1. O poema descreve cenas de uma vila à beira-mar, com referências à procissão de monges, velas acesas e ladainha, e raparigas que buscam água à fonte ao fim do dia.
2. O poeta sente nostalgia e saudade da vila, tendo regressado como peregrino sem ser notado. Ele rasgou os pés no caminho de volta.
3. O mar da vida do poeta não tem fim à vista, fundindo-se no céu como o horizonte. Ele se vê sozinho, um cadáver
1. 1
Paralelamente
ouço setembro no fundo das tardes e
o ódio violento dos garotos
a atirarem pedras aos cães
por entre a monotonia das varandas
com flores artificiais compradas
aos apregoadores de quinquilharias
na quinta-feira de s. vapor.
os homens traziam o ritmo
da viagem mumificada nos rostos de cera.
os iates (das ilhas)
largavam manhã dentro pela alta
geografia semeada de brumas e ciclones.
no fundo das avenidas explode
o movimento das camionetas e
o batuque das passadas
enroladas no espasmo dos casacos
a acordarem o romance dos casais
deitados contra camélias brancas.
a tarde flutua no fundo
dos esgotos (como um cão estatelado
no tapete das agências) e adormece
paralelamente no instinto dos homens.
José Henrique Borges Martins in Por dentro das viagens, Angra do Heroísmo, 1973
2. 2
poema sem vida
de repente as escadas da tua sombra
e eu lavado dos teus olhos sumiste
ante o anoitecer
chovia fevereiro nas minhas mãos
e o infinito por embalar. e tu longe
sobre o azul salgado
a neve sobre o frio verde
na casa branca da Barrela o mistério da pedra. negra
a solidão do cão de guarda. amado ser de outra ilha
a madrugada. e caem os lábios por entre nuvens de fogo e semente
a sede que afaga outra filha
repatriado destino
partimos para cada um
sem o corpo do adeus até chegarmos
morrer é dar de cantigas ao amanhecer
no fundo do rádio sem pilhas
e assim te canto por todos os cantos até ser dia
Sidónio Bettencourt in Já não vem ninguém, 2010
3. 3
Oiço teus passos nos espelhos do estio, no negro
basalto das ruas, ao fundo: a saia de espuma, um fresco
rumor de água em volta da cintura, a grande dignidade
marinha. Pés de chuva trazem-te a mim: duas sombras
de alegria, os dedos fechados sobre o fogo. À distância
és a cintilação da terra, cheiro a limão, o sino duma
súbita revoada de pombos bravos, porosa virgindade da cal.
Oiço teus passos nas raízes das hortênsias, na diurna
humidade das paredes, entre as janelas da ilha, perto do mar.
Se vens descalça, os sapatos nas mãos, o rumor da tua
saia deixa uma esmeralda de luz sobre as ervas.
Eduardo Bettencourt Pinto, in Emersos vestígios
4. 4
Autogénese
Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.
Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou dos açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;
pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e um fórceps de raiva
me arrancou toda
em sangue de mim.
(…)
Natália Correia in O Vinho e a Lira
5. 5
Ladainha dos póstumos Natais
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira
6. 6
Estrelas Cintilantes
São tão brilhantes,
Tão cintilantes,
A piscar no céu,
Mesmo em cima do nosso chapéu.
Certo dia,
Caiu uma estrelinha,
Que precisava de companhia,
De uma rapariguinha.
Encontrou uma menina,
Já a dormir,
Era pequenina,
Mas começou a sorrir.
A menina estava encantada,
Assim como a estrelinha,
Ficou aconchegada,
Com a nova amiguinha.
Num outro dia,
tinha a estrelinha de partir,
despediu-se da sua companhia,
que estava a sorrir.
7. 7
Ser Poeta
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!
Florbela Espanca
8. 8
(forma 2)
a mel e medo o meu passo avança devagar à
porta entreaberta da noite. mergulhado em
silêncio, alguém respira. e eu a mel e medo
encostada à porta possível da noite. porta
entreaberta ou porta de notícias e recados e
corpos por escrever.
porta de mel e medo e de passos devagar.
Judite Jorge in Setembro e outras estações
9. 9
Fundo do mar
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
Sophia de Mello Breyner Andresen
10. 10
Nas palhinhas
Numas palhinhas deitado
abrindo os olhos à luz
loiro, gordinho, rosado
nasce o Menino Jesus.
Uma vaquinha bafeja
seu lindo corpo divino
de mansinho que a não veja
e não se assuste o Menino!
João Saraiva
11. 11
Ladainha dos póstumos Natais
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira
12. 12
Semente cultivada
Semente cultivada,
Em terra adoentada,
Longe de água,
Seio longínquo;
Crente na vida,
Semente germinaste,
Tornas-te pinheiro,
Nunca antes sonhado,
Tamanha dimensão,
A luz cativou,
Era ela a estrela
Do nosso senhor;
Pinheiro manso,
Que tornas-te bravo,
Foste a via infante,
Dos três reis magos;
Mapa do menino,
Caminho do senhor,
Mapa ancestral,
Do filho do criador;
Entre ramos,
E o teu tronco,
A luz da lua, encaminhava,
Os incansáveis perseguidores;
Demandas tradições ancestrais,
Sempre conhecidas,
Comungas a fé,
Em nós…
13. 13
Viver na Beira-Mar
Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.
Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Ecos"
14. 14
É tão linda a nossa gente
A cantar e a dançar
A paixão está presente
Com o mote a pulular.
O valor da nossa Gente
Traz o timbre são na voz;
É um gosto que se sente
No coração de todos nós.
E vibra a diversão
De quem o faz e recria
E brilha o verso-canção,
Com o calor da poesia.
E Viva o Carnaval!
É riqueza terceirense;
Viva o grande Festival
Onde a alegria vence!
Rosa Silva
15. 15
O mar da minha vida não tem longes.
É tudo água só! E o horizonte
Funde-se no céu. Por sobre a ponte
Marcha, sinistra, a procissão dos monges.
Velas acesas, opas, ladainha,
E o rio deslizando para o mar…
E vêm as raparigas à tardinha,
Buscar a água à fonte, sem cantar.
Ermida branca no monte,
Nossa Senhora da Paz…
Peregrino voltei sem ser ouvido.
Rasguei meus pés pelo caminho ido.
Ai, a calma de tudo quanto jaz
No frio esquecimento! Sobre a ponte,
A procissão caminha. Sob o arco,
Singrou, sereno, um barco
A caminho do mar…
Ó perdida visão da minha Ânsia!
Vejo-me só, na lúgubre distância,
Cadáver dos meus sonhos a boiar…
Armando Côrtes-Rodrigues in Antologia de Poemas