1) O documento discute a questão da salvação somente por Jesus Cristo à luz do pluralismo religioso moderno e do diálogo inter-religioso.
2) Apresenta perguntas sobre a situação de não-cristãos e gerações antigas e argumenta que afirmar a exclusividade cristã pode inviabilizar o diálogo.
3) Discutem-se alternativas como o relativismo ou admitir outros caminhos para além de Cristo, mas aponta-se problemas nessas posições.
Salvação somente por Jesus? Uma análise da exclusividade cristã
1. “NINGUÉM VEM AO PAI SENÃO POR MIM” (João 14.6)
Salvação somente por Jesus?
(Texto revisto de um artigo publicado pelo autor, em 1990, no livro “Testemunho da fé
em Tempos Difíceis” da Editora Sinodal)
Gottfried Brakemeuier
I.
De acordo com o testemunho unânime do Novo Testamento não há salvação senão em
Jesus Cristo (Atos 4.12; etc.). É ele o único mediador entre Deus e o ser humano (1
Timóteo 2.5), o sumo sacerdote que, mediante seu auto-sacrifício, desobstruiu o acesso
a Deus (Hebreus 7s); o Verbo que se fez carne (João 1.14). A ele caberá também o
juízo final sobre o mundo (Mateus 25.31s; Apocalipse 1.16: etc.). O nome de Jesus é
sinônimo de salvação para quem nele crê, de perdição para quem nele se escandaliza (1
Coríntios 1.18s). “Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será
condenado” (Marcos 16.16). Ou, em termos de Jesus, no evangelho de João: “Eu sou o
caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14.6).
Essa convicção tem sido a força motora da missão cristã através dos tempos. Importava
levar a salvação que há em Cristo a todos os povos, ensinando-lhes a fé e criando
comunidade. Cumpria-se, assim, a grande comissão do Cristo ressuscitado (Mateus
28.18s). Missão cristã tem por premissa a consciência de que a mensagem a ser
transmitida é vital para as pessoas. Se crer ou não crer em Cristo for considerado
irrelevante, não vai haver missão e a igreja vai morrer.
Há, contudo, perguntas a responder. Se somente em Cristo há salvação, qual é a situação
das gerações antigas que viveram antes dele e não o conheciam? E as tantas pessoas
hoje, nossas contemporâneas, seguidoras de outras religiões e crenças, estarão todas elas
perdidas, condenadas? É imaginável, inclusive, que muitas tenham sido desmotivadas
para abraçar a fé devido ao mau exemplo dos que se dizem cristãs. Seria injusto culpá-
las. Com que direito a fé cristã reivindica exclusividade? É necessário apresentar
argumentos e justificar por que Jesus, de fato, é o único caminho a Deus e de nós a ele.
As perguntas se tornam especialmente insistentes no pluralismo típico do mundo
globalizado:
1. Está aí a realidade das religiões não-cristãs. Jamais o confronto com ela tem sido
de tal modo imediato e direto. Vivemos próximos e dependentes uns dos outros,
misturados como cristãos e não cristãos. Não há como manter o diferente à
distância. O surto das religiões representa um desafio nada desprezível. Ouvimos
dos avanços do islamismo; somos testemunhas do surgimento de novos movimentos
religiosos, não-cristãos ou sincretistas; estamos sendo bombardeados por inúmeras
formas de propaganda que promete salvação sem Jesus Cristo. É impossível ignorar
o mundo religioso ao lado das igrejas. Exige uma resposta. Mas qual? Repetir que
nós, cristãos e cristãs, estamos com a verdade, enquanto os demais vivem no
engano, significaria inviabilizar de antemão o diálogo inter-religioso e acarretaria
graves prejuízos para a própria missão.
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2. 2. Há pecados da igreja a confessar. Em 1442, o Concílio de Florença, sob a
invocação da autoridade de célebres teólogos da antiguidade, estabelece
oficialmente não haver salvação fora da Igreja. Desta forma, está sendo levado ao
ápice o exclusivismo eclesiástico. Doravante, todos os não-cristãos trariam o
estigma de pessoas perdidas. Não participariam da vida eterna, sendo antes rés do
castigo infernal.
Tem sido esta a legitimação e o impulso para a soberbia cristã frente aos povos
pagãos e aos judeus. Freqüentemente se lhes impunha a fé a ferro e fogo. Eram
mortos quando se recusavam a converter-se. A missão adquiriu formas violentas.
Em nome de Jesus foram extintas culturas e submetidos à dominação e exploração
povos e raças. Os cristãos se portavam como donos da verdade, desprezando os
“incultos” pagãos e julgando ter o direito de subjugá-los. Sem negar que, ao lado
desses abusos, houve também missão autêntica, abençoada por Deus com ricos
frutos, devem ser admitidos os erros. Traumatizaram a missão cristã e causaram uma
inibição, com a qual a igreja luta até hoje.
3. Outro motivo para o mal-estar com a exclusividade da fé cristã reside na decepção
de muitos com a atual situação das igrejas e dos cristãos. Não são o sal da terra que
pretendem ser, nem a luz do mundo. Ficam por demais em débito com o mandato de
seu Senhor. Enquanto isso, há muitos não-cristãos merecedores do mais profundo
respeito. Basta lembrar uma pessoa ilustre como M. Gandhi. Seria arrogante dizer
que a verdade se encontra sempre no lado dos cristãos e das cristãs e que levam a
salvação aos outros. Tal reivindicação aniquilaria a credibilidade. Por acaso, não
existem também entre não-cristãos a boa ação, o cumprimento da vontade de Deus,
a fé e o amor?
4. Menciono, enfim, um aspecto da própria compreensão da missão. A Igreja está
comissionada a levar o evangelho aos confins da terra (Atos 1.8). Mas, porventura,
significará isto que a salvação ou perdição das pessoas depende dela e de seu
empenho? Nenhum missionário pode assumir tal responsabilidade. Negligência é
culpa, sem dúvida. No entanto, quem salva é Deus e Jesus Cristo, não a igreja.
Missão não pode ter por objetivo salvar o mundo. Deve dar testemunho da salvação,
mas não pretender operar o que é obra de Deus. É este um aspecto, ao qual
voltaremos abaixo. Em todo caso, seria descabido fazer depender a salvação das
pessoas dos sucessos ou fracassos da missão. Ninguém poderia ser cristão, se assim
fosse.
Uma forma de resolver todos esses problemas seria a renúncia à unicidade de Jesus
Cristo. Seria ele apenas um dos possíveis caminhos a Deus. É uma atitude freqüente em
nossos dias, embora de modo algum nova. Era característica da posição iluminista, por
exemplo, que propugnava pela tolerância religiosa. Cada qual deveria ter o direito de
seguir o credo de sua preferência. Tornou-se famosa a parábola de G. E. Lessing,
comparando as religiões a preciosos anéis. Somente um seria o genuíno, os outros
seriam falsificações, sem que, no entanto, se soubesse quais. Na incerteza todos
deveriam tomar por original o seu anel sem negar, porém, a possibilidade da
autenticidade aos demais. À convicção religiosa própria, pois, mistura-se uma dose de
suspeita, recomendando abertura e respeito aos credos alheios.
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3. Antes de qualquer crítica a tal concepção importa lembrar ser a ela que devemos o
princípio da liberdade religiosa, um direito consagrado também pela Constituição
brasileira. Batalhando pela tolerância, o iluminismo consegue acabar com as guerras
religiosas na Europa dos séculos XVII e XIII. Desagravou a polêmica confessional e
inaugurou uma nova convivência das denominações cristãs e das religiões, baseada na
fraternidade e no respeito de uns para com os outros.
A partir dessa constatação recebe reforço a pergunta, se a indiferença com relação à
verdade não é de fato preferível. Seriam evitadas desgastantes disputas e brigas, sim,
verdadeiras atrocidades resultantes da vontade de dominar e de ver confirmadas as
convicções próprias. Na história humana, o fanatismo religioso tem produzido inúmeras
vítimas. Portanto, não seria melhor admitir que Jesus, embora digno da mais profunda
devoção, não seja o único personagem importante da humanidade e que a salvação não
se prende exclusivamente a seu nome?
Ora, à primeira vista, o relativismo parece simpático. Mas tem gravíssimos
inconvenientes. Se não mais existir verdade nenhuma, se tudo for “relativo”, perder-se-
ão os critérios para a ação correta. Ninguém será capaz de dizer o que, afinal, é válido.
A gente “vai na onda”, cultua o descompromisso, e desta forma é impossível viver. Para
o bem das pessoas e da sociedade, se faz necessário guiar-se por determinados
princípios, possuir diretrizes e objetivos claros, ter em que confiar. Relativismo acaba
com a vida, cedo ou tarde, Acaba também com as religiões. Pois fé não agüenta o
permanente questionamento. Precisa de certeza.
Ou, então, o relativismo produz outros exclusivismos não menos rígidos. O
exclusivismo é apenas transferido para outro plano. Isto acontece, por exemplo, quando
se afirma não ser a fé em Cristo decisiva para a salvação, e, sim, o engajamento na
prática do bem. Cria-se, assim, uma comunidade “a-confessional”, engajada em
determinada práxis, sendo excluído quem não cumprir as exigências. A relativização de
um princípio conduz à absolutização de outro. Onde a verdade cristã é negada, outras
supostas verdades ou ideologias são colocadas em seu lugar, por via de regra bem mais
intransigentes e excludentes.
Porventura, não haverá alternativa senão a de escolher entre fanatismo e indiferentismo?
Voltamos a perguntar pelo que significam as palavras de Jesus, dizendo ser ele o único
acesso a Deus. Deveremos insistir irredutivelmente na verdade cristã, tornando-nos
cruéis, duros, bitolados? Ou deveremos abrir mão dessa verdade e arriscar de vez a
perda da fé? Em outras palavras: Existe salvação também em outras religiões e por meio
delas? O assunto agita os ânimos. Deu provas disso a Conferência sobre Missão e
evangelização do Conselho Mundial de Igrejas, realizada em San Antonio, Texas, 1989.
Comprova-o não menos o crescente número de manifestações que enfatizam a
necessidade do diálogo inter-religioso. A missão cristã, sua motivação, sua metodologia
e seus objetivos estão em jogo.
II.
A problemática acompanha a trajetória da igreja desde seus princípios. Nem sempre as
respostas têm sido excludentes. Para Justino, um teólogo do século II, há germes da
verdade também nas filosofias e religiões pagãs. Na fé cristã, estas sementes teriam
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4. desabrochado e alcançado plenitude. Mas algo do “logos” (= palavra) que em Cristo se
encarnou (João 1.14) estaria presente também na sabedoria pagã. Isto permite Justino
concluir que toda verdade, afirmada em qualquer época e lugar, deve ser considerada
cristã. Ele não renuncia à exclusividade de Jesus, mas ele o vê atuando também em
outras partes, ainda que se lhe desconheça o nome.
Para este teólogo, pois, existem muitos “cristãos anônimos” que o são sem o admitirem.
Reside nisto um problema. Com que direito a fé cristã “encampa” os não-cristãos e os
“batiza”, embora o faça apenas espiritualmente? Ademais, em que consistiriam os
germes da verdade comuns? Justino entende a fé cristã como um conjunto de idéias, no
que pode haver coincidências ou afinidades com outras filosofias ou crenças.
Entretanto, há que se perguntar se a verdade cristã se encaixa em tal esquema.
Outras perspectivas se abrem a partir da redescoberta do privilégio reservado pela Bíblia
aos pobres. É através deles, assim sustentam significativas correntes teológicas da
atualidade, que Cristo se faz presente. Com eles, os necessitados, identificou-se e neles
quer ser servido (Mateus 25.31s), não interessando o credo que professam. Os pobres e
marginalizados são os preferidos por Deus, os bem-aventurados por Jesus, e eles se
encontram entre “judeus e gregos”, cristãos e não-cristãos. Eles têm presença
ecumênica. Constituem o verdadeiro povo de Deus, e seu clamor tem a promessa de ser
ouvido. A salvação se destina a eles bem como àqueles e àquelas que lhes prestam
socorro e com eles se solidarizam. Dessa maneira, a relação entre cristãos e não-cristãos
está sendo colocada em termos novos: a questão confessional é relativizada e chega-se a
vislumbrar um ecumenismo inter-religioso, centrado na pessoa do pobre e no serviço do
amor. É um ecumenismo prático, orientado na libertação dos oprimidos e no ideal de
uma nova humanidade.
Por mais importante que seja o destaque à preferência aos pobres, necessário se faz
perguntar se, de fato, poderão ser considerados revelação de Jesus em sentido pleno. A
Bíblia não os iguala ao Verbo feito carne. Permanecem sendo seres humanos, carentes
também eles do perdão de seus pecados. Continua havendo entre eles e Jesus uma
fundamental diferença. Da mesma forma deve-se perguntar se a fé permite ser declarada
opcional quando se trata de salvação e perdição. É bom lembrar que não existe fé
autêntica sem amor. Mas este não é capaz de substituir a fé. A pessoa pecadora, a ímpia,
é justificada por sua confiança em Deus. O próprio Jesus ressaltou a relevância da fé. E,
com efeito, qualquer teologia que pregar a justificação pela prática do amor vai acabar
em terrível legalismo. Assim sendo, a pergunta por salvação à parte de Jesus Cristo
continua aberta.
Ela não é estranha nem mesmo ao Novo Testamento. A ele voltamos agora nossa
atenção. Há uma série de aspectos e passagens interessantes:
1. Em 1 Pedro 3.19,20 é dito que Jesus, depois de morto e ressuscitado, foi pregar aos
“espíritos em prisão”. Desceu ao mundo dos mortos e lá pregou o evangelho. Assim
deu chance de conversão especialmente à geração desobediente dos tempos de Noé
(3.20) e, em termos gerais, a todos que morreram antes dele (4.6). Jesus é Senhor
também dos mortos, e ninguém será julgado sem justa causa. Condenação pressupõe
culpa. Ao oferecer o evangelho também aos mortos, Jesus estabelece a igualdade de
condições entre estes e os vivos. As gerações passadas não estão em desvantagem.
Também elas serão atingidas pela missão, diretamente por Jesus Cristo.
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5. A afirmação da descida de Jesus ao mundo dos mortos é de enorme profundidade.
Expressa não haver “reino” fora do alcance de Jesus. Seu domínio é universal. Por
isto mesmo, não há razão para preocupar-se com a sorte dos falecidos antes de sua
vinda. Jesus não é injusto. Oferece oportunidade de salvação também a quem não
teve o privilégio de conhecê-lo. Mas o que vai acontecer com as gerações futuras,
não alcançadas pela missão cristã, isso fica sem resposta. O texto não diz que todas
as pessoas que vierem a falecer receberão a mesma chance. Ademais, permanece a
dúvida se entre os mortos, aos quais Jesus pregou, não houve quem fosse justo.
Estavam todos perdidos antes de ouvirem Jesus? O Novo Testamento o diz de
modo diferente.
2. O exemplo mais ilustre é Abraão, o patriarca. Conforme o apóstolo Paulo, ele é o
exemplo da pessoa justificada por fé. (Romanos 4; Gálatas 3). Ora, Abraão não era
cristão. Viveu muitos séculos antes de Cristo, jamais foi batizado e não teve
conhecimento do que Jesus ensinou. Ainda assim, Abraão creu no Deus que justifica
o ímpio (Romanos 4.5), vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não
existem (4.17). E esta fé lhe foi imputada para justiça. Manifestou-se como
“esperança contra esperança” (4.18), ou seja, como confiança inabalável na
promessa de Deus, que lhe assegurara numerosa descendência. Abraão creu contra
as evidências humanas, não se abalando com a sua idade avançada e da de sua
esposa. Sabia que pode realizar o humanamente impossível, que sua bondade triunfa
sobre a fraqueza humana, que ele faz maravilhas. O que distingue a fé de Abraão
certamente não é a precisão dogmática. É fundamentalmente uma conduta. Abraão
vivia da misericórdia de Deus. Era pecador, ímpio. Necessitava ser justificado. Mas
depositava sua integral confiança em Deus, sendo assim justificado por graça e fé.
Paulo atribui a Abraão uma fé “cristã”, e aos cristãos uma fé “abraâmica.” Algo
semelhante pode-se observar, no Novo Testamento, com relação a outros
personagens do antigo povo de Deus, a exemplo de Jacó, Moisés, Raabe (cf Hebreus
11) ou então dos profetas e salmistas. Isto, porém, significa que a comunidade cristã
reconhece haver antes de Cristo uma fé que, em sua estrutura e em seus conteúdos,
não só se assemelha à fé em Cristo, como também lhe é profundamente idêntica.
Também antes da vinda de Jesus havia fé que Deus imputa para justiça.
E para o período depois dele? Juntamente com a igreja cristã, o judaísmo
contemporâneo e o islamismo confessam Abraão como seu patriarca. Não haverá
também entre eles, judeus e muçulmanos, fé semelhante à deste ancestral comum?
Tal afirmação não significa nivelação dos credos nem a exclusão de Jesus Cristo
como mediador único da salvação. Voltaremos a este aspecto logo mais. Por ora,
importa constatar ser a fé que justifica de nenhum modo monopólio dos cristãos.
Poderá ser encontrada também fora da igreja, particularmente entre os que seguem
os passos de Abraão, o patriarca.
3. Neste mesmo contexto, não deixa de ser interessante o que o apóstolo Paulo diz a
respeito dos gentios, em Romanos 2.14-16 todos são merecedores do juízo de Deus,
judeus e gregos, pois todos estão imersos em pecado. Este pecado não é lapso por
engano ou ignorância, mas sim ato consciente, culpa. Deus revelou a sua lei aos
judeus. Mas também os pagãos têm noção da vontade divina. Pois eles, embora não
possuam a lei judaica, “procedem por natureza de conformidade com a lei”. A
norma da lei está gravada em seus corações, “testemunhando-lhes também a
5
6. consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se”
(2.15). Por esta razão, também os pagãos são indesculpáveis perante Deus.
Conhecem a vontade divina, mas, à semelhança de todo o mundo, permanecem em
dívida com ela.
O que chama atenção é que, para Paulo, também os gentios sabem distinguir entre o
bem e o mal. Possuem a sua sabedoria. Esta certamente não os salva. No entanto,
assim devemos concluir, os cristãos fazem bem em não desprezar os conhecimentos
éticos dos não-cristãos (cf Filipenses 4.8). Os cristãos têm muito a aprender dos não-
cristãos, ou seja, dos indígenas, de religiões tribais, de ateus. Depende de exame. De
qualquer forma, a percepção do que vem a ser o bem não é nenhum privilégio
cristão nem assunto de sua exclusiva competência. Basta mencionar a questão da
ecologia, com respeito à qual outros têm o que ensinar aos cristãos, especialmente
os povos indígenas. Por todas essas razões, recomenda-se humildade aos cristãos no
encontro com pessoas não-cristãs.
4. Decisiva, porém, é a natureza do próprio evento de Cristo. Jesus diz ser o caminho,
a verdade e a vida. Qual é o fundamento dessa afirmação? Necessário se faz lembrar
alguns aspectos essenciais da pessoa de Jesus, de sua história e obra.
O Novo Testamento proclama que a vinda de Jesus tem sua causa no amor de Deus
que não se conforma com a perda de sua criatura (João 3.16). Jesus veio para salvar,
aliás, não só algumas almas, mas sim a humanidade. A obra de Jesus possui
dimensão universal. Ele morreu e ressuscitou por todos. Depois da Sexta-feira Santa
e da Páscoa, o mundo é outro. Traz as marcas da cruz de Gólgota. É o mundo pelo
qual Deus entregou seu próprio Filho. Isto vale, ainda que ninguém o creia. Pois
Deus não faz depender seu amor de nossa fé ou descrença. Ele ama pecadores,
idólatras, ímpios, gente “digna de morte” (Romanos 1.32). É deste mundo perdido
que se compadeceu. Perdoou-lhe os pecados, reconciliou-o consigo mesmo (2
Coríntios 5.18). A descrença não anula a graça. Por isto, todo não-cristão, antes de
ser um descrente, é alguém de quem Deus se compadeceu e por quem Cristo morreu
na cruz.
Esta é uma perspectiva normalmente esquecida, mas altamente relevante. Ela
impossibilita o desprezo aos outros e, desde já, condena a ação desumana contra os
“incrédulos”. O cristão e o pagão, diante de Deus, encontram-se na mesma
dependência da graça e, por isto, numa situação de profunda solidariedade. Não há
lugar para a vanglória ou um sentimento de superioridade. Somente nessas
condições o diálogo e o encontro inter-religioso poderão ser exitosos e possuem a
promissão de nosso Senhor.
Simultaneamente importa sublinhar que a revelação, havida em Jesus Cristo, de
modo algum se resume num conjunto de dogmas, cuja assimilação garantisse a
salvação. Jesus veio demonstrar a misericórdia de Deus. A revelação consiste numa
ação. Jesus entregou sua vida por amor aos inimigos de Deus (Romanos 5.6s). Veio
libertar de culpa e opressão. É, em tudo, a manifestação da graça divina. Eis aí o
caminho, a verdade e a vida. Não há outro senão este. Pois ninguém pode ser salvo a
não ser por Deus mesmo e por sua imerecida misericórdia. Em Jesus ela se
encarnou. Logo, ninguém pode chegar ao Pai senão por ele.
6
7. Aliás, Jesus não somente é (!) o caminho, ele já sempre o foi (!). É interessante observar
que o Novo Testamento detecta a ação de Jesus já no Antigo Testamento. Ele era a
rocha, da qual jorrava água, saciando o povo de Israel no deserto. Era a fonte espiritual,
da qual todos bebiam (1 Coríntios 10.4). Jesus é visto como mediador não somente da
salvação. Também o é da criação (Colossenses 1.15). Portanto, sempre que Deus
manifesta sua graça, ele manifesta também algo de Jesus Cristo. Seu nome é, por
excelência, sinônimo da ação graciosa de Deus. É o único caminho, por esta razão.
Neste ponto, não é possível recuar sem anular o evangelho. Iriam instalar-se as
tentativas de auto-salvação do ser humano. Estas, porém, reacendem a concorrência
religiosa, promovem o fanatismo e se expressam em exigências legalistas que jogam as
pessoas umas contra as outras, produzindo novos cativeiros. A exclusividade de Jesus
como único caminho da salvação é o fim de todos os exclusivismos auto-salvacionistas.
É equivalente à exclusividade da misericórdia de Deus como única possibilidade de
salvação.
III.
Voltando à pergunta inicial, se pode ou não haver salvação entre não-cristãos, à parte da
fé em Jesus Cristo, tentaremos resumir as observações acima e sintetizá-las numa
resposta coerente.
1. O bom desempenho da missão cristã exige, antes de tudo, a confissão de humildade
por parte dos cristãos. Não são superiores aos “pagãos”, não são os detentores da
verdade, fazem parte da comunhão dos pecadores. Essa consciência deveria
determinar o comportamento. Missão cristã não é qual via de mão única. É um
processo de parceria, de aprendizagem conjunta e de crescimento na convivência
fraternal. De outro modo, corre o risco de violentar as pessoas, psíquica, física e
culturalmente, ou então de perder a credibilidade. Também fora dos muros das
igrejas constituídas pode haver fé. Esta, provavelmente, não vai articular-se em
termos da fé em Jesus Cristo. Todavia, poderá ser uma fé muito autêntica na
bondade de Deus e em seu poder, muito à semelhança à de Abraão. De qualquer
maneira, o cristão deverá saber que também os assim chamados descrentes, os
seguidores de outros credos, os ateus, enfim, todas as pessoas estão sob a graça de
Deus. E isto compromete a conduta.
2. A pessoa cristã, porém, jamais poderá deixar de falar de Jesus Cristo. Perseguirá o
propósito de despertar e divulgar a fé. Se de fato vivemos da misericórdia de Deus,
cumpre-nos identificar a origem dessa certeza. E esta é Jesus Cristo. Nele a fé tem
sua fonte, seu referencial, o seu caminho. Consequentemente, não pode calar a seu
respeito, sob pena de trair a misericórdia de Deus e de bloquear o acesso a ela. A
confissão da boca faz parte do ser cristão (Romanos 10.9). Salvação fora da igreja,
sim! – muito embora a fé sempre procure a comunhão de irmãs e irmãos e se
organize em comunidade. Salvação sem Jesus Cristo, não! Pois como mostramos
acima, isto significaria preconizar uma possibilidade de salvação à parte da graça de
Deus, capaz de ser alcançada por própria razão ou força. Quem assim pensa, produz
a vanglória dos justos, a hipocrisia dos fracos, ou então o desespero dos pecadores.
A graça de Deus dispensa da necessidade de o ser humano justificar-se a si mesmo,
por suas obras e sua produção. Graças a Deus, a salvação não precisa ser
conquistada em esforço sobre-humano. Ela quer ser recebida por graça e bondade.
7
8. Eis porque o nome de Jesus Cristo precisa ser anunciado a toda a criatura, para o
mundo se aperceber do que Deus fez por ele e para aprender a louvar seu nome.
3. É claro que falar de Jesus implica um discurso crítico. Respeito mútuo e
fraternidade inter-religiosa são indispensáveis a partir do próprio evangelho. Mas
não significam a permissão para a indiferença ou o relativismo em assuntos de fé.
Pelo contrário, exigem, no bom sentido, a disputa da verdade. Certamente há fé
também em outras religiões. Desconhecemos as proporções. Há nelas muita
sabedoria humana, acumulada durante séculos e milênios. Da mesma forma, porém,
há pecado e idolatria, erro e superstição. O fenômeno religioso é profundamente
ambíguo, ora mais, ora menos. O próprio evangelho o ensina. Isto se aplica,
evidentemente, também à religiosidade dita “cristã” em suas inúmeras variantes.
Pode ser problemática, perversa, alienante. Isto vale para qualquer forma de
religiosidade humana, portanto também para a não-cristã. Toda devoção religiosa
deve prestação de contas a Jesus cristo, o caminho, a verdade e a vida. O mero
entusiasmo não adianta. É perigoso. Perde os critérios para o que convém e o que
não; promove, não raro, a perdição. Por isto, o cristão, tentando acompanhar seu
parceiro não-cristão e compreendê-lo, não pode renunciar a questionamento crítico
de sua posição.
4. A missão cristã é necessária. Cristo deve ser conhecido em todo o mundo. Mas a
salvação das pessoas não está em nossas mãos. É obra reservada a Deus. Seria
arrogância pressupor que a sorte eterna das pessoas dependesse de nós, cristãos, e
da igreja. Graças a Deus, assim não é. Jesus dispõe de outros meios para chegar às
pessoas, desconhecidos e fora de nosso controle. Ai daqueles que se comportam
como salvadores de seus próximos! Vão sujeitá-los a um “evangelho” com
características muito particulares; vão exercer tirania e criar dependências. A missão
cristã não pode ter por objetivo assumir a obra do próprio Deus. Ela é testemunho.
Fala de uma salvação da qual nós não dispomos, que está em Cristo Jesus e que ele
concede conforme a sua vontade. Aos cristãos, seus mensageiros, cabe anunciar e
semear a palavra (1 Coríntios 3.5s).
Por isto eles erram quando querem também assegurar e forçar o crescimento e a boa
colheita. Vão tornar-se autoritários, impiedosos. Embora não seja permitido
diminuir a responsabilidade missionária, o sucesso não está em mãos humanas. Não
somos os donos da vida e da morte das pessoas. Somos meros auxiliares da missão
de Deus, cooperadores de nosso Senhor, servos dos quais se espera fidelidade. O
que legitimamente podemos e devemos fazer é convidar as pessoas para crerem em
Jesus e glorificarem a Deus. É dar-lhes auxílio na aprendizagem da fé, do amor e da
esperança – nada mais e nada menos.
5. Justamente por isto, não basta o simples apelo à conversão ou à opção. Não basta a
doutrinação. Esta provoca, por demais vezes, resistência e oposição. Ou produz um
fogo de palha que rapidamente se apaga. Por mais importante que seja a decisão da
fé, compete lembrar o alerta de Jesus: “Nem todo o que me diz Senhor! Senhor!
Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos
céus” (Mateus 7.21). A aprendizagem da fé em Jesus é algo complexo. Não se
resume a uma questão verbal. Inclui uma prática, requer uma vivência. Insistir em
que a salvação está em Jesus será suficiente enquanto permanecer sendo uma
afirmação abstrata. A missão cristã deve evidenciar algo da salvação. Deve saber
8
9. argumentar, visualizar, exemplificar, deve vivenciar o evangelho e proporcionar
experiências de terapia a partir de Cristo. Eis porque necessita da parceria com a
diaconia.
Essa salvação não é uma questão somente futura, muito embora acreditemos firmemente
na ressurreição dos mortos e na vida eterna. Mas algo disto deve antecipar-se em
novidade de vida, em conversão e libertação, em sinais de misericórdia e graça neste
mundo. Será esta a “demonstração do Espírito e de poder” (2 Coríntios 2.4) que vai
evidenciar, por si só, que ninguém vem ao Pai senão por Cristo.
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