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Omissão.
O dia estava calmo e abafado nas ruas de São Paulo. Uma chuva era anunciada aos
poucos no céu sendo coberto por nuvens negras. Como o aviso de uma torrente o céu
reclamou aos gritos pelo peso que carregava.
Pessoas desconectadas, avulso, caminhavam apressadas pelos mais diversos lugares ao
redor da redoma de concreto. A imensidão dessa redoma assustava Jorge. Era uma prisão que
qualquer um pode escapar, mas não quer. Não obstante, ele ainda andava assim como os
outros transeuntes, vestido e parecido com os outros transeuntes. Ele caminhava em direção
leste para o seu futuro.
Diferente dos desajustados pedestres, Jorge tinha algo que faltava a todos:
pensamento próprio. Ele sabia o que queria, ele pensava o que devia, e a certeza das coisas
estava em suas palavras. Apenas nas dele. Nas de mais ninguém.
Enquanto caminhava com seu terno preto e pasta de couro, Jorge ora abanava o rosto,
ora enxugava-o com uma pequena toalha, presente de sua mãe.
Ah! Sua mãe...! Essa sim fora uma mulher com pensamento próprio. Dona de casa,
esposa, três filhos, sempre soube o que queria do mundo. Ela logo cedo mostrou a Jorge a
verdadeira humanidade que nos rodeia. A humanidade era omissa pelos olhos de Jorge. Tudo
acontecia e nada ela fazia. Era como estar rodeado de hipócritas feitos de carne e osso. E disso
não passavam: carne podre e osso reumático. A fraqueza de quem os possuía tangia por Jorge.
Ele ouvia, sentia e via a pusilanimidade enfadada dos transeuntes. E isso o causava náusea.
A mãe de Jorge sempre disse ao filho que o sonho dela era mudar a humanidade. Ela
queria revolução. Um novo Iluminismo era preciso para que as pessoas se vissem como são. E
esse Iluminismo se chamaria Apocalipse. Sim, dizia a mãe de Jorge. Todos pagarão pelas obras
de Deus e é por isso que eu rezo. Um dia todos sofrerão as consequências de suas omissões e
hipocrisias. O mundo é pecaminoso e precisa sofrer. Eles precisam pagar!
Em 1992, a mãe de Jorge morrera e isso foi o início de um terremoto sem fim. Foi o
começo da queda de Jorge no abismo escuro aberto como uma fissura num terremoto de
onde nunca mais sairia. Seus sonhos eram despedaçados e a humanidade vencia. Não, a
humanidade vencera. Sua mãe não conseguira mudá-la e nada mais conseguiria. A não ser... a
não ser ele. Ele deveria ser o escolhido para olhar de cima e julgar tudo e a todos. Era ele e
mais ninguém. E ele o faria.
Assim, seis anos depois, Jorge se forma em direito e mais alguns anos depois se torna
juiz. Era o início de sua vitória sobre a humanidade. Ele vingaria sua mãe e a vingaria de todos,
inclusive da omissão de Deus, que não mudara a humanidade a tempo. Ele era agora o porta-
voz de uma nova justiça.
Nos primeiros anos de trabalho, os julgamentos foram decisivos – alguns erros, vários
acertos –, mas todos foram julgados por ele. Não obstante, o tempo foi passando e as pessoas
continuavam a aparecer em sua frente. Advogados, condenados, criminosos, todos esperavam
pela decisão dele. E ele já não sabia mais o que decidir. Ele deveria condenar todos. Todos
esses imundos omissos deveriam pagar. Mas nem isso ele podia. Se perdesse seu emprego
seria o fim de tudo. Ele não poderia se dar ao luxo de depois de anos de trabalho fraquejar
agora. Ele precisava olhar a decadência dos humanos e não fazer nada. Seu trabalho seria vital
e mudaria tudo.
Contudo, a humanidade não mudava. Anos de trabalho, anos de sofrimento sentado
na cadeira da justiça, dizendo quem é bom e quem é mal somente com olhares e provas de
terceiros, não adiantava de nada. A humanidade ainda era podre e nauseante. Era uma náusea
cadavérica que lembrava a morte: a morte que todos eles deveriam sofrer.
Jorge estava nos seus quase trinta anos. E tinha certeza de uma coisa: aos trinta,
viverei em um mundo melhor, criado por mim. E era por isso que ele não desistia. Ele seguia
enfrentando a tudo e a todos com seu martelo de carvalho da verdade. Em breve o mundo irá
mudar, pensava Jorge.
Mas não mudava. Andando pelas ruas da grande São Paulo, ele ainda sentia o cheiro
de decomposição da verdade. O cheiro era doce e pesado. E ele respirava-o com prazer. Um
prazer mórbido de que aquele cheiro sumiria e a lembrança dele seria a marca de sua vitória.
Jorge chegou ao trabalho no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
cumprimentou a todos rispidamente e pôs-se a julgar os ímpios que o aguardavam. Um por
um Jorge sentenciou os que podia e marcou nova audiência aos que temiam sua justiça, e
tinham o cheiro mais forte da decomposição verídica.
O trabalho era desgastante e interminável. A cada dia mais e mais pessoas precisavam
ser julgadas. Algumas nem tinham medo, eram debochadas e muitas vezes até escapavam.
Mas o tempo os julgaria, e Jorge não precisaria fazer nada. Ele continuaria a trabalhar ali.
Continuaria a julgar todos, sonhando com um mundo melhor. Fazendo sua parte. E um dia ele
seria recompensado por tudo.
Enquanto isso vivia assim como sua mãe. Aguardava o Iluminismo repentino e utópico
que preencheria o vazio da omissão. Mas esse Iluminismo não seria apocalíptico. Não... Esse
seria criado por nós mesmos. Jorge se recusava a crer que tal criatura que se omitia tanto
quanto os vermes dessa cidade podre salvar-nos-ia.
Mais um dia de trabalho terminava, e as costas de Jorge doíam com o tempo sentado.
Espreguiçou se de pé e com a mesma frieza que chegara, saíra. Ele andou até a garagem e saiu
dela com seu carro que ficara ali na noite anterior.
A chuva caía forte no para-brisa do carro importado do Juiz. Sentado em seu assento
marrom de couro macio, ele sonhava com o futuro almejado. Só mais alguns anos, pensava
Jorge parado em um acidente, ouvindo uma música lenta e reconfortante enquanto ligava o
carro e dava uma silenciosa partida, para andar poucos centímetros. Jorge olhou de esguelha o
corpo da mulher estirado no chão, e continuou a dirigir mais alguns centímetros. Centímetros
esses tão ínfimos que sua posição quase não saiu do lugar. Mas ele era paciente, e esperaria.
Os dias foram se passando e Jorge cada vez mais tinha certeza que as pessoas seriam
julgadas. Todos os vermes daquela sociedade imunda seriam postos em suas devidas celas,
com seus devidos túmulos preparados. E ele finalmente vingaria a sua mãe. Ele poderia olhar
para o céu e ver o rosto dela estampado nas nuvens, mas ele não cria em Céu. Ela estava
morta e agora não passava de um esqueleto desmontado, sem sentido.
E os anos se passavam. Os trinta estavam chegando e os julgamentos pareciam
intermináveis, seu sonho parecia impossível, e sua vida insolúvel. A monotonia e a depressão
tomaram conta dele. E menos ainda ele fez. Menos julgamentos ele poderia fazer.
Nada estava saindo como planejado. O que ele fizera de errado? Ele julgava a tudo e a
todos com a maior das dedicações. O que se passava? Por quê?
A resposta não chegava. De onde chegaria? Estava nele e só ele poderia achá-la. Mas
nem sequer procurava. Nem dava ouvidos à consciência.
Enquanto aguardava uma resposta perdia-se em seus devaneios, seus sonhos eram
tudo o que lhe sobrara. E ele sonhava. Olhava a sociedade, a humanidade, de cima com nojo.
Os podres sofreriam. Seriam alvos de sua justiça. Um dia... Ele só tinha que esperar como
fizera há vinte anos em sua juventude. Tudo se resolveria em seu devido tempo.
Jorge não tinha família, nem amigos. Todos os fracos que fizeram parte de sua vida
morreram. Além disso, as pessoas eram nauseantes demais para que ele se aproximasse delas.
A náusea era adocicada, e caridade parecia mel que o causava mais náusea ainda. Isso era para
os fracos. Jorge não os ajudaria. Para ele, aqueles indigentes não existiam.
Ele seguia sua vida dentro daquele escritório. Preso em seus devaneios, esperando que
o mundo mudasse. Mas não mudava. E ele continuava a esperar. Dê tempo ao tempo, pensou.
Mas o tempo rasgava suas ambições como uma faca ensanguentada, e seus sonhos eram
jogados na lixeira mais próxima. E todo seu mundo ruía com o tempo que não trazia a
vingança, não trazia a mudança.
Votara em qualquer pessoa esse ano. Políticos são a pior espécie de vermes, pensava
Jorge. Corruptos, indignos, deveriam todos pagar pela morte da única pessoa que um dia
tentou mudar o mundo: sua mãe. E ela tentou tão arduamente... mas não conseguiu. Os anos
dentro de sua casa orando por mudanças valeram de nada. E todo seu imenso trabalho foi
enterrado como ela mesma.
Um dia como outro qualquer. A chuva reinando sobre o céu carregado. Passou um
ímpeto por Jorge – uma questão que nem sequer fora perguntada: “Por que a humanidade é
assim?”.
Nada. Nenhuma resposta.
Mas não era necessário saber. Era necessário julgar essa fétida vida que vivemos. E só
assim, somente assim, é que conseguiremos mudanças. Conseguiremos, enfim, a morte dos
ímpios. Todos morreriam ou sucumbiriam a justiça!
Ainda em sua súbita pane de reflexão, Jorge se deparou com perguntas indesejadas
que caíram de paraquedas sobre a sua cabeça. As perguntas o davam dores de cabeça, e ele
tentava espaná-las como quem tira pó dos móveis. Mas assim como estes, elas voavam para
cair novamente no mesmo lugar.
Eu estou fazendo de tudo... tudo, pensou Jorge. Porque a humanidade não muda? Por
que nada fica melhor?
E lágrimas de ódio quentes como inferno irrompiam pelos seus olhos e desciam por
sua bochecha em contraste com a manhã fria. Nada mudaria, chegou Jorge a conclusão, enfim,
aos quase quarenta anos. E ele ali ficou parado em seu carro confortável durante horas
olhando o nada.
O nada rapidamente tomou forma de uma mulher gritando na rua – uma ativista.
Depois vieram as pessoas passando, indo em direção aos seus miseráveis destinos. E ele
continuava ali parado no estacionamento.
O que está acontecendo comigo? Por que nada melhora? Será que o que eu... A
pergunta repentinamente tomou conta de todo o corpo de Jorge, e ele sequer conseguiu
pronunciá-la. Como uma estátua, Jorge ficou paralisado. Mas a pergunta martelava em sua
cabeça de concreto, buscando brecha para entrar. Não é possível?, pensou Jorge. Não! Eu fiz
de tudo!
Mesmo assim viu-se obrigado a sair daquele lugar claustrofóbico. As gotas frias de
chuva logo bateram em seu rosto, e ele tremeu o queixo.
Ele correu do estacionamento e passou pelo Tribunal de Justiça. O movimento era
intenso, mas ele não se atreveu a entrar lá. Parou em baixo de uma das colunas monolíticas e
recostou-se ali.
Um Juiz que ele nunca vira na vida passou por ali descendo as escadas. Ele acenou com
a cabeça para Jorge, que não respondera. O homem devia estar na casa dos setenta. Como
Jorge não o vira antes? E o que ele está fazendo aqui?
E numa chuva de pensamentos, todo o seu mundo ruiu.
Ele pensou em sua Justiça e viu uma forma cadavérica e decrépita à beira da morte.
Um nada lânguido, definhando.
Um senhor vestido de terno entregou um panfleto pequeno para Jorge com uma
pergunta que insistia em martelar em sua cabeça.
Jorge amassou o papel com ódio e o jogou no chão molhado assim que o senhor fora
embora. O desespero dele pulsava junto à adrenalina em seu sangue.
O juiz feliz, acenando para Jorge então inundou sua mente e a pergunta soou em seus
ouvidos. E a resposta era tão aterrorizante que fê-lo cair ao chão derrotado. As lágrimas
escorrendo pelo rosto.
Eu não sou o único juiz do mundo, refletiu Jorge, e seu mundo começou a despedaçar.
Existiam milhões deles. Todos faziam o mesmo trabalho, todos tinham a mesma justiça. E essa
justiça era igual à dele. Essa justiça era idêntica a que ele forjara como própria.
Tudo ruía, os sons eram mais altos e embaçados, o mundo girava. E uma única frase
destruiu sua vida, destruiu seus sonhos. O panfleto rondava com suas letras grifadas em sua
mente e sua vida era arrancada de si.
Num ímpeto de loucura, Jorge pegou seu carro e acelerou para a luxuosa casa.
Estacionou-o com violência. Seu corpo tremia.
Com o terno encharcado, ele começou a andar em direção ao banheiro do segundo
andar. Eu preciso de calmantes, disse trêmulo.
Não obstante, Jorge foi parado por uma figura podre, imunda, em decomposição ao
seu lado. Atrás do sofá grande e acinzentado, lá estava ela, fitando-o. E essa criatura
destroçava todos os sonhos de Jorge com seu rosto deprimente. Tudo que ele suplantara até
agora estava acabado. Sua vida fora um nada. Ele era um nada. E a humanidade não tinha mais
solução. Todos deveriam morrer, mas não morreriam. Não pelas mãos dele.
Lentamente, como quem tem um peso enorme nas costas, Jorge começou a subir as
escadas e a figura ficou para trás. Presa no mundo podre em que ela vivia.
Os passos pesados levaram-no até seu quarto. Ele abriu uma gaveta pequena de
madeira ao lado da espaçosa cama de casal, e pegou uma pistola reluzente de dentro dela.
Acabou. Eu não sirvo mais para nada. O tempo venceu. A humanidade venceu.
Desceu as escadas, serviu-se de um Scott segurando a arma prateada e límpida.
Sentou-se no sofá cinza, amplo e espaçoso num fim de tarde onde o crepúsculo não existia
apenas um céu negro e hostil. O céu que engoliria sua alma pela eternidade.
Bebendo o whiskey com suas mãos trêmulas, uma levada à boca e a outra à cabeça.
Ele entrelaçou em seus dedos o gatilho e sentiu o clique da morte o assombrar. Lentamente
puxou o gatilho, milímetro por milímetro.
Não teve coragem de atirar. Pensou em desistir, mas a figura voltara e o encarava com
nojo. Um nojo doce. A figura o olhava de cima a baixo e ele era um verme. Ele era tão
nauseante que a figura parecia querer vomitar.
Será que... será que...? A pergunta o assombrava. E o homem parado a sua frente o
incitava a fazê-lo.
Segunda tentativa: nada. Terceira: nada. E assim foram sucessivas tentativas. E, enfim,
ele era o fraco, ele era o covarde. Ele era tudo o que sempre foi.
Jorge desatou a chorar alto e barulhento como uma criança que quer a mãe. Seu copo
virou no tapete de camurça e molhou um pequeno papel em cima de sua mesa. E ele berrou.
Abruptamente, Jorge sabia. Tinha uma solução. Ele tinha que entregar sua vida ao
destino. Era isso. Lembrou-se de um pequeno mecanismo visto em um filme que comprara há
pouco. O mecanismo de madeira tinha um suporte para a arma e um fio de barbante que
prendia tanto o gatilho como algo que sustentasse o suporte da outra ponta no chão. Ele só
tinha que colocar algo pesado no segundo suporte, armar a arma e tirar o peso. Quando o
suporte subisse, o barbante puxaria o gatilho. E seria seu fim!
Mas o que serviria de peso? Tinha que ser algo que desse tempo de ele desistir porque
ele era fraco. Ele não tinha certeza, mas não tinha motivos para viver
Usou gelo. Pegou diversos cubos de gelo na cozinha e prendeu à superfície lisa de
madeira. No suporte colocou a arma, e o barbante no gatilho. Sentou fronte a arma apontada
para seu crânio e esperou o gelo derreter.
Aos poucos o gelo foi derretendo, e a água foi molhando o chão de piso. Jorge já havia
se servido de outro Scott e pensava na vida. Em sua vida, na de sua mãe. E a pergunta veio a
tona: “O que você tem feito para mudar o mundo?”. O panfleto sussurrava as palavras negras
em seu ouvido. Tenho praticado a justiça falha que todos praticam, pensou Jorge. Eu não fiz
nada!
Afinal, o que eu fizera?, questionou-se Jorge. No fim, nada. Eles não conseguiram
mudar nada. Delinquentes sempre existirão e com o tempo cada vez mais. Eles nunca vão
mudar. A humanidade continuará podre, e o Inferno será bem aqui. Ele viveu sua vida patética
e monótona por nada. E agora seu caixão o aguardava convidativo.
Ele já estava decido em morrer. Ele não era mais útil a ninguém. Sua vontade não seria
atendida. A humanidade não quer mudar e ele nem sequer tentou. Agora via as coisas claras
como água. Nem sua mãe tentara.
Sendo observado pela figura em decomposição, Jorge pegou o envelope com a ponta
molhada na mesa ainda segurando o copo e pôs-se a ler. As gotas pingavam no chão cada vez
maiores.
Ele não conhecia o remetente, mas ainda assim abriu a carta. A carta era o
agradecimento de uma mãe a Jorge. Ela dizia que seu filho estava completamente recuperado
depois de diversos delitos e que fora tudo graças a ele. Se ele não o tivesse julgado, o menino
provavelmente estaria nas ruas se igualando aos podres da sociedade.
E isso levou Jorge a uma nova reflexão. A carta de duas folhas fora uma guinada nos
sonhos dele.
- Eu não posso mudar o mundo, mas eu posso tentar. Eu posso pelo menos mudar uma
parte, por mais ínfima que seja.
Um misto de alegria e náusea bateu o corpo tonto de Jorge ao se levantar. Um sorriso
de triunfo se estampou em seu rosto e a morte já não era mais necessária.
-Eu mudarei o mundo e nada vai me impedir.
No entanto, um estrondo irrompeu rasgando pelo ouvido de Jorge seguido de
pequenos estalidos no piso. Completamente parado, ele deixou-se cair no sofá sem fala. A
garganta cheia.
Agora, a figura cadavérica ria dele e se decompunha cada vez mais. O riso mórbido
assustava Jorge mais do que tudo.
E, pela primeira vez, o cheiro da decomposição não vinha mais do mundo ao redor,
vinha dele. E tudo se desfazia. As cores gradativamente sumiam, e o líquido quente e férreo
escorria pelo peito de Jorge. O reflexo no imenso espelho que ia do chão ao teto fronte a ele
fechava os olhos enquanto pendia para o lado sentado no sofá.
O gelo terminou de derreter no chão vagarosamente e, junto com ele, a luz foi
sumindo dos olhos de Jorge. E como numa risada sarcástica e mórbida, o céu clareava com o
sorriso laranja apontado para ele. O último raio fino de débil bateu nos olhos de Jorge até que
a luz sumiu...
E nada mudara.
Autor: João Felipe C. Da Silva
Twitter: @JohnFCurcio
Site: http://tenseblog.tumblr.com
“A vida é a omissão da morte e nós somos nossa própria omissão”

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Omissão

  • 1. Omissão. O dia estava calmo e abafado nas ruas de São Paulo. Uma chuva era anunciada aos poucos no céu sendo coberto por nuvens negras. Como o aviso de uma torrente o céu reclamou aos gritos pelo peso que carregava. Pessoas desconectadas, avulso, caminhavam apressadas pelos mais diversos lugares ao redor da redoma de concreto. A imensidão dessa redoma assustava Jorge. Era uma prisão que qualquer um pode escapar, mas não quer. Não obstante, ele ainda andava assim como os outros transeuntes, vestido e parecido com os outros transeuntes. Ele caminhava em direção leste para o seu futuro. Diferente dos desajustados pedestres, Jorge tinha algo que faltava a todos: pensamento próprio. Ele sabia o que queria, ele pensava o que devia, e a certeza das coisas estava em suas palavras. Apenas nas dele. Nas de mais ninguém. Enquanto caminhava com seu terno preto e pasta de couro, Jorge ora abanava o rosto, ora enxugava-o com uma pequena toalha, presente de sua mãe. Ah! Sua mãe...! Essa sim fora uma mulher com pensamento próprio. Dona de casa, esposa, três filhos, sempre soube o que queria do mundo. Ela logo cedo mostrou a Jorge a verdadeira humanidade que nos rodeia. A humanidade era omissa pelos olhos de Jorge. Tudo acontecia e nada ela fazia. Era como estar rodeado de hipócritas feitos de carne e osso. E disso não passavam: carne podre e osso reumático. A fraqueza de quem os possuía tangia por Jorge. Ele ouvia, sentia e via a pusilanimidade enfadada dos transeuntes. E isso o causava náusea. A mãe de Jorge sempre disse ao filho que o sonho dela era mudar a humanidade. Ela queria revolução. Um novo Iluminismo era preciso para que as pessoas se vissem como são. E esse Iluminismo se chamaria Apocalipse. Sim, dizia a mãe de Jorge. Todos pagarão pelas obras de Deus e é por isso que eu rezo. Um dia todos sofrerão as consequências de suas omissões e hipocrisias. O mundo é pecaminoso e precisa sofrer. Eles precisam pagar! Em 1992, a mãe de Jorge morrera e isso foi o início de um terremoto sem fim. Foi o começo da queda de Jorge no abismo escuro aberto como uma fissura num terremoto de onde nunca mais sairia. Seus sonhos eram despedaçados e a humanidade vencia. Não, a humanidade vencera. Sua mãe não conseguira mudá-la e nada mais conseguiria. A não ser... a não ser ele. Ele deveria ser o escolhido para olhar de cima e julgar tudo e a todos. Era ele e mais ninguém. E ele o faria. Assim, seis anos depois, Jorge se forma em direito e mais alguns anos depois se torna juiz. Era o início de sua vitória sobre a humanidade. Ele vingaria sua mãe e a vingaria de todos, inclusive da omissão de Deus, que não mudara a humanidade a tempo. Ele era agora o porta- voz de uma nova justiça. Nos primeiros anos de trabalho, os julgamentos foram decisivos – alguns erros, vários acertos –, mas todos foram julgados por ele. Não obstante, o tempo foi passando e as pessoas continuavam a aparecer em sua frente. Advogados, condenados, criminosos, todos esperavam pela decisão dele. E ele já não sabia mais o que decidir. Ele deveria condenar todos. Todos esses imundos omissos deveriam pagar. Mas nem isso ele podia. Se perdesse seu emprego seria o fim de tudo. Ele não poderia se dar ao luxo de depois de anos de trabalho fraquejar agora. Ele precisava olhar a decadência dos humanos e não fazer nada. Seu trabalho seria vital e mudaria tudo. Contudo, a humanidade não mudava. Anos de trabalho, anos de sofrimento sentado na cadeira da justiça, dizendo quem é bom e quem é mal somente com olhares e provas de terceiros, não adiantava de nada. A humanidade ainda era podre e nauseante. Era uma náusea cadavérica que lembrava a morte: a morte que todos eles deveriam sofrer. Jorge estava nos seus quase trinta anos. E tinha certeza de uma coisa: aos trinta, viverei em um mundo melhor, criado por mim. E era por isso que ele não desistia. Ele seguia enfrentando a tudo e a todos com seu martelo de carvalho da verdade. Em breve o mundo irá mudar, pensava Jorge.
  • 2. Mas não mudava. Andando pelas ruas da grande São Paulo, ele ainda sentia o cheiro de decomposição da verdade. O cheiro era doce e pesado. E ele respirava-o com prazer. Um prazer mórbido de que aquele cheiro sumiria e a lembrança dele seria a marca de sua vitória. Jorge chegou ao trabalho no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cumprimentou a todos rispidamente e pôs-se a julgar os ímpios que o aguardavam. Um por um Jorge sentenciou os que podia e marcou nova audiência aos que temiam sua justiça, e tinham o cheiro mais forte da decomposição verídica. O trabalho era desgastante e interminável. A cada dia mais e mais pessoas precisavam ser julgadas. Algumas nem tinham medo, eram debochadas e muitas vezes até escapavam. Mas o tempo os julgaria, e Jorge não precisaria fazer nada. Ele continuaria a trabalhar ali. Continuaria a julgar todos, sonhando com um mundo melhor. Fazendo sua parte. E um dia ele seria recompensado por tudo. Enquanto isso vivia assim como sua mãe. Aguardava o Iluminismo repentino e utópico que preencheria o vazio da omissão. Mas esse Iluminismo não seria apocalíptico. Não... Esse seria criado por nós mesmos. Jorge se recusava a crer que tal criatura que se omitia tanto quanto os vermes dessa cidade podre salvar-nos-ia. Mais um dia de trabalho terminava, e as costas de Jorge doíam com o tempo sentado. Espreguiçou se de pé e com a mesma frieza que chegara, saíra. Ele andou até a garagem e saiu dela com seu carro que ficara ali na noite anterior. A chuva caía forte no para-brisa do carro importado do Juiz. Sentado em seu assento marrom de couro macio, ele sonhava com o futuro almejado. Só mais alguns anos, pensava Jorge parado em um acidente, ouvindo uma música lenta e reconfortante enquanto ligava o carro e dava uma silenciosa partida, para andar poucos centímetros. Jorge olhou de esguelha o corpo da mulher estirado no chão, e continuou a dirigir mais alguns centímetros. Centímetros esses tão ínfimos que sua posição quase não saiu do lugar. Mas ele era paciente, e esperaria. Os dias foram se passando e Jorge cada vez mais tinha certeza que as pessoas seriam julgadas. Todos os vermes daquela sociedade imunda seriam postos em suas devidas celas, com seus devidos túmulos preparados. E ele finalmente vingaria a sua mãe. Ele poderia olhar para o céu e ver o rosto dela estampado nas nuvens, mas ele não cria em Céu. Ela estava morta e agora não passava de um esqueleto desmontado, sem sentido. E os anos se passavam. Os trinta estavam chegando e os julgamentos pareciam intermináveis, seu sonho parecia impossível, e sua vida insolúvel. A monotonia e a depressão tomaram conta dele. E menos ainda ele fez. Menos julgamentos ele poderia fazer. Nada estava saindo como planejado. O que ele fizera de errado? Ele julgava a tudo e a todos com a maior das dedicações. O que se passava? Por quê? A resposta não chegava. De onde chegaria? Estava nele e só ele poderia achá-la. Mas nem sequer procurava. Nem dava ouvidos à consciência. Enquanto aguardava uma resposta perdia-se em seus devaneios, seus sonhos eram tudo o que lhe sobrara. E ele sonhava. Olhava a sociedade, a humanidade, de cima com nojo. Os podres sofreriam. Seriam alvos de sua justiça. Um dia... Ele só tinha que esperar como fizera há vinte anos em sua juventude. Tudo se resolveria em seu devido tempo. Jorge não tinha família, nem amigos. Todos os fracos que fizeram parte de sua vida morreram. Além disso, as pessoas eram nauseantes demais para que ele se aproximasse delas. A náusea era adocicada, e caridade parecia mel que o causava mais náusea ainda. Isso era para os fracos. Jorge não os ajudaria. Para ele, aqueles indigentes não existiam. Ele seguia sua vida dentro daquele escritório. Preso em seus devaneios, esperando que o mundo mudasse. Mas não mudava. E ele continuava a esperar. Dê tempo ao tempo, pensou. Mas o tempo rasgava suas ambições como uma faca ensanguentada, e seus sonhos eram jogados na lixeira mais próxima. E todo seu mundo ruía com o tempo que não trazia a vingança, não trazia a mudança. Votara em qualquer pessoa esse ano. Políticos são a pior espécie de vermes, pensava Jorge. Corruptos, indignos, deveriam todos pagar pela morte da única pessoa que um dia
  • 3. tentou mudar o mundo: sua mãe. E ela tentou tão arduamente... mas não conseguiu. Os anos dentro de sua casa orando por mudanças valeram de nada. E todo seu imenso trabalho foi enterrado como ela mesma. Um dia como outro qualquer. A chuva reinando sobre o céu carregado. Passou um ímpeto por Jorge – uma questão que nem sequer fora perguntada: “Por que a humanidade é assim?”. Nada. Nenhuma resposta. Mas não era necessário saber. Era necessário julgar essa fétida vida que vivemos. E só assim, somente assim, é que conseguiremos mudanças. Conseguiremos, enfim, a morte dos ímpios. Todos morreriam ou sucumbiriam a justiça! Ainda em sua súbita pane de reflexão, Jorge se deparou com perguntas indesejadas que caíram de paraquedas sobre a sua cabeça. As perguntas o davam dores de cabeça, e ele tentava espaná-las como quem tira pó dos móveis. Mas assim como estes, elas voavam para cair novamente no mesmo lugar. Eu estou fazendo de tudo... tudo, pensou Jorge. Porque a humanidade não muda? Por que nada fica melhor? E lágrimas de ódio quentes como inferno irrompiam pelos seus olhos e desciam por sua bochecha em contraste com a manhã fria. Nada mudaria, chegou Jorge a conclusão, enfim, aos quase quarenta anos. E ele ali ficou parado em seu carro confortável durante horas olhando o nada. O nada rapidamente tomou forma de uma mulher gritando na rua – uma ativista. Depois vieram as pessoas passando, indo em direção aos seus miseráveis destinos. E ele continuava ali parado no estacionamento. O que está acontecendo comigo? Por que nada melhora? Será que o que eu... A pergunta repentinamente tomou conta de todo o corpo de Jorge, e ele sequer conseguiu pronunciá-la. Como uma estátua, Jorge ficou paralisado. Mas a pergunta martelava em sua cabeça de concreto, buscando brecha para entrar. Não é possível?, pensou Jorge. Não! Eu fiz de tudo! Mesmo assim viu-se obrigado a sair daquele lugar claustrofóbico. As gotas frias de chuva logo bateram em seu rosto, e ele tremeu o queixo. Ele correu do estacionamento e passou pelo Tribunal de Justiça. O movimento era intenso, mas ele não se atreveu a entrar lá. Parou em baixo de uma das colunas monolíticas e recostou-se ali. Um Juiz que ele nunca vira na vida passou por ali descendo as escadas. Ele acenou com a cabeça para Jorge, que não respondera. O homem devia estar na casa dos setenta. Como Jorge não o vira antes? E o que ele está fazendo aqui? E numa chuva de pensamentos, todo o seu mundo ruiu. Ele pensou em sua Justiça e viu uma forma cadavérica e decrépita à beira da morte. Um nada lânguido, definhando. Um senhor vestido de terno entregou um panfleto pequeno para Jorge com uma pergunta que insistia em martelar em sua cabeça. Jorge amassou o papel com ódio e o jogou no chão molhado assim que o senhor fora embora. O desespero dele pulsava junto à adrenalina em seu sangue. O juiz feliz, acenando para Jorge então inundou sua mente e a pergunta soou em seus ouvidos. E a resposta era tão aterrorizante que fê-lo cair ao chão derrotado. As lágrimas escorrendo pelo rosto. Eu não sou o único juiz do mundo, refletiu Jorge, e seu mundo começou a despedaçar. Existiam milhões deles. Todos faziam o mesmo trabalho, todos tinham a mesma justiça. E essa justiça era igual à dele. Essa justiça era idêntica a que ele forjara como própria. Tudo ruía, os sons eram mais altos e embaçados, o mundo girava. E uma única frase destruiu sua vida, destruiu seus sonhos. O panfleto rondava com suas letras grifadas em sua mente e sua vida era arrancada de si.
  • 4. Num ímpeto de loucura, Jorge pegou seu carro e acelerou para a luxuosa casa. Estacionou-o com violência. Seu corpo tremia. Com o terno encharcado, ele começou a andar em direção ao banheiro do segundo andar. Eu preciso de calmantes, disse trêmulo. Não obstante, Jorge foi parado por uma figura podre, imunda, em decomposição ao seu lado. Atrás do sofá grande e acinzentado, lá estava ela, fitando-o. E essa criatura destroçava todos os sonhos de Jorge com seu rosto deprimente. Tudo que ele suplantara até agora estava acabado. Sua vida fora um nada. Ele era um nada. E a humanidade não tinha mais solução. Todos deveriam morrer, mas não morreriam. Não pelas mãos dele. Lentamente, como quem tem um peso enorme nas costas, Jorge começou a subir as escadas e a figura ficou para trás. Presa no mundo podre em que ela vivia. Os passos pesados levaram-no até seu quarto. Ele abriu uma gaveta pequena de madeira ao lado da espaçosa cama de casal, e pegou uma pistola reluzente de dentro dela. Acabou. Eu não sirvo mais para nada. O tempo venceu. A humanidade venceu. Desceu as escadas, serviu-se de um Scott segurando a arma prateada e límpida. Sentou-se no sofá cinza, amplo e espaçoso num fim de tarde onde o crepúsculo não existia apenas um céu negro e hostil. O céu que engoliria sua alma pela eternidade. Bebendo o whiskey com suas mãos trêmulas, uma levada à boca e a outra à cabeça. Ele entrelaçou em seus dedos o gatilho e sentiu o clique da morte o assombrar. Lentamente puxou o gatilho, milímetro por milímetro. Não teve coragem de atirar. Pensou em desistir, mas a figura voltara e o encarava com nojo. Um nojo doce. A figura o olhava de cima a baixo e ele era um verme. Ele era tão nauseante que a figura parecia querer vomitar. Será que... será que...? A pergunta o assombrava. E o homem parado a sua frente o incitava a fazê-lo. Segunda tentativa: nada. Terceira: nada. E assim foram sucessivas tentativas. E, enfim, ele era o fraco, ele era o covarde. Ele era tudo o que sempre foi. Jorge desatou a chorar alto e barulhento como uma criança que quer a mãe. Seu copo virou no tapete de camurça e molhou um pequeno papel em cima de sua mesa. E ele berrou. Abruptamente, Jorge sabia. Tinha uma solução. Ele tinha que entregar sua vida ao destino. Era isso. Lembrou-se de um pequeno mecanismo visto em um filme que comprara há pouco. O mecanismo de madeira tinha um suporte para a arma e um fio de barbante que prendia tanto o gatilho como algo que sustentasse o suporte da outra ponta no chão. Ele só tinha que colocar algo pesado no segundo suporte, armar a arma e tirar o peso. Quando o suporte subisse, o barbante puxaria o gatilho. E seria seu fim! Mas o que serviria de peso? Tinha que ser algo que desse tempo de ele desistir porque ele era fraco. Ele não tinha certeza, mas não tinha motivos para viver Usou gelo. Pegou diversos cubos de gelo na cozinha e prendeu à superfície lisa de madeira. No suporte colocou a arma, e o barbante no gatilho. Sentou fronte a arma apontada para seu crânio e esperou o gelo derreter. Aos poucos o gelo foi derretendo, e a água foi molhando o chão de piso. Jorge já havia se servido de outro Scott e pensava na vida. Em sua vida, na de sua mãe. E a pergunta veio a tona: “O que você tem feito para mudar o mundo?”. O panfleto sussurrava as palavras negras em seu ouvido. Tenho praticado a justiça falha que todos praticam, pensou Jorge. Eu não fiz nada! Afinal, o que eu fizera?, questionou-se Jorge. No fim, nada. Eles não conseguiram mudar nada. Delinquentes sempre existirão e com o tempo cada vez mais. Eles nunca vão mudar. A humanidade continuará podre, e o Inferno será bem aqui. Ele viveu sua vida patética e monótona por nada. E agora seu caixão o aguardava convidativo. Ele já estava decido em morrer. Ele não era mais útil a ninguém. Sua vontade não seria atendida. A humanidade não quer mudar e ele nem sequer tentou. Agora via as coisas claras como água. Nem sua mãe tentara.
  • 5. Sendo observado pela figura em decomposição, Jorge pegou o envelope com a ponta molhada na mesa ainda segurando o copo e pôs-se a ler. As gotas pingavam no chão cada vez maiores. Ele não conhecia o remetente, mas ainda assim abriu a carta. A carta era o agradecimento de uma mãe a Jorge. Ela dizia que seu filho estava completamente recuperado depois de diversos delitos e que fora tudo graças a ele. Se ele não o tivesse julgado, o menino provavelmente estaria nas ruas se igualando aos podres da sociedade. E isso levou Jorge a uma nova reflexão. A carta de duas folhas fora uma guinada nos sonhos dele. - Eu não posso mudar o mundo, mas eu posso tentar. Eu posso pelo menos mudar uma parte, por mais ínfima que seja. Um misto de alegria e náusea bateu o corpo tonto de Jorge ao se levantar. Um sorriso de triunfo se estampou em seu rosto e a morte já não era mais necessária. -Eu mudarei o mundo e nada vai me impedir. No entanto, um estrondo irrompeu rasgando pelo ouvido de Jorge seguido de pequenos estalidos no piso. Completamente parado, ele deixou-se cair no sofá sem fala. A garganta cheia. Agora, a figura cadavérica ria dele e se decompunha cada vez mais. O riso mórbido assustava Jorge mais do que tudo. E, pela primeira vez, o cheiro da decomposição não vinha mais do mundo ao redor, vinha dele. E tudo se desfazia. As cores gradativamente sumiam, e o líquido quente e férreo escorria pelo peito de Jorge. O reflexo no imenso espelho que ia do chão ao teto fronte a ele fechava os olhos enquanto pendia para o lado sentado no sofá. O gelo terminou de derreter no chão vagarosamente e, junto com ele, a luz foi sumindo dos olhos de Jorge. E como numa risada sarcástica e mórbida, o céu clareava com o sorriso laranja apontado para ele. O último raio fino de débil bateu nos olhos de Jorge até que a luz sumiu... E nada mudara. Autor: João Felipe C. Da Silva Twitter: @JohnFCurcio Site: http://tenseblog.tumblr.com “A vida é a omissão da morte e nós somos nossa própria omissão”