1. 1
Agrupamento de Escolas Infante D. Henrique
Bibliotecas Escolares
Ano letivo 2023-2024
Compilação de poemas
celebrando o
25 de Abril e a Liberdade
2. 2
Quem nos Ama não Menos nos Limita
Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.
Ricardo Reis, in Odes
3. 3
Conquista
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
Miguel Torga, in Cântico do Homem
4. 4
Liberdade
- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Miguel Torga, in Diário XII
5. 5
Francisco Duarte,
in Afluentes de Liberdade
Entardeceram
nos umbrais da aurora
as memórias do teu rosto
Abril...
Nunca mais soprou o vento
depois
de Novembro
a vida
petrificou-se na inconstância
do rio...
não mais navegam
o teu sorriso
de florestas virgens
Hoje
passeio atónito
na neblina
das montanhas
fluir no tempo
na inércia da aventura
sonhar parado
no caminho em movimento
vir à estrada
e saber oscilar no horizonte
ser a terra
o mar
o sol
e a boca
cantar poema aberto
esperança viva
olhar o homem disperso
e cantá-lo
com a herança do ventre
reinvento-me
e não passo da superfície
deste mar austero
nos flancos do dia
arde o inatingível
torno a inventar
(o desfraldar das areias
vai-se consumindo
até que o sol nasça)
Para Aquém de Abril
6. 6
Explicação do País de Abril
Manuel Alegre, in Praça da Canção
País de Abril é o sítio do poema.
Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exatamente aqui
tão perto que parece longe.
Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.
Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.
País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos veias
- os carris infinitos dos comboios da vida.
País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.
Não procurem na História que não vem na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.
País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.
Mais aprende que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.
7. 7
Abril de Sim Abril de Não
Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e o Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.
Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.
Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
Manuel Alegre, in 30 Anos de Poesia
8. 8
Abril de Abril
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjetivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em ato
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Manuel Alegre, in 30 Anos de Poesia
9. 9
A Rapariga do País de Abril
Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.
E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.
Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.
E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.
Por ti cheguei ao longe aqui tão perto
e vi um chão puro: algarves de ternura.
Quando vieste tudo ficou certo
e achei achando-te o País de Abril.
Manuel Alegre, in 30 Anos de Poesia
10. 10
Vai-se o canto vão-se as armas
Não sei se as pedras andam.
Mas o meu país é pedra
e anda. Desloca-se. Foge.
Pula ribeiros nas pernas
do povo. Salta fronteiras
nas minhas pernas. Rasteja.
Nada. Esconde-se. Atravessa
montanhas. Desaparece.
Disfarça-se. O meu país
deixou de ser país. É
qualquer coisa que caminha.
Que se procura. Saudade
de ser Pátria. País em
movimento. País sem
chão. Assim cortado
pela raiz o meu país
é feito de dois países:
um é dono o outro não.
Fica o dono e vai-se o outro.
O que se fica tem tudo
o que se vai nada tem:
nem terra para ficar
nem licença para ir.
O meu país não é dono.
Não tem licença de nada.
País clandestino. Pedra
ambulante. Chão que sangra.
Que caminha. Pula
ribeiros. Corre. Derrama-se.
E vai-se com ele a força
a guitarra a pena a foice.
Vai-se o canto. Vão-se as armas.
Manuel Alegre, in O Canto e as Armas
11. 11
A foice e a pena
Com outra que não pena arma trabalhas.
Se é minha a pena é tua a foice. Mas
se acaso são diferentes nossas armas
as penas são as mesmas e as batalhas.
Eu ceifo com a pena ervas daninhas
e a mentira que a todos envenena.
E tu ceifando penas essa pena
que fraterna se junta às penas minhas.
Onde tu ceifas eu ceifeiro sou
da tua dor ceifeira e dessas queixas
que dizes a ceifar e nunca ceifas.
Se já teu canto a foice te ceifou
canta ceifeira canta: a dor destrói-se
juntando a foice à pena e a pena à foice.
Manuel Alegre, in O Canto e as Armas
12. 12
Ouvindo Beethoven
Venham leis e homens de balanças,
mandamentos d’aquém e além mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças,
desça em nós o juiz até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade
a luz vermelha brilhe inquisidora,
risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam peçam dedos
para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios nem segredos
que é natural os homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
relógios a marcar a hora exata.
Não aceitem nem queiram outra arte
que a proeza do registo, o verso ata.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
cercados de bastões e fortalezas,
hão-de ruir em estrondo os altos muros
e chegará o dia das surpresas.
José Saramago, in Poemas Possíveis
13. 13
Cantata da paz
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Canções com Aroma de Abril
14. 14
Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
perdizes,
Alexandre O´Neill, in Poesias completas
15. 15
Poema de Abril
A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.
Foi este o prodígio
de um dia de Abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.
Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Sidónio Muralha, in Poemas de Abril
16. 16
De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro.
António Ramos Rosa, in Não posso adiar o coração
17. 17
Esta lei
Estes são os novos mandamentos
a que ater-nos durante a longa travessia
até à justiça de todas as leis do mundo.
Mais uma vez chegamos primeiro,
acaso sem ter com quê.
Mas destruir estas tábuas seria
destruir algo daquilo em que sempre
fomos grandes – a capacidade de inscrever
o sonho realizável
na memória e no assombro dos outros povos.
M.ª Velho da Costa
Ainda que não houvéssemos feito
mais nada desde o século XVI,
erigimos este corpo de leis
invulgarmente justas e certas,
em nome da vontade popular.
A lei democraticamente escrita
pelos representantes legítimos de um povo
e o rosto que esse povo levanta
perante as outras nações.
Resplandecente de esperança e dignidade,
esta lei há-de fazer-nos maiores
do que somos na adversidade e dependência,
porque os homens são construídos ou destruídos
pelas leis que os obrigam e abrigam.
Esta é uma Constituição aventurosa,
projeto de vida certa
deste povo para este povo.
18. 18
Os medos
É a medo que escrevo. A medo penso.
A medo sofro e empreendo e calo.
A medo peso os termos quando falo
A medo me renego, me convenço
A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
De outros medos. A medo é que resvalo
O corpo escrutador, inquieto, tenso.
A medo durmo. A medo acordo. A medo
Invento. A medo passo, a medo fico.
A medo meço o pobre, meço o rico.
A medo guardo confissão, segredo.
Dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
Que já me querem cego, surdo, mudo.
José Cutileiro, in Versos da mão esquerda
19. 19
Poema sobre Salazar
Fernando Pessoa, in Obra Poética e em Prosa
António de Oliveira Salazar
Três nomes em sequência regular…
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
Este senhor Salazar
E feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve o sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…
… … … … … … … … …
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
20. 20
Portugal, cravo vermelho
Armindo Rodrigues, in A Manhã Necessária
Em vinte e cinco de Abril,
em Portugal, de repente,
no termo da madrugada,
floriram cravos vermelhos.
Já quarenta e oito anos
a treva nos tinha cegos,
quando da treva rasgada
floriram cravos vermelhos.
Veio a manhã que tardava.
Estava a longa noite finda.
Num rumor de asas de pombas,
floriram cravos vermelhos.
Desde os peitos dos soldados
aos peitos dos marinheiros,
nas próprias metralhadoras,
floriram cravos vermelhos.
Mal rompeu o dia novo,
logo por ruas e praças,
das cidades às aldeias,
floriram cravos vermelhos.
Quer nas mãos dos operários,
quer nas mãos dos camponeses,
no tempo de um pensamento,
floriram cravos vermelhos.
Nos olhos baços dos velhos,
na gralhada das crianças,
no enlevo das mulheres,
floriram cravos vermelhos.
Nas páginas dos escritores,
na atenção dos estudantes,
nas comoções da razão,
floriram cravos vermelhos.
Era um povo renascido
da morte em que estava morto,
cujos gestos e gritos
floriram cravos vermelhos.
No sol, na lua, no vento,
nas searas, nos montados,
nos olivais, nas charnecas,
floriram cravos vermelhos.
Na voz das fontes e rios,
nas ondas do mar amigo,
nas penedias dos montes,
floriram cravos vermelhos.
No pão, no vinho, nos frutos,
de sangue e suor nutridos,
mais na fome e sede deles,
floriram cravos vermelhos.
No azul do céu profundo,
no branco leve das nuvens,
no canto alegre das aves,
floriram cravos vermelhos.
Na sombra vil das prisões
abertas de par em par,
dos irmãos delas libertos,
floriram cravos vermelhos.
Mas no Primeiro de Maio,
foi que, em todo o Portugal,
Portugal todo floriu
num mesmo cravo vermelho.
21. 21
Cravo Mal Temperado II
Boaventura de Sousa, in Têmpera
Vamos sentar
devagar no regaço deste mal
armado dia
o perfume quebradiço das glicínias
e a tarde manifesta de abril
vamos revelar as dores manuscritas
nas costas oficiais
do caixilho da alegria
cheia de perigos
a medição dos passos
organizado
só o esforço do chão
pelas encostas da garganta
os gritos descansam
à sombra do que não sabem
o sol ainda milita
arroxeado.
22. 22
Festejar no teu corpo a liberdade
que a obra desta noite pronuncia
sobre o nervo da voz força de alarme
garganta milimétrica de abril
um cravo na coronha de um soldado
no carmo há meia hora ainda em sentido
para o gesto tão fundo tão volável
infância já da luz dentro do sismo
Jornais não censurados no tapete
uma fábula fértil de fogueiras
crepitando onde rola o som da estampa
interior ao rumo à labareda
o desenho final do nosso beijo
na premissa mais livre do meu sangue
Olga Gonçalves, in Só de amor
23. 23
A voz dos cravos
Sou de um país onde os cravos são palavra
são arma, luta, canção
País numa flor inteiro
onde o vermelho foi dor
Hoje é voz, libertação
Este país é o meu
onde os cravos são palavra
dizem mar, azul e céu
Um abril em cada voz
uma flor por coração
batendo forte no peito
Ao ritmo de uma nação
Maria da Conceição Vicente
24. 24
Que país constróis?
Porque tens nos olhos
o sol
e o mar…
Porque tens nos olhos
o rio
e também:
o riso
e o fogo
Porque tens no ventre
a raiz de todas
as crianças…
que país constróis
diariamente?
Maria Teresa Horta, in Mulheres de Abril
25. 25
Cantiga de Abril
Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da
liberdade» J. de S.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos
chegava até à raiz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever
com que palavras gritar!
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essa paz do cemitério
toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Jorge de Sena, in 40 Anos de Servidão
26. 26
Quem a tem…
Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Jorge de Sena, in Fidelidade