Deus vivo do que com a aprovação de seus semelhantes.
Paulo é testemunha corajosa da realidade do Deus invisível e poderoso exemplo para
muitos de nós que se influenciam demais pela opinião dos outros e se preocupam tanto em
manter certa imagem aos olhos da comunidade, desejosos apenas de ser apreciados e aceitos
por qualquer grupo ao qual se associem, e não especialmente preocupados sobre sua imagem
aos olhos de Deus.
De outro modo, não negligenciaríamos com tanta freqüência as coisas que somente Deus
vê, como a oração privada e atos reservados de bondade. Merton escreve:
A falta de uma intenção pura sutilmente deteriora tudo o que fazemos, de
forma que metade da nossa vida se torna uma mentira. Nunca podemos ficar à
vontade. Mas fazer coisas que ninguém jamais tomará conhecimento com
sinceridade absoluta, da mesma forma como fazemos as que as pessoas podem
ver, indica alto grau de santidade.
As Escrituras não existem para transmitir idéias inertes. É um chamado para amar, e o
amor que não leva à ação não é amor. Todos os dias de nossa vida, a Palavra deve ser um
imperativo para redescobrir a verdade que, nas palavras de Hans Küng, "todo o segredo e o
centro da existência humana encontram-se na pessoa de Jesus Cristo".
Na minha opinião, a maior necessidade da igreja hoje é conhecer Jesus Cristo como
Senhor e Salvador. Esse é o tema central de toda a doutrina do evangelho de João: "Para que
vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome" (Jo
20:31).
~ 25 ~
Mas tal conhecimento é mais do que um reconhecimento casual de que Jesus viveu e
morreu e ressuscitou. É o tipo de conhecimento que nos permite mudar. É um encontro com
alguém que altera o próprio curso de nossa vida. Conforme observa Ralph Martin:
... não é incomum a muitos cristãos ter uma idéia bastante incompleta do que a
Escritura diz sobre Jesus Cristo. Muitos têm uma vaga idéia de Jesus como "um
sujeito bom" que ajudou os pobres e disse para as pessoas se amarem umas às
outras. Eles operam com uma noção indistinta, quase simbólica, de Jesus como o
símbolo de uma idéia de bondade de um liberal.
Aqueles que dizem: "Jesus nunca feriria outra pessoa" muitas vezes pretendem, com isso,
descartar a possibilidade de que o Mestre também pediria a qualquer um para que se
arrependesse ou passasse pela dor de se reconhecer carente. Crer que tudo o que Jesus nos
pediu é que sejamos gentis uns com os outros é substituir o Cristo de Paulo pelo Cristo do
humanismo cristão.
Em Hebreus, lemos: "Livremo-nos de tudo o que nos atrapalha e do pecado que nos
envolve, e corramos com perseverança a corrida que nos é proposta" (Hb 12:1). Na mesma carta
se diz: "Adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso 'Deus é fogo
consumidor!'" (Hb 12:28-29). Esse Deus não é Cristo, o humanitário, Cristo, o mestre das
relações interpessoais, ou Cristo, o camarada. E o Cristo, Senhor e Salvador, que nos chama ao
arrependimento, muda nossa vida e nos coloca em uma nova direção. F. X. Durrwell escreve: "O
conhecimento de Jesus Cristo como Senhor redentor é o único que tem algum valor para nós".
CONVERSÃO CONTÍNUA
A causa da maioria dos fracassos em agir na Palavra pode ser creditada à ignorância, à
desatenção ou à insuficiente estima pela pessoa de Cristo. Um pouco de boa vontade para com o
mundo substitui tanto a conversão radical quanto a expressa morte do "eu" que o evangelho
exige. Não queremos um Deus que nos mude ou nos desafie. O cristianismo autêntico ecoa na
primeira carta aos coríntios:
Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós,
porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e
loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como
gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus.
ICoríntios 1:22-24
Se o povo de Deus não está ouvindo o chamado ao arrependimento ou suplicando seu
poder para cumpri-lo, será que é porque os ministros da Palavra estão pregando outro Jesus
Cristo do púlpito?
Não há ninguém na comunidade cristã que não seja chamado para a conversão contínua.
Não há ninguém que ainda não tenha se deparado com o trabalho de construir a imagem de
Jesus Cristo em sua vida pela prática regular, diária, das virtudes cristãs. E conforme observa
Edward O'Connor, "você não pode se esquivar desse assunto". Paulo escreve: "Mas esmurro o
meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não
venha a ser reprovado" (ICo 9:27). "Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que o
homem semear, isso também colherá" (Gl 6:7).
O tom do Cristo de Deus nem sempre é doce e consolador. O evangelho proclama as
boas-novas da salvação graciosa, mas não promete um piquenique num gramado verde. No
homem Jesus, nas suas palavras, o Deus invisível torna-se audível. E Deus convulsionou todo o
ser de Jesus no clamor: "O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas [boas-
novas]!" (Mc 1:15).
~ 26 ~
O cristianismo, portanto, envolve bem mais do que o engajamento em lutas pelos direitos
humanos, causas ambientais ou programas de paz. A plenitude da vida no Espírito é mais do que
encontrar Cristo nos outros e servi-lo ali. E uma convocação à santidade pessoal, à conversão
contínua e à nova criação pela união com Cristo Jesus. "Portanto, se alguém está em Cristo, é
nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!" (2Co5:17).
Por essa razão, o evangelho de João é especialmente importante para os cristãos
contemporâneos. Por quê? Porque, em contraste com os sinóticos e conforme argumenta John
McKenzie, "o evangelho de João não é o evangelho do Reino, mas o evangelho do próprio Jesus".
E impossível exagerar a centralidade de Jesus no quarto evangelho — central não somente
porque ele é o protagonista e mestre, mas porque ilumina cada página do livro.
Na provocativa obra The Art and Thought of John [A arte e o pensamento de João), Edgar
Bruns escreve: "O leitor é [...] cegado pelo brilho da sua imagem, passando a ser como um
homem que olha muito tempo para o sol: incapaz de ver qualquer outra coisa a não ser a luz do
astro". O único pecado para João é resistir ao Espírito Santo, rejeitar Jesus e não agir conforme
sua Palavra.
O tema dominante da segunda parte do evangelho de João é a união com o Senhor. Por
meio da bela imagem da videira e seus ramos, Jesus chama todas as pessoas para si.
"Permaneçam em mim, habitem em mim, recorram a mim, venham a mim", ele chama (cf. Jo
15:4ss.). De modo significativo, Jesus não diz: "Venham para um dia de renovação, um retiro, um
grupo de oração, uma liturgia", mas "venham a mim".
Seria essa a superioridade presunçosa de um religioso fanático? Sim, não fosse ele o
Salvador do mundo. Trata-se de um egoísta ou o Senhor Ressuscitado que deve ser proclamado
como a única esperança do mundo. Ninguém mais ousaria dizer:
Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
João 14:6
Eu sou a luz do mundo.
João 8:12
Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para
sempre.
João 6:51
Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida.
João 3:36
Na prisão, Paulo não conseguiu pensar em nada maior do que desejar aos efésios que:
... com as suas gloriosas riquezas, ele [Deus] os fortaleça no íntimo do seu ser
com poder, por meio do seu Espírito, para que Cristo habite no coração de vocês
mediante a fé; e oro para que, estando arraigados e alicerçados em amor, vocês
possam, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento,
a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo
conhecimento — para que vocês sejam cheios de toda a plenitude de Deus.
Efésios 3:16-19
Paulo percebeu que, no Dia do Julgamento, nossa vida será avaliada e estimada em
termos de nossa relação pessoal com o Jesus de Nazaré exaltado. Por isso, pôde escrever
~ 27 ~
realisticamente aos filipenses: "Considero tudo como perda, comparado com a suprema
grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as
considero como esterco para poder ganhar Cristo" (Fp 3:8).
O apóstolo era como um homem obcecado: a mente estava inflamada com um só
pensamento e o coração queimava em um só desejo: conhecer Cristo Jesus, o Senhor redentor.
(Não é de admirar que, para o exegeta François Amity, o conceito fundamental de Paulo é a
salvação.) Depois de refletir, Paulo virou-se e disse aos colossenses para esperarem um pouco:
Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que são
do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus. Mantenham o pensamento
nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e agora a sua
vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a sua vida, for
manifestado, então vocês também serão manifestados com ele em glória.
Colossenses 3:1-4
O Cristo de Paulo era não somente um grande mestre, exemplo de um grande homem ou
um símbolo das aspirações humanas mais nobres: ele era Senhor e Salvador. Reinterpretar Jesus
de qualquer outro modo é esvaziar o cristianismo de sua essência.
CAPÍTULO TRÊS
D I S T R A Ç Õ E S
Há certas questões urgentes que todo cristão deve responder com total sinceridade. Você
tem fome de Jesus Cristo? Você anseia passar um tempo sozinho com ele em oração? Ele é a
pessoa mais importante em sua vida? Ele preenche sua alma como uma canção alegre? Ele está
em seus lábios como um grito de louvor? Ou ele está sufocado por distrações, anulado pelo
orgulho? Você consulta com ansiedade suas memórias, seu Testamento, para aprender mais
sobre ele? Você tem sede da água viva do seu Espírito Santo? Você está se esforçando para
morrer diariamente para qualquer coisa que iniba, diminua ou ameace sua amizade com ele?
Para verificar onde você realmente está com o Senhor, recorde o que o entristeceu no
último mês. Foi a consciência de que você não ama Jesus o suficiente? De que você não buscou a
sua face em oração com a freqüência necessária? De que você não se importou com sua pessoa o
bastante? Ou você ficou abatido por causa de uma falta de respeito, de uma crítica de uma figura
de autoridade ou em razão de suas finanças, da falta de amigos, de medos sobre o futuro ou pelo
aumento de peso?
De modo inverso, o que o alegrou no último mês? Uma reflexão sobre a sua eleição para a
comunidade cristã? A alegria de dizer suavemente: "Aba, Pai"? A tarde em que você se retirou
durante duas horas, levando só o evangelho como seu companheiro? Uma pequena vitória sobre
o egoísmo? Ou as fontes de sua alegria foram um carro novo, uma roupa de grife, um grande
evento, o sexo, um aumento salarial ou a perda de meio quilo em seu peso.7
Quando todos os cristãos se rendem ao mistério do fogo do Espírito que queima por
dentro; quando nos submetemos à verdade salvadora de que alcançamos a vida somente através
da morte, assim como nos voltamos para a luz somente através das trevas; quando
reconhecemos que o grão de trigo deve se enterrar no chão e morrer, assim como Jonas deve ser
sepultado na barriga da baleia e o jarro de alabastro do "eu" deve ser quebrado para que os
outros percebam a doce fragrância de Cristo; quando respondemos ao chamado de Jesus "venha
~ 28 ~
a mim", então o poder ilimitado do Espírito Santo será liberado com surpreendente força na
igreja e no mundo.
Mas isso só acontecerá se nos apartarmos da vida que estamos acostumados a viver, uma
vida regida por nossos desejos de segurança, prazer e poder. São esses desejos que nos impedem
de reconhecer a verdade de nossa necessidade da misericórdia de Deus. São esses desejos que
nos impedem de tirar os resíduos embaçadores de nossa vida sem Deus e nos obstruem a
transparência.
Segurança
Em um sentido muito óbvio, o culto à segurança inclui os crentes que com freqüência
adoram mais no altar do sucesso do que no altar do Deus vivo, que se curvam mais regularmente
às vacas sagradas da segurança e do conforto do que ao domínio soberano de Jesus Cristo. A
síndrome da segurança é facilmente reconhecível quando o assunto é dinheiro. Uma pessoa
pode se sentir segura com apenas dez dólares aqui e agora. Outra pessoa pode se sentir insegura
com 100 mil dólares no banco.
A quantia não importa. O tipo de segurança que buscamos (financeira, de
relacionamento, profissional) não tem importância. O que importa é a quantidade de tempo,
energia, pensamento e atenção que investimos na desgastante luta para alcançar as condições
que acreditamos ser indispensáveis para nos sentirmos seguros. Os detalhes de nossas listas de
compra são bastante arbitrários, mas o desejo de segurança é muito exigente e afasta nossa
mente do chamado superior para que nossos pensamentos e nosso coração sejam habitados por
Cristo Jesus.
Num sentido menos óbvio, o desejo de segurança é, na maioria das vezes, uma questão
da nossa programação emocional. Meus sentimentos de insegurança não são uma conseqüência
inevitável de circunstâncias externas (como, por exemplo, a falência nos negócios) ou de ações
de outras pessoas. A vontade de alcançar tranqüilidade e estabilidade aloja-se em mim. Não está
à mercê de caprichos, fantasias e forças externas imprevisíveis. O que me traz a sensação de
insegurança se liga às minhas necessidades emocionais viciosas, que devem sempre ser
satisfeitas. Quando a realidade não atende minhas expectativas, fico frustrado, bravo, amargo,
ansioso e ressentido.
Por exemplo, digamos que você me fale que achou este livro um desperdício completo de
tempo e dinheiro. Sua crítica desperta a minha programação interna e me afundo num pântano
de tristeza, pena de mim mesmo e depressão. A realidade não atendeu minhas expectativas. Eu
esperava, no mínimo, uma crítica construtiva, possivelmente positiva, e talvez até mesmo um
elogio.
No entanto, não foi você quem destruiu meu equilíbrio interno. Eu fiz isso.
Excessivamente preso ao meu preconcebimento de que necessito me sentir seguro (neste caso,
com sua aprovação) e teimosamente convencido do como o mundo deveria funcionar, eu me
privo de forma prejudicial dos frutos do Espírito Santo e da vida plena que Jesus prometeu.
O Senhor passou pelo mundo como uma figura de luz e verdade, às vezes temo, às vezes
bravo, sempre justo, amoroso e eficaz, mas nunca inseguro. Uma palavra, um gesto, umas poucas
sílabas traçadas na areia, uma ordem como "venham, sigam-me!", e destinos foram mudados,
espíritos renascidos. Ele conversou com samaritanos, prostitutas e crianças e lhes falou da
verdade, da misericórdia e do perdão, nunca com sequer um traço de insegurança obscurecendo
seu semblante. Passando seu tempo com aqueles que eram desaprovados por todos, ele nunca
vacilou em seu desejo de lhes oferecer seu reino.
Quando nos apegamos a um miserável sentimento de segurança, a possibilidade de
transparência torna-se totalmente nula. Da mesma maneira que o amanhecer da fé exige o pôr
do sol de nossa anterior incredulidade, de nossas falsas idéias e convicções equivocadas e
circunscritas, assim também o amanhecer da crença exige o abandono de nossa ânsia pelas
garantias materiais e espirituais. A segurança no Senhor Jesus implica o fim de nossos cálculos e
estimativas de custos.
~ 29 ~
O tipo de confiança que depende da resposta a ser recebida é falso, baseado apenas na
ansiedade. Na insegurança assustadiça, o crente suplica e até mesmo exige do Senhor garantias
tangíveis de que seu afeto será retribuído. Se não as receber, fica desanimado, frustrado, talvez
mesmo convencido de que tudo está acabado ou de que nunca realmente existiu. Se as receber,
se tranqüiliza, mas só por algum tempo. Ele precisa de provas adicionais — cada uma menos
convincente que a anterior. No fim, essa falsa confiança morre de pura frustração.
O que o cristão inseguro não aprendeu é que as garantias tangíveis, por mais valiosas
que possam ser, não podem gerar confiança, sustentá-la ou fornecer qualquer certeza de sua
presença. Jesus Cristo nos chama para que entreguemos nosso "eu" independente à completa
confiança. A transparência, a certeza e a paz só podem ser alcançadas quando essa decisão é
ratificada e a ansiedade pela confiança, extinta.
O mistério da ascensão do Senhor contém uma importante lição para o obcecado por
segurança. Jesus disse a seus discípulos: "Eu lhes afirmo que é para o bem de vocês que eu vou"
(Jo 16:7). Por quê? Como a partida de Jesus poderia beneficiar os apóstolos? Em primeiro lugar,
conforme ele disse: "Se eu não for o Conselheiro não virá para vocês; mas se eu for, eu o
enviarei" (Jo 16:7). Em segundo lugar, porque enquanto Jesus ainda fosse visível na terra,
sempre haveria o perigo de que os apóstolos se tornassem tão apegados à visão da sua carne
humana que poderiam abandonar a certeza da fé e se inclinar à evidência tangível dos sentidos.
Ver Jesus em pessoa era bom, mas "felizes os que não viram e creram" (Jo 20:29).
No inverno de 1952, durante um dos combates mais pesados da Guerra da Coréia, dois
cabos da marinha estavam agachados na trincheira de um posto de observação avançado, quase
cem metros dentro das linhas inimigas. Jack Robison e Tim Casey eram amigos havia mais ou
menos um ano. Eles se conheceram na escola de armamentos de Quântico, Virgínia, saíram
juntos em licença e depois viajaram para Camp Pendleton, Califórnia, para o treinamento de
infantaria avançada. Seu regimento chegara em Pusan no outono de 1951.
Passava um pouco da meia-noite e uma neve clara caía. Acotovelando-se na trincheira, os
dois passavam um cigarro de um lado para o outro quando uma granada, arremessada por um
norte-coreano escondido a cerca de 25 metros de onde eles estavam, caiu bem no meio deles.
Casey percebeu o explosivo primeiro, displicentemente jogou fora o toco de cigarro e deitou-se
sobre a granada, que detonou imediatamente; o abdome de Casey absorveu a explosão. Ele
piscou para Robison e rolou morto.
Quatro anos mais tarde, Robison entrou para a vida religiosa. Quando pronunciou os
votos solenes, em 1960, ele adotou um novo nome para simbolizar sua nova vida em Cristo
Jesus. Mudou seu primeiro nome de Jack para Casey, na esperança de que o espírito de auto-
sacrifício que animara a vida de Tim Casey caracterizasse também o seu. Ele também ajudou a
mãe de Casey, que era viúva, e passou a dividir suas férias de Natal entre a própria família, em
Rhode Island, e a sra. Casey, em Chicago.
Certo verão, o padre Casey Robison fez uma visita surpresa à sra. Casey. Ele estava se
sentindo cansado e deprimido. Os dois seguiram o procedimento habitual de assistir às novelas
da tarde na televisão, segurando as mãos um do outro o tempo todo. Depois do jantar, sentaram-
se na sala de estar, tomando uma bebida e lembrando os dias em que Tim era vivo. A depressão
do padre se prolongava. Inesperadamente, ele perguntou:
Mãe, você acha que Casey realmente me amava? Ela sorriu.
Oh, Jack, você me vem com cada uma! — disse num lânguido sotaque irlandês. — Você
nunca fala sério!
Estou falando sério — Robison respondeu. Havia um medo nos olhos da mulher.
Agora pare de zombar de mim, Jack.
Eu não estou zombando, mãe.
Ela o encarou com descrença. Então o medo se transformou em fúria. A sra. Casey nunca
havia blasfemado ou tomado o nome do Senhor em vão. Mas, naquela noite, ela se levantou e
gritou:
~ 30 ~
— Jesus Cristo, homem, que mais ele poderia fazer por você? Então ela se dobrou na
cadeira, enterrou a cabeça em seu peito
e começou a chorar. A mesma frase foi repetida várias vezes, até se tomar insuportável:
— Que mais ele poderia fazer por você?
Depois do que pareceu um longo tempo, ela deu um pálido e pequeno sorriso, e disse
com suavidade:
— Ah, Jack, acho que todos nós precisamos reconfirmar essas certezas de vez em
quando.
Foi nessa noite que o padre Casey Robison abandonou a insegurança e encontrou a paz
que vem com a genuína confiança.
"O Diabo nunca se alegra mais", disse Francisco de Assis, "do que quando rouba a paz do
coração de um servo de Deus". Paz e alegria não terão lugar quando o coração de um cristão
almejar um sinal depois do outro do misericordioso amor de Deus. Nada é dado como certo, nem
recebido com gratidão. Os olhos preocupados e a testa franzida do crente ansioso são os
sintomas de um coração em que a confiança não encontrou morada.
O próprio Senhor precisa atravessar conosco todas as sombras do espectro emocional,
da raiva às lágrimas, e então ao regozijo. Mas a verdade pungente permanece: não confiamos
nele. Não temos a mente de Cristo Jesus. "Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do
agrado do Pai dar-lhes o Reino" (Lc 12:32). As palavras de sra, Casey deveriam bastar também
para nós: "Jesus Cristo, que mais ele poderia fazer por você?".
A insegurança não somente paralisa nossa relação com o Deus vivo, mas também
provoca um efeito devastador nas relações interpessoais. É o ponto de partida de toda
desavença social. Ela acaba com a sinceridade, que é a ponte para o mundo existencial do outro.
Ela corrói a verdadeira comunicação e causa um tipo de ruptura no desenvolvimento da
personalidade autêntica. Ken Keyes Jr. escreve:
O centro da segurança é uma espécie de nível de consciência solitário. Quando
a sua consciência está preocupada em esforçar-se no sentido daquilo que você
julga como suas necessidades de segurança, você se torna mais isolado das
pessoas do que em qualquer outro nível. E sua energia se situa no nível mais
baixo. Quando está preocupado com a segurança, você é apanhado em condições
conflitantes nas relações com os outros. Você imagina os "outros" como objetos
capazes de ajudá-lo a ficar mais seguro — ou como objetos a combater, porque
ameaçam sua segurança. No nível da segurança, você não pode amar os outros,
uma vez que esse nível cria grandes distâncias entre você e as outras pessoas.
O cristão inseguro encontra excessiva dificuldade para ouvir a opinião dos outros. Ele
possui tantas dúvidas sobre a própria identidade que precisa se afirmar o tempo todo, dominado
como está pelo medo de que, ao ouvir os outros ou ceder a uma opinião, ele possa, assim, perder
uma parte da sua frágil identidade. Ou então, a incerteza sobre sua identidade dificilmente
permitirá que se afirme, uma vez que, ao expressar seus verdadeiros sentimentos aos outros, ele
poderia expor-se às críticas. Ele raramente sorri, pois um riso com o coração aberto (a válvula de
segurança embutida que o faz se lembrar de sua condição de criatura) é um luxo que não pode
se dar: isso poderia reduzir a auto-estima e fazer que ele deixasse de se levar tão a sério.
Esse homem não chora, o que seria uma fenda na sua armadura invulnerável. Mas, ao
contrário, pode chorar freqüentemente, só que sozinho — ele não pode deixar os outros
saberem que é menos do que perfeito. Ele não admite prontamente seus erros devido ao desejo
insaciável de aprovação. Asneiras prejudicam sua credibilidade. "Vivemos numa época", diz J. B.
Priestley, "em que nenhum homem importante jamais admite que está errado".
Por que tantos cristãos se mumificam na idade madura? Por que paramos de crescer na
dimensão espiritual de nossa vida? Por que nossas liturgias se tornam tão estagnadas e nossos
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Brennan Manning - Convite à loucura

  • 1.
  • 2. ~ 2 ~ BRENNAN MANNING Convite à Loucura Traduzido por Sueli Saraiva Preparado por Amigo Anônimo www.semeadores.net Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única finalidade de oferecer leitura edificante a todos aqueles que não tem condições econômicas para comprar. Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo apenas para avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os livros. Semeadores da Palavra e-books evangélicos
  • 3. ~ 3 ~ CONVITE À LOUCURA Categoria: Espiritualidade Copyright © 2005, por Brennan Manning Publicado originalmente por Harper San Francisco, uma divisão da Harper Collins Publishers, Nova York, EUA Título original: The importance of being foolish Editora responsável: Silvia Justino Editor-assistente: Omar de Souza Preparação de texto: José Carlos Siqueira Revisão de provas: Aldo Menezes Supervisão de produção: Lilian Melo Colaboração: Miriam de Assis Capa: Douglas Lucas Imagem: Stockphotos Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional (Sociedade Bíblica Internacional), salvo indicação específica. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Manning, Brennan Convite à loucura / Brennan Manning; traduzido por Sueli Saraiva — São Paulo: Mundo Cristão, 2007. Título original: The importance of being foolish ISBN 85-7325-464-5 ISBN 978-85-7325-464-8 1. Conduta de vida 2. Espiritualidade 3. Jesus Cristo – Ensinamentos 4. Santa Cruz 5. Vida cristã I. Título. 07-1439 CDD–248.4 Índice para catálogo sistemático: 1. Vida cristã: Espiritualidade: Cristianismo 248.4 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito, da editora. Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela: Associação Religiosa Editora Mundo Cristão Rua Antônio Carlos Tacconi, 79, São Paulo, SP, Brasil, CEP 04810-020 Telefone: (11) 2127-4147 — Home page: www.mundocristao.com.br Editora associada a: • Associação de Editores Cristãos • Câmara Brasileira do Livro • Evangelical Christian Publishers Association
  • 4. ~ 4 ~ Conteúdo Agradecimentos .................................................................................................................... 5 Introdução............................................................................................................................. 5 PARTE UM – O MODO COMO VIVEMOS .......................................................................................... 7 Capítulo um – Verdade ........................................................................................................ 7 Capítulo dois – Transparência .......................................................................................... 19 Capítulo três – Distrações ................................................................................................. 27 PARTE DOIS – A MENTE DE CRISTO ............................................................................................. 36 Capítulo quatro – A descoberta do pai .............................................................................. 36 Capítulo cinco – Um coração misericordioso .................................................................... 41 Capítulo seis – A obra do Reino ......................................................................................... 48 PARTE TRÊS – O PODER DA CRUZ ................................................................................................ 60 Capítulo sete – A sabedoria da ressurreição ..................................................................... 60 EPÍLOGO – A REVOLUÇÃO ............................................................................................................. 68
  • 5. ~ 5 ~ A G R A D E C I M E N T O S É difícil se separar dos filhos. Em 1976, a Dimension Books publicou Gentle Revolutionaries: Breaking Through to Christian Maturity [Revolucionários moderados: Abrindo caminho para a maturidade cristã]. Cheio de paixão e convicção, eu queria mostrar como a igreja estava deixando escapar os pontos centrais sobre as boas-novas de Jesus para nós. Recentemente, quando me deparei com esse filho abandonado (já que o livro estava esgotado), descobri que ainda era importante que a igreja ouvisse essa mensagem. Ao mesmo tempo, acredito que aprendi a expor as coisas com um pouco mais de graça e humildade do que fiz em meu tempo de juventude. Assim, com ajuda de Carla Barnhill e de meus amigos da Harper San Francisco, em especial Cindy DiTiberio, revisei, atualizei e fiz ajustes no antigo trabalho, de forma que agora ele está pronto, assim espero, para uma nova geração de leitores. Portanto, para aqueles que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, por favor, prossigam a leitura. I N T R O D U Ç Ã O É extraordinário o que um simples convite da Casa Branca pode fazer para entorpecer as faculdades críticas", advertia o falecido Reinhold Niebuhr. Uma advertência grave! O privilégio de pregar para o presidente é tão prestigioso que a maioria dos clérigos usa a oportunidade para retribuir a gentileza. Em uma atmosfera de admiração mútua, a religião se dissolve num Sonrisal verbal, e a pregação profética se torna praticamente impossível. O pedido de outros cristãos para escrever um livro sobre a mente de Jesus traz armadilhas semelhantes, embora muito menos sofisticadas. Ao querer agradar a todos, fico muito tentado a escrever algo insípido, uma exposição crivada de clichês, metáforas torturantes e histórias sem sentido. Então todos ficarão felizes e gloriosamente satisfeitos. No entanto, este livro foi escrito a partir da crença de que Jesus Cristo viveu, morreu e ressuscitou para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de cristãos que viveriam sob o domínio do Espírito; homens e mulheres que seriam tochas humanas acesas com o fogo do amor por Cristo, profetas e amantes inflamados com o Espírito ardente do Deus vivo. Oferecer uma obra inócua seria uma prostituição do evangelho, um insulto a Deus e um grave desserviço ao leitor. Durante dois anos, tive o privilégio de viver com uma comunidade cristã conhecida como Irmãozinhos de Jesus e ver o tema deste livro se desenvolver nas tarefas mais simples do mundo comum. A vida de um irmãozinho tem como modelo a vida oculta de Jesus de Nazaré, os muitos anos que ele passou na obscuridade dedicada ao trabalho manual e à oração antes de embarcar no ministério público de pregar, ensinar e curar. Passei os primeiros seis meses na pequena aldeia de Saint-Rémy, na França, a uns 150 quilômetros a sudeste de Paris. No inverno, recolhia esterco nas fazendas vizinhas e lavava pratos num restaurante local. As noites eram envoltas em silêncio, na adoração em ação de graças e na meditação das Escrituras. Os dias passavam num ritmo contínuo de envolvimento com o mundo e afastamento dele. Foi uma iniciação gradual rumo a uma vida contemplativa sem clausura e entre os pobres. Nosso grupo de sete (dois franceses, um alemão, um espanhol, um eslavo, um coreano e eu) mudou-se para Farlete, outra pequena aldeia no deserto de Zaragoza, na Espanha. Nos 12 meses em que vivemos ali, passamos a amar o calor, a simplicidade e a profunda amizade de um
  • 6. ~ 6 ~ remoto povoado espanhol com uma população de seiscentos habitantes. No verão, trabalhávamos de 10 a 12 horas por dia na colheita de trigo ou em trabalhos de construção, revezando turnos como cozinheiro na fraternidade e economizando dinheiro suficiente para comprar bebidas para a festa que marcava O fim da colheita. Nossa harmonia com os aldeões era profunda porque não somente compartilhávamos a pobreza, a labuta, o pão amargo e a ansiedade sobre a colheita, mas também a alegria do nascimento de um bebê, pelas núpcias dos recém-casados e uma multidão de experiências menores tecidas na base da vida rural. Durante o ano, muitas vezes ficávamos temporariamente sozinhos, retirados em uma montanha alta e rochosa que, além de muito distante da vida urbana, também é um dos mais remotos eremitérios da Europa. Em muitas e longas horas de oração nas cavernas, eu percebia de uma nova maneira que o conhecimento redentor de Jesus Cristo substitui todo o resto, permitindo-nos experimentar uma liberdade que não é restringida pelos limites de um mundo que se encontra aprisionado. Ao mesmo tempo, reconheci que muitas das importantes questões teológicas na igreja de hoje não são importantes, nem teológicas, e que, num tempo caracterizado (em algumas partes) pela confusão, encenações baratas e infidelidade, o que Jesus exige não é mais retórica, mas renovação pessoal, fidelidade ao evangelho e comportamento produtivo. Conforme disse o cardeal Paul-Emile Léger em seu adeus a Montreal: "O tempo de falar acabou".1 Essa é a premissa fundamental em torno da qual os 230 discípulos que compõem os Irmãozinhos de Jesus organizam sua vida. Os irmãozinhos aprendem a separar o essencial do secundário e a perceber que esse modo particular de vida é simplesmente uma conseqüência exterior de um imenso, apaixonado e determinado amor à pessoa de Jesus. Viver entre as mais pobres e desamparadas das pessoas como um trabalhador braçal, sem trajes clericais, passar dias e semanas no deserto em espontâneo louvor a Deus, comunicar- se através de valores de amizade que não podem ser comunicados pela pregação, tudo isso satisfaz não um desejo de novidade, mas uma compulsão de amor. Alguns poderiam chamar a isso loucura. Eu chamo de verdadeira sabedoria do Deus de amor. 1 O cardeal Léger foi arcebispo de Montreal, Canadá, até 1967, quando renunciou a sua posição como príncipe da Igreja Católica e partiu para a Africa a fim de trabalhar com leprosos e crianças deficientes. Ele morreu em 1991. (N. da T.)
  • 7. ~ 7 ~ PARTE UM O M O DO C O M O V IV E M OS CAPÍTULO UM VE R D A D E A narrativa evangélica sobre a purificação do templo é uma cena desconcertante (Jo 2:13-22). Ela nos apresenta o retrato de um Salvador enfurecido. O Cordeiro submisso de Deus que disse "Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração" (Mt 11:29) improvisou um chicote e circulou furiosamente pelo templo, destruindo bancas e mostruários, espancando os mercadores e dizendo: "Saiam daqui! Aqui não é o Wal- Mart. Vocês não transformarão um espaço sagrado num passeio de consumo! Mentirosos! Visitar o templo é um sinal de reverência a meu Pai. Fora daqui!". Ainda mais desconcertante é o amor intenso de Jesus pela verdade. Onde o dinheiro, o poder e o prazer mandam, o corpo da verdade sangra de mil feridas. Muitos de nós temos mentido a nós mesmos por tanto tempo que nossas reconfortantes ilusões e justificativas assumiram uma aura de verdade; nós as apertamos em nosso peito como uma criança aperta um ursinho favorito. Não está convencido? Considere então um homem que cita o apóstolo Paulo sobre um pouco de vinho ser bom para o estômago ao falar de seu terceiro martíni no almoço. Ou a defesa veemente de um "cristão liberal" sobre a nudez em O último tango em Paris, a violência em Pulp fiction — Tempo de violência ou a cena de sexo oral em Garotos de programa porque eles "se integram perfeitamente ao enredo e são realizações estéticas". Ou então o honesto diácono da igreja que aceita trapacear e sonegar em seus negócios porque "é o único modo de ser competitivo". Ou todas as igrejas nas quais o delírio sobre a falta de culpa é uma realidade, a maestria na exegese bíblica é uma santidade, o tamanho da congregação é a prova de sua autenticidade e por aí afora. Não existe limite para as defesas que inventamos contra a transgressão da verdade em nossa vida. A questão dolorosa que enfrentamos na igreja de hoje é se o amor de Deus pode ser comprado tão barato. O primeiro passo na busca da verdade não é a resolução moral de evitar o hábito da mentirinha — por mais desagradável que uma deformação de caráter possa ser. Não se trata de uma decisão sobre deixar de enganar os outros, e sim da decisão de parar de nos enganar. A menos que tenhamos a mesma paixão inexorável pela verdade que Jesus demonstrou no templo, estamos destruindo nossa fé, traindo o Senhor e nos enganando. O auto-engano é inimigo da integridade, pois ficamos impedidos de nos ver como realmente somos. Ele encobre nossa falta de crescimento no Espírito da verdade, impedindo-nos de compreender nossa real personalidade. Muitos anos atrás, testemunhei o poder do auto-engano reeditado de forma dramática no centro de reabilitação de alcoólicos de uma pequena cidade americana. O trecho é extraído de
  • 8. ~ 8 ~ meu livro O evangelho maltrapilho. O cenário: uma sala de recreação ampla e de dois andares na orla de uma colina com vista para um lago artificial. Estavam lá reunidos 25 dependentes químicos. Nosso líder era um experiente conselheiro, hábil terapeuta e membro veterano da equipe. Seu nome: Sean Murphy-O' Connor,2 mas ele normalmente anunciava sua chegada dizendo: — É ele mesmo. Vamos trabalhar. Sean mandou que um paciente chamado Max assumisse a "cadeira de interrogatório" no centro do grupo disposto em "U". Max, um homem franzino e de baixa estatura, era um cristão nominal, casado e com cinco filhos, proprietário e presidente de sua empresa, rico, afável e dotado de uma pose notável. Desde quando você tem bebido como um porco, Max? — Murphy-O'Connor havia começado o interrogatório. Isso é injusto — Max recolheu-se. Veremos. Quero saber da sua história com a bebida. Quanta cachaça por dia? Max reacendeu seu cachimbo. Tomo duas Marias com os rapazes antes do almoço e dois Martins depois que o escritório fecha, às cinco. Depois... O que são Marias e Martins? — interrompeu Murphy-O'Connor. Bloody Marys: vodca, suco de tomate, uma pitada de limão e de Worcestershire, um toque de extrato de pimenta vermelha; e martinis: gim, extra-seco, gelado com uma azeitona e uma espremida de limão. Obrigado, Maria Martins. Prossiga. Minha esposa gosta de um drinque antes do jantar. Viciei-a em Martini há muitos anos. Claro que ela os chama de "aperitivos" — sorriu Max. — Vocês naturalmente entendem o eufemismo, não é verdade, senhores? Ninguém respondeu. Como eu ia dizendo, tomamos dois martínis antes do jantar e mais dois antes de dormir. Um total de oito drinques por dia, Max? — quis saber Murphy- O'Connor. Exatamente. Nem uma gota a mais nem a menos. Você é mentiroso. Sem se abalar, Max explicou: Vou fingir que não ouvi isso. Estou na ocupação há vinte e tantos anos e construí minha reputação em cima da honestidade, não da falsidade. As pessoas sabem que minha palavra é de confiança. Já chegou a esconder uma garrafa em casa? — perguntou Benjamim, um índio navajo do Novo México. Não seja ridículo. Tenho um bar na minha sala de estar maior que um traseiro de elefante. Nada pessoal, sr. Murphy-O'Connor. Max sentia que havia recuperado o controle. Estava sorrindo. Você guarda bebida na garagem, Max? Naturalmente. Tenho de repor o estoque. Um homem na minha posição recebe muita gente em casa — o executivo arrogante havia reassumido. Quantas garrafas na garagem? Não sei dizer a quantidade com precisão. Assim, de improviso, eu diria dois engradados de Smirnoff, um engradado de gim Beefeater, algumas garrafas de bourbon e de uísque e um punhado de licores. 2 No original, "Croesus O'Connor". (N. do R.)
  • 9. ~ 9 ~ O interrogatório prosseguiu por mais vinte minutos. Max eximia-se e esquivava-se, minimizava, racionalizava e justificava seu hábito de beber. Finalmente, apanhado por um implacável interrogatório cruzado, ele admitiu que guardava uma garrafa de vodca no criado- mudo, uma garrafa de gim na mala para fins de viagem, outra no banheiro para fins medicinais e três mais no escritório para ter o que oferecer aos clientes. Ele trejeitava ocasionalmente, mas nunca perdia sua postura confiante. — Senhores — sorriu Max, — acho que todos nós já nos demos o direito de dourar a pílula uma vez ou outra nessa vida — foi como ele colocou, dando a entender que apenas homens de envergadura podiam dar-se ao luxo de rir de si mesmos. Você é mentiroso — ecoou outra voz. Não é preciso ficar vingativo, Charlie — retrucou Max. — Lembre-se da passagem do evangelho de João sobre o cisco no olho do seu irmão e a viga no seu. E aquela outra em Mateus sobre o roto falando do rasgado. (Senti-me compelido a informar Max que a comparação entre o cisco e a tábua não se encontrava no evangelho de João, mas no de Mateus, e que a história do roto e do rasgado era um provérbio secular que não constava nos evangelhos. Senti, porém, que um espírito de presunção e um ar de superioridade espiritual haviam me envolvido de repente, como um nevoeiro. Decidi abrir mão da correção fraternal. Afinal, eu não estava em Hazelden fazendo uma pesquisa para um livro. Eu era apenas um bêbado incorrigível como Max.) — Tragam-me um telefone — disse Murphy-O'Connor. Um telefone foi trazido num carrinho para a sala. Murphy-O'Connor consultou um bloco de notas e discou um número interurbano para a cidade de Max. O receptor era amplificado eletronicamente, de modo que a pessoa do outro lado da linha podia ser ouvida claramente por todos no salão do lago. Hank Shea? Ele mesmo. Quem está falando? Meu nome é Sean Murphy-O'Connor. Sou conselheiro de um centro de reabilitação de drogas e álcool no Meio-Oeste. Você se recorda de um cliente chamado Max? (Pausa) Ótimo. Com a permissão da família dele, estou pesquisando a história de Max com a bebida. Como você trabalha como barman nesse lugar todas as tardes, fiquei pensando se você saberia me dizer aproximadamente quantos drinques o Max consome por dia? Conheço o Max muito bem, mas você tem certeza de que tem permissão para me interrogar? Tenho uma declaração assinada. Pode falar. — Max é um cara fantástico. Gosto demais dele. Ele despeja trinta contos no balcão toda tarde. O Max tomas os seus seis martinis básicos, compra mais uns drinques e sempre me deixa uma gorjeta de cinco dólares. Grande sujeito. Max pôs-se de pé num salto. Erguendo a mão direita desafiadoramente, ele despejou um caudal de palavrões digno de um estivador. Ele atacou os ancestrais de Murphy-O'Connor, colocou em dúvida a legitimidade de Charlie e a integridade de toda a unidade de tratamento. Ele agarrou-se ao sofá e cuspiu no tapete. Então, num feito notável, recuperou imediatamente a compostura. Max sentou-se e observou, sem nenhuma afetação, que até mesmo Jesus havia perdido a paciência no templo ao ver os saduceus comercializarem pombas e bolos. Depois de uma prédica improvisada sobre a ira justificada, ele reabasteceu o cachimbo, imaginando que o interrogatório havia terminado. Você já tratou mal algum dos seus filhos? — Fred perguntou. Fico feliz que você tenha levantado esse assunto, Fred. Tenho uma profunda ligação com meus quatro garotos. No último dia de Ação de Graças levei-os para uma expedição de pescaria nas Rochosas. Quatro dias de vida dura no mato. Foi memorável. Dois de meus filhos formaram- se em Harvard, você sabe, e Max Jr. está no terceiro ano da...
  • 10. ~ 10 ~ Não foi o que eu perguntei. Pelo menos uma vez na vida todo pai trata mal um de seus filhos. Tenho 62 anos e posso assegurar que é assim. Agora dê-nos um exemplo específico. Seguiu-se uma longa pausa. Finalmente: Bem, fui um tanto duro com minha filha de nove anos na última véspera de Natal. O que aconteceu? Não lembro. Apenas fico com uma sensação de pesar quando penso nisso. Onde aconteceu? Quais eram as circunstâncias? — Espere aí um minuto — a voz de Max ergueu-se com fúria. — Já disse que não lembro. Só não consigo me livrar dessa sensação ruim. Sem alarde, Murphy-O'Connor discou mais uma vez para a cidade de Max e falou com a esposa dele. — Sean Murphy-O'Connor falando, minha senhora. Estamos no meio de uma terapia de grupo e seu marido acaba de contar que tratou mal sua filha na véspera do Natal passado. A senhora poderia fornecer os detalhes, por favor? Uma voz suave encheu a sala. — Sim, posso contar-lhe a coisa toda. Parece que foi ontem. Nossa filha Debbie queria um par de sapatos de presente de Natal. Na tarde de 24 de dezembro meu marido levou-a de carro até a cidade, deu-lhe sessenta dólares e disse que ela comprasse o melhor par de sapatos que houvesse na loja. Foi exatamente o que ela fez. Quando entrou novamente na caminhonete que meu marido estava dirigindo, ela beijou-o no rosto e disse que ele era o melhor pai do mundo. Max estava orgulhoso como um pavão e decidiu celebrar no caminho de volta para casa. Ele parou no Cork'n'Bottle, um bar que fica a alguns quilômetros da nossa casa, e disse a Debbie que voltava já. Era um dia limpo e extremamente frio, cerca de vinte graus abaixo de zero, por isso Max deixou o motor funcionando e fechou as portas do lado de fora de modo que ninguém pudesse entrar. Isso era um pouco depois das três da tarde, e... Silêncio. — Sim? O som de uma respiração pesada encheu a sala de recreação. A voz esmoreceu. Ela estava chorando. — Meu marido encontrou no bar alguns velhos colegas do exército. Envolvido na euforia da reunião, perdeu a noção de tempo, de propósito e de tudo o mais. Ele saiu do Cork'n'Bottle à meia-noite. Bêbado. O motor havia parado de funcionar e as janelas do carro estavam bloqueadas com o gelo. A pequena Debbie tinha graves ulcerações de frio nas orelhas e nos dedos da mão. Quando a levamos ao hospital, os médicos tiveram de operar. Amputaram o polegar e o indicador da mão direita. Ela vai ficar surda pelo resto da vida. Max parecia estar tendo um ataque do coração. Ele lutava para manter-se de pé, fazendo movimentos desajeitados e descoordenados. Os óculos voaram para a direita e o cachimbo, para a esquerda. Ele caiu de quatro, soluçando histericamente. Murphy-O'Connor levantou-se e disse suavemente: — Vamos circulando. Vinte e quatro alcoólicos e viciados subiram a escadaria de oito degraus. Viramos à esquerda, reunimo-nos ao longo da amurada do mezanino e olhamos para baixo. Ninguém consegue esquecer o que viu naquele dia, 24 de abril, exatamente ao meio-dia. Max ainda estava de quatro. Seus soluços haviam crescido a berros. Murphy-O'Connor aproximou-se dele, pressionou seu pé contra o tórax de Max e empurrou. Max rolou de costas no chão. — Seu canalha miserável — urrou Murphy-O'Connor. — Tem uma porta à sua direita e uma janela à sua esquerda. Tome o que for mais rápido. Saia daqui antes que eu vomite. Não dirijo um centro de reabilitação para mentirosos. Se isso soa como uma resposta cruel, devemos lembrar da filosofia desse centro de reabilitação baseado no amor disciplinar. Ela está alicerçada na convicção, nascida de longa
  • 11. ~ 11 ~ experiência, de que nenhuma recuperação efetiva pode ser iniciada até que a pessoa admita que é impotente a respeito do álcool e que a sua vida se tornou ingovernável. A alternativa ao evitar a verdade de sua situação é sempre alguma forma de autodestruição. Para Max havia três opções: loucura, morte prematura ou abstinência. Contudo, nenhuma opção era possível até que o inimigo fosse identificado mediante uma interação dolorosa, impiedosa, com seus semelhantes. O auto-engano precisava ser desmascarado em todo o seu absurdo. A continuação da história é interessante. Max suplicou e obteve permissão para ficar. Então começou a passar pela mais notável transformação de personalidade que o grupo já havia testemunhado. O homem se tornou honesto e mais sincero, mais aberto, mais afetuoso e mais sensível do que era antes. O amor disciplinar o tornou real e a verdade o libertou. O desfecho de sua história é ainda mais interessante. Uma noite antes de Max terminar o tratamento, outro homem, Fred, passou pelo seu quarto. A porta estava entreaberta. Max estava sentando à sua escrivaninha lendo o romance Watership Down [Rio abaixo]. Fred bateu e o cumprimentou. Durante alguns minutos, Max permaneceu fixo no livro. Quando ele levantou os olhos, suas bochechas estavam riscadas de lágrimas. — Fred — disse, a voz embargada, — acabo de orar pela primeira vez em minha vida. Em autobiografia, Agostinho mostrou a estreita relação entre a busca pela verdade e a conversão do coração. Max não pôde encontrar a verdade do Deus vivo até enfrentar a realidade de seu alcoolismo. Com base na perspectiva bíblica, Max era um mentiroso. Na filosofia, o oposto da verdade é um erro; na Bíblia, o contrario da verdade é uma mentira. A mentira de Max consistia em dar a aparência de existência ao que de fato não existia: um inofensivo ato de beber socialmente. A verdade, para ele, era equivalente a livrar-se das aparências para reconhecer a realidade de seu alcoolismo. No evangelho de João, o mentiroso obstinadamente recusa-se a ver a luz e a verdade, e mergulha nas trevas. O Diabo é o pai das mentiras: "Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira" (Jo 8:44). O Diabo é o grande ilusionista. Ele enverniza a verdade: "Se afirmarmos que estamos sem pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" (1 Jo 1:8). Incita-nos a dar importância ao que não tem importância, veste com falso resplendor o que é menos importante e nos desvia do que é insuperavelmente verdadeiro. O Diabo nos faz viver num mundo de ilusão, devaneios e sombras. O conflito entre o pai das mentiras e a verdade, que é Jesus Cristo, permeia todo o evangelho de João. O Senhor não somente derrotou o mentiroso, mas nos deu parte de sua vitória através do Espírito Santo: a exaltação de Jesus Cristo na cruz liberta o Espírito. O triunfo pascal não somente expiou nossos pecados e nos justificou diante de Deus, mas trouxe o derramamento do Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5:5). O Espírito nos capacita a derrotar a mentira, o auto-engano e a desonestidade; nos torna agradáveis para a verdade de Deus e nos leva a experimentar as realidades eternas. O falecido Jean Daniélou escreveu: "A verdade consiste numa mente que dá às coisas a importância que elas têm na realidade". O que é verdadeiramente real para o crente é Deus. Quando Max foi levado a confrontar a verdade de seu alcoolismo e aceitá-la, atravessou uma porta em direção ao reconhecimento da realidade soberana de Deus e declarou: "Acabo de orar pela primeira vez em minha vida". As conseqüências disso para o cristão sincero que busca ter a mente de Cristo Jesus (Fp 2:5) e a plenitude da vida no Espírito Santo são amplas. Para a maioria de nós, o mais real é o mundo da existência material, sendo o mundo de Deus o mais irreal. Trata-se de um fato tão colossal, uma subversão tão radical, que o mentiroso (no sentido bíblico) é geralmente considerado normal em nossa sociedade. Pois a dimensão religiosa da vida é um tipo de acessório opcional, pura questão de gosto. E a fé é uma aceitação indiferente a uma empoeirada casa de penhores de declarações dogmáticas.
  • 12. ~ 12 ~ O que é importa neste mundo são as pessoas influentes, as pessoas que agem e jogam com o que há de melhor nelas, pessoas que assumem a responsabilidade de seus atos e dirigem o próprio destino. O poderoso é o que faz as coisas, não os que estão alquebrados e carentes. Tais motivos, você poderia dizer, são os dos ateus: somos diferentes. Acreditamos na religião, na fé. Talvez. No entanto, existe uma classe de mentirosos que estão abertos ao Espírito de Jesus, mas de modo superficial. Eles recebem tudo, mas nada permanece enraizado. Defendem a renovação eclesiástica e a mudança pela mudança. Reparam o cisco no olho das lideranças, mas não a viga no próprio olho. Eles são a favor da vida no que diz respeito ao feto por nascer, mas contra a vida em relação ao muçulmano, ao pecador e ao culpado. São como borboletas que sorvem de mil cálices de flores diferentes. Pessoas confiantes no momento: hoje andando sobre as nuvens, amanhã morrendo de depressão. Elas se guiam pelo que é novo e nadam a favor da correnteza. Seu imperativo moral mais elevado é manter uma boa dianteira. Nunca lhes sugira que o custo do discipulado é alto, que não existe Pentecostes barato. Cristãos cata-ventos, nos quais não se pode confiar, formam uma legião. Mas nosso interesse nestas páginas é o cristão sincero, cuja fé é sólida e arraigada. Jesus Cristo é (ou está a ponto de se tomar) a pessoa mais importante de sua vida. Sua oração não é pretensão nem fachada. É uma pessoa inteligente no sentido bíblico, que conhece a realidade como ela é. Nas Escrituras, a inteligência não consiste em desempenho mais brilhante da mente, mas em reconhecer a realidade onipresente de Deus. "Diz o tolo em seu coração: 'Deus não existe'" (Sl 14:1). Da perspectiva bíblica, um grande teólogo pode ser considerado um estúpido, enquanto uma lavadeira analfabeta que louva a Deus pelo pôr do sol é vista como infinitamente mais inteligente. O cristão referido nestas páginas, qualquer que seja sua situação ou condição de vida, será considerado inteligente e interessado na busca da verdade. O FIM DO DESLUMBRAMENTO Em uma noite fria, iluminada pelo brilho das estrelas, eu estava ansioso na escuridão à espera do nascer do sol. As areias do deserto brilhavam como açúcar prateado. O vento me sussurrava o nome dele repetidas vezes: "Aba, Aba". A vigília terminava e minha vida nunca mais seria a mesma. Numa caverna solitária no deserto de Zaragoza, conheci Deus como meu Pai. Eu era novamente uma criança perdida em deslumbramento, amor e louvor. Tornar-se uma criancinha novamente (conforme Jesus ordenou que deveria acontecer) é recuperar um sentimento de surpresa, deslumbramento e vasto deleite com toda a realidade. Olhe para o rosto de uma criança na manhã de Natal quando ela entra na sala transformada pela passagem do Papai Noel à meia-noite. Ou quando ela descobre a moeda debaixo do travesseiro, vê o primeiro arco-íris ou cheira a primeira rosa. Poucos de nós prendem a respiração em momentos como esses, como um dia fizemos. A passagem pelo corredor do tempo nos fez maiores e todo o resto menor, menos impressionante. Conhecemos nossa força de vontade e nossa disposição. Adquirimos certo domínio sobre a natureza, sobre as doenças. Pelo milagre da tecnologia moderna, somos capazes de experimentar visões, sons e acontecimentos outrora disponíveis somente para Colombo, Vasco da Gama e outros aventureiros. Havia um tempo, em passado não muito distante, quando um temporal fazia homens crescidos estremecer e sentir-se pequenos. Mas Deus está sendo empurrado para fora do seu mundo pela ciência. Quanto mais o homem sabe sobre meteorologia, menos inclinado fica a orar num temporal. Aviões voam agora em cima, embaixo e ao redor de todo tipo de tempestade. Os satélites reduzem as tormentas, uma vez aterrorizantes, a eventos fotográficos. Que infâmia (se um temporal pudesse ser infamado) ser reduzido de teofania a um incômodo! Até mesmo o espaço sideral tem gradualmente deixado de nos impressionar. Falamos sobre sondas em Marte com a mesma empolgação como se estivéssemos enviando máquinas fotográficas para o East Village, em Nova York. Estamos saturados, incapazes de nos maravilhar e de sentir medo. Essa diminuição da capacidade de se impressionar pode ser um sinal de
  • 13. ~ 13 ~ maturidade, uma conseqüência necessária e saudável do progresso. Mas me sinto propenso a pensar que isso revela perda de equilíbrio. Uma pessoa verdadeiramente equilibrada mantém a capacidade de se deslumbrar e a vontade de expressar essa admiração na própria confissão de sua condição de criatura, o reconhecimento espontâneo de que ela é um ser humano, e não um deus; um ser com limitações que, longe de ter abarcado o infinito, é feliz e desesperadamente subjugado por ele. Nossa insípida reação à realidade é ainda menos entusiasmada quando nos deparamos com Jesus Cristo e analisamos o modo de vida cristão. Embora sejamos confrontados com uma moral tão sublime e exigente que parece totalmente impossível, não ficamos impressionados pelo estilo de vida que Cristo nos apresentou. Ele nos orienta que o padrão do modo de vida cristão é o ágape. "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos" (Jo 15:13). Na fala paulina, o amor de Jesus é kenosis, total auto-esvaziamento. E Cristo diz categoricamente: "Amem-se uns aos outros. Como eu os amei" (Jo 13:34). Ainda que ele proponha uma intensidade de bondade e de santidade diante da qual podemos apenas murmurar "Quem então pode ser salvo?", persiste, de nossa parte, uma impressionante ausência de assombro. Somos semelhantes ao atleta desafiado a correr cem metros em cinco segundos. Depois de várias tentativas fracassadas, ele põe a culpa nas condições da pista e se queixa do tênis apertado. O fato de que o projeto é humanamente impossível parece nunca o afetar. Precisamos de certo tempo para assimilar tudo o que é exigido de nós. Analisemos rapidamente algumas das demandas radicais registradas nos evangelhos sinóticos: Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa. [... ] Dê a quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado. Mateus 5:39-40,42 Em tais passagens, Jesus descreve a resposta que o cristão deve dar quando provocado por alguém não crente. Mas seus ensinamentos não são meramente passivos: "Amem os seus inimigos [mesmo um Saddam Hussein] e orem por aqueles que os perseguem" (Mt5:44). Jesus apresenta o divino Pai como nosso modelo. Assim como Deus derrama paz e bondade do mesmo modo sobre o justo e injusto, assim também nós devemos fazer. Qualquer um pode amar seus amigos, aqueles com quem tem afinidade e reciprocidade. A verdadeira piedade exige muito, muito mais. O Sermão do Monte continua: Se o seu olho direito o fizer pecar, arranque-o e lance-o fora. [...] Se a sua mão direita o fizer pecar, corte-a e lance-a fora. Mateus 5:29-30 Quando vier o chamado de Cristo, nossa resposta deve ser sincera: "Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai", pediu o discípulo. "Mas Jesus lhe disse: 'Siga-me, e deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos'" (Mt 8:21-22). Na renúncia — renúncia absoluta —, a família está incluída: "Se alguém vem a mim e ama o seu pai. sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo" (Lc 14:26). Jesus disse: Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a sua recompensa nos céus. Mateus 5:11-12
  • 14. ~ 14 ~ Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Mateus 10:34 Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou. João 15:18 Mais e mais, os preceitos se sucedem. Declarações extravagantes, exageradas. O Cristo de Deus não veio trazer a paz, mas a espada. Ele nos teria vestido não com túnicas, mas com a armadura de Deus. Ele contradiz nossas conclusões que afirmam que prosa é poesia, fala é canção, miopia é visão clara e as coisas tangíveis, visíveis e perecíveis podem ser a realização apropriada para um ser que inalou o impulso criativo de Deus. A única reação sadia ao padrão evangélico de santidade é o temor e a perplexidade que beiram a aflição. Deveríamos nos sentir envergonhados pela Palavra, porque ela nos diz muito do que não queremos ouvir. Mas por que a maioria de nós não fica envergonhada? Por que a Palavra não nos exalta, amedronta e choca? Não é porque a desconhecemos — nós a ouvimos semana após semana. Por que ela não nos força a reavaliar a vida? Estamos de volta às nossas ilusões. Michel Quoist diz: Estamos satisfeitos com nossa vidinha decente. Estamos contentes com nossos bons hábitos: nós os tomamos por virtudes. Estamos contentes com nossos pequenos esforços: nós os tomamos por progresso. Estamos orgulhosos de nossas atividades: elas nos fazem pensar que estamos nos doando. Estamos impressionados por nossa influência: imaginamos que ela transformará vidas. Estamos orgulhosos do que damos, entretanto ocultamos o que retemos. Podemos até mesmo estar confundindo um conjunto de egoísmos coincidentes com verdadeira amizade. Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e as boas novas são pregadas aos pobres. Lucas 7:22 Todas as estruturas da igreja devem revelar a marca do amor de Cristo dedicado aos pobres. Ao ignorar essa árdua sentença, a própria igreja se torna empobrecida, assim como bem pouco confiável e bem pouco convincente para pregar o evangelho com clareza e visão, e também infantilmente presa às quinquilharias da reputação, às conversas vazias da diplomacia, aos favores degradantes dos ricos, à idolatria das estruturas e à posição de proeminência. Uma segunda teoria afirma que Jesus propõe princípios, em vez de regras. Ele não fala sobre aplicações práticas. Ele simplesmente propõe uma meta, um quadro ideal em direção ao qual devemos nos esforçar. Isso reduz Cristo ao nível de um romântico visionário: o ensino dele é bonito na teoria, mas nada prático na realidade. Com certeza, se o evangelho de Jesus fosse vivido, não haveria mais guerras internacionais, nem distúrbios nacionais ou disputas domésticas. No entanto, Cristo foi apenas um admirável reformador com muitas idéias grandiosas. Em seguida, temos a solução da cidadania de segunda classe. Essa visão defende que a doutrina ética de Jesus foi proposta somente para uma classe particular. Há duas classes de cidadania no Reino de Deus: o perfeito e o comum. O último não é chamado para a perfeição. No entanto, o Sermão do Monte enfaticamente proclama a vocação universal de todos os cristãos à santidade. Não existe distinção entre o santo e o comum.
  • 15. ~ 15 ~ Em verdade, essas razões para rejeitar o caminho de Jesus são mais palatáveis do que aquela usada por muitos cristãos: a ética evangélica é perturbadora demais, problemática demais para sobreviver. Vamos empurrá-la para debaixo do tapete e esquecê-la. Se você falar dela como é, as pessoas se afastarão. Somos relutantes em estruturar nossa doutrina moral em torno do evangelho. Por exemplo, em três lugares diferentes, o Novo Testamento nos diz muito claramente que nossos pecados são perdoados na mesma proporção em que perdoamos aos outros. Essa verdade é descrita vividamente na parábola do servo impiedoso. Ele deve mais de 10 milhões de dólares ao seu mestre, enquanto outro servo, colega seu, deve-lhe a soma comparativamente insignificante de 25 dólares. Há uma desproporção enorme entre as dívidas. No entanto, apesar de seu mestre graciosamente perdoar-lhe a dívida, o primeiro servo não perdoa a de seu devedor. A moral é clara: se não perdoarmos nossos inimigos, nós mesmos não seremos perdoados (cf. Lc 6:37). Por muito tempo, a teologia da confissão dos pecados não foi apresentada nessa perspectiva. No entanto, temos nos preocupado com o número de vezes e os tipos precisos de pecado que têm o perdão garantido. Consideramos os limites ultrapassados e a divisão equitativa da culpa. Quando perdoamos de fato, muito freqüentemente o fazemos também com um espírito de superioridade, usando o perdão como algo a se manter suspenso sobre a cabeça daqueles a quem permitimos por condescendência sair de uma situação difícil. O Novo Testamento só é relevante se captarmos o significado fundamental das exigências radicais do evangelho, apesar de, ao mesmo tempo, compreender que nunca poderemos cumpri-las completamente. Nenhum de nós pode dizer "cumpri todos os mandamentos". Até certo ponto, nós sempre falhamos. Pense mais uma vez no perdão. Em nosso coração, nenhum de nós perdoa completamente nosso inimigo do modo que deveríamos. Após a ressurreição, no encontro entre Jesus e os apóstolos nas praias do mar de Tiberíades, quando se poderia esperar, como diz Raymond Brown, "o impacto da glória insuportável", Jesus serve peixes e pães. Não há nenhuma menção, aparentemente nem mesmo nenhuma lembrança, da traição deles. Jamais uma repreensão ou mesmo uma referência indireta à covardia dos discípulos no tempo de teste. Nenhuma saudação sarcástica como: "Bem, meus amigos dos momentos bons apenas...". Nenhuma disposição para vingança, despeito ou repreensão humilhante. Apenas palavras de calor e ternura. O mesmo aconteceu no cenáculo, onde Jesus disse: "Paz seja com vocês". Isso é mais que perdão. O silêncio de Jesus é primoroso. Para aprender o significado da amizade sincera, da delicadeza no diálogo, da sensibilidade em relação aos sentimentos dos outros e do amor que "não guarda rancor" (ICo 13:5) é preciso ouvir o perdão no coração de Jesus quando ele diz a Maria Madalena e à outra Maria na manhã da Páscoa: "Vão dizer a meus irmãos..." (Mt 28:10). As demandas do evangelho nos levam à vívida consciência de nossa fraqueza e imperfeição. Elas nos aturdem, reduzem a auto-supervalorização e nos fazem perceber quão limitados somos. Essa percepção — quando permitimos que se infiltre no coração — nos afasta da presunção, da complacência e de uma auto-suficiência que nos envenenam espiritualmente. A Palavra de Deus nos desperta para as nossas carências. Enquanto não submetermos nossa vida ao julgamento do evangelho e aos padrões de bondade e de virtude estabelecidas por Jesus, não poderá haver uma consciência profunda de que somos pecadores carentes de misericórdia. Quantos de nós de fato experimentaram a verdade de estar salvos — de que nós não nos salvamos, e na verdade somos pobres e fracos pecadores com falhas hereditárias e virtudes limitadas; não somos filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericórdia do Criador. Se as demandas radicais da vida cristã nunca forem propostas e, em vez disso, nos conformarmos com o cumprimento morno de um conjunto frouxo de preceitos, quão facilmente nos tornaremos farisaicos e hipócritas. Tentamos nos salvar por nossas obras. Nunca experimentamos o mistério da redenção ou dependência amorosa de Deus. Segundo nossos padrões invulneráveis de justiça e honra, estamos desempenhando muito bem no jogo cristão. Com que freqüência um cristão piedoso ora: "Perdoa-me, Senhor,
  • 16. ~ 16 ~ porque pequei. Faz um ano desde minha última confissão. Fui à igreja todos os domingos e não fiz nada proibido. Não posso me lembrar de nada mais"? Esse tipo de confissão é uma terrível deturpação da doutrina cristã. Se fechamos os olhos para as demandas radicais do Novo Testamento em nossa doutrina e ignoramos as implicações embaraçosas do preceito do amor universal, tornamos o cristianismo muito fácil e retiramos seu significado. Passamos a ser tão culpados quanto os fariseus, ignorando as questões importantes das difíceis leis da caridade, da misericórdia e da fé, enquanto cumprimos as leis positivas da igreja, que significam apenas os limites do compromisso cristão. As demandas radicais de Jesus nos fazem lembrar diariamente nossas faltas e perceber que a salvação é dom gracioso de Deus. Neste ponto, chegamos ao núcleo da revelação. Se o evangelho nos diz qualquer coisa, se a igreja proclama somente uma coisa ano após ano, é que a salvação é um dom gracioso de Deus. O evangelho é a alegre notícia da redenção graciosa. Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram povo, mas agora são povo de Deus; não haviam recebido misericórdia, mas agora a receberam. 1 Pedro 2:9-10 Não fomos transportados para o reino do Filho amado de Deus por nosso mérito, mas por sua misericórdia: Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé — e isto não vem de vocês, é dom de Deus — não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos. Efésios 2:8-10 O evangelho nos agradeceria de uma vez por todas se entendêssemos que o slogan do Exército da Salvação, "Jesus salva", está muito mais próximo da mente e do coração de Cristo do que da legalidade e da moralidade. A BÊNÇÃO O mesmo tema está contido na primeira bem-aventurança: "Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus" (Mt 5:3). Em seu sentido primitivo, a primeira bem- aventurança jamais pretendeu moralizar ou ameaçar ("afaste-se do dinheiro, da materialidade e de todas as necessidades pessoais ou outras"). Tampouco a primeira bem-aventurança aspirava ser uma simples promessa de compensação como qualquer pastor itinerante poderia propor ("viva como um pobre e alcançarás o céu"). Ao contrário, a bem-aventurança era uma alegre notícia, a grande boa nova de que a era messiânica se instaurara na história, a proclamação de que o dia da salvação há muito esperado finalmente chegara. A questão crucial para determinar o sentido original dessa bem-aventurança é entender quem são os pobres que Jesus declarou bem-aventurados? Devemos entender "pobres" num sentido social, como os que são literalmente destituídos, empobrecidos, indigentes? Ou Jesus usa "pobres" num sentido religioso, para se referir àqueles que dependem inteiramente de Deus para tudo o que possuem e que percebem o próprio demérito e, desse modo, aceitam a salvação como o dom de Deus em Cristo Jesus? Para compreender seu real significado, a passagem não pode ser tomada isoladamente. Antes, deve estar situado dentro do contexto de todo o evangelho, Jesus anuncia que os pobres
  • 17. ~ 17 ~ têm um lugar privilegiado no reino. Vamos comparar o pobre da primeira bem-aventurança com as duas outras classes privilegiadas no evangelho. O evangelho de Mateus nos fala que as crianças têm um direito especial no amor de Deus; Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: "Quem é o maior no Reino dos céus?" Chamando uma criança, colocou-a no meio dele, disse: "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus. Mateus 18:1-4 Não há dúvida de que é necessário aprender a ser como uma criança para entrar no reino. Mas para se captar todo o vigor da expressão "como crianças", nós precisamos perceber que a atitude judaica para com as crianças no tempo de Cristo era drasticamente diferente daquela que existe hoje. Temos a tendência a idealizar a infância, vê-la como a idade feliz da inocência, despreocupação e fé simples. Na comunidade judaica dos tempos do Novo Testamento, a criança era considerada sem nenhuma importância, não merecendo nenhuma atenção ou favor A criança era considerada com desprezo. Para o discípulo de Jesus, ser como uma criança significa aceitar a si mesmo como pouco apreciado, sem importância. Esta compreensão de nós mesmos muda não somente o modo como vemos nosso valor, mas também o modo como vemos a graça salvadora de Deus. Se a criança judia recebesse dez centavos de mesada do pai no fim da semana, ela não os consideraria pagamento por varrer a casa, lavar a louça e assar o pão. Era um presente completamente imerecido, um gesto de absoluta generosidade de seu pai. Jesus deu a esses pequenos desprezados o privilégio de seu reino e os apresentou como modelos para os discípulos. Eles deviam aceitar o dom do reino da mesma maneira que uma criança aceita a mesada. Se as crianças eram privilegiadas, não era porque tinham merecido tal privilégio, mas simplesmente porque Deus se agradava delas. A misericórdia do Senhor fluiu para elas total e completamente em razão da graça imerecida e da preferência divina. Outro texto importante destaca o privilégio das crianças. O hino de louvor diz: "Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado" (Lc 10:21). A bênção de Deus recai sobre as crianças porque são criaturas desprezadas, não por causa de suas boas qualidades. Elas podem estar cientes de sua pouca importância, mas este não é o motivo pelo qual as revelações lhes são dadas. Jesus expressamente atribui a bênção que elas recebem à boa vontade do Pai, à eudokia divina. Os dons não são dados pela mais leve qualidade ou virtude pessoal. Eles são pura generosidade. A bem-aventurança dos pequeninos, portanto, oferece uma clara compreensão do significado da bem-aventurança dos pobres. Na mentalidade da época do Novo Testamento, pobreza e infância eram consideradas com igual desprezo. No entanto, Jesus diz que Deus prefere os desfavorecidos- Deus se agrada em dar um lugar privilegiado no reino àqueles que o mundo considera os mais desgraçados. Uma luz adicional é lançada sobre a primeira bem-aventurança, de modo surpreendente, pelo privilégio dos pecadores. Jesus está sentado à mesa na casa de Levi. Os escribas e fariseus interrogam porque Jesus come com os cobradores de impostos e pecadores. "Jesus lhes disse: 'Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim para chamar justos, mas pecadores'" (Mc 2:17). Os pecadores a quem Jesus dirigia a sua missão messiânica eram verdadeiros pecadores. Eles não tinham feito coisa alguma para merecer a salvação. Ainda assim, eles se abriram para o dom que lhes foi oferecido. Os presunçosos, em contrapartida, depositam sua confiança naquilo que fazem por merecer a partir dos próprios esforços, fechando o coração para a mensagem de salvação.
  • 18. ~ 18 ~ Mas a salvação que Jesus prometeu não pode ser conquistada. Não pode haver barganha com Deus, como numa atmosfera trivial de mesa de pôquer: "Eu fiz isto, então você me deve aquilo". Jesus destrói totalmente a noção jurídica de que nossas obras exigem um pagamento em troca. Esse ensinamento está claramente estabelecido na parábola dos trabalhadores na vinha. Quando eles ficam sabendo que os homens que trabalharam apenas uma hora receberão o mesmo salário daqueles que labutaram o dia todo, os trabalhadores reclamam ao proprietário: "Estes homens contratados por último trabalharam apenas uma hora, e o senhor os igualou a nós, que suportamos o peso do trabalho e o calor do dia". Mas ele respondeu a um deles: "Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar ao que foi contratado por último o mesmo que lhe dei. Não tenho o direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou generoso?". Mateus 20:12-15 Nossas obras insignificantes não nos dão o direito de negociar com Deus. Tudo depende da boa vontade do Senhor. A salvação oferecida por Jesus é puramente gratuita, dirigida especialmente para os que não têm nenhum direito a ela, aqueles que são tão conscientes de seu demérito que devem confiar na misericórdia de Deus. Os presunçosos acreditam que conquistam a salvação pelo cumprimento da lei. Recusando-se a deixar tal loucura, eles rejeitam o amor misericordioso do Deus redentor. E na miséria do pecador que Jesus vê a possibilidade de salvação. "Deles é o reino de Deus". Se na Rússia antiga o pecador era enviado para a Sibéria, na igreja ele é chamado para o reino. É um puro dom para quem não têm direito a ele. Esse é o próprio coração do evangelho e tema fundamental das bem-aventuranças: a falta de valor dos beneficiários do reino. Dizer que somos cifras não significa rebaixar nossa dignidade, mas destacar a gratuidade absoluta da promessa de Deus. Desse modo, a condição privilegiada das crianças e dos pecadores derrama considerável luz sobre o significado primitivo da primeira bem-aventurança. Abençoados são os pobres. Abençoados são vocês, conscientes de sua falta de mérito e prontamente abertos à misericórdia divina. A primeira bem-aventurança, portanto, não é uma promessa ou uma ameaça. Jesus alegremente proclama o amanhecer de uma nova era, a era messiânica que veio afinal. "Vocês, pobres; vocês, nadas; vocês, de pouca importância pelos padrões do mundo — vocês são abençoados. E a boa vontade de meu Pai de lhes conceder um lugar privilegiado no reino, não porque trabalharam tão arduamente, ou porque dizem, fazem ou tornam todas as coisas certas, mas porque meu Pai quer vocês". A pobreza de espírito nos é apresentada como a predisposição indispensável para o discípulo de Jesus. No momento em que ficamos diante de Deus, gaguejando como o profeta Jeremias, com os pés no chão, conscientes de nossa pequenez e fraqueza, reconhecendo que Jesus salva, então a alta santidade recomendada por Jesus — "Sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês" (Mt 5:48) — começa a florescer dentro de nós. A principal postura do cristão é uma disposição infantil para com Deus, e nossa principal atitude, a de ação de graças. Esse tipo de posição contrasta de forma nítida com o pensamento de muitos cristãos que desenvolveram um falso sentimento de segurança por cumprirem as leis da igreja. Conforme afirmou John McKenzie: A moralidade destrói a religião deles. Eles sofrem de um problema legalista. Acreditam que o cumprimento das prescrições externas da lei garante automaticamente o cumprimento do propósito da lei. Mas, caso a minha adesão às leis (da qual posso verdadeiramente precisar) não me ajudar a atingir o
  • 19. ~ 19 ~ objetivo final de minha vida, que é conhecer Cristo Jesus e viver o evangelho, então uma mera conformidade externa faz muito pouco, se é que faz alguma coisa. Minha experiência do Pai, durante meu tempo com os Irmãozinhos de Jesus, não resultou em nenhum progresso súbito ou dramático em termos de virtude ou perfeição moral em minha vida. Após aquela experiência, posso não ter ficado nem um pouco melhor do que antes, mas, de algum modo, a vida tinha mudado. Tudo simplesmente foi transformado porque aceitei o fato de que sou aceito. Paul Tillich chama a isso graça. Que diferença significativa quando trazemos essa compreensão à adoração! Somos os adoradores do amor redentor e da misericórdia do Deus que nos aceita. Somos imersos em gratidão e dependência. Nosso próprio ser é uma celebração, uma ação de graças permanente e perpétua a Deus. Os salmos nos lembram que, toda vez que o povo de Deus se reunir, uma atitude de alegre ação de graças deve ser a oferta de gratidão da assembléia (Sl 95:2; 100:4; 147:7). Se a comunhão significa ação de graças, o cristianismo significa pessoas alegremente agradecidas. O cristão jubiloso é aquele que mantém um sentimento de temor e deslumbramento diante de Deus, que experimentou o sentimento de pertencer a uma comunidade redimida. Ele tem uma vívida gratidão de fé nesse grande dom. Esse crente se abriu para a verdade de que tudo o que possui vem de Deus, de que é completamente dependente de Cristo, de que "Jesus salva". Naturalmente, em um certo dia, pode acontecer de ele adorar mais com desânimo do que com qualquer outra coisa. Neste vale de lágrimas, nenhuma vida cristã é uma espiral contínua e ascendente rumo ao topo da montanha. Porém, a orientação básica do cristão é a da alegria e da gratidão. Esse é o legado do mistério pascal, da morte e ressurreição de Jesus. Não somos os filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericórdia de Deus. Essa é a marca que colocamos em cada celebração de adoração. Quando o dom da redenção graciosa se mostra sob o véu do símbolo, o clamor paulino emerge espontaneamente do coração: "Como Deus é rico em misericórdia! Com que excesso de amor ele nos amou" (cf. Ef 2:4). Quando a luz dessa verdade impressionante se acende em nossa consciência, muitos de nós ficam profundamente comovidos durante alguns momentos ou horas; no entanto, retomam às ocupações normais de sua existência corriqueira sem atingir o esclarecimento. Não é o caso de Charles de Foucauld, o padre cuja vida e ministério inspiraram a formação dos Irmãozinhos de Jesus. A experiência abriu sua mente. E sinalizou o amanhecer de uma vida nova. Uma imensa alegria encheu seu coração, maior do que qualquer felicidade que ele alguma vez conhecera. O que torna sua vida diferente da nossa é que seu sentimento de deslumbramento nunca desapareceu: "Tão logo acreditei que havia um Deus, compreendi que nada mais poderia fazer, a não ser viver exclusivamente para ele: minha vocação religiosa data do mesmo momento de minha fé". CAPÍTULO DOIS T R A N S P A R Ê N C I A Compreender a verdade do evangelho é lançar sobre nossa face tanto a tristeza quanto a gratidão. Viver como Jesus viveu é partir do chão em direção ao mundo. "A imitação de Jesus
  • 20. ~ 20 ~ Cristo", escreve George Montague, "exige a verdadeira assimilação de suas atitudes interiores e seu modo de pensar". Romano Guardini declarou certa vez que Francisco de Assis "permitiu que, na sua personalidade, Jesus Cristo se tornasse transparente". Se for esse o significado de viver como cristão, por que as personalidades de tantos cristãos piedosos, decentes e corretos são tão opacas? Por que a paz de Cristo Jesus não reina em nosso coração, uma vez que fomos "chamados para viver em paz, como membros de um só corpo" (Cl 3:15)? Por que a bondade, a compaixão e a confiança que Grande-Medrosa viu brilhando nos olhos do Pastor3 não brilham em nossos olhos? Por que nossa alegria, entusiasmo e gratidão contagiantes não afetam os outros com o amor por Cristo Jesus? Por que o encanto esplendoroso do Senhor não flui de nossa personalidade? Por que não somos janelas para a obra de Deus? Por que não somos transparentes? Ter a mente de Cristo Jesus, pensar seus pensamentos, compartilhar seus ideais, sonhar seus sonhos, pulsar com seus desejos, substituir nossas reações naturais em relação às outras pessoas e situações pelo interesse de Jesus; e, ainda, assumir o sistema mental de Cristo tão completamente que "A vida que agora [Filho] vivo no corpo, vivo-a pela fé no [Filho] de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2:20). Tudo isso não é o segredo ou o caminho para a transparência. E a própria transparência. Muitas vezes nossa preocupação com os três desejos humanos mais básicos — segurança, prazer e poder — é o manto que encobre a transparência. A infinita luta para ter dinheiro suficiente, bons sentimentos e prestígio rende uma colheita rica de aflição, frustração, desconfiança, raiva, ciúme, ansiedade, medo e ressentimento. Esses poderosos desejos amparados pela emoção causam 99% do sofrimento auto-infligido e desnecessário em nossa vida. Eles focalizam continuamente nossa atenção no "eu" e nos impedem de ser transparentes, ofuscando a luz e obscurecendo "a glória de Deus na face de Cristo" (2Co 4:6). João, o evangelista, fala do pecador como alguém em estado de trevas. "[Ele] anda nas trevas; não sabe para onde vai, porque as trevas o cegaram" (lJo 2:11). E o "eu" autogovernado que nos mantém presos numa série de movimentos e contramovimentos competitivos que nos induzem a manipular as pessoas e controlar as situações, o que, para a maioria de nós, destrói a paz e a serenidade interna de nossa vida. Preso na busca por segurança, prazer e poder, nosso pensamento a cada momento está concentrado na sombria perseguição a uma felicidade ilusória, e ficamos, assim, desatentos ao Senhor da Luz. Nossos olhos não estão fixos em Cristo Jesus, mas em nosso "eu". Nós nos conformamos com um passeio de montanha-russa, com divertidos picos e vales vertiginosos, entremeados com longos períodos de quedas, empurrões e sofrimentos de diferentes graus. Desde o início de seu ministério público, Jesus elevou a mente de seus ouvintes para além do nível do desejo básico e os advertiu para não se distraírem pelo excessivo interesse das coisas materiais: Portanto, não se preocupem, dizendo: "Que vamos comer?" ou "Que vamos beber?" ou "Que vamos vestir?" Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas. Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal. Mateus 6:31-34 No simbolismo bíblico, o coração é o olho do corpo. Os olhos ansiosos, agitados, embaçados de muitos cristãos representam as manifestações de um coração anuviado pelas 3 Grande-Medrosa (Much Afraid) e Pastor (Shepherd) são personagens do romanee Hinds'Feet on High Places (traduzido em português como Pés como os da corça nos lugares altos [São Paulo: Vida, 1989]), de Hannah Hurnard, uma alegoria sobre o esforço de elevação dos cristãos. (N. da T.)
  • 21. ~ 21 ~ preocupações deste mundo. Os olhos límpidos de outros irradiam a simplicidade e a alegria de um coração fixo em Jesus Cristo, a Luz do mundo. Quando o autor de Hebreus ordena ao leitor "[Tenhamos] os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa fé" (Hb 12:2), ele não somente dá uma prescrição simples para a transparência cristã, mas insiste numa reavaliação de todo o sistema de valores da pessoa, compreendendo que "onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração" (Lc 12:34). O apóstolo Paulo teve a audácia de se vangloriar: "Nós, porém, temos a mente de Cristo" (ICo 2:16). A sua vanglória era validada por sua vida. A partir da conversão de Paulo, Jesus Cristo ocupou sua mente e seu coração. Cristo era a força cuja influência estava incessantemente em ação perante os olhos de Paulo (Fp 3:21). Ele era uma pessoa cuja voz Paulo podia reconhecer (2Co 13:3), que o fortalecia nos momentos de fraqueza (2Co 12:9), o iluminava, mostrava o significado das coisas e o consolava (ICo 1:4-5). Levado ao desespero pelos ataques difamadores dos falsos apóstolos, Paulo aceitava as visões e revelações do Senhor Jesus (2Co 12:1). Para Paulo, a pessoa de Jesus desvendava os mistérios da vida e da morte (Cl 3:3). No romance de Harper Lee, To Kill a Mockingbird,4 Atticus Finch diz: "Você nunca entenderá um homem até que esteja no seu lugar e olhe o mundo pelos olhos dele". Paulo olhou pelos olhos de Jesus Cristo com tal sensibilidade que Cristo se tornou o "eu" do apóstolo (Gl 2:20). Por que não poderia ser assim com todo cristão que anda no Espírito? Paulo insiste em que essa é a operação normal do Espírito em nossa vida. A transparência é a epifania de Cristo Jesus em nossa vida: eis o sentido da bela imagem registrada em 2Coríntios. Amédée Brunot escreve em Saint Paul and His Message:5 Em uma das passagens mais bem acabadas de sua correspondência, cujas leveza e lucidez sugerem o cálido raio de sol da Grécia sobre os mármores do Partenon, Paulo compara a mediação de Cristo a uma luz cujos raios brilham através de seus servos humanos e os transfigura (2Co 3:4ss.). O resplendor de Moisés quando ele desceu do Sinai não é nada comparado à transfiguração do cristão. Essa transfiguração torna-se uma transparência na qual as faces se misturam e os afetos se fundem. Trata-se de um abraço apaixonado (Fp 3:12-13). De agora em diante, o coração do cristão bate afinado com o coração de Cristo. Paulo foi um testemunho vivo de um fenômeno não extraordinário na existência humana: nós nos tornamos semelhantes àqueles a quem amamos. A VIDA DE CRISTO "No último e mais importante dia da festa, Jesus levantou-se e disse em alta voz: 'Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva'" (Jo 7:37-38). Uma vez que Jesus ainda estava preso pelas limitações humanas da carne mortal, ele não pôde se tornar, nas corajosas palavras de Paulo, "o Filho de Deus com poder" (Rm 1:4). Ele não pôde ser glorificado até que fosse crucificado. Todo o propósito de seu sofrimento, de sua morte e ressurreição redentoras era o de compartilhar conosco os frutos de seu triunfo pascal. Na glorificação de Jesus há o que Edward Schillebeeckx chamou de "transferência de poder": o Pai concede seu poder real a Cristo, a quem torna o Kyrios. O Senhor Jesus, então, derrama o Espírito Santo para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de profetas e amantes que se renderá ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro, que viverá em fidelidade cada vez maior à Palavra irresistível, onipresente. Um povo que entrará no centro de 4 Traduzido em português como O sol é para todos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. (N. da T.) 5 Traduzido em português como São Paulo e sua mensagem. São Paulo: Flamboyant. (N. da T)
  • 22. ~ 22 ~ tudo aquilo que é, no próprio coração e mistério de Deus, no centro daquela chama que consome e purifica e deixa tudo incandescente com paz, alegria, coragem e amor excessivo. "Não apaguem o Espírito", exorta Paulo (lTs 5:19). Resistir ao Espírito Santo é anular o poder do mistério pascal e zombar do maior ato de amor que o mundo já conheceu. No evangelho de João, o único pecado mencionado é blasfêmia — a rejeição consciente, deliberada, do Espírito de Deus. Ainda conforme o franciscano Robert Powell e outros observaram, a igreja vem sendo atualizada, mas não renovada. A igreja, como um todo, ainda vasculha o horizonte esperando o brilho ígneo do novo Pentecostes. O comunista que aceita Karl Marx, mas não sua doutrina, pouco difere do cristão que aceita Jesus Cristo, mas se recusa a moldar sua vida de acordo com o ensinamento de Cristo. Paulo escreveu aos filipenses: "Pois, como já lhes disse repetidas vezes, e agora repito com lágrimas, há muitos que vivem como inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a perdição, o seu deus é o estômago e eles têm orgulho do que é vergonhoso; só pensam nas coisas terrenas" (Fp 3:18-19). Paulo ainda chora por causa da debilidade, da extrema falta de sinceridade, do adultério espiritual, da indiferença à oração, da ignorância sobre a Palavra de Deus, da religiosidade acomodada e da indolência apostólica que mancham a vida cristã no mundo de hoje. Quando Jesus Cristo se revela através do evangelho, o qual é ativo e fecundo, ele pede uma resposta espontânea. Sua mensagem não é uma renovação de garantia para continuarmos fazendo exatamente o que temos feito, mas, escreve Edward O'Connor, "uma convocação para o trabalho de eliminar de nossa vida, com fidelidade e perseverança, tudo em nós que é contrário à obra e vontade do seu Espírito Santo para nós". Fé significa que estamos prontos para agir na Palavra. Jesus é cristalino: Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: "Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?" Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal! Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordáramos rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua queda. Mateus 7:21-27 A fé autêntica, evangélica, não pode ser separada de uma disposição de agir na Palavra de Deus conforme as oportunidades se apresentarem. Sempre que a fé é aceita apenas como um sistema fechado de doutrinas bem definidas, nós perdemos contato com o Deus vivo. A fé que salva é uma rendição a Deus. "Dizer 'sim' na fé implica um constante pôr-se a caminho", escreve Bernard Haring, "uma disposição sempre renovada para receber a Palavra de Jesus e agir nela". S0ren Kierkegaard, o pai do existencialismo cristão, descreve dois tipos de cristãos: os que imitam Jesus Cristo e um segundo tipo de pouco valor, aquele que fica contente em admirar o primeiro. A distinção de Raymond Nogar entre as "pessoas de pinturas" e as "pessoas de dramas" coincide com Kierkegaard. As pessoas de pinturas vêem o evangelho em segurança, a uma certa distância, como alguém aprecia a Ultima ceia de Salvador Dali na Galeria Nacional de Arte, em Washington. As pessoas de dramas não são meras espectadoras, mas, como o público atento que
  • 23. ~ 23 ~ assiste à tragédia grega Antígona, elas são atingidas pessoalmente no drama da morte e ressurreição de Jesus. Muitas vezes, a retórica que usamos para descrever nossa vida em Cristo exibe apenas uma leve semelhança com o que realmente somos. Orgulhamo-nos do que estamos oferecendo, pois isso esconde o que estamos sonegando. Permitimo-nos acreditar que, só porque somos capazes de um sentimento piedoso, somos capazes de amar. Thomas Merton escreve: Uma dimensão dessa conveniente espiritualidade é nossa total insistência em ideais e intenções, em completo divórcio com a realidade, com as ações e o compromisso social. Tudo o que interiormente desejamos, tudo com o que sonhamos, tudo o que imaginamos: isso é o belo, o divino e o verdadeiro. Pensamentos bonitos são suficientes. Eles substituem tudo o mais, incluindo a caridade, até mesmo a vida em si. O que assistimos é a avareza, a ganância desmedida e a exploração do pobre no seio da comunidade. Freqüentemente, nossa reação é denunciar os outros e nos afastar deles; no entanto, todos estamos envolvidos. O evangelho exige de nós honestidade dolorosa. Nada mais do que isto: devemos ser sinceros. Vá à luta pelo dinheiro e torne-se um hedonista ("Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos") ou arrependa-se e retorne ao espírito do evangelho. Somos chamados para viver como profetas e amantes no Espírito de Jesus Cristo. Não podemos viver uma mentira, pois estaremos enganando a igreja universal e a congregação local sobre aquilo que esperam de nós. Thomas Merton observa: O que o evangelho de Jesus Cristo nos oferece não é uma falsa paz que nos permita evitar a luz implacável do julgamento, mas a graça para corajosamente aceitar a verdade amarga que nos é revelada. Abandonar nossa inércia, nosso egoísmo e submeter-nos completamente às demandas do Espírito, rogando sinceramente por ajuda e dedicando-nos generosamente a cada esforço que Deus exigir de nós. Paulo escreve aos tessalonicenses: "Como homens aprovados por Deus para nos confiar o evangelho, não falamos para agradar pessoas, mas a Deus, que prova o nosso coração" (ITs 2:4). Eis a essência da perfeita sinceridade: não se preocupar com nada, exceto com o julgamento de Deus sobre nossas ações; não mudar nossa atitude para satisfazer a pessoa que está conosco; não defender uma opinião quando se está só e adotar outra em público, mas falar e agir como na presença de Deus, que pode provar nosso coração. Sinceridade significa procurar tornar o homem externo cada vez mais de acordo com o homem interno; ser simplesmente verdadeiro consigo mesmo, de forma que nenhum aspecto humano possa nos tornar falsos. No início da história cristã, Agostinho acusou: "Muitos que chegam perto do caminho da fé afastam-se amedrontados pela vida perversa dos maus e falsos cristãos. Quantos, meus irmãos, vocês acham que são os que querem se tornar cristãos, mas são repelidos pelos maus modos dos cristãos?". Se aquele que está atrás da verdade descobre que os cristãos estão do mesmo modo ensimesmados, repletos de culpa, desesperados, inseguros de seus fundamentos e assombrados pelos mesmos medos — semelhantes a muitos que, no mar, se sentem num ambiente hostil e, assim, vêem-se desorientados —, não é de admirar que tal indivíduo não sinta atração pela igreja. Uma mulher de 23 anos, fazendo um trabalho acadêmico na Universidade de Paris, escreveu o seguinte: Para mim, um cristão é ou um homem que vive em Cristo ou um impostor. Vocês, cristãos, não percebem que é com relação a isto — ao testemunho quase
  • 24. ~ 24 ~ superficial que vocês dão de Deus — que nós os julgamos. Vocês deveriam irradiar Cristo. Sua fé deveria fluir para nós como um rio de vida. Deveriam nos contaminar com seu amor por ele. E assim, então, que Deus, que era impossível, se tornaria possível para o ateu e para aqueles de nós cuja fé oscila. Não podemos evitar o choque, o transtorno e a confusão que sentimos ao ver um cristão que seja, de fato, como Cristo. E não o perdoamos quando ele não o é. A mulher, sem o saber, reiterou o que o cardeal Emmanuel Suhard escreveu numa pastoral em 1947: "A grande marca de um cristão é aquela que nenhuma outra característica pode substituir, isto é, o exemplo de uma vida que só pode ser explicada em termos divinos". É sintomático que, apesar de a igreja existir há 2 mil anos, a maioria das pessoas ainda ignore o cristianismo. Por quê? Porque a presença visível de Jesus Cristo raramente está presente nos cristãos como um todo. Nunca iremos levar as pessoas para Jesus Cristo e para o evangelho simplesmente fazendo discursos sobre ambos. Edward Schillebeeckx é categórico: "... as pessoas, falando sem rodeios, estão fartas de nossa pregação. Elas querem uma fonte de força para sua vida. Somente poderemos oferecer essa força tornando-a ativamente presente em nossa própria vida". O contato com os cristãos deve ser uma experiência capaz de provar às pessoas que o evangelho é um poder que transforma toda a vida. Em vez disso, nossa presença no mundo é freqüentemente marcada por total falta de sinceridade, diluição da graça e fracasso para agir na Palavra. A Palavra de Deus não faz rodeios: "Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o seu primeiro amor. Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio" (Ap 2:4-5). Paulo expressa desgosto e apreensão semelhantes sobre a fé dos coríntios: "O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo" (2Co 11:3). Aqui se vê um homem que verdadeiramente agia na Palavra de Deus. Paulo se importava apenas com o julgamento de Jesus Cristo e não com o julgamento dos homens. E preocupava-se mais com a satisfação ou insatisfação do Deus vivo do que com a aprovação de seus semelhantes. Paulo é testemunha corajosa da realidade do Deus invisível e poderoso exemplo para muitos de nós que se influenciam demais pela opinião dos outros e se preocupam tanto em manter certa imagem aos olhos da comunidade, desejosos apenas de ser apreciados e aceitos por qualquer grupo ao qual se associem, e não especialmente preocupados sobre sua imagem aos olhos de Deus. De outro modo, não negligenciaríamos com tanta freqüência as coisas que somente Deus vê, como a oração privada e atos reservados de bondade. Merton escreve: A falta de uma intenção pura sutilmente deteriora tudo o que fazemos, de forma que metade da nossa vida se torna uma mentira. Nunca podemos ficar à vontade. Mas fazer coisas que ninguém jamais tomará conhecimento com sinceridade absoluta, da mesma forma como fazemos as que as pessoas podem ver, indica alto grau de santidade. As Escrituras não existem para transmitir idéias inertes. É um chamado para amar, e o amor que não leva à ação não é amor. Todos os dias de nossa vida, a Palavra deve ser um imperativo para redescobrir a verdade que, nas palavras de Hans Küng, "todo o segredo e o centro da existência humana encontram-se na pessoa de Jesus Cristo". Na minha opinião, a maior necessidade da igreja hoje é conhecer Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Esse é o tema central de toda a doutrina do evangelho de João: "Para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome" (Jo 20:31).
  • 25. ~ 25 ~ Mas tal conhecimento é mais do que um reconhecimento casual de que Jesus viveu e morreu e ressuscitou. É o tipo de conhecimento que nos permite mudar. É um encontro com alguém que altera o próprio curso de nossa vida. Conforme observa Ralph Martin: ... não é incomum a muitos cristãos ter uma idéia bastante incompleta do que a Escritura diz sobre Jesus Cristo. Muitos têm uma vaga idéia de Jesus como "um sujeito bom" que ajudou os pobres e disse para as pessoas se amarem umas às outras. Eles operam com uma noção indistinta, quase simbólica, de Jesus como o símbolo de uma idéia de bondade de um liberal. Aqueles que dizem: "Jesus nunca feriria outra pessoa" muitas vezes pretendem, com isso, descartar a possibilidade de que o Mestre também pediria a qualquer um para que se arrependesse ou passasse pela dor de se reconhecer carente. Crer que tudo o que Jesus nos pediu é que sejamos gentis uns com os outros é substituir o Cristo de Paulo pelo Cristo do humanismo cristão. Em Hebreus, lemos: "Livremo-nos de tudo o que nos atrapalha e do pecado que nos envolve, e corramos com perseverança a corrida que nos é proposta" (Hb 12:1). Na mesma carta se diz: "Adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso 'Deus é fogo consumidor!'" (Hb 12:28-29). Esse Deus não é Cristo, o humanitário, Cristo, o mestre das relações interpessoais, ou Cristo, o camarada. E o Cristo, Senhor e Salvador, que nos chama ao arrependimento, muda nossa vida e nos coloca em uma nova direção. F. X. Durrwell escreve: "O conhecimento de Jesus Cristo como Senhor redentor é o único que tem algum valor para nós". CONVERSÃO CONTÍNUA A causa da maioria dos fracassos em agir na Palavra pode ser creditada à ignorância, à desatenção ou à insuficiente estima pela pessoa de Cristo. Um pouco de boa vontade para com o mundo substitui tanto a conversão radical quanto a expressa morte do "eu" que o evangelho exige. Não queremos um Deus que nos mude ou nos desafie. O cristianismo autêntico ecoa na primeira carta aos coríntios: Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. ICoríntios 1:22-24 Se o povo de Deus não está ouvindo o chamado ao arrependimento ou suplicando seu poder para cumpri-lo, será que é porque os ministros da Palavra estão pregando outro Jesus Cristo do púlpito? Não há ninguém na comunidade cristã que não seja chamado para a conversão contínua. Não há ninguém que ainda não tenha se deparado com o trabalho de construir a imagem de Jesus Cristo em sua vida pela prática regular, diária, das virtudes cristãs. E conforme observa Edward O'Connor, "você não pode se esquivar desse assunto". Paulo escreve: "Mas esmurro o meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado" (ICo 9:27). "Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá" (Gl 6:7). O tom do Cristo de Deus nem sempre é doce e consolador. O evangelho proclama as boas-novas da salvação graciosa, mas não promete um piquenique num gramado verde. No homem Jesus, nas suas palavras, o Deus invisível torna-se audível. E Deus convulsionou todo o ser de Jesus no clamor: "O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas [boas- novas]!" (Mc 1:15).
  • 26. ~ 26 ~ O cristianismo, portanto, envolve bem mais do que o engajamento em lutas pelos direitos humanos, causas ambientais ou programas de paz. A plenitude da vida no Espírito é mais do que encontrar Cristo nos outros e servi-lo ali. E uma convocação à santidade pessoal, à conversão contínua e à nova criação pela união com Cristo Jesus. "Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!" (2Co5:17). Por essa razão, o evangelho de João é especialmente importante para os cristãos contemporâneos. Por quê? Porque, em contraste com os sinóticos e conforme argumenta John McKenzie, "o evangelho de João não é o evangelho do Reino, mas o evangelho do próprio Jesus". E impossível exagerar a centralidade de Jesus no quarto evangelho — central não somente porque ele é o protagonista e mestre, mas porque ilumina cada página do livro. Na provocativa obra The Art and Thought of John [A arte e o pensamento de João), Edgar Bruns escreve: "O leitor é [...] cegado pelo brilho da sua imagem, passando a ser como um homem que olha muito tempo para o sol: incapaz de ver qualquer outra coisa a não ser a luz do astro". O único pecado para João é resistir ao Espírito Santo, rejeitar Jesus e não agir conforme sua Palavra. O tema dominante da segunda parte do evangelho de João é a união com o Senhor. Por meio da bela imagem da videira e seus ramos, Jesus chama todas as pessoas para si. "Permaneçam em mim, habitem em mim, recorram a mim, venham a mim", ele chama (cf. Jo 15:4ss.). De modo significativo, Jesus não diz: "Venham para um dia de renovação, um retiro, um grupo de oração, uma liturgia", mas "venham a mim". Seria essa a superioridade presunçosa de um religioso fanático? Sim, não fosse ele o Salvador do mundo. Trata-se de um egoísta ou o Senhor Ressuscitado que deve ser proclamado como a única esperança do mundo. Ninguém mais ousaria dizer: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. João 14:6 Eu sou a luz do mundo. João 8:12 Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. João 6:51 Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida. João 3:36 Na prisão, Paulo não conseguiu pensar em nada maior do que desejar aos efésios que: ... com as suas gloriosas riquezas, ele [Deus] os fortaleça no íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito, para que Cristo habite no coração de vocês mediante a fé; e oro para que, estando arraigados e alicerçados em amor, vocês possam, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento — para que vocês sejam cheios de toda a plenitude de Deus. Efésios 3:16-19 Paulo percebeu que, no Dia do Julgamento, nossa vida será avaliada e estimada em termos de nossa relação pessoal com o Jesus de Nazaré exaltado. Por isso, pôde escrever
  • 27. ~ 27 ~ realisticamente aos filipenses: "Considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar Cristo" (Fp 3:8). O apóstolo era como um homem obcecado: a mente estava inflamada com um só pensamento e o coração queimava em um só desejo: conhecer Cristo Jesus, o Senhor redentor. (Não é de admirar que, para o exegeta François Amity, o conceito fundamental de Paulo é a salvação.) Depois de refletir, Paulo virou-se e disse aos colossenses para esperarem um pouco: Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus. Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a sua vida, for manifestado, então vocês também serão manifestados com ele em glória. Colossenses 3:1-4 O Cristo de Paulo era não somente um grande mestre, exemplo de um grande homem ou um símbolo das aspirações humanas mais nobres: ele era Senhor e Salvador. Reinterpretar Jesus de qualquer outro modo é esvaziar o cristianismo de sua essência. CAPÍTULO TRÊS D I S T R A Ç Õ E S Há certas questões urgentes que todo cristão deve responder com total sinceridade. Você tem fome de Jesus Cristo? Você anseia passar um tempo sozinho com ele em oração? Ele é a pessoa mais importante em sua vida? Ele preenche sua alma como uma canção alegre? Ele está em seus lábios como um grito de louvor? Ou ele está sufocado por distrações, anulado pelo orgulho? Você consulta com ansiedade suas memórias, seu Testamento, para aprender mais sobre ele? Você tem sede da água viva do seu Espírito Santo? Você está se esforçando para morrer diariamente para qualquer coisa que iniba, diminua ou ameace sua amizade com ele? Para verificar onde você realmente está com o Senhor, recorde o que o entristeceu no último mês. Foi a consciência de que você não ama Jesus o suficiente? De que você não buscou a sua face em oração com a freqüência necessária? De que você não se importou com sua pessoa o bastante? Ou você ficou abatido por causa de uma falta de respeito, de uma crítica de uma figura de autoridade ou em razão de suas finanças, da falta de amigos, de medos sobre o futuro ou pelo aumento de peso? De modo inverso, o que o alegrou no último mês? Uma reflexão sobre a sua eleição para a comunidade cristã? A alegria de dizer suavemente: "Aba, Pai"? A tarde em que você se retirou durante duas horas, levando só o evangelho como seu companheiro? Uma pequena vitória sobre o egoísmo? Ou as fontes de sua alegria foram um carro novo, uma roupa de grife, um grande evento, o sexo, um aumento salarial ou a perda de meio quilo em seu peso.7 Quando todos os cristãos se rendem ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro; quando nos submetemos à verdade salvadora de que alcançamos a vida somente através da morte, assim como nos voltamos para a luz somente através das trevas; quando reconhecemos que o grão de trigo deve se enterrar no chão e morrer, assim como Jonas deve ser sepultado na barriga da baleia e o jarro de alabastro do "eu" deve ser quebrado para que os outros percebam a doce fragrância de Cristo; quando respondemos ao chamado de Jesus "venha
  • 28. ~ 28 ~ a mim", então o poder ilimitado do Espírito Santo será liberado com surpreendente força na igreja e no mundo. Mas isso só acontecerá se nos apartarmos da vida que estamos acostumados a viver, uma vida regida por nossos desejos de segurança, prazer e poder. São esses desejos que nos impedem de reconhecer a verdade de nossa necessidade da misericórdia de Deus. São esses desejos que nos impedem de tirar os resíduos embaçadores de nossa vida sem Deus e nos obstruem a transparência. Segurança Em um sentido muito óbvio, o culto à segurança inclui os crentes que com freqüência adoram mais no altar do sucesso do que no altar do Deus vivo, que se curvam mais regularmente às vacas sagradas da segurança e do conforto do que ao domínio soberano de Jesus Cristo. A síndrome da segurança é facilmente reconhecível quando o assunto é dinheiro. Uma pessoa pode se sentir segura com apenas dez dólares aqui e agora. Outra pessoa pode se sentir insegura com 100 mil dólares no banco. A quantia não importa. O tipo de segurança que buscamos (financeira, de relacionamento, profissional) não tem importância. O que importa é a quantidade de tempo, energia, pensamento e atenção que investimos na desgastante luta para alcançar as condições que acreditamos ser indispensáveis para nos sentirmos seguros. Os detalhes de nossas listas de compra são bastante arbitrários, mas o desejo de segurança é muito exigente e afasta nossa mente do chamado superior para que nossos pensamentos e nosso coração sejam habitados por Cristo Jesus. Num sentido menos óbvio, o desejo de segurança é, na maioria das vezes, uma questão da nossa programação emocional. Meus sentimentos de insegurança não são uma conseqüência inevitável de circunstâncias externas (como, por exemplo, a falência nos negócios) ou de ações de outras pessoas. A vontade de alcançar tranqüilidade e estabilidade aloja-se em mim. Não está à mercê de caprichos, fantasias e forças externas imprevisíveis. O que me traz a sensação de insegurança se liga às minhas necessidades emocionais viciosas, que devem sempre ser satisfeitas. Quando a realidade não atende minhas expectativas, fico frustrado, bravo, amargo, ansioso e ressentido. Por exemplo, digamos que você me fale que achou este livro um desperdício completo de tempo e dinheiro. Sua crítica desperta a minha programação interna e me afundo num pântano de tristeza, pena de mim mesmo e depressão. A realidade não atendeu minhas expectativas. Eu esperava, no mínimo, uma crítica construtiva, possivelmente positiva, e talvez até mesmo um elogio. No entanto, não foi você quem destruiu meu equilíbrio interno. Eu fiz isso. Excessivamente preso ao meu preconcebimento de que necessito me sentir seguro (neste caso, com sua aprovação) e teimosamente convencido do como o mundo deveria funcionar, eu me privo de forma prejudicial dos frutos do Espírito Santo e da vida plena que Jesus prometeu. O Senhor passou pelo mundo como uma figura de luz e verdade, às vezes temo, às vezes bravo, sempre justo, amoroso e eficaz, mas nunca inseguro. Uma palavra, um gesto, umas poucas sílabas traçadas na areia, uma ordem como "venham, sigam-me!", e destinos foram mudados, espíritos renascidos. Ele conversou com samaritanos, prostitutas e crianças e lhes falou da verdade, da misericórdia e do perdão, nunca com sequer um traço de insegurança obscurecendo seu semblante. Passando seu tempo com aqueles que eram desaprovados por todos, ele nunca vacilou em seu desejo de lhes oferecer seu reino. Quando nos apegamos a um miserável sentimento de segurança, a possibilidade de transparência torna-se totalmente nula. Da mesma maneira que o amanhecer da fé exige o pôr do sol de nossa anterior incredulidade, de nossas falsas idéias e convicções equivocadas e circunscritas, assim também o amanhecer da crença exige o abandono de nossa ânsia pelas garantias materiais e espirituais. A segurança no Senhor Jesus implica o fim de nossos cálculos e estimativas de custos.
  • 29. ~ 29 ~ O tipo de confiança que depende da resposta a ser recebida é falso, baseado apenas na ansiedade. Na insegurança assustadiça, o crente suplica e até mesmo exige do Senhor garantias tangíveis de que seu afeto será retribuído. Se não as receber, fica desanimado, frustrado, talvez mesmo convencido de que tudo está acabado ou de que nunca realmente existiu. Se as receber, se tranqüiliza, mas só por algum tempo. Ele precisa de provas adicionais — cada uma menos convincente que a anterior. No fim, essa falsa confiança morre de pura frustração. O que o cristão inseguro não aprendeu é que as garantias tangíveis, por mais valiosas que possam ser, não podem gerar confiança, sustentá-la ou fornecer qualquer certeza de sua presença. Jesus Cristo nos chama para que entreguemos nosso "eu" independente à completa confiança. A transparência, a certeza e a paz só podem ser alcançadas quando essa decisão é ratificada e a ansiedade pela confiança, extinta. O mistério da ascensão do Senhor contém uma importante lição para o obcecado por segurança. Jesus disse a seus discípulos: "Eu lhes afirmo que é para o bem de vocês que eu vou" (Jo 16:7). Por quê? Como a partida de Jesus poderia beneficiar os apóstolos? Em primeiro lugar, conforme ele disse: "Se eu não for o Conselheiro não virá para vocês; mas se eu for, eu o enviarei" (Jo 16:7). Em segundo lugar, porque enquanto Jesus ainda fosse visível na terra, sempre haveria o perigo de que os apóstolos se tornassem tão apegados à visão da sua carne humana que poderiam abandonar a certeza da fé e se inclinar à evidência tangível dos sentidos. Ver Jesus em pessoa era bom, mas "felizes os que não viram e creram" (Jo 20:29). No inverno de 1952, durante um dos combates mais pesados da Guerra da Coréia, dois cabos da marinha estavam agachados na trincheira de um posto de observação avançado, quase cem metros dentro das linhas inimigas. Jack Robison e Tim Casey eram amigos havia mais ou menos um ano. Eles se conheceram na escola de armamentos de Quântico, Virgínia, saíram juntos em licença e depois viajaram para Camp Pendleton, Califórnia, para o treinamento de infantaria avançada. Seu regimento chegara em Pusan no outono de 1951. Passava um pouco da meia-noite e uma neve clara caía. Acotovelando-se na trincheira, os dois passavam um cigarro de um lado para o outro quando uma granada, arremessada por um norte-coreano escondido a cerca de 25 metros de onde eles estavam, caiu bem no meio deles. Casey percebeu o explosivo primeiro, displicentemente jogou fora o toco de cigarro e deitou-se sobre a granada, que detonou imediatamente; o abdome de Casey absorveu a explosão. Ele piscou para Robison e rolou morto. Quatro anos mais tarde, Robison entrou para a vida religiosa. Quando pronunciou os votos solenes, em 1960, ele adotou um novo nome para simbolizar sua nova vida em Cristo Jesus. Mudou seu primeiro nome de Jack para Casey, na esperança de que o espírito de auto- sacrifício que animara a vida de Tim Casey caracterizasse também o seu. Ele também ajudou a mãe de Casey, que era viúva, e passou a dividir suas férias de Natal entre a própria família, em Rhode Island, e a sra. Casey, em Chicago. Certo verão, o padre Casey Robison fez uma visita surpresa à sra. Casey. Ele estava se sentindo cansado e deprimido. Os dois seguiram o procedimento habitual de assistir às novelas da tarde na televisão, segurando as mãos um do outro o tempo todo. Depois do jantar, sentaram- se na sala de estar, tomando uma bebida e lembrando os dias em que Tim era vivo. A depressão do padre se prolongava. Inesperadamente, ele perguntou: Mãe, você acha que Casey realmente me amava? Ela sorriu. Oh, Jack, você me vem com cada uma! — disse num lânguido sotaque irlandês. — Você nunca fala sério! Estou falando sério — Robison respondeu. Havia um medo nos olhos da mulher. Agora pare de zombar de mim, Jack. Eu não estou zombando, mãe. Ela o encarou com descrença. Então o medo se transformou em fúria. A sra. Casey nunca havia blasfemado ou tomado o nome do Senhor em vão. Mas, naquela noite, ela se levantou e gritou:
  • 30. ~ 30 ~ — Jesus Cristo, homem, que mais ele poderia fazer por você? Então ela se dobrou na cadeira, enterrou a cabeça em seu peito e começou a chorar. A mesma frase foi repetida várias vezes, até se tomar insuportável: — Que mais ele poderia fazer por você? Depois do que pareceu um longo tempo, ela deu um pálido e pequeno sorriso, e disse com suavidade: — Ah, Jack, acho que todos nós precisamos reconfirmar essas certezas de vez em quando. Foi nessa noite que o padre Casey Robison abandonou a insegurança e encontrou a paz que vem com a genuína confiança. "O Diabo nunca se alegra mais", disse Francisco de Assis, "do que quando rouba a paz do coração de um servo de Deus". Paz e alegria não terão lugar quando o coração de um cristão almejar um sinal depois do outro do misericordioso amor de Deus. Nada é dado como certo, nem recebido com gratidão. Os olhos preocupados e a testa franzida do crente ansioso são os sintomas de um coração em que a confiança não encontrou morada. O próprio Senhor precisa atravessar conosco todas as sombras do espectro emocional, da raiva às lágrimas, e então ao regozijo. Mas a verdade pungente permanece: não confiamos nele. Não temos a mente de Cristo Jesus. "Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino" (Lc 12:32). As palavras de sra, Casey deveriam bastar também para nós: "Jesus Cristo, que mais ele poderia fazer por você?". A insegurança não somente paralisa nossa relação com o Deus vivo, mas também provoca um efeito devastador nas relações interpessoais. É o ponto de partida de toda desavença social. Ela acaba com a sinceridade, que é a ponte para o mundo existencial do outro. Ela corrói a verdadeira comunicação e causa um tipo de ruptura no desenvolvimento da personalidade autêntica. Ken Keyes Jr. escreve: O centro da segurança é uma espécie de nível de consciência solitário. Quando a sua consciência está preocupada em esforçar-se no sentido daquilo que você julga como suas necessidades de segurança, você se torna mais isolado das pessoas do que em qualquer outro nível. E sua energia se situa no nível mais baixo. Quando está preocupado com a segurança, você é apanhado em condições conflitantes nas relações com os outros. Você imagina os "outros" como objetos capazes de ajudá-lo a ficar mais seguro — ou como objetos a combater, porque ameaçam sua segurança. No nível da segurança, você não pode amar os outros, uma vez que esse nível cria grandes distâncias entre você e as outras pessoas. O cristão inseguro encontra excessiva dificuldade para ouvir a opinião dos outros. Ele possui tantas dúvidas sobre a própria identidade que precisa se afirmar o tempo todo, dominado como está pelo medo de que, ao ouvir os outros ou ceder a uma opinião, ele possa, assim, perder uma parte da sua frágil identidade. Ou então, a incerteza sobre sua identidade dificilmente permitirá que se afirme, uma vez que, ao expressar seus verdadeiros sentimentos aos outros, ele poderia expor-se às críticas. Ele raramente sorri, pois um riso com o coração aberto (a válvula de segurança embutida que o faz se lembrar de sua condição de criatura) é um luxo que não pode se dar: isso poderia reduzir a auto-estima e fazer que ele deixasse de se levar tão a sério. Esse homem não chora, o que seria uma fenda na sua armadura invulnerável. Mas, ao contrário, pode chorar freqüentemente, só que sozinho — ele não pode deixar os outros saberem que é menos do que perfeito. Ele não admite prontamente seus erros devido ao desejo insaciável de aprovação. Asneiras prejudicam sua credibilidade. "Vivemos numa época", diz J. B. Priestley, "em que nenhum homem importante jamais admite que está errado". Por que tantos cristãos se mumificam na idade madura? Por que paramos de crescer na dimensão espiritual de nossa vida? Por que nossas liturgias se tornam tão estagnadas e nossos