SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 26
Baixar para ler offline
LEITURAS
J
I
•
FlLOSÓFlCAS
R VONTBDE
DE ~CRER ·-
Os escritos de·WUUam James figuram
entre os clássicôs da psicologia e da
filosofia do~s~cuto XX. Nenhum outt:o
pensador dernonstrotf ~amanho talento
para fundir uma r:nente "científica.. com a
_.::... inqoietação espiritual.
R vontade de crer.é-para muitos.a maior
' expressão dess~capacidade de fusão e
se afirmdu no decorrer do temoo como a. .
,. .
rl)ais completa e _coer.f'nte afirmação da
necessidade da fé·na era moderna.
... · -~
Neste ensaio. Williarri ·James procede à
união de sua ciêri:cia e de sua filosofia
numa aflrmação~positiva da fé religiosa.,. .
ISDN: 85-15-02252~4 -
11 1111 Ulll~ ~·788515 022526 {,)
,..-.,
'
LEIT URAS ·~G FILOSÓFICAS
Aristóteles e ologos
Barbara Cassm
Aristóteles no século XX
Enrico Berti
Filosofia da Ciência, 2" ed.
Rubem Alves
A metáfora viva
Paul Ricoeur
Oniilismo
Franco Volpi
Ooftc1o dofilósofo estóico
Rachd Gazolla
A ordem do discurso, 6a ed.
Michel Foucault
Que t afilosofia amiga
Pierre Hadot
As razões de Aristóteles
Enrico Berti
Saber dos antigos terapia para os tempos atuais
Giovanni Reale
Sete liçõessobre o ser
jacques Maritain
Transfonnaçào da filosofia, vol. 1
Kar1-0 tto Apel
Transformação da filosofia, vol. 2
Karl-Otto Apel
A vontade de crer
William]ames
WlLUAM JAMES
Tradução:
Cecília Camargo Bartalotti
í ..
Título original:
The Wil/ to Believe
Conferência dirigida aos grêmios filosóficos da
UniversidadedeYalee Brown University,publicado
em 1896.
Diagramação
Ronaldo Hideo lnoue
Preparação
Maurü:iJJ Balthazar Leal
Revisão
Renato Rocha
Edições Loyola
Rua 1822 no 347 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
Caixa Postal 42.335 - 04299-970 7 São Paulo, SP
c{;.: (0**11) 6914-1922
~: (O**11) 6163-4275
Home page e vendas: www.loyola.com.br
Editorial: loyola@ loyola.com.br
Vendas: vendas@loyola.com.br
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta ubra
pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma
e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, induindo
jozocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema
ou banco de dados .~em permissão escrita da" Editora.
ISBN: 85-15-02252-4
~ EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2001
No recentemente publicado Life, de Leslie
Stephen, sobre seu irmão Fitz-james, há
o relato de um incidente ocorrido numa escola que
este último freqüentou quando menino. O professor,
um ceno Mr. Guest, costumava conversar com seus
alunos nos seguintes termos: "Gumey, qual é a dife-
rença entre justificação e santificação? - Stephen,
prove a onipotência de Deus!" etc. Em meio ao nos·
so livre-pensar e à nossa indiferença "harvardianos",
somos inclinados a imaginar que aqui, nesta boa e
velha universidade ortodoxa, as conversas continuam
a ser um pouco dessa ordem~ e, para mostrar a vocês
que nós, em Harvard, não perdemos todo o interesse
por esses temas vitais, trouxe comigo esta noite algo
como um sermão sobre ajustificação pela fé para ser
lido - ou melhor, um ensaio sobre a justificação da
fé, uma defesa do nosso direito a adotar uma atitude
de crença em questões religiosas,. mesmo que nosso
- -···-·-
7
William James
intelecto meramente lógico talvez não tenha sido
compelido a isso. A vontade de crer, por conseguinte,
é o título deste trabalho.
Há muito tenho defendido diante de meus alu-
nos a licitude da fé voluntariamente adotada; porém,
assim que eles se tomam intensamente imbuídos do
espírito lógico, têm como regra recusar-se a admitir
que minha argumentação seja filosoficamente lícita,
mesmo que, na verdade, tenham estado todo o tem-
po pessoalmente repletos, eles próprios, de uma ou
outra fé. Eu, no entanto, mantenho-me sempre tão
profundamente convencido de que minha posição
está correta, que este convite me pareceu uma boa
ocasião para tornar minhas afirmações mais claras.
Talvez suas mentes estejam mais abenas do que aque-
las com que tive de lidar até aqui. Serei tão pouco
técnico quanto possível, embora seja necessário co-
meçar estabelecendo algumas distinções técnicas que
nos ajudarão no final.
11
Vamos dar o nome de hipótese a qualquer coisa
que possa ser proposta à nossa crença; e, assim
8
A Vontade de Crer
como os eletricistas falam de fios vivos e morros,
falaremos das hipóteses como vivas ou mortas. Uma
hipótese viva é a que aparece como uma possibili-
dade real para a pessoa a quem é proposta. Se eu
lhes pedir para acreditar no Mahdi1
, a idéia não
criará nenhuma conexão elétrica com a natureza de
vocês - ela se recusa a cintilar com qualquer cre-
dibilidade que seja. Como hipótese, é completa-
mente morta. Para um árabe, porém (mesmo que ele
l. [N. do R.] A crença no mahdiparece ter-se originado da con-
fusão resultante das lutas religiosas e políticas ocorridas nos primór-
dios do islamismo, nos séculos Vll e VIII.
Na escatologia islâmica, o mahdi (em árabe, "aquele que é guia-
do por Deus") é o libertador messiânico que v;rá no fim dos tempos
para restabelecer ajustiça e a eqüidade no mundo, restaur;:;r a verda-
deira religião e a purezados costumes e anunciar uma breve idade de
ouro, que durará entre sete e nove anos ames do fim do mundo.
A doutrina do mahdi não consta do Alcorão nem pode ser defi-
nida de nenhum hadith (sentença de Maomé). Os teólogos sunítas
onodoxos põem em dúvida essa crença, que no entanto é aceita pc-
los xiitas. Nos tempos de crise, a crença tende a ganhar força entre os
fiéis. Uma vez que o mahdi é lido como restaurador do poder políti-
co e da ortodoxia religiosa islâmica, o título costuma ser reivindica-
do peloslíderes revolucionários da comunidade islâmica. Assim ocor-
reu, por exemplo, com Ubayd Allah, fundador da dinastia dos
fatimidas (909); Mohamed ibn Tuman, que fundou no Marrocos, no
sér.ulo Xll , o imptrio almõaoa: e: Mohame.d Ahmad, mahdi do Sudão,
que se revoltou em 1881 contra a administração egípcia.
9
Williom Jomes
não seja um dos seguidores de Mahdi), a hipótese
está entre as possibilidades da mente: ela é viva. Isso
mostra que o caráter vivo ou morto de uma hipó-
tese não é uma propriedade intrínseca, mas está re-
lacionado ao pensador individual. É medido pela.dis-
posição do indivíduo para agir. O máximo de vida
em uma hipótese significa uma disposição irre-
vogável para agir. Na prática, isso representa crença;
mas há alguma tendência de crença sempre que exis-
te alguma disposição a agir.
Em seguida, vamos chamar de opção a decisão
entre duas hipóteses. As opções podem ser de vários
tipos: l) vivas ou mort.as; 2) forçosas ou evitáveis; 3)
prementes ou triviais; e, para nossos propósitos, pode-
mos chamar uma opção de genuína quando ela é do
tipo vivo, forçoso e premente.
1. A opção viva é aquela em que ambas as hi-
póteses são vivas. Se lhes digo: "Sejam teosofistas
ou sejam muçulmanos", esta possivelmente é uma
opção morta, porque é provável que, para vocês, ne-
nhuma das duas hipóteses seja viva. Mas, se eu digo:
"Sejam agnósticos ou sejam cristãos", a situação será
diferente: pela formação que vocês têm, cada uma
dessas hipóteses tem algum apelo, mesmo quepe-
queno, à sua crença.
10
A Vontade de Crer
2. Em seguida, se lhes digo: "Escolham entre sair
com o guarda-chuva ou sem ele", eu não lhes ofere-
ço uma opção genuína, pois ela não é forçosa. Vocês
podem evitá-la facilmente decidindo não sair. De
maneira semelhante, se eu digo: "Amem-me ou
odeiem-me", "Chamem minha teoria de verdadeira
ou chamem-na de falsa", sua opção é evitável. Vocês
podem permanecer indiferentes a mim, sem me amar
nem me odiar, e podem recusar-se a fazer qualquer
julgamento a respeito de minha teoria. ·Porém, se
digo: "Aceitem esta verdade ou passem sem ela", eu
lhes apresento uma opção forçosa, pois não há ne-
nhuma posição fora das alternativas. Todo dilema ba-
seado numa disjunção lógica completa, sem nenhu-
ma possibilidade de não escolher, é uma opção des-
se tipo forçoso.
3. Por fim, se eu fosse o doutor Nansen e lhes
propusesse participar de minha expedição ao Pólo
Norte, sua opção seria premente, pois essa provavel-
mente seria a única oportunidade semelhante, e sua
escolha nesse momento o excluiria de vez da imor-
talidade proporcionada pela experiência ou, ao con-
trário, poria pelo menos uma chance disso em suas
mãos. Aquele que se recusa a abraçar uma oportu-
nidade única perde o prêmio tão certamente como
se tivesse tentado e falhado. Per contra, a opção é tri-
11
Williom Jomes
- -
vial quando a oportunidade não é única, quando o
que está em jogo é insignificante, ou quando a de-
cisão é reversível se, posteriormente, se revela equi-
vocada. Tais opções triviais são abundantes na·vida
científica. Um químico julga uma hipótese viva o
suficiente para que passe um ano verificando-a: ele
acredita nela a esse ponto. Porém, se suas experiên-
cias se mostram inconclusivas em algum aspecto, ele
está redimido de sua perda de tempo, nenhum dano
essencial foi causado.
Nossa discussão será facilitada se mantivermos
essas distinções em mente.
A próxima questão a considerar é aprópria psico-
logia da opinião humana. Quando olhamos certos fa-
tos, é como se nossa natureza passional e volitiva se
encontrasse na raiz de todas as nossas convicções.
Quando olhamos para outros, parece-nos que eles não
poderiam fazer mais nada após o intelecto ter dado seu
veredicto. Vamos examinar este último caso primeiro.
Não parece despropositado, diante disso, supor
que nossas opiniões possam ser modificáveis de acor-
12
A Vontade de Crer
do com a nossa vontade? Pode nossa vontade ajudar
ou atrapalhar o intelecto em suas percepções da ver-
dade? Podemos nós, pelo simples desejo, acreditar
que a existência de Abraham Lincoln é um mito e
que seus retratos na McClure's Magazine são de algu-
ma outra pessoa? Podemos nós, por qualquer esfor-
ço da vontade, ou por qualquer força do desejo de
que isso seja verdade, acreditar que estamos bem
quando nos encontramos na cama gemendo de reu-
matismo, ou sentir-nos seguros de que a soma das
duas notas de l dólar que temos no bolso deve ser
100 dólares? Podemos dizer qualquer uma dessas
coisas, mas nos é absolutamente impossível acredi-
tar nelas; e exatamente dessas coisas é constituída
Loda atessitura das verdades em que acreditamos-
fatos estabelecidos, imediatos ou remotos, como dis-
se Hume, e relações entre idéias, que existem ou não
para nós na medida em que as vemos assim, e que,
se não existirém, não poderão ser introduzidas por
nenhuma ação de nossa parte.
Nos Pensamentos de Pascal, há uma célebre passa-
gem conhecida na literatura como a aposta de Pascal.
Nela, ele tenta nos convencer a adotar o cristianismo
argumentando como se nossa preocupação com a ver-
dade se assemelhasse a nossa preocupação com as
apostas numjogo de azar. Traduzidas livremente, suas
13
William Jomes
---
palavras são as seguintes: é preciso acreditar ou não
acreditar que Deus existe- o que você fará? Suara-
zão humana não pode dizer. Entre você e a natureza
das coisas está acontecendo um jogo que, no dia do
juízo, dará cara ou coroa. Pese quais seriam seus ga-
nhos e suas perdas se você apostasse tudo o que tem
na cara, ou na existência de Deus: se você ganhar
nesse caso, o prêmio será a beatitude eterna; se per-
der, não perderá absolutamente nada. Se houvesse
uma infinidade de chances e apenas uma para Deus
nessa aposta, ainda assim seria aconselhável apostar
tudo em Deus, pois, embora certamente você se ar-
riscasse a uma perda finita por esse procedimento,
qualquer perda finita é razoável, mesmo uma perda
certa é razoável, caso haja uma mínima possibilida-
de de ganho infinito. Vá em frente, então, e use água
benta, encomende missas; a crença virá e estupidi-
ficará seus escrúpulos - Cela vousfera croire et vous
abêtira. Por que não? No fim das contas, o que você
tem a perder?
Vocês provavelmente sentirão que, quando a fé
religiosa se expressa dessa maneira, na linguagem da
mesa de jogos, é sinal de que está reduzida a seus úl-
timos trunfos. Certamente a própria crença pessoal
de Pascal em missas e na água benta tinha razões bem
outras; e essa sua página famosa não passa de uma
A Vontade de Crer
argumentação dirigida aos outros, uma última bus-
ca desesperada de uma arma contra a inflexibilida-
de do coração descrente. Parece-nos que a fé em mis-
sas e água benta adotada intencionalmente após tal
cálculo mecânico seria desprovida da alma interior
da realidade da fé; e, se estivéssemos nós mesmos no
lugar da Divindade, provavelmente teríamJs um pra-
zer especial em excluir os crentes dessa espécie de sua
recompensa infinita. É evidente qm:, a menos que
haja alguma tendência preexistente ;1 acreditar em
missas e água benta, a opção oferecida à vontade por
Pascal não é uma opção viva. Certamente nenhum
turco jamais voltou-se para missas e água benta por
causa dessa argumentação; e mesmo para nós, pro-
testantes, esses meios de salvação parecem impossi-
bilidades tão previsíveis, que a lógica de Pascal, in-
vocada especificamente para eles, não nos comove.
Seria como se Mahdí nos escrevesse dizendo: "Sou
o Esperado que Deus criou em seu resplendor. Se-
reis infinitamente felizes se professardes vossa féem
mim; caso contrário, sereis excluídos da luz do sol.
Pesai, portanto, vosso ganho infinito, se eu for genuí-
no, em comparação com vosso sacrifício finito, se eu
não for!" Sua lógica seria a mesma de Pascal; no en-
tanto, ele a usaria em vão conosco, pois a hipótese
que ele nos oferece é morta. Não há em nós nenhu-
ma tendência a agir com base nela.
15
Wi!liom Jomes
A discussão quanto a acreditar por nossa própria
vontade parece então, sob certo ponto de vista, sim-
plesmente tola. Sob outro ponto de vista, ela é pior do
que tola, é vil. Quando nos voltamos para o magnífico
edifício das ciências físicas e vemos como foi construí-
do, quantos milhares de vidas morais desinteressadas
encontram-se enterradas em suas fundações, que pa-
ciência e postergação, que sacrifício de preferências,
que submissão às leis gélidas do fato externo estão gra-
vados em suas pedras e em seu cimento, quão absolu-
tamente impessoal ele se ergue em sua vasta majesta-
de- diante disso, quão estúpido e desprezível pare-
ce cada pequeno sentimentalista que vem soprando
suas voluntárias espirais de fumaça e pretendendo de-
cidir coisas a partir de seu próprio sonho pessoal! Po-
demos ter alguma dúvida de que aqueles criados na
escola árdua e briosa da ciência terão vontade de vo-
mitar tal subjetivismo de sua boca? Todo o sistema de
lealdades que cresce nas escolas de ciência ergue-se
contra sua tolerância; assim, é natural que aqueles que
pegaram a febre científica passem para o extremo opos-
to e escrevam às vezes como se o intelecto inconupti-
velmente confiável devesse sem hesitação preferir
amargor e inaceitabilidade ao coração inebriado.
Fortalece minha alma saber
Que, embora eu pereça, a Verdade é esta-
16
A Vontade de Crer
canta Clough, enquanto Huxley exclama: "Meu úni-
co consolo está na reflexão de que, por pior que nos-
sa posteridade possa se tornar, enquanto eles adota-
rem a regra simples de não fingir acreditar no que não
têm razão para acreditar, porque talvez seja vantajo-
so para eles assim fingir [a palavra "fingir" é cenamen-
te redundante aqui], não terão atingido o nível mais
baixo de imoralidade". E o delicioso enfant tenible
Clifford escreve: "A crença é profana quando conferi-
da a afirmações não-provadas e não-questionadas,
pelo conforto e prazer pessoal do crente.... Quem
quer que deseje a consideração de seus pares nessa
questão deve guardar a pureza de sua crença com um
verdadeiro fanaúsmo de cuidado atento, para que ela
não venha a pousar de repente sobre um objeto in-
digno e adquirir uma mancha que jamais poderá ser
removida... Se [uma} crença tiver sido aceita com base
em evidências insuficientes [mesmo que a crença seja
verdadeira, como Clifford explica na mesma página],
o seu é um prazer roubado.... Ela é pecadora porque
é roubada em desrespeito a nossa obrigação para com
a humanidade. Essa obrigação é nos guardar de tais
crenças como de uma peste que pode rapidamente
dominar nosso próprio corpo e, depois, se espalhar
para o resto da cidade.... É sempre errado, em toda
pane, e para qualquer pessoa, acreditar em qualquer
coisa com base em evidências insuficientes".
17
WilliomJames
- - -
11 11 11
Tudo isso soa muito saudável, mesmo quando
expresso,como no caso de Clifford, comum certo ex-
cesso de pathos ruidoso na voz. A livre vontade e o sim-
ples desejo parecem, no contexto de nossas convicções,
não passar de rodas sobressalentes para o condutor. No
entanto, se alguém pressupusesse, em vista disso, que
o discernimento intelectual é o que permanece depois
que o desejo, a vontade e a preferência sentimental
tiverem sido removidos, ou que a razão pura é o que
então determina nossas opiniões, estaria voando con-
tra os fatos de forma igualmente direta.
São apenas nossas hipóteses já monas que nossa
natureza volitiva é incapaz de trazer de volta à vida.
Mas o que as fez mortas para nós foi, essencialmente,
uma ação prévía de um tipo antagônico por parte de
nossa natureza volitiva. Quando digo "natureza voli-
tiva", não me .refiro apenas àsvolições deliberadas que
podem ter estabelecído hábitos de crença dos quais
não conseguimos escapar- refiro-me a todos os fa-
tores de crença, como medo e esperança, preconceito
e paixão, imitação e participação, a pressão circundan-
te de nossa classe e nosso círculo social. Na verdade,
nós nos pegamos acreditando sem saber ao certo como
18
A Vontade de Crer
ou por quê. O senhor Balfour dá o nome de "autori-
dade" a todas essas influências, nascidas do clima in-
telectual, que tomam hipóteses possíveis ou impos-
síveis para nós, vivas ou mortas. Aqui nesta sala, to-
dos acreditamos em moléculas e na conservação da
energia, em democracia e no progresso necessário, no
cristianismo protestante e no dever de lutar pela "dou-
trina do imortal Monroe", tudo isso sem nenhuma
razão que mereça esse nome. Olhamos essas questões
sem mais clareza interior, e provavelmente com mui-
to menos,do que qualquer descrente poderia possuir.
Ainconvencionalidade deste último provavelmente te-
ria alguma base a oferecer para suas conclusões; para
nós, porém, não o discernimento, mas o prestígio das
opiniões é o que as faz emitir a centelha e acender
nosso pavio adormecido da fé. Nossa razão estará per-
feitamente satisfeita, em novecentos e noventa e nove
casos em cada mil de nós, se puder encontrar alguns
argumentos para apresentar no caso de nossa credu-
lidade ser criticada por alguém. Nossa fé é a fé na fé
de outro e, nas maiores questões, esse é quase sem-
pre o caso. Nossa crença na própria verdade, por exem-
plo, de que existe uma verdade e de que nossa mente
e essa verdade são feitas uma para a outra- o que é
isso senão uma afirmação apaixonada de desejo, em
que nosso sistema social nos dá suporte? Queremos
ter uma verdade; queremos acredítar que nossas ex-
19
William James
periências, nossos estudos e nossas discussões devem
nos colocar numa posição continuamente melhor para
isso: e, seguindo essa linha, concordamos em lutar
para levar adiante nossa vida pensante. Mas, se um
céptico pirrônico nos perguntar como sabemos tudo
isso, será que nossa lógica poderá encontrar uma res-
posta? Não! Certamente não poderá. É apenas uma vo-
lição contra outra - nós, dispostos a encarar a vida
com base em uma confiança ou pressuposição que
ele, por seu lado, não acha importante adotar.
Como regra, desacreditamos de todos os fatos e
teorias para os quais não temos uso. As emoções cós-
micas de Clifford não têm nenhum uso para os sen-
timentos cristãos. Huxley ataca os bispos porque não
há uso para o sacerdotalismo em seu esquema de
vida. Newman, ao contrário, volta-se para o catoli-
cismo romano ejulga ter todo tipo de boas razões pa-
ra permanecer lá, porque um sistema sacerdotal é,
para ele, uma necessidade e um prazer orgânicos. Por
que tão poucos "cientistas" chegam a pelo menos exa-
minar as evidências a favor da chamada telepatia? Por-
que acham, como um.importante biólogo, já morto,
certa vez me disse, que mesmo que tal coisa fosse ver-
dadeira os cientistas deveriam se unir para mantê-la
suprimida e escondida. Ela desfaria a uniformidade
da Natureza e todo o tipo de outras coisas sem as
20
A Vontade de Crer
quais os cientistas não podem levar adiante seus pro-
jetos. Porém, se a esse mesmo homem fosse mostra-
do algo que ele, como cientísta, pudesse fazer com a
telepatia, ele talvez tivesse não só examinado as evi-
dências, mas até asjulgado suficientemente boas. Essa
própria lei que os lógicos pretendem impor a nós-
se posso chamar de lógicos os que descartariam nos-
sa natureza volitiva nessa questão - é baseada em
nada mais do que em seu próprio desejo natural de
excluir todos os elementos para os quais eles, em seu
atributo profissional de lógicos, não podem encon-
trar um uso.
É evidente, portanto, que nossa natureza não-
intelectual influencia de fato nossas convicções. Há
tendências passionais e volições que vêm antes e ou-
tras que vêm depois da crença, e são apenas estas úl-
timas que estão atrasadas para a festa; e não estão
atrasadas quando o trabalho passional anteriorjá foi
em sua direção. O argumento de Pascal, em vez de
ser ineficaz, parece então um argumento válido, e é
a última pincelada necessária para tomar nossa fé em
missas e água benta completa. O estado de coisas,
evidentemente, está longe de ser simples; e puro dis-
cernimento e lógica, o que quer que possam fazer
idealmente, não são as únicas coisas que de fato pro-
duzem nossos credos.
21
William Jomes
liV
Tendo reconhecido esse confuso estado de coisas,
nossa próxima tarefa é indagar se ele é simplesmente
repreensível e patológico ou, ao contrário,se devemos
tratá-lo como um elemento normal ao tomar nossas
decisões. Em poucas palavras, a tese que defendo é a
seguinte: "Nossa natureza passional não só pode, como
deve, licitamente decidir-se poruma opção entre proposi-
çõessempre que estafor uma opçãogenuína quenãopos-
sa, porsua natureza, serdecidida sobre bases intelectuais·
'
pois dizer, nessas circunstâncias: 'Não decida, deixe a
questão em aberto' é, porsi só, uma decisão passional -
assim como decidir sim ou não - e acompanha-se do
mesmo risco deperderaverdade". Atese, assim abstra-
tamente expressa, logo irá, espero, tomar-se bastante
clara. Mas antes é necessário mais um pouco de tra-
balho preliminar.
v
Será observado que, para os propósitos desta dis-
cussão, estamos em terreno "dogmático" ~ ou seja,
terreno que deixa o cepticismo filosófico sistem~ti-
22
A Vontade de Crer
co totalmente fora da questão. O postulado de que
existe verdade, e de que é o destino de nossa mente
alcançá-la, é algo que estamos decidindo deliberada-
mente adotar, embora o céptico não pense assim. As-
sim, separamo-nos dele de forma absoluta neste pon-
to. Mas a fé de que a verdade existe, e de que nossas
mentes podem encontrá-la, pode ser mantida de
duas maneiras. Podemos falar do modo empirista e
do modo absolutista de acreditar na verdade. Os ab-
solutistas, a esse respeito, dizem que não só podemos
chegar a conhecer a verdade como podemos saber
quando chegamos a conhecê-la; enquanto os empi-
ristas dizem que, embora possamos alcançá-la, não
podemos saber infalivelmente quando. Saber é uma
coisa, e saber com certeza que sabemos é outra. É pos-
sível afirmar que o primeiro é possível sem o segun-
do; daí os empiristas e os absolutistas, conquanto ne-
nhum deles seja céptico no sentido filosófico usual
do termo, apresentarem diferentes graus de dogma-
tismo em suas vidas.
Se examinarmos a história das opiniões, veremos
que a tendência empirista tem, em grande medida,
prevalecido na ciência, ao passo que, na filosofia, a
tendência absolutista tem tido a última palavra.O tipo
característico de felicidade, de fato, que as filosofias
produzem tem consistido basicamente na convicção
23
Williom Jomes
sentida por cada escola ou sistema sucessivo de que,
por seu intermédio, a certeza definitiva foi obtida.
"Outras filosofias são coleções de opiniões, em sua
maioria falsas; a minha filosofia oferece uma base só-
lida para sempre"- quem não reconhece nisto a nota
dominante de todos os sistemas dignos desse nome?
Um sistema, para que seja realmente umsistema, deve
vir como um sistemafechado, reversível neste ou na-
quele detalhe, talvez, mas, em suas características es-
senciais, jamais!
A ortodoxia escolástica, à qual sempre é preci-
so recorrer quando se deseja encontrar afirmações
perfeitamente claras, fez uma bela elaboração dessa
convicção absolutista numa doutrina que ela chama
de "evidência objetiva". Se, por exemplo, sou inca-
paz de duvidar de que eu agora existo diante de vo-
cês, de que dois é menos do que três ou de que, se
todos os homens são mortais, então eu também sou
mortal, é porque essas coisas iluminam meu intelec-
to de forma irresistível. A base decisiva dessa evidên-
cia objetiva possuída por certas proposições é o
adrequatio intellectus nostri cum re [adequação de nos-
so intelecto à realidade]. Acerteza que ela traz envol-
ve uma aptitudinem ad extorquendum certum assensum
[capacidade de fazer surgir uma anuência segura]
por parte da verdade intuída e, por pane do sujeito,
24
A Vontade de Cret
uma quietem in cognitione [confiança serena no conhe-
cimento], pelo qual, uma vez tendo sido o objeto
mentalmente recebido, ele não deixa atrás de si ne-
nhuma possibilidade de dúvida~ e, na transação como
um todo, nada opera além do entitas ipsa [o próprio
ser] do objeto e do entitas ipsa da mente. Nós, negli-
gentes pensadores modernos, não gostamos de falar
em latim- de fato, não gostamos de falar em ne-
nhum termo estabelecido~ no fundo, porém , nosso
próprio estado mental segue de perto esse modelo
sempre que nos abandonamos de forma não-crítica:
você acredita em evidência objetíva e eu também. De
certas coisas, consideramos estar seguros: sabemos,
e sabemos que sabemos. Há algo que dá um "clique''
dentro de nós, um sino que toca as doze badaladas,
depois de os ponteiros de nosso relógio mental terem
percorrido todo o mostrador e chegado à hora meri-
diana. Os maiores empiristas entre nós são apenas
empiristas em reflexão: quando deixados a seus ins-
tintos, eles dogmatizam como papas infalíveis. Quan-
do os Cliffords nos dizem como é pecaminoso ser cris-
tão com base em tais "evidências insuficientes", a in-
suficiência é, na realidade, a última coisa que eles têm
em mente. Para eles, a evidência é absolutamente su-
ficiente, só que segue o caminho oposto. Eles acredi-
tam tão completamente numa ordem anticristã do
25
Williom Jomes
universo, que não há uma opção viva: o cristianismo
é uma hipótese morta desde o inlcio.
VIl
Mas então, já que somos todos absolutistas por
instinto, o que, em nossa qualidade de estudantes de
fílosofia, devemos fazer a respeito desse fato? Deve-
mos adotá-lo e endossá-lo?Ou devemos tratá-lo como
uma fraqueza de nossa natureza da qual precisamos
nos libertar, se pudermos?
Acredito sinceramente que o segundo curso é o
único que podemos seguir como homens reflexivos.
Evidência objetiva e certeza são, sem dúvida, ideais
muito bons para se trabalhar, mas onde neste pla-
neta iluminado pela lua e visitado pelos sonhos são
encontradas? Sou pessoalmente, portanto, um com-
pleto empirista no que tange à minha teoria do co-
nhecimento. Vivo, de fato, de acordo com a fé prá-
tica de que devemos seguir experimentando e refle-
tindo sobre nossa experiência, pois só assim nossas
opiniões podem se tornar mais verdadeiras; porém,
acredito ser uma atitude tremendamente equivoca-
da adotar qualquer uma delas - para mim é total-
26
AVontade de Crer
mente indiferente qual - como se nunca pudesse
ser reinterpretável ou corrigivel, e acho que toda a
história da filosofia me apoiará nisso. Há apenas urna
verdade indefectivelmente certa, e essa é a verdade
que o próprio ceptícismo pirrônico deixa intocada
- a verdade de que o presente fenômeno da cons-
ciência existe. Esse, porém, é o mero ponto de par-
tida do conhecimento, a simples admissão de algo
sobre o que filosofar. As várias filosofias não passam
de muitas tentativas de expressar o que esse algo
realmente é. E, se formos a nossas bibliotecas, quan-
ta divergência descobriremos!Onde pode ser encon-
trada uma resposta seguramente verdadeira? À par-
te as proposições abstratas de comparação (como
dois mais dois é igual a quatro), proposições que não
nos dizem nada por si sós sobre a realidade concre-
ta, não encontramos nenhuma proposição que já
tenha sido considerada por qualquer um evidente-
mente certa, que não tenha também sido chamada
de falsa, ou que pelo menos não tenha tido sua ver-
dade sinceramente questionada por outro alguém.
A superação dos axiomas da geometria,não de brin-
cadeira mas a sério, por alguns de nossos contem-
porâneos (como Zõllner e Charles H. Hinton) e are-
jeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos
são exemplos marcantes.
27
WilliomJomes
Nenhum teste concreto do que é realmente ver-
dadeiro encontrou consenso até hoje. Alguns adotam
um critério exterior ao momento da percepção, pon-
do-o na revelação,o consensusgentium [consenso uni-
versal das nações] , nos instintos do coração ou na
experiência sistemalizada da raça. Outros fazem do
momento da percepção o seu próprio teste - Des-
cartes, por exemplo, com suas idéias claras e distin-
tas garantidas pela veracidade de Deus;Reid com seu
"bom senso"; e Kant com suas formas de julzo sinté-
tico a priori. A inconcebibilidade do oposto; a capa-
cidade de ser verificável pelo raciocinio; a posse de
completa unidade orgânica ou auto-relação, concre-
tizada quando uma coisa é seu próprio outro -são
padrões que, cada um por sua vez, foram utilizados.
A muito louvada evidência objetiva nunca está triun-
fantemente presente, é mera aspiração ou Grenzbegriff
[conceito sobre o limite], marcando o ideal infinita-
mente remoto de nossa vida pensante. Afirmar que
certas verdades agora a possuem é simplesmente di-
zer que, quando as pensamos como verdadeiras e elas
são verdadeiras, então sua evidência é objetiva, caso
contrário não o é. Porém, na prática, a convicção de
uma pessoa de que a evidência que e1a adota é de fato
do tipo objetivo é apenas mais uma opinião subjeti-
va acrescentada às demais. Que variedade de opiniões
contraditórias tiveram reivindicadas para sievidência
28
A Vontade de Crer
objetiva e certeza absoluta! O mundo é racional por
completo- sua existência é um fato concreto defi-
nitivo; há um Deus pessoal - um Deus pessoal é in-
concebível; há um mundo fisico extramental imedia-
tamente conhecido- a mente só pode conhecer suas
próprias idéias; existe um imperativo moral- a obri-
gação é apenas o resultante de desejos; um princípio
espiritual permanente está em todos - há apenas es-
tados fluidos da mente; há uma infindável cadeia de
causas - há uma primeira causa absoluta; uma ne-
cessidade eterna- uma liberdade; um propósito-
nenhum propósito; o Um primordial - um Muitos
primordial; uma continuidade universal- uma des-
continuidade essencial nas coisas; uma infinitude -
nenhuma infinitude. Há isto- há aquilo; não há de
fato nada que alguém não tenhajulgado absolutamen-
te verdadeiro enquanto seu vizinho considerava ab-
solutamente falso; e nenhum absolutista entre eles pa-
rece jamais ter suposto que o problema pode todo o
tempo ser essencial, e que o intelecto, mesmo com a
verdade diretamente ao seu alcance, pode não ter
nenhum sinal infalível para saber se ela é verdade ou
não. Quando, de fato, lembramos que a mais notá-
vel aplicação prática à vida da doutrina da certeza ab-
soluta foram os trabalhos escrupulosos do Santo Ofí-
cio da lnquisição, sentimo-nos menos tentados do
que nunca a dar ouvidos respeitosos a ela.
29
Williom Jomes
---
Mas, por favor, observemos agora que quando;
como empiristas, abandonamos a doutrina da certe-
za objetiva, não estamos, em conseqüência, abando-
nando a busca ou a esperança da verdade propriamen-
te dita. Ainda centramos nossa fé em sua existência e
ainda acreditamos que ganhamos uma posição cada
vez melhor em direção a ela ao continuarmos sistema-
ticamente somando experiências e reflexões. Nossa
grande diferença em relação ao escolástico estáno lado
para o qual nos voltamos. A força do sistema dele en-
contra-se nos princípios, na origem, no terminusaquo
de seu pensamento; para nós, a força está no resulta-
do, no desfecho, no terminus ad quem. O que decide
a situação para nós não é de onde vem, mas para onde
leva. Não importa para umempirista de que pane uma
hipótese pode chegar até ele; ele pode tê-la obtido por
meios decentes ou não; a paixão pode tê-la sussurra-
do ou o acidente a sugerido; porém, se a tendência
total do pensamento continua a confirmá-la, isso é o
que ele leva em conta para considerá-la verdadeira.
VIII!
Mais um ponto, pequeno porém importante, e
nossos preliminares estarão encerrados. Há dois mo-
dos de olhar para nossa tarefa na questão da opinião
30
A Vontade de Crer
- modos inteiramente diferentes, no entanto modos
cuja diferença não parece ter sido motivo de muita
preocupação, até o momento, para a teoria do conhe-
cimento. Precisamos conhecer a verdade; e precisamos
evitar oe-rro - estes são nossos primeiros e grandes
mandamentos como conhecedores potenciais; mas
não são duas maneiras de expressar um mandamen-
to idêntico: são duas leis separadas. Embora de fato
possa acontecer que, quando acreditamos na verda-
de A, escapamos, como conseqüência incidental, de
acreditar na falsidade B, quase nunca acontece que,
por meramente não acreditar em B, necessariamente
acreditemos em A. Podemos, ao escapar de B, cair na
crença de outras falsidades, Cou D, tão ruins quanto
B; ou podemos escapar de B por não acreditar em
absolutamente nada, nem mesmo em A.
Acreditar na verdade!Evitar o erro!-estas, corno
vemos, são duas leis materialmente diferentes; e, ao
escolher entre elas, podemos acabar dando um colo-
rido diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos
perceber a busca da verdade como fundamental, e a
evitação do erro como secundária; ou podemos, por
outro lado, tratar a evitação do erro como mais impe-
rativa, e deixar a verdade arriscar-se. Clifford, na pas-
sagem instrutiva que citei, exorta-nos a este último
curso. Não acreditem em nada, nos diz ele, mantenham
a mente para sempre em incerteza, preferivelmente a
31
William James
se decidir com base em evidências insuficientes e in-
correr no risco terrível de acreditar em mentiras. Vo-
cês, por outro lado, podem achar que o risco de es-
tar em erro é uma questão muito pequena quando
comparada à bênção do conhecimento real, e estar
dispostos a se descobrir enganados muitas vezes em
suas investigações em vez de adiar indefinidamente
a chance de fazer uma suposição verdadeira. Pessoal-
mente, acho impossível concordar com Clifford. Pre-
cisamos lembrar que esses sentimentos quanto à nos-
sa tarefa em relação à verdade ou ao erro são,de qual-
quer forma, apenas expressões de nossa vida pas-
sional. Biologicamente considerada, nossa mente está
tão pronta para se dedicar à falsidade como à veraci-
dade, e aquele que diz "Melhor ficar para sempre sem
crença do que acreditar numa mentira!" meramente
mostra a preponderância de seu próprio horror pes-
soal a passar por tolo. Ele pode ser crítico em relação
a muitos de seus desejos e medos, mas, a esse medo,
ele submissamente obedece. Não pode imaginar que
alguém questione sua força restritiva. De minha par-
te, tenho horror a me ver enganado, mas acredito que
coisas piores do que estar enganado podem aconte-
cer a um homem neste mundo: assim, a exortação de
Clifford tem,a meus ouvidos, um som completamente
fantástico. É como um general informando seus sol-
dados que é melhor manter-se para sempre fora da ba-
32
A Vontade de Crer
talha do que se arriscar a um único ferimento. Não é
assim que se obtêm vitórias sobre inimigos ou sobre
a natureza. Nossos erros seguramente não são coisas
tão solenemente terríveis. Num mundo em que é tão
certo que venhamos a incorrer neles apesar de toda a
nossa cautela, um pouco de leveza de coração parece
maissaudável do que esse nervosismo excessivo quan-
to ao próprio comportamento. De qualquer forma,
esta parece ser a atitude mais adequada para o filó-
sofo empirista.
E agora, depois de toda essa introdução, vamos
direto à nossa questão. Eu disse, e agora repito, que
não só encontramos nossa natureza passional nos in-
fluenciando em nossas opiniões como um processo
natural, como também que há algumas opções entre
opiniões em que essa influência deve ser vista como
um determinante inevitável e lícito de nossa escolha.
Temo que aqui alguns de vocês começarão a pres-
sentir perigo e passarão a me dedicar ouvidos menos
hospitaleiros. Dois primeiros passos passionais vocês
já tiveram de admitir como necessários- precisamos
33
Williom Jomes
pensar para evitar ser iludidos e precisamos pensar
para chegar à verdade; porém, o caminho mais segu-.
ro para essas consumações ideais, vocês provavelmen-
te considerarão, é, de agora em diante, não dar mais
nenhum passo passional.
Bem, claro, concordo na medida em que os fatos
permitam. Sempre que a opção entre perder a verda-
de ou ganhá-la não estiver premente, poderemosjogar
fora a chance de ganhar a verdade e pelo menos pou-
parmo-nos de qualquer chance de acredítaremfalsída-
des, não fazendo nenhuma escolha até que apareçam
evidências objetivas. Em questões científicas, este é
quase sempre o caso; mesmo emassuntos humanos de
urna forma geral, a necessidade de agir raramente é tão
urgente a ponto de ser melhor agir com base numa
crença falsa do que em crença nenhuma. Os tribunais
de justiça, de fato, têm de decidir com base nas me-
lhores evidências obteníveis no momento, porque a
tarefa de um juiz é tanto fazer a lei como verificá-la, e
(como um juiz douto certa vez me disse) poucos ca-
sos são merecedores de que se gaste muito tempo ne-
les: o bom é decidi-los com base em qualquer princí-
pio aceitável e tirá-los do caminho. Porém, em nossa
relação com a natureza objetiva, somos evidentemen-
te registradores, e não criadores, da verdade; e decisões
tomadas com o simples propósito de decidir sem de-
34
A Vontade de Crer
mora e passar para o próximo assunto seriam totalmen-
te inadequadas. Por toda a extensão da natureza físi-
ca, os fatos são o que são, independentemente de nós,
e é raro que haja tanta pressa em relação a eles que pre-
cisemos enfrentar os riscos de ser iludidos por acredi-
tar numa teoria prematura. As questões aqui são sem-
pre opções triviais, as hipóteses dificilmente são vivas
(de qualquer forma, não são vivas para nós, especta-
dores), a escolha entre acreditar na verdade ou na fal-
sidade raramente é forçosa. A atitude de meio-termo
céptico será, portanto, a mais sábia se desejarmos es-
capar de enganos. Que diferença faz, de fato, para a
maioria de nós se temos ou não uma teoria sobre os
raios Rõntgen, se acreditamos ou não nas coisas da
mente ou se temos uma convicção quanto à causalida-
de dos estados conscientes? Não faz nenhuma diferen-
ça. Tais opçõesnão são forçosas para nós. Em todos os
sentidos, é melhor não as fazer e, em atitude de indi-
ferença, continuar pesando razões pro et contra.
Falo aqui, claro, nos termos da reflexão puramen-
te crítica. Para propósitos de descoberta, tal indiferen-
ça seria menos altamente recomendável, e a ciência
seria muito menos avançada do que é, se os desejos
passionais dos indivíduos de versuas próprias fés con-
firmadas tivessem sido mantidos fora dojogo. Vejam,
por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann
35
William James
agora apresentam. Por outro lado, se quiserem ver um
néscio absoluto numa investigação, deverão pegar al-
guém que não tenha nenhum interesse em seus resul-
tados: ele é o incapaz rematado, o indiscutível inep-
to. O investigadormais útil, por ser o observador mais
sensível, é sempre aquele cujo interesse por um lado
da questão é equilibrado por um receio igualmente
ansioso de estar enganado. A ciência organizou esse
receio numa técnica regular, seu chamado método de
verificação, e se apaixonou de tal forma por esse mé-
todo que seria mesmo possível dizer que deixou de
se preocupar com a verdade em si. Éapenas a verda-
de tecnicamente verificada que interessa a ela. A ver-
dade das verdades poderia vir numa forma meramente
afirmativa, e ela se negaria a tocá-la. Uma verdade
como essa, poderia repetir com Clifford, seria rouba-
da em desrespeito à sua obrigação para com a huma-
nidade. As paixões humanas, porém, são mais fortes
do que as regras técnicas·. "Le coeur a ses raisons",
como diz Pascal, "que la raíson ne conna1t pas" ["O
coração tem suas razões, que a razão desconhece"), e,
por mais indiferente que o juiz, o intelecto abstrato,
possa ser a tudo que esteja fora das puras regras do
jogo, os jogadores concretos que o suprem do mate-
rial a ser julgado geralmente estão, cada um deles,
apaixonados por alguma "hipótese viva" favorita pes-
soal. Vamos concordar, porém, que, não havendo
36
A Vontade de Crer
nenhuma opção forçosa, salvando-nos pelo menos de
ser iludidos, o intelecto crítico não-passional, sem
nenhuma hipótese favorita, deve ser nosso ideal.
Surge a próxima questão: não haverá, em algum
ponto, opções forçosas em nossas questões especula-
tivas, e podemos nós (como homens que podem es-
tar pelo menos tão interessados em obter a verdade
quanto em meramente evitar ser iludidos) sempre
esperar impunemente até que as evidências coercivas
cheguem? Parece improvável, a priori, que a verdade
deva estar tão bem ajustada a nossas necessidades e a
nossos poderes. Na grande hospedaria da natureza. os
bolos, a manteiga e o mel raramente saem tão bem e
deixam os pratos tão limpos. De fato, deveríamos olhá-
los com desconfiança científica se isso acontecesse.
liX
Questões morais apresentam-se imediatamente
como questões cuja solução não pode esperar poruma
prova sensível. Uma questão moral não é uma ques-
tão do que existe no plano sensível, mas do que é bom,
ou do que seria bom se existisse. A ciência pode nos
dizer o que existe, mas. para comparar os valores tan-
37
William James
to do que existe como do que não existe, precisamos
consultar não a ciência, mas o que Pascal chama de
nosso coração. Aprópria ciência consulta seu coração
quando afirma que a infinita determinação do fato e a
correção da falsa crença são os bens supremos para o
homem. Desafie-se a afirmação, e a ciência só poderá
repeti-la oracularmente, ou então prová-la mostrando
que tal determinação e tal correção trazem ao homem
todo tipo de outros bens que seu coração, por sua vez,
declara. A questão de ter ou não crenças morais é de-
cidida por nossa vontade. São nossas preferências
morais verdadeiras ou falsas, ou são elas apenas fenô-
menos biológicos casuais, que tornam as coisas boas
ou más para nós, mas em si mesmos são indiferentes?
Como o intelecto puro pode decidir? Se seu coração
não quiser um mundo de realidade moral, sua cabeça
certamente nunca o fará acreditar em um. O cepti-
cismo mefistofélico, de fato, satisfará muito melhor os
instintos lúdicos da cabeça do que qualquer idealismo
rigoroso. Alguns homens (mesmo na idade de estudan-
tes) são tão naturalmente desapaixonados que a hipó-
tese moralista nunca tem para eles nenhuma vida pun-
gente, e, em sua presença desdenhosa, o jovem mora-
lista inflamado sempre se sente estranhamente pouco
à vontade. Aaparência de conhecimento está do lado
daqueles, a de nazveté e credulidade, do lado dele. No
entanto, em seu coração inartículado, ele se agarra à
38
A Vontade de Crer
idéia de que não é um tolo, e de que há um domínio
em que (como diz Emerson) toda a perspicácia e su-
perioridade intelectual deles não é melhor do que a
astúcia de uma raposa. O cepticismo moral não pode
ser mais refutado ou provado pela lógica do que o
cepticismo intelectual. Quando insistimos em que há
verdade (seja ela de um ou de outro tipo), fazemos isso
com toda a nossa natureza e nos decidimos a perma-
necer de pé ou cair pelos resultados. O céptico adota
com toda a sua natureza a atitude de suspeita; mas qual
de nós é o mais sábio, apenas a Onisciência sabe.
Voltemo-nos agora dessas questões amplas do
bem para uma certa classe de questões de fatos, ques-
tões que se referem a relações pessoais, estados de
mente entre um homem e outro. Vocêgosta de mim ou
não? - por exemplo. O fato de você gostar ou não
depende, em inúmeros casos, de eu fazer ou não con-
cessões a você, de eu estar disposto a supor que você
deva gostar de mim e de eu demonstrar confiança e
expectativa em relação a você. A fé anterior de minha
parte na existência de sua disposição favorável é, em
tais casos, o que faz essa disposição favorável existir.
Porém, se eu permanecer indiferente e recusar a me
mover um centímetro até possuir alguma evidência
objetiva, até que você tenha feito alguma coisa capaz,
como dizem os absolutistas, ad.extorquendum a.ssensum
39
Williom Jomes
meum [de fazer surgir minha anuência segura], as
chances serão de dez para um de que você nunca ve-
nha a gostar de mim. Quantos corações femininos são
conquistados pela mera insistência incansável de al-
gum homem de que elas devemamá-lo! Ele não acei-
tará a hipótese de que elas possam não o amar. O de-
sejo de um certo tipo de verdade, neste caso, ocasio-
na a exístência dessa verdade especial; e assim se dá
em inúmeros casos de outras espécies. Quem ganha
promoções, favores, entrevistas senão o homem em
cuja vida essas coisas desempenham o papel de hipó-
teses vivas, que as antecipa, sacrifica outras coisas por
elas antes de terem acontecido e assume riscos de an-
temão por elas? Sua fé atua sobre os poderes acima dele
como uma afirmação e cria sua própria realização.
Um organismo social de qualquer tipo, grande ou
pequeno, é o que é porque cada membro realiza suas
próprias tarefas com a confiança de que os outros
membros cumprirão simultaneamente as deles. Sem-
pre que um resultado desejado é obtido pela coope-
ração de muitas pessoas independentes, sua existên-
cia como fato é pura conseqüência da fé mútua pre-
viamente nutrida pelos diretamente envolvidos. Um
governo, um exército, um sistema comercial, um na-
vio, uma faculdade, uma equipe esportiva, todos exis-
40
A Vontade de Crer
tem sob essa condição, sem a qual não só nada é con-
seguido, como nada sequer é tentado. Um trem intei-
ro de passageiros (individualmente muito corajosos)
será saqueado por um pequeno grupo de ladrões pelo
simples fato de que estes últimos podem contar uns
com os outros, enquanto cada passageiro teme que, se
ftzer algum movimento de resistência, receberá um tiro
antes que qualquer outra pessoa o apóie. Se acreditás-
semos que todo o vagão se levantaria imediatamente
conosco, cada um de nós individualmente se levanta-
ria, e roubos a trensjamais seriam sequer tentados. Há,
portanto, casos em que um fato não pode ocorrer a
menos que exista uma fé preliminar em sua ocorrên-
cia. E, nos casos em que afé numfato pode ajudaracriar
oJato, seria uma lógica insana dizer que a féque vem
antes da evidência científica é "o nível mais baixo de
imoralidade" a que um ser pensante pode descer. No
entanto, tal é a lógica pela qual nossos absolutistas
científicos pretendem regular nossa vida!
X
Em verdades dependentes de nossa ação pessoal,
portanto, a fé baseada na vontade é, certamente, algo
lícito e possivelmente indispensável.
41
Williom Jomes
--···· - -
Porém, será dito, esses são todos casos humanos
pueris e não têm nada a ver com grandes tem~s có~
micos, como a questão da fé religiosa. Vamos, então,
passar a isso. As religiões diferem tanto em suas cir-
cunstâncias que, ao discutir a questão religiosa, pre-
cisamos fazê-lo de forma muito genérica e ampla. A
que, então, nos referimos agora ao falar da hipótese
religiosa? Aciência diz que as coisas são; a moralida-
de diz que algumas coisas são melhores do que ou-
tras; e a religião diz, essencialmente, duas coisas.
Primeiro, ela diz que as melhores coisas são as
coisas mais eternas, as coisas que se sobrepõem às
demais, as coisas no universo que atiram a última
pedra, por assim dizer, e têm a palavra final. "A per-
feição é eterna"- esta frase de Charles Secrétan pa-
re~e uma boa maneira de expressar essa primeira afir-
mação da religião, afirmação que, obviamente, ainda
não pode ser verificada em termos científicos.
A segunda afirmação da religião é que, mesmo
agora, ficaremos em melhor situação se acreditarmos
que a primeira afirmação é verdadeira.
Vamos examinar, então, quais são os elementos
lógicos dessa situação no caso de a hipótese religiosa
em ambas as suas expressões ser de fato verdadeira.
(Claro que precisamos admitir essa possibilidade
.42
A Vontade de Crer
desde o início. Para que possamos discutir a ques-
tão, ela deve envolver uma opção viva. Se, para al-
gum de vocês, a religião for uma hipótese que não
pode, por nenhuma possibilidade viva, ser verdadei-
ra, não é necessário prosseguir. Falo apenas ao "res-
to fiel".) Assim procedendo, vemos, primeiramente,
que a religião se oferece como uma opção premente.
Presume-se que ganhemos, ainda agora, por meio de
nossa crença, e que percamos, por nossa não-cren-
ça, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião
é uma opçãoforçosa no que se refere a esse bem. Não
podemos escapar à questão permanecendo cépticos
e esperando por mais luz porque, embora evitemos
o erro dessa maneira se a religião nãofor verdadeira,
perderemos o bem se elafor verdadeira, tão certamen-
te quanto se escolhêssemos definitivamente não acre-
ditar. É como se um homem hesitasse indefinida-
mente quanto a pedir uma certa mulher em casa-
mento por não ter certeza absoluta de que ela se
mostraria um anjo depois que ele a levasse para casa.
Não estaria ele negando a si próprio essa possibili-
dade particular de ela ser um anjo de forma tão de-
cisiva quanto se decidisse casar com outra pessoa?
O cepticismo, portanto, não é o ato de evitar a op-
ção; é a opção por um certo tipo específico de risco.
Emelhor se arriscar à perda da verdade do que à chan-
ce de erro - esta é a posição exata daquele que veta
..43
William James
a fé. Ele está fazendo sua aposta tanto quanto aque-
le que crê; está se defendendo contra a hipótese re-
ligiosa, assim como o crente está defendendo a hi-
pótese religiosa contra seu opositor. Pregar para nós
o cepticismo como sendo um dever até que "evidên-
cias suficientes" em favor da religião possam ser en-
contradas é equivalente, portanto, a nos dizer, quan-
do na presença da hipótese religiosa, que ceder a
nosso receio de que ela esteja errada é mais sábio e
melhor do que ceder à nossa esperança de que da
possa ser verdadeira. Não é, então, o intelecto con-
tra todas as paixões; é apenas o intelecto com uma
paixão estabelecendo a sua lei. E o que, por acaso,
garante a sabedoria suprema dessa paixão? Engano
por engano, que prova existe de que o engano pela
esperança é tão pior do que o engano pelo medo?Eu,
pessoalmente, não consigo ver nenhuma prova;sim-
plesmente recuso obediência à ordem do cientista de
que eu imite seu tipo de opção, num caso em que
minha própria aposta é importante o suficiente para
me dar o direito de escolher minha própria forma de
risco. Se a religião for verdadeira e as evidências em
prol dela ainda forem insuficientes, não desejo, pela
aplicação de seu extintor de incêndio à minha natu-
reza (que me parece, afinal de contas, ter algo a ver
com toda essa questão), ser privado de minha única
44
AVontade de Crer
chance na vida de ficar do lado vencedor - chance
que depende, claro, de minha disposição de correr
o risco de agir como se minha necessidade passional
de encarar o mundo religiosamente pudesse ser pro-
fética e certa.
Tudo isso se apóia na suposição de que ela real-
mente possa ser profética e certa e de que, para nós
mesmos que estamos discutindo a questão, a religião
seja uma hipótese viva que pode ser verdadeira. Po-
rém, para a maioria de nós, a religião tem ainda uma
outra característica que torna um veto à nossa fé ati-
va ainda mais ilógico. O aspecto mais perfeito e mais
eterno do universo é representado, em nossas reli-
giões, por uma forma pessoal. O universo não é mais
um mero Isso para nós se somos religiosos, mas um
Tu; e qualquer relação que possa ser possível de pes-
soa para pessoa poderia ser possível aqui. Por exem-
plo, embora, em certo sentido, sejamos partes passi-
vas do universo, em outro sentido apresentamos uma
curiosa autonomia, corno se fôssemos pequenos cen-
tros ativos por nós mesmos. Sentimos, também,como
se o apelo da religião nos fosse feito à nossa própria
boa vontade ativa, corno se as evidências pudessem
ficar para sempre ocultas a nós se não fôssemos ao
encontro da hipótese no meio do caminho.Dando um
exemplo trivial: assim como um homem que, num
45
Williom James
grupo de cavalheiros, não tomasse nenhuma inicia-
tiva,exigisse uma garantia para cada concessão e não
acreditasse na palavra de ninguém sem provas fica-
ria privado, por tal intratabilidade, de todas as recom-
pensas sociais que um espírito mais abeno proporcio-
naria - também aqui, aquele que se fechasse num
logicismo ríspido e tentasse fazer que os deuses ar-
rancassem seu reconhecimento porbem ou por mal,
ou então não o conseguissem de forma alguma, po-
deria privar-se para sempre de sua única oportuni-
dade de travar conhecimento com os deuses. Esse
sentimento - instilado em nós sem nem sabermos
de onde-, de que, por acreditar obstinadamente
que há deuses (embora não fazer isso fosse tão fácil
tanto para nossa lógica como para nossa vida) esta-
mos prestando ao universo o maior serviço que po-
demos, parece parte da essência viva da hipótese re-
ligiosa. Se a hipótesefosseverdadeira em todas as suas
partes, inclusive esta, então o puro intelectualismo,
com seu veto a que tomemos iniciativas volitivas,
seria um absurdo; e alguma participação de nossa
natureza compassiva seria logicamente requerida.
Sendo assim, eu, pessoalmente, não vejo com~ acei-
tar as regras agnósticas para a busca da verdade, ou
concordar voluntariamente em manter minha natu-
reza volitiva fora do jogo. Não posso fazer isso por
46
A Vontade de Crer
esta simples razão: uma regra de pensamento que me
impedisse completamente de reconhecer certos tipos de
verdade, se esses tipos de verdadedeJato estivessem pre-
sentes, seria uma regra irracional. Este para mim é o
resumo da lógica formal da situação, quaisquer que
possam ser, materialmente, os tipos de verdade.
Confesso que não vejo como escapar a essa ló-
gica. Mas a triste experiência me faz recear que al-
güns de vocês ainda possam se recusar a afirmar ra-
dicalmente comigo, in abstracto, que temos o direi-
to de acreditar, assumindo nossos próprios riscos,
em qualquer hipótese que seja suficientemente viva
para atrair nossa vontade. Suspeito, porém, que se
isso acontece é porque vocês se afastaram inteira-
mente do ponto de vista lógico abstrato e estão pen-
sa.ndo (talvez sem ter consciência disso) em alguma
hipótese religiosa específica que para vocês é morta.
A liberdade de "acreditar no que quisermos" vocês
aplicam ao caso de alguma superstição evidente; e a
fé, consideram como sendo a fé definida pela crian-
ça que diz: "Fé é quando você acredita em alguma
coisa que sabe que não é verdade". Só posso repetir
que essa é uma idéia equivocada. In concreto, a liber-
dade de acreditar só pode abranger opções vivas que
o intelecto do indivíduo não consegue, por si só, re-
solver; e opções vivas jamais parecem absurdos para
47
Wílliom James
- - -
aquele que as considera. Quando olho para a ques-
tão religiosa da forma como ela realmente se apresenta
a homens concretos, e quando penso em todas as
possibilidades que ela envolve, tanto na prática como
em teoria, essa ordem de que devemos pôr um freio
em nosso coração, em nossos instintos e em nossa
coragem, e esperar- agindo, claro, nesse meio tem-
po, mais ou menos como se a religião não fosse ver-
dadeira- até o dia do juízo, ou até o momento em
que nosso intelecto e nossos sentidos, trabalhando
em conjunto, talvez consigam reunir evidências su-
ficientes - essa ordem, repito, parece para mim o
ídolo mais estranho jamais fabricado na caverna filo-
sófica. Fôssemos nós absolutistas escolásticos, pode-
ria haver mais desculpas. Se tivéssemos um intelecto
infalível com suas certezas objetivas, poderíamos nos
sentir desleais a tal órgão perfeito de conhecimento
se não confiássemos exclusivamente nele, se não es-
perássemos por sua palavra de autorização. Mas se
somos empiristas, se acreditamos que não existe um
sino dentro de nós que toca para nos avisar com se-
gurança quando a verdade está ao nosso alcance, en-
tão parece um tanto fantástico pregar de forma tão
solene nosso dever de esperar pelo sino. Sem dúvida
podemos esperar se quisermos - espero que não pen-
sem que eu esteja negando isso -, mas, se fizermos
48
A Vontade de Crer
isso, assumiremos as conseqüências de nossa decisão
tanto quanto se acreditássemos. De uma forma ou de
outra, nós agimos, tomando nossa vida em nossas
mãos. Nenhum de nós deveria impor vetos aos ou-
tros, nem nos atacar mutuamente com palavras gros-
seiras. Deveríamos, ao contrário, respeitar profunda
e sensivelmente a liberdade mental uns dos outros:
apenas então poderemos constituir a república inte-
lectual; apenas então teremos esse espírito de tole-
rância interior sem o qual toda a nossa tolerância ex-
terior é desprovida de alma; apenas então viveremos
e deixaremos viver, tanto nas coisas especulativas
como nas práticas.
Comecei com uma referência a Fitz-james Ste-
phen; vou concluir com uma citação dele: "O que
você pensa de si mesmo? O que você pensa do mun-
do? ... Estas são perguntas com as quais todos têm de
lidar da forma como lhes parece bom. São enigmas
da Esfinge e, de uma maneira ou de outra, precisa-
mos lidar com eles.... Em todas as situações impor-
tantes da vida, temos de dar um salto no escuro....
Se decidirmos deixar os enigmas sem resposta, essa
será uma escolha; se hesitarmos em nossa resposta,
essa também será uma escolha: mas, qualquer que
seja a nossa escolha, assumiremos as suas conseqüên-
cias. Se um homem escolhe dar as costas definitiva-
49
WilliomJomes
mente para Deus e para o futuro, ninguém pode im-
pedi-lo; ninguém pode demonstrar, sem nenhuma
margem de dúvida razoável, que ele está enganado.
Se um homem pensa da maneira contrária e age con-
forme pensa, não vejo também como alguém possa
provar que ele está enganado. Cada um deve agir
como julga melhor; e, se está errado, o problema é
dele. Estamos num desfiladeiro na montanha em meio
à neve rodopiante e à neblina que nos cega e, por
entre a bruma, temos apenas vislumbres ocasionais
de trilhas que podem ser enganosas. Se ficarmos pa-
rados, congelaremos até morrer. Se tomarmos a estra-
da errada, seremos despedaçados. Nem sequer sabe-
mos com segurança se existe um caminho certo. O
que devemos fazer? 'Ser fortes e corajosos.' Agir da
melhor maneira, esperar pelo melhor e assumir o que
vier.... Se a morte for o fim de tudo, não poderemos
ter encontro melhor com ela".
50

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Unamuno miguel de_verdade_e_vida
Unamuno miguel de_verdade_e_vidaUnamuno miguel de_verdade_e_vida
Unamuno miguel de_verdade_e_vidaJanuário Esteves
 
A linguagem de deus - Francis Collins
A linguagem de deus - Francis CollinsA linguagem de deus - Francis Collins
A linguagem de deus - Francis CollinsJunior Fernandes
 
Livro crise de conciência
Livro   crise de conciênciaLivro   crise de conciência
Livro crise de conciênciaJhone Anderson
 
A luz das nossas mentes
A luz das nossas mentesA luz das nossas mentes
A luz das nossas mentesleniogravacoes
 
Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560
Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560
Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560fabio bezerra lima
 
10 mitos e 10 verdades sobre ateismo
10 mitos e 10 verdades sobre ateismo10 mitos e 10 verdades sobre ateismo
10 mitos e 10 verdades sobre ateismoOlson Rocha
 
Apresentacao sesc-dawkins
Apresentacao sesc-dawkinsApresentacao sesc-dawkins
Apresentacao sesc-dawkinsmar_verdesmares
 
2.5 consideracoes sobre a pluralidade das existencias
2.5   consideracoes sobre a pluralidade das existencias2.5   consideracoes sobre a pluralidade das existencias
2.5 consideracoes sobre a pluralidade das existenciasMarta Gomes
 
Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...
Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...
Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...ecbg19710515nit
 
A fé no banco dos réus 1 pr gilberto theiss
A fé no banco dos réus 1  pr gilberto theissA fé no banco dos réus 1  pr gilberto theiss
A fé no banco dos réus 1 pr gilberto theissGilberto Theiss
 
Perguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos artigo gospel colunas
Perguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos   artigo gospel colunasPerguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos   artigo gospel colunas
Perguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos artigo gospel colunasLuiz Otávio Ferreira
 

Mais procurados (17)

Ceuinferno 001 1a. parte_capítulo i o porvir e o nada (itens 1 a 6)
Ceuinferno 001 1a. parte_capítulo i  o porvir e o nada (itens 1 a 6)Ceuinferno 001 1a. parte_capítulo i  o porvir e o nada (itens 1 a 6)
Ceuinferno 001 1a. parte_capítulo i o porvir e o nada (itens 1 a 6)
 
Unamuno miguel de_verdade_e_vida
Unamuno miguel de_verdade_e_vidaUnamuno miguel de_verdade_e_vida
Unamuno miguel de_verdade_e_vida
 
A linguagem de deus - Francis Collins
A linguagem de deus - Francis CollinsA linguagem de deus - Francis Collins
A linguagem de deus - Francis Collins
 
Livro crise de conciência
Livro   crise de conciênciaLivro   crise de conciência
Livro crise de conciência
 
A luz das nossas mentes
A luz das nossas mentesA luz das nossas mentes
A luz das nossas mentes
 
( Espiritismo) # - adesio a machado - ser, crer e crescer
( Espiritismo)   # - adesio a machado - ser, crer e crescer( Espiritismo)   # - adesio a machado - ser, crer e crescer
( Espiritismo) # - adesio a machado - ser, crer e crescer
 
Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560
Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560
Dialnet a basicalidade-dacrencaemdeussegundoalvinplantinga-4740560
 
10 mitos e 10 verdades sobre ateismo
10 mitos e 10 verdades sobre ateismo10 mitos e 10 verdades sobre ateismo
10 mitos e 10 verdades sobre ateismo
 
Tolstoi - Confissão
Tolstoi - Confissão Tolstoi - Confissão
Tolstoi - Confissão
 
Salvação
SalvaçãoSalvação
Salvação
 
Apresentacao sesc-dawkins
Apresentacao sesc-dawkinsApresentacao sesc-dawkins
Apresentacao sesc-dawkins
 
Aftransportamontanhascap19ese 110501172205-phpapp01
Aftransportamontanhascap19ese 110501172205-phpapp01Aftransportamontanhascap19ese 110501172205-phpapp01
Aftransportamontanhascap19ese 110501172205-phpapp01
 
2.5 consideracoes sobre a pluralidade das existencias
2.5   consideracoes sobre a pluralidade das existencias2.5   consideracoes sobre a pluralidade das existencias
2.5 consideracoes sobre a pluralidade das existencias
 
Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...
Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...
Segunda carta as autoridades indonesias sobre o tsunami de 2004 e sobre a pen...
 
A fé no banco dos reus
A fé no banco dos reusA fé no banco dos reus
A fé no banco dos reus
 
A fé no banco dos réus 1 pr gilberto theiss
A fé no banco dos réus 1  pr gilberto theissA fé no banco dos réus 1  pr gilberto theiss
A fé no banco dos réus 1 pr gilberto theiss
 
Perguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos artigo gospel colunas
Perguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos   artigo gospel colunasPerguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos   artigo gospel colunas
Perguntas rápidas para ateus e secularistas sensatos artigo gospel colunas
 

Semelhante a A vontade de crer, William james

A razão ou não razão - Carlos Varela
A razão ou não razão - Carlos VarelaA razão ou não razão - Carlos Varela
A razão ou não razão - Carlos VarelaO Engenho No Papel
 
Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...
Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...
Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...Diego Góes
 
Filosofia apostila segundo ano
Filosofia apostila segundo anoFilosofia apostila segundo ano
Filosofia apostila segundo anoFabio Santos
 
TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A
TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A
TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A Josilene Braga
 
As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa
As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoaAs novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa
As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoaDouglas Evangelista
 
REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)
REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)
REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)Jerbialdo
 
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - Prefácio
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - PrefácioH. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - Prefácio
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - Prefáciouniversalismo-7
 
O surgimento da filosofia na grégia antiga
O surgimento da filosofia na grégia antigaO surgimento da filosofia na grégia antiga
O surgimento da filosofia na grégia antigaEdvaldoArajo2
 
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e Forças
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e ForçasH. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e Forças
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e Forçasuniversalismo-7
 
O mito do amor materno - Badinter
O mito do amor materno - BadinterO mito do amor materno - Badinter
O mito do amor materno - BadinterMaylu Souza
 
Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)
Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)
Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)Fernanda Câmara
 
Richard Popkin - O ceticismo moderno
Richard Popkin - O ceticismo modernoRichard Popkin - O ceticismo moderno
Richard Popkin - O ceticismo modernoJaimir Conte
 
As implicações morais do darwinismo
As implicações morais do darwinismoAs implicações morais do darwinismo
As implicações morais do darwinismoDiegofortunatto
 
O problema pessoal do sentido da vida
O problema pessoal do sentido da vidaO problema pessoal do sentido da vida
O problema pessoal do sentido da vidaJorge Lopes
 

Semelhante a A vontade de crer, William james (20)

Etica e religiao
Etica e religiaoEtica e religiao
Etica e religiao
 
A razão ou não razão - Carlos Varela
A razão ou não razão - Carlos VarelaA razão ou não razão - Carlos Varela
A razão ou não razão - Carlos Varela
 
Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...
Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...
Deus, uma ideia improvável -- Religião, psicologia, filosofia e sociedade. - ...
 
Filosofia apostila segundo ano
Filosofia apostila segundo anoFilosofia apostila segundo ano
Filosofia apostila segundo ano
 
TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A
TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A
TRABALHO DE FILOSOFIA 3º A
 
Sobre o pensamento dogmático
Sobre o pensamento dogmáticoSobre o pensamento dogmático
Sobre o pensamento dogmático
 
As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa
As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoaAs novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa
As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa
 
REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)
REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)
REVISTA ATEÍSTA - 1ª Edição (versão impressa)
 
Logica
LogicaLogica
Logica
 
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - Prefácio
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - PrefácioH. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - Prefácio
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - Prefácio
 
O surgimento da filosofia na grégia antiga
O surgimento da filosofia na grégia antigaO surgimento da filosofia na grégia antiga
O surgimento da filosofia na grégia antiga
 
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e Forças
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e ForçasH. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e Forças
H. P. Blavatsky - Ísis sem Véu - 2. Fenômenos e Forças
 
Filosofia medieval
Filosofia medievalFilosofia medieval
Filosofia medieval
 
Um amor conquistado
Um amor conquistadoUm amor conquistado
Um amor conquistado
 
Mito o amor materno badinter
Mito o amor materno badinterMito o amor materno badinter
Mito o amor materno badinter
 
O mito do amor materno - Badinter
O mito do amor materno - BadinterO mito do amor materno - Badinter
O mito do amor materno - Badinter
 
Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)
Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)
Um amor conquistado o mito do amor materno (pdf) (rev)
 
Richard Popkin - O ceticismo moderno
Richard Popkin - O ceticismo modernoRichard Popkin - O ceticismo moderno
Richard Popkin - O ceticismo moderno
 
As implicações morais do darwinismo
As implicações morais do darwinismoAs implicações morais do darwinismo
As implicações morais do darwinismo
 
O problema pessoal do sentido da vida
O problema pessoal do sentido da vidaO problema pessoal do sentido da vida
O problema pessoal do sentido da vida
 

Mais de Valber Teixeira

A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1
A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1
A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1Valber Teixeira
 
Lincoln Doris Kearns Goodwin
Lincoln   Doris Kearns GoodwinLincoln   Doris Kearns Goodwin
Lincoln Doris Kearns GoodwinValber Teixeira
 
Tudo é obvio Duncan j. watts
Tudo é obvio   Duncan j. wattsTudo é obvio   Duncan j. watts
Tudo é obvio Duncan j. wattsValber Teixeira
 
A arte dos negocios Bill Ridgers
A arte dos negocios   Bill RidgersA arte dos negocios   Bill Ridgers
A arte dos negocios Bill RidgersValber Teixeira
 
Andar a pé. David Henry Thoreau
Andar a pé. David Henry ThoreauAndar a pé. David Henry Thoreau
Andar a pé. David Henry ThoreauValber Teixeira
 
A jornada-interna-henrique-lira
A jornada-interna-henrique-liraA jornada-interna-henrique-lira
A jornada-interna-henrique-liraValber Teixeira
 
Manual de marketing de guerrilha labor editorial
Manual de marketing de guerrilha   labor editorialManual de marketing de guerrilha   labor editorial
Manual de marketing de guerrilha labor editorialValber Teixeira
 
Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André
Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André
Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André Valber Teixeira
 
Business model-generation
Business model-generationBusiness model-generation
Business model-generationValber Teixeira
 
A arte da nao conformidade chris guillebeau
A arte da nao conformidade   chris guillebeauA arte da nao conformidade   chris guillebeau
A arte da nao conformidade chris guillebeauValber Teixeira
 
Forca de vontade roy f. baumeister
Forca de vontade   roy f. baumeisterForca de vontade   roy f. baumeister
Forca de vontade roy f. baumeisterValber Teixeira
 

Mais de Valber Teixeira (11)

A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1
A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1
A matriz-africana-no-mundo Sankofa Volume 1
 
Lincoln Doris Kearns Goodwin
Lincoln   Doris Kearns GoodwinLincoln   Doris Kearns Goodwin
Lincoln Doris Kearns Goodwin
 
Tudo é obvio Duncan j. watts
Tudo é obvio   Duncan j. wattsTudo é obvio   Duncan j. watts
Tudo é obvio Duncan j. watts
 
A arte dos negocios Bill Ridgers
A arte dos negocios   Bill RidgersA arte dos negocios   Bill Ridgers
A arte dos negocios Bill Ridgers
 
Andar a pé. David Henry Thoreau
Andar a pé. David Henry ThoreauAndar a pé. David Henry Thoreau
Andar a pé. David Henry Thoreau
 
A jornada-interna-henrique-lira
A jornada-interna-henrique-liraA jornada-interna-henrique-lira
A jornada-interna-henrique-lira
 
Manual de marketing de guerrilha labor editorial
Manual de marketing de guerrilha   labor editorialManual de marketing de guerrilha   labor editorial
Manual de marketing de guerrilha labor editorial
 
Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André
Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André
Tantra o Culto da Feminilidade. Van Lysebeth, André
 
Business model-generation
Business model-generationBusiness model-generation
Business model-generation
 
A arte da nao conformidade chris guillebeau
A arte da nao conformidade   chris guillebeauA arte da nao conformidade   chris guillebeau
A arte da nao conformidade chris guillebeau
 
Forca de vontade roy f. baumeister
Forca de vontade   roy f. baumeisterForca de vontade   roy f. baumeister
Forca de vontade roy f. baumeister
 

A vontade de crer, William james

  • 1. LEITURAS J I • FlLOSÓFlCAS R VONTBDE DE ~CRER ·- Os escritos de·WUUam James figuram entre os clássicôs da psicologia e da filosofia do~s~cuto XX. Nenhum outt:o pensador dernonstrotf ~amanho talento para fundir uma r:nente "científica.. com a _.::... inqoietação espiritual. R vontade de crer.é-para muitos.a maior ' expressão dess~capacidade de fusão e se afirmdu no decorrer do temoo como a. . ,. . rl)ais completa e _coer.f'nte afirmação da necessidade da fé·na era moderna. ... · -~ Neste ensaio. Williarri ·James procede à união de sua ciêri:cia e de sua filosofia numa aflrmação~positiva da fé religiosa.,. . ISDN: 85-15-02252~4 - 11 1111 Ulll~ ~·788515 022526 {,)
  • 2. ,..-., ' LEIT URAS ·~G FILOSÓFICAS Aristóteles e ologos Barbara Cassm Aristóteles no século XX Enrico Berti Filosofia da Ciência, 2" ed. Rubem Alves A metáfora viva Paul Ricoeur Oniilismo Franco Volpi Ooftc1o dofilósofo estóico Rachd Gazolla A ordem do discurso, 6a ed. Michel Foucault Que t afilosofia amiga Pierre Hadot As razões de Aristóteles Enrico Berti Saber dos antigos terapia para os tempos atuais Giovanni Reale Sete liçõessobre o ser jacques Maritain Transfonnaçào da filosofia, vol. 1 Kar1-0 tto Apel Transformação da filosofia, vol. 2 Karl-Otto Apel A vontade de crer William]ames WlLUAM JAMES Tradução: Cecília Camargo Bartalotti
  • 3. í .. Título original: The Wil/ to Believe Conferência dirigida aos grêmios filosóficos da UniversidadedeYalee Brown University,publicado em 1896. Diagramação Ronaldo Hideo lnoue Preparação Maurü:iJJ Balthazar Leal Revisão Renato Rocha Edições Loyola Rua 1822 no 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04299-970 7 São Paulo, SP c{;.: (0**11) 6914-1922 ~: (O**11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@ loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta ubra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, induindo jozocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados .~em permissão escrita da" Editora. ISBN: 85-15-02252-4 ~ EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2001
  • 4. No recentemente publicado Life, de Leslie Stephen, sobre seu irmão Fitz-james, há o relato de um incidente ocorrido numa escola que este último freqüentou quando menino. O professor, um ceno Mr. Guest, costumava conversar com seus alunos nos seguintes termos: "Gumey, qual é a dife- rença entre justificação e santificação? - Stephen, prove a onipotência de Deus!" etc. Em meio ao nos· so livre-pensar e à nossa indiferença "harvardianos", somos inclinados a imaginar que aqui, nesta boa e velha universidade ortodoxa, as conversas continuam a ser um pouco dessa ordem~ e, para mostrar a vocês que nós, em Harvard, não perdemos todo o interesse por esses temas vitais, trouxe comigo esta noite algo como um sermão sobre ajustificação pela fé para ser lido - ou melhor, um ensaio sobre a justificação da fé, uma defesa do nosso direito a adotar uma atitude de crença em questões religiosas,. mesmo que nosso - -···-·- 7
  • 5. William James intelecto meramente lógico talvez não tenha sido compelido a isso. A vontade de crer, por conseguinte, é o título deste trabalho. Há muito tenho defendido diante de meus alu- nos a licitude da fé voluntariamente adotada; porém, assim que eles se tomam intensamente imbuídos do espírito lógico, têm como regra recusar-se a admitir que minha argumentação seja filosoficamente lícita, mesmo que, na verdade, tenham estado todo o tem- po pessoalmente repletos, eles próprios, de uma ou outra fé. Eu, no entanto, mantenho-me sempre tão profundamente convencido de que minha posição está correta, que este convite me pareceu uma boa ocasião para tornar minhas afirmações mais claras. Talvez suas mentes estejam mais abenas do que aque- las com que tive de lidar até aqui. Serei tão pouco técnico quanto possível, embora seja necessário co- meçar estabelecendo algumas distinções técnicas que nos ajudarão no final. 11 Vamos dar o nome de hipótese a qualquer coisa que possa ser proposta à nossa crença; e, assim 8 A Vontade de Crer como os eletricistas falam de fios vivos e morros, falaremos das hipóteses como vivas ou mortas. Uma hipótese viva é a que aparece como uma possibili- dade real para a pessoa a quem é proposta. Se eu lhes pedir para acreditar no Mahdi1 , a idéia não criará nenhuma conexão elétrica com a natureza de vocês - ela se recusa a cintilar com qualquer cre- dibilidade que seja. Como hipótese, é completa- mente morta. Para um árabe, porém (mesmo que ele l. [N. do R.] A crença no mahdiparece ter-se originado da con- fusão resultante das lutas religiosas e políticas ocorridas nos primór- dios do islamismo, nos séculos Vll e VIII. Na escatologia islâmica, o mahdi (em árabe, "aquele que é guia- do por Deus") é o libertador messiânico que v;rá no fim dos tempos para restabelecer ajustiça e a eqüidade no mundo, restaur;:;r a verda- deira religião e a purezados costumes e anunciar uma breve idade de ouro, que durará entre sete e nove anos ames do fim do mundo. A doutrina do mahdi não consta do Alcorão nem pode ser defi- nida de nenhum hadith (sentença de Maomé). Os teólogos sunítas onodoxos põem em dúvida essa crença, que no entanto é aceita pc- los xiitas. Nos tempos de crise, a crença tende a ganhar força entre os fiéis. Uma vez que o mahdi é lido como restaurador do poder políti- co e da ortodoxia religiosa islâmica, o título costuma ser reivindica- do peloslíderes revolucionários da comunidade islâmica. Assim ocor- reu, por exemplo, com Ubayd Allah, fundador da dinastia dos fatimidas (909); Mohamed ibn Tuman, que fundou no Marrocos, no sér.ulo Xll , o imptrio almõaoa: e: Mohame.d Ahmad, mahdi do Sudão, que se revoltou em 1881 contra a administração egípcia. 9
  • 6. Williom Jomes não seja um dos seguidores de Mahdi), a hipótese está entre as possibilidades da mente: ela é viva. Isso mostra que o caráter vivo ou morto de uma hipó- tese não é uma propriedade intrínseca, mas está re- lacionado ao pensador individual. É medido pela.dis- posição do indivíduo para agir. O máximo de vida em uma hipótese significa uma disposição irre- vogável para agir. Na prática, isso representa crença; mas há alguma tendência de crença sempre que exis- te alguma disposição a agir. Em seguida, vamos chamar de opção a decisão entre duas hipóteses. As opções podem ser de vários tipos: l) vivas ou mort.as; 2) forçosas ou evitáveis; 3) prementes ou triviais; e, para nossos propósitos, pode- mos chamar uma opção de genuína quando ela é do tipo vivo, forçoso e premente. 1. A opção viva é aquela em que ambas as hi- póteses são vivas. Se lhes digo: "Sejam teosofistas ou sejam muçulmanos", esta possivelmente é uma opção morta, porque é provável que, para vocês, ne- nhuma das duas hipóteses seja viva. Mas, se eu digo: "Sejam agnósticos ou sejam cristãos", a situação será diferente: pela formação que vocês têm, cada uma dessas hipóteses tem algum apelo, mesmo quepe- queno, à sua crença. 10 A Vontade de Crer 2. Em seguida, se lhes digo: "Escolham entre sair com o guarda-chuva ou sem ele", eu não lhes ofere- ço uma opção genuína, pois ela não é forçosa. Vocês podem evitá-la facilmente decidindo não sair. De maneira semelhante, se eu digo: "Amem-me ou odeiem-me", "Chamem minha teoria de verdadeira ou chamem-na de falsa", sua opção é evitável. Vocês podem permanecer indiferentes a mim, sem me amar nem me odiar, e podem recusar-se a fazer qualquer julgamento a respeito de minha teoria. ·Porém, se digo: "Aceitem esta verdade ou passem sem ela", eu lhes apresento uma opção forçosa, pois não há ne- nhuma posição fora das alternativas. Todo dilema ba- seado numa disjunção lógica completa, sem nenhu- ma possibilidade de não escolher, é uma opção des- se tipo forçoso. 3. Por fim, se eu fosse o doutor Nansen e lhes propusesse participar de minha expedição ao Pólo Norte, sua opção seria premente, pois essa provavel- mente seria a única oportunidade semelhante, e sua escolha nesse momento o excluiria de vez da imor- talidade proporcionada pela experiência ou, ao con- trário, poria pelo menos uma chance disso em suas mãos. Aquele que se recusa a abraçar uma oportu- nidade única perde o prêmio tão certamente como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a opção é tri- 11
  • 7. Williom Jomes - - vial quando a oportunidade não é única, quando o que está em jogo é insignificante, ou quando a de- cisão é reversível se, posteriormente, se revela equi- vocada. Tais opções triviais são abundantes na·vida científica. Um químico julga uma hipótese viva o suficiente para que passe um ano verificando-a: ele acredita nela a esse ponto. Porém, se suas experiên- cias se mostram inconclusivas em algum aspecto, ele está redimido de sua perda de tempo, nenhum dano essencial foi causado. Nossa discussão será facilitada se mantivermos essas distinções em mente. A próxima questão a considerar é aprópria psico- logia da opinião humana. Quando olhamos certos fa- tos, é como se nossa natureza passional e volitiva se encontrasse na raiz de todas as nossas convicções. Quando olhamos para outros, parece-nos que eles não poderiam fazer mais nada após o intelecto ter dado seu veredicto. Vamos examinar este último caso primeiro. Não parece despropositado, diante disso, supor que nossas opiniões possam ser modificáveis de acor- 12 A Vontade de Crer do com a nossa vontade? Pode nossa vontade ajudar ou atrapalhar o intelecto em suas percepções da ver- dade? Podemos nós, pelo simples desejo, acreditar que a existência de Abraham Lincoln é um mito e que seus retratos na McClure's Magazine são de algu- ma outra pessoa? Podemos nós, por qualquer esfor- ço da vontade, ou por qualquer força do desejo de que isso seja verdade, acreditar que estamos bem quando nos encontramos na cama gemendo de reu- matismo, ou sentir-nos seguros de que a soma das duas notas de l dólar que temos no bolso deve ser 100 dólares? Podemos dizer qualquer uma dessas coisas, mas nos é absolutamente impossível acredi- tar nelas; e exatamente dessas coisas é constituída Loda atessitura das verdades em que acreditamos- fatos estabelecidos, imediatos ou remotos, como dis- se Hume, e relações entre idéias, que existem ou não para nós na medida em que as vemos assim, e que, se não existirém, não poderão ser introduzidas por nenhuma ação de nossa parte. Nos Pensamentos de Pascal, há uma célebre passa- gem conhecida na literatura como a aposta de Pascal. Nela, ele tenta nos convencer a adotar o cristianismo argumentando como se nossa preocupação com a ver- dade se assemelhasse a nossa preocupação com as apostas numjogo de azar. Traduzidas livremente, suas 13
  • 8. William Jomes --- palavras são as seguintes: é preciso acreditar ou não acreditar que Deus existe- o que você fará? Suara- zão humana não pode dizer. Entre você e a natureza das coisas está acontecendo um jogo que, no dia do juízo, dará cara ou coroa. Pese quais seriam seus ga- nhos e suas perdas se você apostasse tudo o que tem na cara, ou na existência de Deus: se você ganhar nesse caso, o prêmio será a beatitude eterna; se per- der, não perderá absolutamente nada. Se houvesse uma infinidade de chances e apenas uma para Deus nessa aposta, ainda assim seria aconselhável apostar tudo em Deus, pois, embora certamente você se ar- riscasse a uma perda finita por esse procedimento, qualquer perda finita é razoável, mesmo uma perda certa é razoável, caso haja uma mínima possibilida- de de ganho infinito. Vá em frente, então, e use água benta, encomende missas; a crença virá e estupidi- ficará seus escrúpulos - Cela vousfera croire et vous abêtira. Por que não? No fim das contas, o que você tem a perder? Vocês provavelmente sentirão que, quando a fé religiosa se expressa dessa maneira, na linguagem da mesa de jogos, é sinal de que está reduzida a seus úl- timos trunfos. Certamente a própria crença pessoal de Pascal em missas e na água benta tinha razões bem outras; e essa sua página famosa não passa de uma A Vontade de Crer argumentação dirigida aos outros, uma última bus- ca desesperada de uma arma contra a inflexibilida- de do coração descrente. Parece-nos que a fé em mis- sas e água benta adotada intencionalmente após tal cálculo mecânico seria desprovida da alma interior da realidade da fé; e, se estivéssemos nós mesmos no lugar da Divindade, provavelmente teríamJs um pra- zer especial em excluir os crentes dessa espécie de sua recompensa infinita. É evidente qm:, a menos que haja alguma tendência preexistente ;1 acreditar em missas e água benta, a opção oferecida à vontade por Pascal não é uma opção viva. Certamente nenhum turco jamais voltou-se para missas e água benta por causa dessa argumentação; e mesmo para nós, pro- testantes, esses meios de salvação parecem impossi- bilidades tão previsíveis, que a lógica de Pascal, in- vocada especificamente para eles, não nos comove. Seria como se Mahdí nos escrevesse dizendo: "Sou o Esperado que Deus criou em seu resplendor. Se- reis infinitamente felizes se professardes vossa féem mim; caso contrário, sereis excluídos da luz do sol. Pesai, portanto, vosso ganho infinito, se eu for genuí- no, em comparação com vosso sacrifício finito, se eu não for!" Sua lógica seria a mesma de Pascal; no en- tanto, ele a usaria em vão conosco, pois a hipótese que ele nos oferece é morta. Não há em nós nenhu- ma tendência a agir com base nela. 15
  • 9. Wi!liom Jomes A discussão quanto a acreditar por nossa própria vontade parece então, sob certo ponto de vista, sim- plesmente tola. Sob outro ponto de vista, ela é pior do que tola, é vil. Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências físicas e vemos como foi construí- do, quantos milhares de vidas morais desinteressadas encontram-se enterradas em suas fundações, que pa- ciência e postergação, que sacrifício de preferências, que submissão às leis gélidas do fato externo estão gra- vados em suas pedras e em seu cimento, quão absolu- tamente impessoal ele se ergue em sua vasta majesta- de- diante disso, quão estúpido e desprezível pare- ce cada pequeno sentimentalista que vem soprando suas voluntárias espirais de fumaça e pretendendo de- cidir coisas a partir de seu próprio sonho pessoal! Po- demos ter alguma dúvida de que aqueles criados na escola árdua e briosa da ciência terão vontade de vo- mitar tal subjetivismo de sua boca? Todo o sistema de lealdades que cresce nas escolas de ciência ergue-se contra sua tolerância; assim, é natural que aqueles que pegaram a febre científica passem para o extremo opos- to e escrevam às vezes como se o intelecto inconupti- velmente confiável devesse sem hesitação preferir amargor e inaceitabilidade ao coração inebriado. Fortalece minha alma saber Que, embora eu pereça, a Verdade é esta- 16 A Vontade de Crer canta Clough, enquanto Huxley exclama: "Meu úni- co consolo está na reflexão de que, por pior que nos- sa posteridade possa se tornar, enquanto eles adota- rem a regra simples de não fingir acreditar no que não têm razão para acreditar, porque talvez seja vantajo- so para eles assim fingir [a palavra "fingir" é cenamen- te redundante aqui], não terão atingido o nível mais baixo de imoralidade". E o delicioso enfant tenible Clifford escreve: "A crença é profana quando conferi- da a afirmações não-provadas e não-questionadas, pelo conforto e prazer pessoal do crente.... Quem quer que deseje a consideração de seus pares nessa questão deve guardar a pureza de sua crença com um verdadeiro fanaúsmo de cuidado atento, para que ela não venha a pousar de repente sobre um objeto in- digno e adquirir uma mancha que jamais poderá ser removida... Se [uma} crença tiver sido aceita com base em evidências insuficientes [mesmo que a crença seja verdadeira, como Clifford explica na mesma página], o seu é um prazer roubado.... Ela é pecadora porque é roubada em desrespeito a nossa obrigação para com a humanidade. Essa obrigação é nos guardar de tais crenças como de uma peste que pode rapidamente dominar nosso próprio corpo e, depois, se espalhar para o resto da cidade.... É sempre errado, em toda pane, e para qualquer pessoa, acreditar em qualquer coisa com base em evidências insuficientes". 17
  • 10. WilliomJames - - - 11 11 11 Tudo isso soa muito saudável, mesmo quando expresso,como no caso de Clifford, comum certo ex- cesso de pathos ruidoso na voz. A livre vontade e o sim- ples desejo parecem, no contexto de nossas convicções, não passar de rodas sobressalentes para o condutor. No entanto, se alguém pressupusesse, em vista disso, que o discernimento intelectual é o que permanece depois que o desejo, a vontade e a preferência sentimental tiverem sido removidos, ou que a razão pura é o que então determina nossas opiniões, estaria voando con- tra os fatos de forma igualmente direta. São apenas nossas hipóteses já monas que nossa natureza volitiva é incapaz de trazer de volta à vida. Mas o que as fez mortas para nós foi, essencialmente, uma ação prévía de um tipo antagônico por parte de nossa natureza volitiva. Quando digo "natureza voli- tiva", não me .refiro apenas àsvolições deliberadas que podem ter estabelecído hábitos de crença dos quais não conseguimos escapar- refiro-me a todos os fa- tores de crença, como medo e esperança, preconceito e paixão, imitação e participação, a pressão circundan- te de nossa classe e nosso círculo social. Na verdade, nós nos pegamos acreditando sem saber ao certo como 18 A Vontade de Crer ou por quê. O senhor Balfour dá o nome de "autori- dade" a todas essas influências, nascidas do clima in- telectual, que tomam hipóteses possíveis ou impos- síveis para nós, vivas ou mortas. Aqui nesta sala, to- dos acreditamos em moléculas e na conservação da energia, em democracia e no progresso necessário, no cristianismo protestante e no dever de lutar pela "dou- trina do imortal Monroe", tudo isso sem nenhuma razão que mereça esse nome. Olhamos essas questões sem mais clareza interior, e provavelmente com mui- to menos,do que qualquer descrente poderia possuir. Ainconvencionalidade deste último provavelmente te- ria alguma base a oferecer para suas conclusões; para nós, porém, não o discernimento, mas o prestígio das opiniões é o que as faz emitir a centelha e acender nosso pavio adormecido da fé. Nossa razão estará per- feitamente satisfeita, em novecentos e noventa e nove casos em cada mil de nós, se puder encontrar alguns argumentos para apresentar no caso de nossa credu- lidade ser criticada por alguém. Nossa fé é a fé na fé de outro e, nas maiores questões, esse é quase sem- pre o caso. Nossa crença na própria verdade, por exem- plo, de que existe uma verdade e de que nossa mente e essa verdade são feitas uma para a outra- o que é isso senão uma afirmação apaixonada de desejo, em que nosso sistema social nos dá suporte? Queremos ter uma verdade; queremos acredítar que nossas ex- 19
  • 11. William James periências, nossos estudos e nossas discussões devem nos colocar numa posição continuamente melhor para isso: e, seguindo essa linha, concordamos em lutar para levar adiante nossa vida pensante. Mas, se um céptico pirrônico nos perguntar como sabemos tudo isso, será que nossa lógica poderá encontrar uma res- posta? Não! Certamente não poderá. É apenas uma vo- lição contra outra - nós, dispostos a encarar a vida com base em uma confiança ou pressuposição que ele, por seu lado, não acha importante adotar. Como regra, desacreditamos de todos os fatos e teorias para os quais não temos uso. As emoções cós- micas de Clifford não têm nenhum uso para os sen- timentos cristãos. Huxley ataca os bispos porque não há uso para o sacerdotalismo em seu esquema de vida. Newman, ao contrário, volta-se para o catoli- cismo romano ejulga ter todo tipo de boas razões pa- ra permanecer lá, porque um sistema sacerdotal é, para ele, uma necessidade e um prazer orgânicos. Por que tão poucos "cientistas" chegam a pelo menos exa- minar as evidências a favor da chamada telepatia? Por- que acham, como um.importante biólogo, já morto, certa vez me disse, que mesmo que tal coisa fosse ver- dadeira os cientistas deveriam se unir para mantê-la suprimida e escondida. Ela desfaria a uniformidade da Natureza e todo o tipo de outras coisas sem as 20 A Vontade de Crer quais os cientistas não podem levar adiante seus pro- jetos. Porém, se a esse mesmo homem fosse mostra- do algo que ele, como cientísta, pudesse fazer com a telepatia, ele talvez tivesse não só examinado as evi- dências, mas até asjulgado suficientemente boas. Essa própria lei que os lógicos pretendem impor a nós- se posso chamar de lógicos os que descartariam nos- sa natureza volitiva nessa questão - é baseada em nada mais do que em seu próprio desejo natural de excluir todos os elementos para os quais eles, em seu atributo profissional de lógicos, não podem encon- trar um uso. É evidente, portanto, que nossa natureza não- intelectual influencia de fato nossas convicções. Há tendências passionais e volições que vêm antes e ou- tras que vêm depois da crença, e são apenas estas úl- timas que estão atrasadas para a festa; e não estão atrasadas quando o trabalho passional anteriorjá foi em sua direção. O argumento de Pascal, em vez de ser ineficaz, parece então um argumento válido, e é a última pincelada necessária para tomar nossa fé em missas e água benta completa. O estado de coisas, evidentemente, está longe de ser simples; e puro dis- cernimento e lógica, o que quer que possam fazer idealmente, não são as únicas coisas que de fato pro- duzem nossos credos. 21
  • 12. William Jomes liV Tendo reconhecido esse confuso estado de coisas, nossa próxima tarefa é indagar se ele é simplesmente repreensível e patológico ou, ao contrário,se devemos tratá-lo como um elemento normal ao tomar nossas decisões. Em poucas palavras, a tese que defendo é a seguinte: "Nossa natureza passional não só pode, como deve, licitamente decidir-se poruma opção entre proposi- çõessempre que estafor uma opçãogenuína quenãopos- sa, porsua natureza, serdecidida sobre bases intelectuais· ' pois dizer, nessas circunstâncias: 'Não decida, deixe a questão em aberto' é, porsi só, uma decisão passional - assim como decidir sim ou não - e acompanha-se do mesmo risco deperderaverdade". Atese, assim abstra- tamente expressa, logo irá, espero, tomar-se bastante clara. Mas antes é necessário mais um pouco de tra- balho preliminar. v Será observado que, para os propósitos desta dis- cussão, estamos em terreno "dogmático" ~ ou seja, terreno que deixa o cepticismo filosófico sistem~ti- 22 A Vontade de Crer co totalmente fora da questão. O postulado de que existe verdade, e de que é o destino de nossa mente alcançá-la, é algo que estamos decidindo deliberada- mente adotar, embora o céptico não pense assim. As- sim, separamo-nos dele de forma absoluta neste pon- to. Mas a fé de que a verdade existe, e de que nossas mentes podem encontrá-la, pode ser mantida de duas maneiras. Podemos falar do modo empirista e do modo absolutista de acreditar na verdade. Os ab- solutistas, a esse respeito, dizem que não só podemos chegar a conhecer a verdade como podemos saber quando chegamos a conhecê-la; enquanto os empi- ristas dizem que, embora possamos alcançá-la, não podemos saber infalivelmente quando. Saber é uma coisa, e saber com certeza que sabemos é outra. É pos- sível afirmar que o primeiro é possível sem o segun- do; daí os empiristas e os absolutistas, conquanto ne- nhum deles seja céptico no sentido filosófico usual do termo, apresentarem diferentes graus de dogma- tismo em suas vidas. Se examinarmos a história das opiniões, veremos que a tendência empirista tem, em grande medida, prevalecido na ciência, ao passo que, na filosofia, a tendência absolutista tem tido a última palavra.O tipo característico de felicidade, de fato, que as filosofias produzem tem consistido basicamente na convicção 23
  • 13. Williom Jomes sentida por cada escola ou sistema sucessivo de que, por seu intermédio, a certeza definitiva foi obtida. "Outras filosofias são coleções de opiniões, em sua maioria falsas; a minha filosofia oferece uma base só- lida para sempre"- quem não reconhece nisto a nota dominante de todos os sistemas dignos desse nome? Um sistema, para que seja realmente umsistema, deve vir como um sistemafechado, reversível neste ou na- quele detalhe, talvez, mas, em suas características es- senciais, jamais! A ortodoxia escolástica, à qual sempre é preci- so recorrer quando se deseja encontrar afirmações perfeitamente claras, fez uma bela elaboração dessa convicção absolutista numa doutrina que ela chama de "evidência objetiva". Se, por exemplo, sou inca- paz de duvidar de que eu agora existo diante de vo- cês, de que dois é menos do que três ou de que, se todos os homens são mortais, então eu também sou mortal, é porque essas coisas iluminam meu intelec- to de forma irresistível. A base decisiva dessa evidên- cia objetiva possuída por certas proposições é o adrequatio intellectus nostri cum re [adequação de nos- so intelecto à realidade]. Acerteza que ela traz envol- ve uma aptitudinem ad extorquendum certum assensum [capacidade de fazer surgir uma anuência segura] por parte da verdade intuída e, por pane do sujeito, 24 A Vontade de Cret uma quietem in cognitione [confiança serena no conhe- cimento], pelo qual, uma vez tendo sido o objeto mentalmente recebido, ele não deixa atrás de si ne- nhuma possibilidade de dúvida~ e, na transação como um todo, nada opera além do entitas ipsa [o próprio ser] do objeto e do entitas ipsa da mente. Nós, negli- gentes pensadores modernos, não gostamos de falar em latim- de fato, não gostamos de falar em ne- nhum termo estabelecido~ no fundo, porém , nosso próprio estado mental segue de perto esse modelo sempre que nos abandonamos de forma não-crítica: você acredita em evidência objetíva e eu também. De certas coisas, consideramos estar seguros: sabemos, e sabemos que sabemos. Há algo que dá um "clique'' dentro de nós, um sino que toca as doze badaladas, depois de os ponteiros de nosso relógio mental terem percorrido todo o mostrador e chegado à hora meri- diana. Os maiores empiristas entre nós são apenas empiristas em reflexão: quando deixados a seus ins- tintos, eles dogmatizam como papas infalíveis. Quan- do os Cliffords nos dizem como é pecaminoso ser cris- tão com base em tais "evidências insuficientes", a in- suficiência é, na realidade, a última coisa que eles têm em mente. Para eles, a evidência é absolutamente su- ficiente, só que segue o caminho oposto. Eles acredi- tam tão completamente numa ordem anticristã do 25
  • 14. Williom Jomes universo, que não há uma opção viva: o cristianismo é uma hipótese morta desde o inlcio. VIl Mas então, já que somos todos absolutistas por instinto, o que, em nossa qualidade de estudantes de fílosofia, devemos fazer a respeito desse fato? Deve- mos adotá-lo e endossá-lo?Ou devemos tratá-lo como uma fraqueza de nossa natureza da qual precisamos nos libertar, se pudermos? Acredito sinceramente que o segundo curso é o único que podemos seguir como homens reflexivos. Evidência objetiva e certeza são, sem dúvida, ideais muito bons para se trabalhar, mas onde neste pla- neta iluminado pela lua e visitado pelos sonhos são encontradas? Sou pessoalmente, portanto, um com- pleto empirista no que tange à minha teoria do co- nhecimento. Vivo, de fato, de acordo com a fé prá- tica de que devemos seguir experimentando e refle- tindo sobre nossa experiência, pois só assim nossas opiniões podem se tornar mais verdadeiras; porém, acredito ser uma atitude tremendamente equivoca- da adotar qualquer uma delas - para mim é total- 26 AVontade de Crer mente indiferente qual - como se nunca pudesse ser reinterpretável ou corrigivel, e acho que toda a história da filosofia me apoiará nisso. Há apenas urna verdade indefectivelmente certa, e essa é a verdade que o próprio ceptícismo pirrônico deixa intocada - a verdade de que o presente fenômeno da cons- ciência existe. Esse, porém, é o mero ponto de par- tida do conhecimento, a simples admissão de algo sobre o que filosofar. As várias filosofias não passam de muitas tentativas de expressar o que esse algo realmente é. E, se formos a nossas bibliotecas, quan- ta divergência descobriremos!Onde pode ser encon- trada uma resposta seguramente verdadeira? À par- te as proposições abstratas de comparação (como dois mais dois é igual a quatro), proposições que não nos dizem nada por si sós sobre a realidade concre- ta, não encontramos nenhuma proposição que já tenha sido considerada por qualquer um evidente- mente certa, que não tenha também sido chamada de falsa, ou que pelo menos não tenha tido sua ver- dade sinceramente questionada por outro alguém. A superação dos axiomas da geometria,não de brin- cadeira mas a sério, por alguns de nossos contem- porâneos (como Zõllner e Charles H. Hinton) e are- jeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos são exemplos marcantes. 27
  • 15. WilliomJomes Nenhum teste concreto do que é realmente ver- dadeiro encontrou consenso até hoje. Alguns adotam um critério exterior ao momento da percepção, pon- do-o na revelação,o consensusgentium [consenso uni- versal das nações] , nos instintos do coração ou na experiência sistemalizada da raça. Outros fazem do momento da percepção o seu próprio teste - Des- cartes, por exemplo, com suas idéias claras e distin- tas garantidas pela veracidade de Deus;Reid com seu "bom senso"; e Kant com suas formas de julzo sinté- tico a priori. A inconcebibilidade do oposto; a capa- cidade de ser verificável pelo raciocinio; a posse de completa unidade orgânica ou auto-relação, concre- tizada quando uma coisa é seu próprio outro -são padrões que, cada um por sua vez, foram utilizados. A muito louvada evidência objetiva nunca está triun- fantemente presente, é mera aspiração ou Grenzbegriff [conceito sobre o limite], marcando o ideal infinita- mente remoto de nossa vida pensante. Afirmar que certas verdades agora a possuem é simplesmente di- zer que, quando as pensamos como verdadeiras e elas são verdadeiras, então sua evidência é objetiva, caso contrário não o é. Porém, na prática, a convicção de uma pessoa de que a evidência que e1a adota é de fato do tipo objetivo é apenas mais uma opinião subjeti- va acrescentada às demais. Que variedade de opiniões contraditórias tiveram reivindicadas para sievidência 28 A Vontade de Crer objetiva e certeza absoluta! O mundo é racional por completo- sua existência é um fato concreto defi- nitivo; há um Deus pessoal - um Deus pessoal é in- concebível; há um mundo fisico extramental imedia- tamente conhecido- a mente só pode conhecer suas próprias idéias; existe um imperativo moral- a obri- gação é apenas o resultante de desejos; um princípio espiritual permanente está em todos - há apenas es- tados fluidos da mente; há uma infindável cadeia de causas - há uma primeira causa absoluta; uma ne- cessidade eterna- uma liberdade; um propósito- nenhum propósito; o Um primordial - um Muitos primordial; uma continuidade universal- uma des- continuidade essencial nas coisas; uma infinitude - nenhuma infinitude. Há isto- há aquilo; não há de fato nada que alguém não tenhajulgado absolutamen- te verdadeiro enquanto seu vizinho considerava ab- solutamente falso; e nenhum absolutista entre eles pa- rece jamais ter suposto que o problema pode todo o tempo ser essencial, e que o intelecto, mesmo com a verdade diretamente ao seu alcance, pode não ter nenhum sinal infalível para saber se ela é verdade ou não. Quando, de fato, lembramos que a mais notá- vel aplicação prática à vida da doutrina da certeza ab- soluta foram os trabalhos escrupulosos do Santo Ofí- cio da lnquisição, sentimo-nos menos tentados do que nunca a dar ouvidos respeitosos a ela. 29
  • 16. Williom Jomes --- Mas, por favor, observemos agora que quando; como empiristas, abandonamos a doutrina da certe- za objetiva, não estamos, em conseqüência, abando- nando a busca ou a esperança da verdade propriamen- te dita. Ainda centramos nossa fé em sua existência e ainda acreditamos que ganhamos uma posição cada vez melhor em direção a ela ao continuarmos sistema- ticamente somando experiências e reflexões. Nossa grande diferença em relação ao escolástico estáno lado para o qual nos voltamos. A força do sistema dele en- contra-se nos princípios, na origem, no terminusaquo de seu pensamento; para nós, a força está no resulta- do, no desfecho, no terminus ad quem. O que decide a situação para nós não é de onde vem, mas para onde leva. Não importa para umempirista de que pane uma hipótese pode chegar até ele; ele pode tê-la obtido por meios decentes ou não; a paixão pode tê-la sussurra- do ou o acidente a sugerido; porém, se a tendência total do pensamento continua a confirmá-la, isso é o que ele leva em conta para considerá-la verdadeira. VIII! Mais um ponto, pequeno porém importante, e nossos preliminares estarão encerrados. Há dois mo- dos de olhar para nossa tarefa na questão da opinião 30 A Vontade de Crer - modos inteiramente diferentes, no entanto modos cuja diferença não parece ter sido motivo de muita preocupação, até o momento, para a teoria do conhe- cimento. Precisamos conhecer a verdade; e precisamos evitar oe-rro - estes são nossos primeiros e grandes mandamentos como conhecedores potenciais; mas não são duas maneiras de expressar um mandamen- to idêntico: são duas leis separadas. Embora de fato possa acontecer que, quando acreditamos na verda- de A, escapamos, como conseqüência incidental, de acreditar na falsidade B, quase nunca acontece que, por meramente não acreditar em B, necessariamente acreditemos em A. Podemos, ao escapar de B, cair na crença de outras falsidades, Cou D, tão ruins quanto B; ou podemos escapar de B por não acreditar em absolutamente nada, nem mesmo em A. Acreditar na verdade!Evitar o erro!-estas, corno vemos, são duas leis materialmente diferentes; e, ao escolher entre elas, podemos acabar dando um colo- rido diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos perceber a busca da verdade como fundamental, e a evitação do erro como secundária; ou podemos, por outro lado, tratar a evitação do erro como mais impe- rativa, e deixar a verdade arriscar-se. Clifford, na pas- sagem instrutiva que citei, exorta-nos a este último curso. Não acreditem em nada, nos diz ele, mantenham a mente para sempre em incerteza, preferivelmente a 31
  • 17. William James se decidir com base em evidências insuficientes e in- correr no risco terrível de acreditar em mentiras. Vo- cês, por outro lado, podem achar que o risco de es- tar em erro é uma questão muito pequena quando comparada à bênção do conhecimento real, e estar dispostos a se descobrir enganados muitas vezes em suas investigações em vez de adiar indefinidamente a chance de fazer uma suposição verdadeira. Pessoal- mente, acho impossível concordar com Clifford. Pre- cisamos lembrar que esses sentimentos quanto à nos- sa tarefa em relação à verdade ou ao erro são,de qual- quer forma, apenas expressões de nossa vida pas- sional. Biologicamente considerada, nossa mente está tão pronta para se dedicar à falsidade como à veraci- dade, e aquele que diz "Melhor ficar para sempre sem crença do que acreditar numa mentira!" meramente mostra a preponderância de seu próprio horror pes- soal a passar por tolo. Ele pode ser crítico em relação a muitos de seus desejos e medos, mas, a esse medo, ele submissamente obedece. Não pode imaginar que alguém questione sua força restritiva. De minha par- te, tenho horror a me ver enganado, mas acredito que coisas piores do que estar enganado podem aconte- cer a um homem neste mundo: assim, a exortação de Clifford tem,a meus ouvidos, um som completamente fantástico. É como um general informando seus sol- dados que é melhor manter-se para sempre fora da ba- 32 A Vontade de Crer talha do que se arriscar a um único ferimento. Não é assim que se obtêm vitórias sobre inimigos ou sobre a natureza. Nossos erros seguramente não são coisas tão solenemente terríveis. Num mundo em que é tão certo que venhamos a incorrer neles apesar de toda a nossa cautela, um pouco de leveza de coração parece maissaudável do que esse nervosismo excessivo quan- to ao próprio comportamento. De qualquer forma, esta parece ser a atitude mais adequada para o filó- sofo empirista. E agora, depois de toda essa introdução, vamos direto à nossa questão. Eu disse, e agora repito, que não só encontramos nossa natureza passional nos in- fluenciando em nossas opiniões como um processo natural, como também que há algumas opções entre opiniões em que essa influência deve ser vista como um determinante inevitável e lícito de nossa escolha. Temo que aqui alguns de vocês começarão a pres- sentir perigo e passarão a me dedicar ouvidos menos hospitaleiros. Dois primeiros passos passionais vocês já tiveram de admitir como necessários- precisamos 33
  • 18. Williom Jomes pensar para evitar ser iludidos e precisamos pensar para chegar à verdade; porém, o caminho mais segu-. ro para essas consumações ideais, vocês provavelmen- te considerarão, é, de agora em diante, não dar mais nenhum passo passional. Bem, claro, concordo na medida em que os fatos permitam. Sempre que a opção entre perder a verda- de ou ganhá-la não estiver premente, poderemosjogar fora a chance de ganhar a verdade e pelo menos pou- parmo-nos de qualquer chance de acredítaremfalsída- des, não fazendo nenhuma escolha até que apareçam evidências objetivas. Em questões científicas, este é quase sempre o caso; mesmo emassuntos humanos de urna forma geral, a necessidade de agir raramente é tão urgente a ponto de ser melhor agir com base numa crença falsa do que em crença nenhuma. Os tribunais de justiça, de fato, têm de decidir com base nas me- lhores evidências obteníveis no momento, porque a tarefa de um juiz é tanto fazer a lei como verificá-la, e (como um juiz douto certa vez me disse) poucos ca- sos são merecedores de que se gaste muito tempo ne- les: o bom é decidi-los com base em qualquer princí- pio aceitável e tirá-los do caminho. Porém, em nossa relação com a natureza objetiva, somos evidentemen- te registradores, e não criadores, da verdade; e decisões tomadas com o simples propósito de decidir sem de- 34 A Vontade de Crer mora e passar para o próximo assunto seriam totalmen- te inadequadas. Por toda a extensão da natureza físi- ca, os fatos são o que são, independentemente de nós, e é raro que haja tanta pressa em relação a eles que pre- cisemos enfrentar os riscos de ser iludidos por acredi- tar numa teoria prematura. As questões aqui são sem- pre opções triviais, as hipóteses dificilmente são vivas (de qualquer forma, não são vivas para nós, especta- dores), a escolha entre acreditar na verdade ou na fal- sidade raramente é forçosa. A atitude de meio-termo céptico será, portanto, a mais sábia se desejarmos es- capar de enganos. Que diferença faz, de fato, para a maioria de nós se temos ou não uma teoria sobre os raios Rõntgen, se acreditamos ou não nas coisas da mente ou se temos uma convicção quanto à causalida- de dos estados conscientes? Não faz nenhuma diferen- ça. Tais opçõesnão são forçosas para nós. Em todos os sentidos, é melhor não as fazer e, em atitude de indi- ferença, continuar pesando razões pro et contra. Falo aqui, claro, nos termos da reflexão puramen- te crítica. Para propósitos de descoberta, tal indiferen- ça seria menos altamente recomendável, e a ciência seria muito menos avançada do que é, se os desejos passionais dos indivíduos de versuas próprias fés con- firmadas tivessem sido mantidos fora dojogo. Vejam, por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann 35
  • 19. William James agora apresentam. Por outro lado, se quiserem ver um néscio absoluto numa investigação, deverão pegar al- guém que não tenha nenhum interesse em seus resul- tados: ele é o incapaz rematado, o indiscutível inep- to. O investigadormais útil, por ser o observador mais sensível, é sempre aquele cujo interesse por um lado da questão é equilibrado por um receio igualmente ansioso de estar enganado. A ciência organizou esse receio numa técnica regular, seu chamado método de verificação, e se apaixonou de tal forma por esse mé- todo que seria mesmo possível dizer que deixou de se preocupar com a verdade em si. Éapenas a verda- de tecnicamente verificada que interessa a ela. A ver- dade das verdades poderia vir numa forma meramente afirmativa, e ela se negaria a tocá-la. Uma verdade como essa, poderia repetir com Clifford, seria rouba- da em desrespeito à sua obrigação para com a huma- nidade. As paixões humanas, porém, são mais fortes do que as regras técnicas·. "Le coeur a ses raisons", como diz Pascal, "que la raíson ne conna1t pas" ["O coração tem suas razões, que a razão desconhece"), e, por mais indiferente que o juiz, o intelecto abstrato, possa ser a tudo que esteja fora das puras regras do jogo, os jogadores concretos que o suprem do mate- rial a ser julgado geralmente estão, cada um deles, apaixonados por alguma "hipótese viva" favorita pes- soal. Vamos concordar, porém, que, não havendo 36 A Vontade de Crer nenhuma opção forçosa, salvando-nos pelo menos de ser iludidos, o intelecto crítico não-passional, sem nenhuma hipótese favorita, deve ser nosso ideal. Surge a próxima questão: não haverá, em algum ponto, opções forçosas em nossas questões especula- tivas, e podemos nós (como homens que podem es- tar pelo menos tão interessados em obter a verdade quanto em meramente evitar ser iludidos) sempre esperar impunemente até que as evidências coercivas cheguem? Parece improvável, a priori, que a verdade deva estar tão bem ajustada a nossas necessidades e a nossos poderes. Na grande hospedaria da natureza. os bolos, a manteiga e o mel raramente saem tão bem e deixam os pratos tão limpos. De fato, deveríamos olhá- los com desconfiança científica se isso acontecesse. liX Questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja solução não pode esperar poruma prova sensível. Uma questão moral não é uma ques- tão do que existe no plano sensível, mas do que é bom, ou do que seria bom se existisse. A ciência pode nos dizer o que existe, mas. para comparar os valores tan- 37
  • 20. William James to do que existe como do que não existe, precisamos consultar não a ciência, mas o que Pascal chama de nosso coração. Aprópria ciência consulta seu coração quando afirma que a infinita determinação do fato e a correção da falsa crença são os bens supremos para o homem. Desafie-se a afirmação, e a ciência só poderá repeti-la oracularmente, ou então prová-la mostrando que tal determinação e tal correção trazem ao homem todo tipo de outros bens que seu coração, por sua vez, declara. A questão de ter ou não crenças morais é de- cidida por nossa vontade. São nossas preferências morais verdadeiras ou falsas, ou são elas apenas fenô- menos biológicos casuais, que tornam as coisas boas ou más para nós, mas em si mesmos são indiferentes? Como o intelecto puro pode decidir? Se seu coração não quiser um mundo de realidade moral, sua cabeça certamente nunca o fará acreditar em um. O cepti- cismo mefistofélico, de fato, satisfará muito melhor os instintos lúdicos da cabeça do que qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo na idade de estudan- tes) são tão naturalmente desapaixonados que a hipó- tese moralista nunca tem para eles nenhuma vida pun- gente, e, em sua presença desdenhosa, o jovem mora- lista inflamado sempre se sente estranhamente pouco à vontade. Aaparência de conhecimento está do lado daqueles, a de nazveté e credulidade, do lado dele. No entanto, em seu coração inartículado, ele se agarra à 38 A Vontade de Crer idéia de que não é um tolo, e de que há um domínio em que (como diz Emerson) toda a perspicácia e su- perioridade intelectual deles não é melhor do que a astúcia de uma raposa. O cepticismo moral não pode ser mais refutado ou provado pela lógica do que o cepticismo intelectual. Quando insistimos em que há verdade (seja ela de um ou de outro tipo), fazemos isso com toda a nossa natureza e nos decidimos a perma- necer de pé ou cair pelos resultados. O céptico adota com toda a sua natureza a atitude de suspeita; mas qual de nós é o mais sábio, apenas a Onisciência sabe. Voltemo-nos agora dessas questões amplas do bem para uma certa classe de questões de fatos, ques- tões que se referem a relações pessoais, estados de mente entre um homem e outro. Vocêgosta de mim ou não? - por exemplo. O fato de você gostar ou não depende, em inúmeros casos, de eu fazer ou não con- cessões a você, de eu estar disposto a supor que você deva gostar de mim e de eu demonstrar confiança e expectativa em relação a você. A fé anterior de minha parte na existência de sua disposição favorável é, em tais casos, o que faz essa disposição favorável existir. Porém, se eu permanecer indiferente e recusar a me mover um centímetro até possuir alguma evidência objetiva, até que você tenha feito alguma coisa capaz, como dizem os absolutistas, ad.extorquendum a.ssensum 39
  • 21. Williom Jomes meum [de fazer surgir minha anuência segura], as chances serão de dez para um de que você nunca ve- nha a gostar de mim. Quantos corações femininos são conquistados pela mera insistência incansável de al- gum homem de que elas devemamá-lo! Ele não acei- tará a hipótese de que elas possam não o amar. O de- sejo de um certo tipo de verdade, neste caso, ocasio- na a exístência dessa verdade especial; e assim se dá em inúmeros casos de outras espécies. Quem ganha promoções, favores, entrevistas senão o homem em cuja vida essas coisas desempenham o papel de hipó- teses vivas, que as antecipa, sacrifica outras coisas por elas antes de terem acontecido e assume riscos de an- temão por elas? Sua fé atua sobre os poderes acima dele como uma afirmação e cria sua própria realização. Um organismo social de qualquer tipo, grande ou pequeno, é o que é porque cada membro realiza suas próprias tarefas com a confiança de que os outros membros cumprirão simultaneamente as deles. Sem- pre que um resultado desejado é obtido pela coope- ração de muitas pessoas independentes, sua existên- cia como fato é pura conseqüência da fé mútua pre- viamente nutrida pelos diretamente envolvidos. Um governo, um exército, um sistema comercial, um na- vio, uma faculdade, uma equipe esportiva, todos exis- 40 A Vontade de Crer tem sob essa condição, sem a qual não só nada é con- seguido, como nada sequer é tentado. Um trem intei- ro de passageiros (individualmente muito corajosos) será saqueado por um pequeno grupo de ladrões pelo simples fato de que estes últimos podem contar uns com os outros, enquanto cada passageiro teme que, se ftzer algum movimento de resistência, receberá um tiro antes que qualquer outra pessoa o apóie. Se acreditás- semos que todo o vagão se levantaria imediatamente conosco, cada um de nós individualmente se levanta- ria, e roubos a trensjamais seriam sequer tentados. Há, portanto, casos em que um fato não pode ocorrer a menos que exista uma fé preliminar em sua ocorrên- cia. E, nos casos em que afé numfato pode ajudaracriar oJato, seria uma lógica insana dizer que a féque vem antes da evidência científica é "o nível mais baixo de imoralidade" a que um ser pensante pode descer. No entanto, tal é a lógica pela qual nossos absolutistas científicos pretendem regular nossa vida! X Em verdades dependentes de nossa ação pessoal, portanto, a fé baseada na vontade é, certamente, algo lícito e possivelmente indispensável. 41
  • 22. Williom Jomes --···· - - Porém, será dito, esses são todos casos humanos pueris e não têm nada a ver com grandes tem~s có~ micos, como a questão da fé religiosa. Vamos, então, passar a isso. As religiões diferem tanto em suas cir- cunstâncias que, ao discutir a questão religiosa, pre- cisamos fazê-lo de forma muito genérica e ampla. A que, então, nos referimos agora ao falar da hipótese religiosa? Aciência diz que as coisas são; a moralida- de diz que algumas coisas são melhores do que ou- tras; e a religião diz, essencialmente, duas coisas. Primeiro, ela diz que as melhores coisas são as coisas mais eternas, as coisas que se sobrepõem às demais, as coisas no universo que atiram a última pedra, por assim dizer, e têm a palavra final. "A per- feição é eterna"- esta frase de Charles Secrétan pa- re~e uma boa maneira de expressar essa primeira afir- mação da religião, afirmação que, obviamente, ainda não pode ser verificada em termos científicos. A segunda afirmação da religião é que, mesmo agora, ficaremos em melhor situação se acreditarmos que a primeira afirmação é verdadeira. Vamos examinar, então, quais são os elementos lógicos dessa situação no caso de a hipótese religiosa em ambas as suas expressões ser de fato verdadeira. (Claro que precisamos admitir essa possibilidade .42 A Vontade de Crer desde o início. Para que possamos discutir a ques- tão, ela deve envolver uma opção viva. Se, para al- gum de vocês, a religião for uma hipótese que não pode, por nenhuma possibilidade viva, ser verdadei- ra, não é necessário prosseguir. Falo apenas ao "res- to fiel".) Assim procedendo, vemos, primeiramente, que a religião se oferece como uma opção premente. Presume-se que ganhemos, ainda agora, por meio de nossa crença, e que percamos, por nossa não-cren- ça, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião é uma opçãoforçosa no que se refere a esse bem. Não podemos escapar à questão permanecendo cépticos e esperando por mais luz porque, embora evitemos o erro dessa maneira se a religião nãofor verdadeira, perderemos o bem se elafor verdadeira, tão certamen- te quanto se escolhêssemos definitivamente não acre- ditar. É como se um homem hesitasse indefinida- mente quanto a pedir uma certa mulher em casa- mento por não ter certeza absoluta de que ela se mostraria um anjo depois que ele a levasse para casa. Não estaria ele negando a si próprio essa possibili- dade particular de ela ser um anjo de forma tão de- cisiva quanto se decidisse casar com outra pessoa? O cepticismo, portanto, não é o ato de evitar a op- ção; é a opção por um certo tipo específico de risco. Emelhor se arriscar à perda da verdade do que à chan- ce de erro - esta é a posição exata daquele que veta ..43
  • 23. William James a fé. Ele está fazendo sua aposta tanto quanto aque- le que crê; está se defendendo contra a hipótese re- ligiosa, assim como o crente está defendendo a hi- pótese religiosa contra seu opositor. Pregar para nós o cepticismo como sendo um dever até que "evidên- cias suficientes" em favor da religião possam ser en- contradas é equivalente, portanto, a nos dizer, quan- do na presença da hipótese religiosa, que ceder a nosso receio de que ela esteja errada é mais sábio e melhor do que ceder à nossa esperança de que da possa ser verdadeira. Não é, então, o intelecto con- tra todas as paixões; é apenas o intelecto com uma paixão estabelecendo a sua lei. E o que, por acaso, garante a sabedoria suprema dessa paixão? Engano por engano, que prova existe de que o engano pela esperança é tão pior do que o engano pelo medo?Eu, pessoalmente, não consigo ver nenhuma prova;sim- plesmente recuso obediência à ordem do cientista de que eu imite seu tipo de opção, num caso em que minha própria aposta é importante o suficiente para me dar o direito de escolher minha própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e as evidências em prol dela ainda forem insuficientes, não desejo, pela aplicação de seu extintor de incêndio à minha natu- reza (que me parece, afinal de contas, ter algo a ver com toda essa questão), ser privado de minha única 44 AVontade de Crer chance na vida de ficar do lado vencedor - chance que depende, claro, de minha disposição de correr o risco de agir como se minha necessidade passional de encarar o mundo religiosamente pudesse ser pro- fética e certa. Tudo isso se apóia na suposição de que ela real- mente possa ser profética e certa e de que, para nós mesmos que estamos discutindo a questão, a religião seja uma hipótese viva que pode ser verdadeira. Po- rém, para a maioria de nós, a religião tem ainda uma outra característica que torna um veto à nossa fé ati- va ainda mais ilógico. O aspecto mais perfeito e mais eterno do universo é representado, em nossas reli- giões, por uma forma pessoal. O universo não é mais um mero Isso para nós se somos religiosos, mas um Tu; e qualquer relação que possa ser possível de pes- soa para pessoa poderia ser possível aqui. Por exem- plo, embora, em certo sentido, sejamos partes passi- vas do universo, em outro sentido apresentamos uma curiosa autonomia, corno se fôssemos pequenos cen- tros ativos por nós mesmos. Sentimos, também,como se o apelo da religião nos fosse feito à nossa própria boa vontade ativa, corno se as evidências pudessem ficar para sempre ocultas a nós se não fôssemos ao encontro da hipótese no meio do caminho.Dando um exemplo trivial: assim como um homem que, num 45
  • 24. Williom James grupo de cavalheiros, não tomasse nenhuma inicia- tiva,exigisse uma garantia para cada concessão e não acreditasse na palavra de ninguém sem provas fica- ria privado, por tal intratabilidade, de todas as recom- pensas sociais que um espírito mais abeno proporcio- naria - também aqui, aquele que se fechasse num logicismo ríspido e tentasse fazer que os deuses ar- rancassem seu reconhecimento porbem ou por mal, ou então não o conseguissem de forma alguma, po- deria privar-se para sempre de sua única oportuni- dade de travar conhecimento com os deuses. Esse sentimento - instilado em nós sem nem sabermos de onde-, de que, por acreditar obstinadamente que há deuses (embora não fazer isso fosse tão fácil tanto para nossa lógica como para nossa vida) esta- mos prestando ao universo o maior serviço que po- demos, parece parte da essência viva da hipótese re- ligiosa. Se a hipótesefosseverdadeira em todas as suas partes, inclusive esta, então o puro intelectualismo, com seu veto a que tomemos iniciativas volitivas, seria um absurdo; e alguma participação de nossa natureza compassiva seria logicamente requerida. Sendo assim, eu, pessoalmente, não vejo com~ acei- tar as regras agnósticas para a busca da verdade, ou concordar voluntariamente em manter minha natu- reza volitiva fora do jogo. Não posso fazer isso por 46 A Vontade de Crer esta simples razão: uma regra de pensamento que me impedisse completamente de reconhecer certos tipos de verdade, se esses tipos de verdadedeJato estivessem pre- sentes, seria uma regra irracional. Este para mim é o resumo da lógica formal da situação, quaisquer que possam ser, materialmente, os tipos de verdade. Confesso que não vejo como escapar a essa ló- gica. Mas a triste experiência me faz recear que al- güns de vocês ainda possam se recusar a afirmar ra- dicalmente comigo, in abstracto, que temos o direi- to de acreditar, assumindo nossos próprios riscos, em qualquer hipótese que seja suficientemente viva para atrair nossa vontade. Suspeito, porém, que se isso acontece é porque vocês se afastaram inteira- mente do ponto de vista lógico abstrato e estão pen- sa.ndo (talvez sem ter consciência disso) em alguma hipótese religiosa específica que para vocês é morta. A liberdade de "acreditar no que quisermos" vocês aplicam ao caso de alguma superstição evidente; e a fé, consideram como sendo a fé definida pela crian- ça que diz: "Fé é quando você acredita em alguma coisa que sabe que não é verdade". Só posso repetir que essa é uma idéia equivocada. In concreto, a liber- dade de acreditar só pode abranger opções vivas que o intelecto do indivíduo não consegue, por si só, re- solver; e opções vivas jamais parecem absurdos para 47
  • 25. Wílliom James - - - aquele que as considera. Quando olho para a ques- tão religiosa da forma como ela realmente se apresenta a homens concretos, e quando penso em todas as possibilidades que ela envolve, tanto na prática como em teoria, essa ordem de que devemos pôr um freio em nosso coração, em nossos instintos e em nossa coragem, e esperar- agindo, claro, nesse meio tem- po, mais ou menos como se a religião não fosse ver- dadeira- até o dia do juízo, ou até o momento em que nosso intelecto e nossos sentidos, trabalhando em conjunto, talvez consigam reunir evidências su- ficientes - essa ordem, repito, parece para mim o ídolo mais estranho jamais fabricado na caverna filo- sófica. Fôssemos nós absolutistas escolásticos, pode- ria haver mais desculpas. Se tivéssemos um intelecto infalível com suas certezas objetivas, poderíamos nos sentir desleais a tal órgão perfeito de conhecimento se não confiássemos exclusivamente nele, se não es- perássemos por sua palavra de autorização. Mas se somos empiristas, se acreditamos que não existe um sino dentro de nós que toca para nos avisar com se- gurança quando a verdade está ao nosso alcance, en- tão parece um tanto fantástico pregar de forma tão solene nosso dever de esperar pelo sino. Sem dúvida podemos esperar se quisermos - espero que não pen- sem que eu esteja negando isso -, mas, se fizermos 48 A Vontade de Crer isso, assumiremos as conseqüências de nossa decisão tanto quanto se acreditássemos. De uma forma ou de outra, nós agimos, tomando nossa vida em nossas mãos. Nenhum de nós deveria impor vetos aos ou- tros, nem nos atacar mutuamente com palavras gros- seiras. Deveríamos, ao contrário, respeitar profunda e sensivelmente a liberdade mental uns dos outros: apenas então poderemos constituir a república inte- lectual; apenas então teremos esse espírito de tole- rância interior sem o qual toda a nossa tolerância ex- terior é desprovida de alma; apenas então viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas especulativas como nas práticas. Comecei com uma referência a Fitz-james Ste- phen; vou concluir com uma citação dele: "O que você pensa de si mesmo? O que você pensa do mun- do? ... Estas são perguntas com as quais todos têm de lidar da forma como lhes parece bom. São enigmas da Esfinge e, de uma maneira ou de outra, precisa- mos lidar com eles.... Em todas as situações impor- tantes da vida, temos de dar um salto no escuro.... Se decidirmos deixar os enigmas sem resposta, essa será uma escolha; se hesitarmos em nossa resposta, essa também será uma escolha: mas, qualquer que seja a nossa escolha, assumiremos as suas conseqüên- cias. Se um homem escolhe dar as costas definitiva- 49
  • 26. WilliomJomes mente para Deus e para o futuro, ninguém pode im- pedi-lo; ninguém pode demonstrar, sem nenhuma margem de dúvida razoável, que ele está enganado. Se um homem pensa da maneira contrária e age con- forme pensa, não vejo também como alguém possa provar que ele está enganado. Cada um deve agir como julga melhor; e, se está errado, o problema é dele. Estamos num desfiladeiro na montanha em meio à neve rodopiante e à neblina que nos cega e, por entre a bruma, temos apenas vislumbres ocasionais de trilhas que podem ser enganosas. Se ficarmos pa- rados, congelaremos até morrer. Se tomarmos a estra- da errada, seremos despedaçados. Nem sequer sabe- mos com segurança se existe um caminho certo. O que devemos fazer? 'Ser fortes e corajosos.' Agir da melhor maneira, esperar pelo melhor e assumir o que vier.... Se a morte for o fim de tudo, não poderemos ter encontro melhor com ela". 50