1. LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS COMO PRÁTICA INTEGRADA
Vívian Bearzotti Pires - UNICAMP
O começo de um novo projeto, além do entusiasmo com o novo, sempre causa uma certa
apreensão e ansiedade naqueles que nele se encontram envolvidos. No caso do nosso projeto, não foi
diferente (o 'nosso' usado aqui não é plural majestático, é legítimo, uma vez que a disciplina participa de
uma proposta maior, das Práticas Integradas, que envolve outros professores).
A importância de um trabalho específico em nossa área de atuação, o ensino de língua com
foco nos usos da linguagem, tem-se mostrado relevante nos cursos de nível superior, e compartilho
dessa concepção tendo em conta o papel da linguagem e do discurso tanto na veiculação do saber
quanto em seu caráter organizador do conhecimento. O modelo apresentado por Geraldi (2002), ao
discutir o papel 'quase-estruturante' da linguagem, já uma forma de abstração da realidade, entre os
fenômenos percebidos e os objetos estruturados da ciência (p.73-83) é aquele que assumo para
fundamentar tal concepção e justificar a necessidade de uma disciplina prática que tome a linguagem
como objeto em qualquer nível de ensino.
Diante disso, a intenção era criar um Laboratório de Prática Integrada de Leitura e Produção de
Textos para um curso superior de Psicologia, e mais do que saber ao certo como e o que faríamos,
tínhamos clareza daquilo que não faríamos: nem um curso semelhante à qualquer disciplina introdutória
ao primeiro ano de Letras - porque não é um primeiro ano de Letras - nem um curso tradicional de Língua
(Gramática) Portuguesa, tampouco um curso genérico de Leitura e Produção de Textos, não integrado ao
restante do curso.
Algumas possibilidades foram aventadas tendo em consideração que deveríamos nos centrar
no(s) Gênero(s) do Discurso Científico, e não exclusivamente em sua materialidade textual, ou seja, nos
textos científicos (Coracini, 1991), certamente parte do discurso, mas não o único elemento que o
constitui.
Compreender o que seja um Gênero do Discurso necessariamente nos leva a definição que
Bakhtin propõe para tal concepção, qual seja, a de que a cada esfera de ação humana corresponderá
uma prática social de comunicação que implique no uso de enunciados conformados de modo
relativamente estável quanto às condições histórico-sociais em que se inserem, bem como quanto às
interlocuções que estabelecem (Bakhtin, 1997). No caso do discurso científico, em qualquer das
modalidades da linguagem, falada ou escrita, temos uma conformação bastante rígida, histórica e
socialmente legitimada por veicularem o saber como verdade objetiva, cujo sujeito deve ser 'escondido',
'opacizado' em prol do objeto, como estratégia de legitimação e persuasão (Coracini, op. cit.). Os
interlocutores, por sua vez, são fundamentalmente aqueles que detém o saber numa dada área da
ciência , participantes de uma 'comunidade de discurso', enunciador e enunciatário participam da mesma
comunidade, "a tendência desse tipo de discurso é fazer coincidir o público de seus produtores com o de
seus consumidores: escreve-se apenas para seus pares que pertencem a comunidades restritas e de
funcionamento rigoroso" (Maingueneau, 1997, p.57). No laboratório propomo-nos, portanto, não apenas a
apresentar esse discurso, mas contribuir para que os alunos 'adentrem' tal discurso, participem dele
efetivamente como interlocutores, desvendando os vários elementos que o constituem, sobretudo seu
caráter subjetivo e persuasivo, fazendo valer suas contrapalavras no interior do mesmo.
Por conta de os textos científicos e acadêmico-científicos serem o suporte fundamental desse
tipo de discurso, pensamos em centrar a atenção e a ação na leitura dos mesmos e na produção de uma
tipologia de gêneros típica da academia: resumos, fichamentos, resenhas, artigos, monografias, etc; e
depois numa tipologia típica da profissão: produção de relatórios, psicodiagnósticos, encaminhamentos,
etc.
Munida dessas definições e concepções previamente discutidas e pensadas com o grupo de
integração, demais professores e coordenadores, preparei uma aula de recepção aos alunos. Neste
ponto, gostaria de descrever brevemente o grupo de alunos do curso, uma vez que são os interlocutores
privilegiados do processo discursivo das aulas. Esse curso de Psicologia é um curso noturno pensado e
organizado para alunos trabalhadores, como de fato o são quase que em sua totalidade. Vendedores,
operários, policiais militares, professores de pré-escola, terapeutas-corporais, operadores de
2. telemarketing, bancários, e, como não poderia deixar de faltar nos dias que correm, alguns
desempregados. A grande maioria é oriunda da escola pública, e grande parte deles retornava aos
estudos depois de um período de tempo sem estudar. Um grupo motivado, desejoso de aprender e, o
que é de se estranhar hoje em dia, muito disciplinados.
A aula/encontro inicial foi um bate-papo com os alunos, em que expus minha proposta e ouvi a
expectativa deles com relação ao laboratório. Em seguida, fiz a proposta de um exercício lúdico. Tendo
em vista que a escrita é a modalidade privilegiada de veiculação do discurso científico, propus que se
identificassem com um suporte qualquer da escrita - do rótulo de um esmalte a um tratado de física
quântica - , e que justificassem sua escolha. Em seguida, pedi que me dissessem o quê e para quê liam,
e o quê e para quê escreviam. Naturalmente, a intenção era começar a lidar com o percurso de cada um
na busca de seu papel de intérprete e autor (Geraldi, 2002). O exercício pedia o registro escrito dos
alunos, mas foi em roda que todos leram ou falaram o que haviam escrito, sobretudo para nos
aproximarmos. Uma vez que a intenção era 'quebrar o gelo', tornarmo-nos próximos, conformarmo-nos
como grupo num processo dialógico, de interação mediada pela palavra, legítima interação, já que as
respostas às perguntas interessavam aos interlocutores (Geraldi, op. cit.).
Muitas e variadas foram as respostas, algumas certamente buscando corresponder às
expectativas que supunham que eu, como professora de curso, tivesse deles, outros, por sua vez, foram
de uma franqueza ingênua, se tomarmos como parâmetro o que se espera daqueles que desejam se
introduzir no discurso científico, outros, ainda, mais soltos talvez, brincaram com a palavra. Transcrevo
apenas alguns dizeres relativos à primeira pergunta:
(1) Se eu fosse um suporte de texto, com certeza seria uma apostila do ensino fundamental.
(2) Se eu fosse um texto escrito com certeza seria um texto de algum livro de História.
(3) Se eu fosse um suporte de texto seria uma revista informativa
(4) Se eu fosse um suporte de texto escrito seria não somente um suporte, mas num todo,
uma biblioteca gigante...
(5) Se eu fosse um suporte de texto, com certeza, seria uma passagem bíblica...
(6) Seria um avião, porque gostaria de viajar o mundo todo...
Com relação às outras duas respostas, grande parte dos alunos dizia ler livros de auto-ajuda - o
que é de se esperar num momento de entrada num curso de psicologia - a bíblia, revistas, jornais,
legenda de filme etc. Para se conhecer, para se aproximar de Deus, para se informar, para entender o
filme, etc. Alguns poucos citaram leituras de cunho propriamente científico. Responderam que escreviam
diários, bilhetes, listas de supermercado, relatórios de trabalho (professoras e PMs), etc. Para desabafar,
para se comunicar com alguém (sobretudo filhos e maridos), para lembrar o que comprar, para registrar o
que foi feito na escola, na rua etc. Novamente, alguns poucos se aproximaram de uma produção escrita
voltada ao campo científico. Tal constatação não traz em si nenhum juízo de valor, mas apontou a
necessidade de proporcionar ao grupo a reflexão acerca do que seja o universo científico, o que
certamente também foi feito em outras disciplinas.
O que começou a mostrar-se claro para nós é que a ênfase nesse primeiro semestre seria
desvendar possibilidades de leitura do discurso, sem nos atermos a tipologia de gêneros acadêmicos,
deixando esse enfoque para um momento posterior. O que não significa que desprezamos a escrita do
aluno, mas que deixamos para um momento posterior a sistematização das regras formais de produção
escrita, priorizando o dizer mais do que as estratégias de fazê-lo.
A maioria das atividades seguintes girou em torno de leitura e discussão de textos teóricos de
outras disciplinas, já que a idéia é justamente lidar com o material com o qual eles vão se confrontar,
numa perspectiva de integração dialógica com o restante do curso. Eventualmente, eram feitas leituras
de textos próprios à análise lingüístico-discursiva, no sentido de contribuir para o desvendar dos
elementos que constituem o discurso científico.
Um dos conceitos que foi explicitamente introduzido por mim como estratégia de leitura - já que
alguns deles foram percebidos e questionados por elementos do grupo, como veremos a seguir - foi o de
situação de comunicação e contexto, tratados, ao mesmo tempo, como, numa primeira instância,
constitutivos do texto e do discurso em seu momento de produção, mas que a "cada leitura corresponde
a um texto diferente, proporcional à bagagem de conhecimentos, experiências e representações
suscitados num determinado momento e lugar, por um conjunto de sinais gráficos que constituem o texto-
1 (produzido pelo enunciador-1)" (Coracini, op.cit., 176), ou seja, se um dado texto é proposto como
3. leitura pelo professor da disciplina Psicologia, Ciência e Profissão, e é também por mim explorado,
certamente serão mobilizados outros componentes no momento da leitura por parte dos alunos, dada a
outra - ainda que semelhante - situação de comunicação, embora os leitores enunciatários sejam os
mesmos. O fato de apresentarmos o conceito dessa forma comparativa com a prática de leitura e
interpretação que os alunos fazem pareceu contribuir para a sua compreensão.
Além do conceito de situação de comunicação (condições de produção), passamos a trabalhar
pensando que cada texto-enunciado (entendido aqui segundo a concepção de Bakhtin, 1986) traz em si
mais do que a significação, um tema, um todo de sentido que se constitui em articulação com o contexto
no qual é proferido, o qual tem sempre um caráter apreciativo, portanto traz sempre a marca do sujeito
que o profere e que responde a outros enunciados ao mesmo tempo que espera uma compreensão
responsiva do outro (Bakhtin, 1986,128-136), isto é, participa como elo de uma cadeia de comunicação.
Logo, todo texto-enunciado se posiciona em relação ao mundo, a um dado debate no mundo, nunca é
isento. Alguns exercícios de leitura foram feitos procurando buscar o contexto maior em que os textos se
inseriam, qual o debate mais ou menos específico do qual participavam e que posição assumiam em
relação a ele. Transcrevo aqui trechos de um desses exercícios (Texto A), que tem por base a idéia de
perguntar ao texto para escutá-lo (Geraldi,op.cit., 171-2), sem contudo escutá-lo como verdade estanque
e absoluta, uma vez que quem se posiciona pode certamente ser questionado.
7) Como o próprio nome (título) diz, este texto discute os motivos para se formar psicólogos ,
aonde e como eles seriam úteis. Ele traz a idéia de que o processo de formação de psicólogos se dá
numa via de 'mão dupla', na qual devem se formar psicólogos/cidadãos, porque, segundo ele, não há
como separar o profissional do cidadão que assume seu lugar no mundo social. Ele traz as citações de
autores famosos que concordam com essa idéia, com isso, ele acaba por ter mais credibilidade que
serve não apenas para ilustrar, mas também para que tenha uma aceitação mais ampla por quem está
lendo.
8) O debate é de professores sobre o preparo dos alunos do curso de psicologia para o mundo
profissional, onde o individualismo e o narcisismo se encontram presentes. Que os professores dentro da
formação acadêmica se preocupem na formação do cidadão-psicólogo, conscientes. Vemos o texto
assumindo e defendendo a importância dessa consciência, que o aluno se comprometa com a faculdade,
com suas idéias, com si mesmo e com a sociedade, atuando como um agente de mudança dentro de sua
competência, não sendo possível se não se envolver com os problemas do ser humano e seu grupo. As
citações vêm ajudar a argumentação de seu autor, mostrando pesquisas, teorias, observações,
pensamentos e etc, enriquecendo seu conteúdo.
Ambos os trechos ilustram o que foi trabalhado como forma de estratégias de leitura do texto,
de entrada no texto, para chegar ao discurso. Ao final de ambos, nota-se a presença da referência feita
às citações no interior do texto. Trata-se, sem dúvida alguma, de um recurso muito enfatizado por nós, a
dita heterogeneidade mostrada (Maingueneau, 1997; Coracini, 1991) e que constava daquilo que
pretendia trazer para discussão. Ocorre que quem trouxe para discussão foram os próprios alunos. A
primeira atividade desenvolvida com esse mesmo texto foi uma síntese, sem nenhuma técnica
previamente apresentada, uma síntese intuitiva, por assim dizer. Os alunos, ao se depararem com as
citações, não sabiam o que fazer com elas, ou como sintetizá-las, uma vez que percebiam claramente
não se tratar da voz do autor, mas de um outro que ali se mostrava presente. Nesse ponto, passamos a
discussão do porquê da presença desse outro no interior do texto. Legitimar o discurso, opor-se a um
discurso anterior, ampliar o que já foi dito, enfim discutir a citação procurando resgatar aquilo com o que
já haviam se deparado até aquele momento nos materiais que vinham lendo. Até o final desse semestre,
foi discutido o papel das citações fundamentalmente no discurso científico e apenas muito
superficialmente o fato de que, em última instância, em qualquer enunciado elas estão presentes,
simultaneamente repetindo e tornando novo/outro o discurso proferido (Bakhtin, 1986; Geraldi,2002).
Aqui foi possível também enfatizar o papel da 'comunidade discursiva científica' e suas regras de
condicionamento e validação do discurso científico.
Outros dois trabalhos que fizemos relacionados ao material de outras disciplinas foram a
produção de uma síntese de um texto da disciplina Metodologia Científica Teórica (Texto B), e um artigo-
comentário de um texto (Texto C) inicialmente trabalhado no curso de Filosofia.
No primeiro, eles desenvolveram a síntese buscando as idéias-chave do texto, ao mesmo
tempo que procuravam formular questões e afirmações sobre o seu conteúdo dirigidas ao outro
4. professor, acerca daquilo que não compreendiam ou que desejavam discutir mais e melhor, enfim, o
trabalho tinha como objetivo integrar a nossa prática à outra disciplina por meio de uma técnica de leitura
e estudo de texto. Novamente tendo como fundamentação a proposta de Geraldi (op.cit., 171-2) acerca
dos porquês de se ir ao texto. Nesse caso, para perguntar, para produzir contrapalavras. Apenas a título
de ilustração, aí vão algumas dessas questões e afirmações.
Questões:
9) Explique: psicologia filosófica e psicologia científica./ Qual o fundamento da teoria de
Bérgson?
10) O que é fundamento epistemológico? Fale sobre o paralelismo que Bérgson nega.
11) Como se pode, ao mesmo tempo, pensar e pensar que se pensa?
Afirmações:
12) A psicologia humanista enfatiza as relações e a motivação humana./ Para Wundt, os únicos
fenômenos são os psíquicos; só há um tipo de experiência, que é a consciente ou interna.
13) O período de transição do feudalismo para o capitalismo foi um momento marcante na
construção de idéias e necessidades que fundamentaram o surgimento da psicologia como ciência, neste
momento de tantas mudanças sociais, políticas e economicas, o homem questiona sua subjetividade.
O último trabalho com material usado em outra disciplina desenvolvido no laboratório foi com
um texto da Filosofia. Foi feita a proposta centrando o comentário do texto com relação ao debate do qual
participava, a posição que assumia e quais os argumentos de que se utilizava. Este trabalho dizia
respeito a um trecho do "Discurso do Método", de Descartes. Desse trabalho, não pretendo transcrever
nenhum trecho de aluno, mas um comentário que me pareceu bem mais significativo. Ao final de uma
aula, quando discutíamos justamente formas de mascaramento do sujeito e mecanismos de persuasão
textual, um aluno perguntou afirmando:
Professora, naquela parte do texto em o autor diz que só desenvolveu o método para ele
mesmo, o que ele faz é disfarçar, não é? Eu acho que, se fosse só para ele mesmo, ele não teria
publicado o texto.
Suponho que tenha dito o mais significativo do que foi feito. Certamente ocorreram problemas
no percurso, atividades que não deram certo, momentos de cansaço, de dúvida, de retrocesso, faltas,
lacunas, mas acredito ter relatado aqui o que pode contribuir para a continuidade do diálogo e da
construção de um trabalho com a linguagem nesse nível de ensino.
Referências Bibliográficas
BAKTHIN,M., Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCITEC. 1986.
. “Os Gêneros do Discurso”, in Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p.277-326.
CORACINI, M.J. Um Fazer Persuasivo - O Discurso Subjetivo da Ciência. Campinas: Pontes, 1991.
GERALDI, J.W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1997.
Anexo: Textos utilizados pelos alunos e citados na descrição dos exercícios
DESCARTES, R. O Discurso do Método, in Os Pensadores: Descartes. São Paulo: Abril Cultural, 1977,
p.42-49. (Texto C)
KAHHALE, E.M.P. e ANDRIANI, A.G.P. A Constituição Histórica da Psicologia como Ciência, in
KAHHALE, E.M.P. (org.) A Diversidade da Psicologia: Uma Construção Teórica, São Paulo: Cortez,
2002, p. 75-95. (Texto B)
SANTOS, M. de F. de S. Formar Psicólogos para quê?, in Psicologia, Ciência e Profissão, Brasília, v .14,
(1,2,3), 1994, p.40-1. (Texto A)