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A noite estava silenciosa. Como todas as noites naquela cidade pequena do interior.
Slow City. Era esse o nome que havia recebido de algum órgão importante, de algum país
importante. Uma forma de valorizar a maneira tranquila de viver daquele lugar. Era o orgulho
do prefeito de então e de outras tantas personalidades de destaque da comunidade.
       Mas não é esse o assunto. E não é disso que se trata esta história. Na verdade é a
história de uma noite na vida de um homem. Um cidadão qualquer daquela cidade no meio
das montanhas.
       Era rotina. Todos os dias, após o serviço, ele fazia a mesma coisa, percorria o mesmo
trajeto. De casa para o bar e do bar para casa. Seguia pela avenida principal, observando o
casario antigo com sua arquitetura em madeira e grandes janelas, que lembravam olhos a
observar os transeuntes. Eram “construções centenárias”, diziam os entendidos, mas isso não
importava. Aquelas casas nunca renderam a ele um tostão sequer.
       “Podem apodrecer e cair, uma a uma!”
       O que realmente valia a pena eram as horas que passava junto com seus amigos. No
bar, encontrava as mesmas pessoas, bebia seu trago de sempre, jogava com os mesmos
conhecidos de toda vida e depois de algumas horas voltava para sua casa. Era assim que
gostava de passar seu tempo.
       Aquele início de noite, porém, parecia diferente. Era uma sensação que oprimia seu
peito. Algo que parecia dizer para que ficasse em casa. Custou para sair. Até sua mulher
estranhou.
       — Vai ficar amolando muito ou vai sair de uma vez?
       — Não enche!
       E agora lá estava ele. Caminhando pela rua até o bar. Inquieto. Olhando ao redor.
Esperando por algo que não sabia ao certo o quê seria. Aquele amontoado de casas parecia
mais assustador do que nos outros dias. Sentia como se estivesse sendo observado. Talvez até
perseguido.
       “Para de frescura. Na certa a comida te fez mal e um trago vai te salvar dessa
esquisitice.”
       A noite estava escura, sem lua no céu. Apertou o passo e agarrou o casaco sentindo o
frio e a umidade no ar. Ao se aproximar de seu destino se sentiu mais seguro e relaxou um
pouco o corpo. O ambiente conhecido e quente fez com que suas impressões se dissipassem.
No bar todos tinham seus grupos. Alguns falavam em voz alta, outros sussurravam para não
serem ouvidos. A conversa já estava andando e as notícias do dia eram repassadas.
       “Fofoca!”
Sempre podia acontecer uma diferente. Na grande maioria das vezes, o mesmo assunto
circulava por meses a fio. Afinal em uma cidade como aquela uma novidade era caso raro.
Quando acontecia, as pessoas costumavam falar tanto sobre o assunto que, ao final, já não se
sabia mais o que era verdade e o que havia sido inventado pelos maledicentes de plantão.
       Adalberto sentou-se e começou a bebericar sua cachaça de sempre.
       — E aí Berto! Vamos jogar ou não?
       Era assim que todos o chamavam, desde os tempos da escola. Desconfiava se alguém
ainda se lembrava de seu nome verdadeiro. Sacudiu a cabeça e a mão, mandando embora seu
velho conhecido. Não estava disposto a jogar naquela noite. A sensação estranha ainda estava
com ele. Vez ou outra olhava para a porta como se estivesse esperando alguém, ou alguma
coisa. Nessas horas, sentia um calafrio percorrer sua espinha.
       Vários pensamentos passaram pela sua cabeça. Talvez estivesse ficando doente. Quem
sabe até precisasse procurar um médico daqueles pra gente louca. Isso seria conversa pra
alimentar a cidade por um mês inteiro. Ficou imaginando os comentários dos amigos e seu
humor começou a se alterar. Estava zangado. Não queria ninguém falando de sua vida. Tentou
se distrair. Ficou no balcão olhando ao redor e assistindo um programa na televisão. Alguém
falando sobre acontecimentos de outro país. Coisas que ele não dava à mínima.
       “Que se dane o mundo!”
       O tempo passou voando. Já estava tarde e todos haviam saído. Ele também resolveu
voltar para casa.
       A noite estava úmida, fria e não dava para ver um palmo à frente do nariz. Aquela
fumaça branca, estúpida e sem cheiro estava fechada demais. Berto puxou o casaco para
poder se proteger e tomou o caminho de casa.
       “Merda de tempo!”
       Arrependeu-se de não ter aceitado a carona que Chico havia oferecido. Agora teria que
andar naquele tempo. E ainda tinha aquela maldita coisa dentro dele.
       Em frente à praça escutou os primeiros sons. Um tanto cambaleante por causa da
bebida e sem senso de direção, seguiu em direção aquele barulho. Eram gritos, alguns de raiva
outros de dor. Não conseguia ver ninguém, mas as vozes estavam todas ao seu redor gritando,
de forma desesperada em seus ouvidos, palavras que ele não conseguia distinguir.
       Parou e olhou em todas as direções. Não conseguia saber em que parte da praça
estava. Fixou o olhar à frente e viu a prefeitura. Estreitou os olhos na tentativa de poder ver
algo com mais nitidez. As luzes pareciam fazer parte da fumaça. Tudo parecia se confundir. A
porta aparentemente estava aberta. Havia vultos, mas aquela confusão de claridade não
deixava ver quem eram aquelas pessoas.
Berto estava assustado. Seu corpo havia paralisado pelo medo, não sentia suas pernas
e sua voz parecia ter se perdido dentro de sua garganta. Tapou os ouvidos com as mãos na
tentativa de fugir daquele burburinho todo.
       Rostos apareciam próximos a ele. Eram disformes, mais brancos que a própria fumaça,
com ossos proeminentes, de boca escancarada com dentes enormes expostos e os olhos eram
como buracos negros que olhavam diretamente para ele. Em toda sua volta era a única coisa
que conseguia ver. Estava totalmente cercado por seres estranhos e assustadores.
       Berto não queria acreditar no que via. Sentia as pernas amoleceram, custava a se
manter de pé. Seu coração queria sair pela sua boca, tinha consciência de sua bebedeira e
sabia que a maldita fazia coisas estranhas com quem abusasse dela e tudo podia ser
imaginação, uma peça que a danada pregava com quem passasse dos limites.
       Esfregou os olhos para tentar limpar a sua visão, quem sabe assim aquelas coisas todas
sumissem, mas não resolveu muito. O medo, agora misturado com a raiva, parecia estar lhe
dando um pouco de coragem. Com grande esforço encheu seus pulmões de ar e começou a
berrar. Talvez imaginando que isso pudesse fazer com que aqueles seres se dissolvessem
junto com a fumaça.
       — Vão embora daqui suas coisas esquisitas! Voltem pro inferno de onde vocês
saíram!
       Quanto mais Berto gritava, mais daqueles seres apareciam.
       Iniciou uma luta insólita usando seus braços e punhos contra a fluidez daquela fumaça
e lançou-se contra as formas que dela saíam. A cada tentativa de socar um daqueles rostos
estranhos, seu corpo rodopiava feito um peão até perder o equilíbrio e tombar sobre a calçada
molhada. Queria correr, mas seu senso de direção estava completamente destruído.
       Então, do meio de todas aquelas criaturas, emergiu outro ser. Os demais se limitaram a
exalar suspiros de irritação. Berto ficou parado, de joelhos, observando aquela figura. Seus
olhos percorreram as formas daquele ente, de baixo para cima. Era mais alto que todos os
outros, ele era magro e trazia seu corpo envolto em uma veste preta. Das mangas do casaco
pendiam um par de mãos esqueléticas de ossos longos e unhas negras. Sobre sua cabeça trazia
um chapéu também preto.
       Berto estremeceu ao ver seu rosto. Alguns ossos da testa e do maxilar proeminente
estavam expostos, mas o restante estava coberto por carne e pele apodrecidos. Os vermes, que
acompanham os corpos em decomposição, entravam e saiam pelas narinas escancaradas
aparecendo novamente em seu pescoço, logo acima da gola do pesado casaco.
       Uma dor aguda tomou conta do seu estômago, fazendo com que apoiasse as mãos no
chão. Uma golfada de água salgada encheu sua boca e em seguida um líquido quente, ácido e
de cheiro azedo foi lançado para fora de suas entranhas, queimando sua garganta e
esparramando-se por sobre a calçada.
       A criatura aproximou-se de Berto e o olhou nos olhos. Abriu a boca fétida, de onde
verteu um líquido amarelado e gosmento. O cheiro podre que chegou até seu nariz fez com
que outra vez tivesse vontade de vomitar. Sua voz era baixa, grossa e rouca quando o chamou
pelo nome.
       — Adalberto.
       Todas as outras criaturas, ao som daquela voz penetrante, ergueram seus rostos para o
céu lançando um grito agudo e raivoso que ecoou pela eternidade.
       Berto não conseguiu esboçar mais reação alguma. Seu corpo foi suspenso do chão e
sua consciência se extinguiu.
       Assim, da mesma forma como surgiu a fumaça desapareceu. A praça voltou ao seu
silêncio habitual.
       Na manhã seguinte uma mulher desesperada estava sentada em frente à mesa do
delegado a procura do marido que não voltou para casa.

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Noite estranha

  • 1. A noite estava silenciosa. Como todas as noites naquela cidade pequena do interior. Slow City. Era esse o nome que havia recebido de algum órgão importante, de algum país importante. Uma forma de valorizar a maneira tranquila de viver daquele lugar. Era o orgulho do prefeito de então e de outras tantas personalidades de destaque da comunidade. Mas não é esse o assunto. E não é disso que se trata esta história. Na verdade é a história de uma noite na vida de um homem. Um cidadão qualquer daquela cidade no meio das montanhas. Era rotina. Todos os dias, após o serviço, ele fazia a mesma coisa, percorria o mesmo trajeto. De casa para o bar e do bar para casa. Seguia pela avenida principal, observando o casario antigo com sua arquitetura em madeira e grandes janelas, que lembravam olhos a observar os transeuntes. Eram “construções centenárias”, diziam os entendidos, mas isso não importava. Aquelas casas nunca renderam a ele um tostão sequer. “Podem apodrecer e cair, uma a uma!” O que realmente valia a pena eram as horas que passava junto com seus amigos. No bar, encontrava as mesmas pessoas, bebia seu trago de sempre, jogava com os mesmos conhecidos de toda vida e depois de algumas horas voltava para sua casa. Era assim que gostava de passar seu tempo. Aquele início de noite, porém, parecia diferente. Era uma sensação que oprimia seu peito. Algo que parecia dizer para que ficasse em casa. Custou para sair. Até sua mulher estranhou. — Vai ficar amolando muito ou vai sair de uma vez? — Não enche! E agora lá estava ele. Caminhando pela rua até o bar. Inquieto. Olhando ao redor. Esperando por algo que não sabia ao certo o quê seria. Aquele amontoado de casas parecia mais assustador do que nos outros dias. Sentia como se estivesse sendo observado. Talvez até perseguido. “Para de frescura. Na certa a comida te fez mal e um trago vai te salvar dessa esquisitice.” A noite estava escura, sem lua no céu. Apertou o passo e agarrou o casaco sentindo o frio e a umidade no ar. Ao se aproximar de seu destino se sentiu mais seguro e relaxou um pouco o corpo. O ambiente conhecido e quente fez com que suas impressões se dissipassem. No bar todos tinham seus grupos. Alguns falavam em voz alta, outros sussurravam para não serem ouvidos. A conversa já estava andando e as notícias do dia eram repassadas. “Fofoca!”
  • 2. Sempre podia acontecer uma diferente. Na grande maioria das vezes, o mesmo assunto circulava por meses a fio. Afinal em uma cidade como aquela uma novidade era caso raro. Quando acontecia, as pessoas costumavam falar tanto sobre o assunto que, ao final, já não se sabia mais o que era verdade e o que havia sido inventado pelos maledicentes de plantão. Adalberto sentou-se e começou a bebericar sua cachaça de sempre. — E aí Berto! Vamos jogar ou não? Era assim que todos o chamavam, desde os tempos da escola. Desconfiava se alguém ainda se lembrava de seu nome verdadeiro. Sacudiu a cabeça e a mão, mandando embora seu velho conhecido. Não estava disposto a jogar naquela noite. A sensação estranha ainda estava com ele. Vez ou outra olhava para a porta como se estivesse esperando alguém, ou alguma coisa. Nessas horas, sentia um calafrio percorrer sua espinha. Vários pensamentos passaram pela sua cabeça. Talvez estivesse ficando doente. Quem sabe até precisasse procurar um médico daqueles pra gente louca. Isso seria conversa pra alimentar a cidade por um mês inteiro. Ficou imaginando os comentários dos amigos e seu humor começou a se alterar. Estava zangado. Não queria ninguém falando de sua vida. Tentou se distrair. Ficou no balcão olhando ao redor e assistindo um programa na televisão. Alguém falando sobre acontecimentos de outro país. Coisas que ele não dava à mínima. “Que se dane o mundo!” O tempo passou voando. Já estava tarde e todos haviam saído. Ele também resolveu voltar para casa. A noite estava úmida, fria e não dava para ver um palmo à frente do nariz. Aquela fumaça branca, estúpida e sem cheiro estava fechada demais. Berto puxou o casaco para poder se proteger e tomou o caminho de casa. “Merda de tempo!” Arrependeu-se de não ter aceitado a carona que Chico havia oferecido. Agora teria que andar naquele tempo. E ainda tinha aquela maldita coisa dentro dele. Em frente à praça escutou os primeiros sons. Um tanto cambaleante por causa da bebida e sem senso de direção, seguiu em direção aquele barulho. Eram gritos, alguns de raiva outros de dor. Não conseguia ver ninguém, mas as vozes estavam todas ao seu redor gritando, de forma desesperada em seus ouvidos, palavras que ele não conseguia distinguir. Parou e olhou em todas as direções. Não conseguia saber em que parte da praça estava. Fixou o olhar à frente e viu a prefeitura. Estreitou os olhos na tentativa de poder ver algo com mais nitidez. As luzes pareciam fazer parte da fumaça. Tudo parecia se confundir. A porta aparentemente estava aberta. Havia vultos, mas aquela confusão de claridade não deixava ver quem eram aquelas pessoas.
  • 3. Berto estava assustado. Seu corpo havia paralisado pelo medo, não sentia suas pernas e sua voz parecia ter se perdido dentro de sua garganta. Tapou os ouvidos com as mãos na tentativa de fugir daquele burburinho todo. Rostos apareciam próximos a ele. Eram disformes, mais brancos que a própria fumaça, com ossos proeminentes, de boca escancarada com dentes enormes expostos e os olhos eram como buracos negros que olhavam diretamente para ele. Em toda sua volta era a única coisa que conseguia ver. Estava totalmente cercado por seres estranhos e assustadores. Berto não queria acreditar no que via. Sentia as pernas amoleceram, custava a se manter de pé. Seu coração queria sair pela sua boca, tinha consciência de sua bebedeira e sabia que a maldita fazia coisas estranhas com quem abusasse dela e tudo podia ser imaginação, uma peça que a danada pregava com quem passasse dos limites. Esfregou os olhos para tentar limpar a sua visão, quem sabe assim aquelas coisas todas sumissem, mas não resolveu muito. O medo, agora misturado com a raiva, parecia estar lhe dando um pouco de coragem. Com grande esforço encheu seus pulmões de ar e começou a berrar. Talvez imaginando que isso pudesse fazer com que aqueles seres se dissolvessem junto com a fumaça. — Vão embora daqui suas coisas esquisitas! Voltem pro inferno de onde vocês saíram! Quanto mais Berto gritava, mais daqueles seres apareciam. Iniciou uma luta insólita usando seus braços e punhos contra a fluidez daquela fumaça e lançou-se contra as formas que dela saíam. A cada tentativa de socar um daqueles rostos estranhos, seu corpo rodopiava feito um peão até perder o equilíbrio e tombar sobre a calçada molhada. Queria correr, mas seu senso de direção estava completamente destruído. Então, do meio de todas aquelas criaturas, emergiu outro ser. Os demais se limitaram a exalar suspiros de irritação. Berto ficou parado, de joelhos, observando aquela figura. Seus olhos percorreram as formas daquele ente, de baixo para cima. Era mais alto que todos os outros, ele era magro e trazia seu corpo envolto em uma veste preta. Das mangas do casaco pendiam um par de mãos esqueléticas de ossos longos e unhas negras. Sobre sua cabeça trazia um chapéu também preto. Berto estremeceu ao ver seu rosto. Alguns ossos da testa e do maxilar proeminente estavam expostos, mas o restante estava coberto por carne e pele apodrecidos. Os vermes, que acompanham os corpos em decomposição, entravam e saiam pelas narinas escancaradas aparecendo novamente em seu pescoço, logo acima da gola do pesado casaco. Uma dor aguda tomou conta do seu estômago, fazendo com que apoiasse as mãos no chão. Uma golfada de água salgada encheu sua boca e em seguida um líquido quente, ácido e
  • 4. de cheiro azedo foi lançado para fora de suas entranhas, queimando sua garganta e esparramando-se por sobre a calçada. A criatura aproximou-se de Berto e o olhou nos olhos. Abriu a boca fétida, de onde verteu um líquido amarelado e gosmento. O cheiro podre que chegou até seu nariz fez com que outra vez tivesse vontade de vomitar. Sua voz era baixa, grossa e rouca quando o chamou pelo nome. — Adalberto. Todas as outras criaturas, ao som daquela voz penetrante, ergueram seus rostos para o céu lançando um grito agudo e raivoso que ecoou pela eternidade. Berto não conseguiu esboçar mais reação alguma. Seu corpo foi suspenso do chão e sua consciência se extinguiu. Assim, da mesma forma como surgiu a fumaça desapareceu. A praça voltou ao seu silêncio habitual. Na manhã seguinte uma mulher desesperada estava sentada em frente à mesa do delegado a procura do marido que não voltou para casa.