1) O documento discute a natureza jurídica da jurisdição voluntária, apresentando diferentes posições doutrinárias sobre o assunto. 2) Aborda aspectos gerais sobre jurisdição e define jurisdição contenciosa, caracterizada pela composição de litígios entre partes. 3) Apresenta três correntes sobre a natureza da jurisdição voluntária: a jurisdicionalista, que a equipara à contenciosa, a administrativista, que lhe confere cunho administrativo, e a autonomista, que a vê como uma nova função e
1. I - INTRODUÇÃO
Tecer comentários e abordar sobre o tema da Jurisdição não é matéria muito fácil,
devido às inúmeras posições doutrinárias sobre o assunto.
Insere-se dentre os inúmeros aspectos polêmicos do Direito Processual Civil, a
definição da natureza jurídica das jurisdições contenciosa e voluntária, tendo em vista a
existência de correntes dos doutos juristas muitas vezes divergentes e diametralmente
opostas em suas idéias e posturas.
Por isso, não queremos aqui tratar do assunto de forma completa, em virtude de ser
impossível praticamente nos darmos a essa tarefa. O que queremos apenas expor as
várias facetas de um mesmo assunto, e ao final definirmos nossa posição em buscar da
definição da natureza jurídica da Jurisdição voluntária, escopo principalmente deste.
Para tanto, faz-se necessário uma abordagem genérica sobre a Jurisdição como parte
integrante do Poder Estatal e sendo, pois, reflexo desse Poder. Em seguida,
abordaremos sobre a Jurisdição contenciosa e Jurisdição voluntária, na busca de
alcançarmos a final nosso objetivo primordial, definir a natureza jurídica desta última.
II - ASPECTOS GERAIS SOBRE JURISDIÇÃO
Nos primórdios da humanidade, os homens resolviam seus conflitos pela força e/ou pela
violência, onde o mais forte levava vantagens sobre o mais fraco. Tínhamos, pois, a
autotutela, que é defeso ao cidadão exercê-lo, atualmente.
Com o passar do tempo, o Estado sentiu a necessidade de albergar para si a solução dos
conflitos de interesses como forma de buscar o bem comum e a paz social.
"O Estado, por uma imperiosa necessidade de sua própria destinação política, obrigou-
se pela organização constitucional de seus Poderes e pela instituição dos órgãos de sua
Justiça, a prestar assistência aos particulares, em caso de ruptura do equilíbrio jurídico, a
entregar sua contribuição jurisdicional toda vez que se verifica violação, ameaça ou
possibilidade de violação das relações de Direito assegurados pela lei", segundo João
Bonumá (apud BORGES, p. 210)
Nesse cenário surge a Jurisdição e por conseguinte o Poder Judiciário do Estado e a sua
função jurisdicional. É a Jurisdição "Poder do Estado de fazer Justiça - de dizer o
Direito (jus dicere)" (FÜHRER, 1995, p. 45)
O Estado exerce assim a substitutividade nas questões onde há controvérsias,
substituindo os litigantes para aplicar o jus dicere — dizer o Direito no caso concreto.
É, portanto, caráter da Jurisdição a substitutividade.
2. "A Jurisdição caracteriza-se pelos seguintes elementos: finalidade de realizar o Direito;
inércia, ou seja, o juiz em regra deve aguardar a provocação da parte; presença de lide,
ou seja, presença de conflito de interesse; produção de coisa julgada, ou seja,
definitividade da solução dada."
(FÜHRER, 1995, p. 45)
Através da Jurisdição o Estado garante a ordem social e a estabilidade social.
Mas, segundo o mestre Ovídio Baptista, "o Direito, antes de ser monopólio do Estado,
era uma manifestação das leis de Deus, apenas conhecidas e reveladas pelos
sacerdotes." (SILVA, 1991, p. 17). E mais na frente o mesmo afirma que "A verdadeira
e autêntica Jurisdição apenas surgiu a partir do momento em que o Estado assumiu uma
posição de maior independência, desvinculando-se dos valores estritamente religiosas, e
passando a exercer um Poder mais acentuado de controle social." (SILVA, 1991, p. 17)
Nessa órbita, podemos afirmar que a função imediata da Jurisdição ou Poder
Jurisdicional é a de dirimir os conflitos e decidir as controvérsias que refletem direta ou
indiretamente na ordem jurídica.
"A Jurisdição é criada e organizada pelo Estado precisamente com a finalidade de
pacificar, segundo a lei, os conflitos de interesses das mais diferentes espécies,
abrangendo não só os conflitos de natureza privada, mas igualmente as relações
conflituosas no campo do Direito Público."
(SILVA, 1991, p. 24)
É uma atividade provocada a atividade jurisdicional. Sem provocação, através da ação,
não há Jurisdição, porque a inércia é uma das principais características da atividade
jurisdicional. Os juízes aguardam que os interessados lhes busquem propositalmente
através da demanda ou pedido, via a ação. Precisa-se do pedido ou demanda para que o
Estado se manifeste prestando a tutela jurisdicional.
Segundo José Frederico Marques, "como função inerente à soberania do Estado, a
Jurisdição, Poder-dever de administrar a Justiça é una e homogênea, ‘qualquer que seja
a natureza jurídica do conflito que deva resolver." (apud CARNEIRO, 1991, p. 21).
Há duas espécies de Jurisdição : 1) Jurisdição penal, que lida com conflitos penais; 2)
Jurisdição civil, que cuida dos conflitos não-penais.
A Jurisdição civil divide-se em Jurisdição contenciosa e voluntária, das quais falaremos
a seguir.
III - JURISDIÇÃO CONTENCIOSA
Como vimos, o Estado mediante a Jurisdição proíbe a autotutela dos interesses
individuais conflitantes, impedindo que seja feita a Justiça através das próprias mãos.
Com isso, o Estado busca a paz jurídica, dirimindo os litígios via a força de suas
decisões, pressupondo interesse de dar segurança a ordem jurídica.
3. De acordo com MaximilianusFührer, a Jurisdição contenciosa "é a Jurisdição própria ou
verdadeira" (FÜHRER, 1995, p. 45) . Nessa atividade, o juiz compõe os litígios entre as
partes. Tem como características a ação, a lide, o processo e o contraditório ou sua
possibilidade. Presume-se que haja um litígio que origina um processo que produz a
coisa julgada.
Em suma, a Jurisdição contenciosa "tem por objetivo a composição e solução de um
litígio." (BORGES, p. 211). Esse objetivo é alcançado mediante à aplicação da lei, onde
"o juiz outorga a um ou a outro dos litigantes o bem da vida disputado, e os efeitos da
sentença adquirem definitivamente, imutabilidade em frente às partes e seus sucessores
(autoridade da coisa julgada material)".(CARNEIRO, 1991, p. 32).
Há doutrinadores que acreditam que "a expressão "Jurisdição contenciosa" é redundante
ou pleonástica, pois Jurisdição já induz, indubitavelmente, a idéia de contenda e surgem
que ao invés de Jurisdição contenciosa, Poder-se-ia denominarmos de "Jurisdição
propriamente dita" ou "Jurisdição em si mesma".
Falamos que nesse tipo de Jurisdição o Estado promove a pacificação ou composição
dos litígios. Que para havê-la deve está presente a lide, mas falhos seriam esses
conceitos senão definirmos lide, interesse, pretensão e bem da vida.
Quem melhor define de forma didática é o mestre Humberto Theodoro Júnior. Para ele,
lide ou litígio é "um conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida".
(THEODORO JÚNIOR, 1995, p.35). "Interesse é ‘posição favorável para a satisfação
de uma necessidade’ assumida por uma das partes e pretensão, a exigência de uma parte
de subordinação de um interesse alheio a um interesse próprio." (IDEM) . Já os bens da
vida são "as coisas ou valores necessários ou úteis à sobrevivência do homem, bem
como a seu aprimoramento." (IBIDEM).
Concluímos que na Jurisdição contenciosa, existem: 1) atividade jurisdicional; 2)
composição de litígios; 3) bilateralidade da causa; 4) lides ou litígios em busca ou
questionando-se direitos e obrigações contrapostas; 5) Partes - autor e réu; 6) Jurisdição;
7) ação; 8) processo; 9) legalidade estrita - o juiz deve conceder o que está na lei à uma
das partes; 10) há coisa julgada formal e material; 11) pode ocorrer a revelia; 12) há
contraditório ou a sua possibilidade.
Em linhas gerais, é essa a natureza jurídica da Jurisdição contenciosa. Procuremos a
seguir defini-la para a Jurisdição voluntária.
IV - JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
Definir a matéria em relação à natureza jurídica da Jurisdição voluntária é um tanto
polêmica e complexa. Nesse tipo de Jurisdição, "a ordem jurídica deixa a critério dos
particulares regularem, uns em face dos outros, suas relações, livremente criando,
modificando ou extinguindo direitos e obrigações recíprocas." (CARNEIRO, 1991, p.
33) .
No que diz respeito à Jurisdição voluntária, queremos novamente frisar que existe
enorme diversidade e divergências jurisdicionais e de entendimentos doutrinários.
4. A expressão "Jurisdição voluntária" teve sua origem no Direito Romano, de fonte
atribuída a Marciano no Digesto. É também chamada por muitos da Jurisdição graciosa.
Na verdade, existem três correntes que tentam explicar a natureza jurídica da Jurisdição
voluntária. Duas são clássicas, a corrente jurisdicionalista, que equipara a Jurisdição
voluntária à Jurisdição contenciosa e a corrente administrativista, que lhe confere cunho
especial por ser exercida por juízes que tratam de administração de negócios jurídicos. E
uma terceira corrente, a corrente autonomista, que cria uma outra função estatal ao lado
da trilogia dos Poderes, sendo um quarto Poder.
Faremos breves comentários sobre cada uma das correntes a seguir:
1 - CORRENTE JURISDICIONALISTA
"Sustenta que, por via da mesma, há também aplicação do Direito objetivo e tutela dos
Direitos subjetivos, embora sem conflitos. Nem por isso, porém, deixa de ter a índole da
Jurisdição contenciosa, porque é um modo de o juiz exercer atividade atingindo aqueles
dois objetivos, mesmo visando, em regra, apenas a interesses unilaterais privados. Esta
doutrina tem o amparo de juristas de diferentes nacionalidades sem aderir às idéias mais
modernas que rompem com a linha que tem o pálio da própria história."(LIMA, p.29).
Para os adeptos dessa corrente, "o processo voluntário pertence à Jurisdição e não à
administração."(BORGES, p. 212)
José Olímpio de Castro Filho afirma que "via de regra, na Jurisdição, seja contenciosa
ou voluntária, há tutela de interesses privados, enquanto que na administração domina a
tutela de interesse público, de tal sorte que na Jurisdição, seja contenciosa seja
voluntária, se trata sempre de tutelar e garantir um interesse privado protegido pela
ordem jurídica e que de outra forma permaneceria insatisfeito."( apud BORGES, p.212)
Os seguidores nacionais afirmam que tal corrente é a correta pois taxativamente a
Jurisdição é uma e una.
Conforme Amílcar de Castro, "a Jurisdição não varia de natureza."(BORGES, p. 212).
"Todas as vezes que a autoridade jurisdicional possa e deva fazer o que está proibido
aos jurisdicionados, encontra-se a mesma Jurisdição, nada importando que o assunto
seja penal ou civil; não tenha havido defesa; seja esta, ou aquela, a forma do processo;
com ou sem lide; seja ou não a sentença dotada do efeito de coisa julgada substancial;
ou deva o próprio requerente, que não foi vencido pagar as custas."(BORGES, p. 212)
Como se pode notar, dar-se uma conceituação muito ampla à Jurisdição. Dessa feita, a
Justiça não somente existe quando há litígio ou direitos em conflito. Mas, todas as vezes
que o Judiciário se manifesta a cerca do que lhe é levado à apreciar, está fazendo Justiça
no caso concreto e àqueles que submetem o problema, que seja litigioso ou não. Assim,
na Jurisdição voluntária existem Jurisdição, ação e processo.
Justificam ainda tal corrente ao afirmar que toda atividade jurisdicional depende de
"iniciativa da parte interessada", e essa é feita mediante o ajuizamento da ação. Assim,
há ação, segundo a corrente jurisdicionalista , na Jurisdição voluntária, posto que o ato
5. jurisdicional está condicionado a manifestação de vontade das partes através da ação
mesmo que não haja lide.
Portanto, o processo voluntário pertence à Jurisdição e não à administração. "Numa
palavra: a Jurisdição como Poder de julgar, é função unitária. Tem a mesma forma; a
mesma natureza; e precisamente por isso, a não ser como expressão figurada, é
indivisível pela essência do dividendo."(BORGES, p.213).
Em síntese, os principais argumentos dessa corrente são: a) na Jurisdição voluntária é
nota característica a imparcialidade do órgão encarregado de decidir; b) a garantia de
observância do Direito objetivo; c) a proteção dos interesses privados; d) é sempre um
interesse insatisfeito que provoca a atividade jurisdicional; e) a ausência de lide apenas
serve para diferenciar a Jurisdição voluntária da contenciosa; f) não se nega a existência
de Jurisdição; g) a coisa julgada é tida como efeito genérico da Jurisdição; h) Jurisdição
voluntária e Jurisdição contenciosa são partes de um mesmo ramo, a Jurisdição.
2 - CORRENTE ADMINISTRATIVISTA
Segundo essa corrente "o Estado exerce, por vários órgãos, função administrativa de
interesses privados para a devida validade, eficácia e segurança do ato, em certos casos
previstos em lei, porém a competência é, expressamente, atribuída aos juízes."(LIMA,
p.30).
Justificam tal posição dizendo que "se todas as espécies da ora Jurisdição voluntária
viesse a ser transferida para outros órgãos públicos, haveria sempre o risco de quem se
sentisse lesado provocar a atuação jurisdicional."(LIMA, p.30). Então, o Estado se
manifestaria duas vezes sobre uma mesma matéria. Evita-se assim, a duplicação do
exercício estatal na tutela dos interesses privados dos interessados.
A Jurisdição voluntária serviria como forma de cercear a vontade intrínseca dos
indivíduos, tranqüilizandoseus interesse e reduzindo as tendências de conflitos
eventuais e dando segurança à ordem social.
Para os administrativistas, o juiz ocupa uma posição sui generis no processo voluntário,
não agindo jurisdicionalmente, mas com índole administrativa, interferindo nos
negócios jurídicos sendo condiçãosinequa non de sua realidade ou complementação.
Essa atuação passa a ser constitutiva e preventiva de futuras lides.
O juiz passa a ser competente para exercer um procedimento, como denominado pelo
Código de Processo Civil, de índole especial.
Entrementes, o conceito da natureza da Jurisdição voluntária para esta corrente é como
"administração pública de interesses privados por intermédio de juiz nos casos
expressamente previstos em lei"(LIMA, p.34).
Nesse ínterim, para a corrente administrativa na Jurisdição voluntária não há litígio, não
há processo, no termo técnico da palavra, havendo meramente uma medida judicial de
caráter administrativo. Há interessados, e não partes. Nega-se a existência de coisa
julgada, não sendo Jurisdição propriamente, todavia administração pública de Direito
privado.
6. Trata-se de uma corrente poderosa e majoritária, formando uma maioria visto que no
Brasil quase todos os processualistas aderem à corrente em exame.
Os administrativistas apresentam os principais argumentos para dar resposta negativa ao
caráter jurisdicional da Jurisdição voluntária. Dentre elas podem citar: a) A presença da
discricionalidade na Jurisdição voluntária como sendo característica principal da
atividade administrativa; b) Manifestação do interesse estatal em proteger os Direitos
subjetivos: c) A atividade jurisdicional não é secundária e substitutiva, nem pressupõe
litígio; d) Tem escopo constitutivo, visando novos estados jurídicos ou ao
desenvolvimento ou ao desenvolvimento das relações existentes; e) Não se aplica o
princípio dispositivo; f) Não se produz a coisa julgada.
Por isso, "os atos de Jurisdição voluntária, portanto, para os partidários dessa corrente,
são atos administrativos - que só por tradição continuam atribuídos ao Poder Judiciário"
(REGO, p. 114).
Em suma, são estas as idéias centrais daqueles que sustentam a construção doutrinária
da Jurisdição voluntária como atividade administrativa.
3 - CORRENTE AUTONOMISTA
Essa corrente não coloca a Jurisdição voluntária nem a Jurisdição contenciosa, nem a
situa como função administrativa. Estaria a Jurisdição voluntária como uma categoria
autônoma, unitária.
Seus seguidores acreditam que deveria se acabar com o conceito tripartido de
Montesquieu, para se criar um quarto Poder, a Jurisdição voluntária.
O fato de ser uma função anômala do Poder Judiciário, não é causa para a criação de
uma quarta órbita de Poder entre as já firmados.
É a tese criada por EllioFazzalari e não teve tanta repercussão, porém, deve ser ressaltar
a autoridade do grande mestre. Esse foi autor da monografia clássica onde sustenta a
Jurisdição voluntária como un genus per sèstante. Reivindica-se, portanto, para a
Jurisdição voluntária uma posição autônoma em relação às demais funções do Estado.
Após a análise das correntes sobre a natureza jurídica da Jurisdição voluntária, notamos
quão importante é a presença de um elemento do Estado, no caso o juiz na relação,
porque este dá maior certeza jurídica na subsistência do ato e reprime ou diminui a
possibilidade futura de eventual litígio na interpretação dos fatos e na controvérsia que
possa existir entre as partes.
Ressaltamos ainda que a diferença de finalidade de atuação jurisdicional provoca
mudanças na denominação do feito, pois na Jurisdição contenciosa chama-se processo e
na Jurisdição voluntária chama-se procedimento, visto que cada Jurisdição tem suas
peculiaridades e elementos comuns, porém distintos da outra.