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Janduí: o primeiro rei do sertão
Túlio Madson Galvão1
O primeiro rei do Sertão, muito antes de Conselheiro e Lampião, foi um potiguar. Ou
melhor, era da terra potiguar, embora fosse um índio tapuia: chamava-se Janduí, o “rei”
dos Tarairiús, seu acampamento principal localizava-se no vale do rio Açu, embora seu
território se estendesse pelos sertões do Ceará à Pernambuco. Diziam as más línguas
que o rei-guerreiro teria vivido 160 anos, embora seja mais provável que houvesse dois
Janduí: o pai e o filho, e, portanto, essa suposta longevidade se devia ao fato da figura
do pai confundir-se com a do filho.
Assim como o bando de Lampião eles não possuíam um acampamento fixo, vagavam
sertão adentro de acordo com a época do ano, vivendo exclusivamente da caça e da
coleta de frutos, ou de alguns gados doados (e também roubados) dos vaqueiros. Eram
peritos em combate na caatinga, agindo com extrema destreza, preferindo emboscar o
inimigo ao invés de enfrenta-lo de frente.
Janduí foi o arquétipo do rebelde nordestino, da resistência do sertanejo, foi o mais
ferrenho opositor à invasão portuguesa, aliando-se aos holandeses e viabilizando a
invasão destes ao nosso estado. Além de dar suporte ao invasor holandês, foram eles os
principais responsáveis por dizimar os portugueses do RN durante a invasão holandesa,
que culminou nos massacres de Cunhaú e Uruaçu. Foi o próprio Janduí que acolheu o
temível alemão Jacob Rabbí durante quatro anos, e posteriormente, guiou o holandês
Roulox Baro para conhecer o então misterioso e temido sertão potiguar, fazendo com
que o holandês nos presenteasse com a obra “Relação da viagem ao país dos tapuias”,
nos fornecendo informações preciosas acerca dos hábitos e costumes dos Tarairiús.
Os “Janduís”, como ficaram conhecidos os comandos de Janduí, converteram-se
rapidamente na principal, e mais temida, tribo Tarairiú (que por sua vez pertenciam a
etnia tapuia). Os Tarairiús eram índios de pele clara, tinham a aparência semelhante a
algumas tribos que habitavam antigamente a Sibéria (yukaghires e kamachadales), os
homens eram altos e possuíam a mesma "cabeça chata" herdada posteriormente por
1
E-mail: tuliomadson@hotmail.com Página: facebook.com/tulio.madson.galvao
grande parte dos sertanejos nordestinos . Dizia-se que um Tarairiú podia com um único
golpe de sua clava partir o inimigo ao meio. Para se tornar um Tarairiú respeitado era
necessário matar muitos inimigos, inimigos estes que eram posteriormente devorados
pela tribo, sua ferocidade e crueldade eram temidas até por seus aliados holandeses.
Enquanto os Potiguares (que eram tupis) habitavam o litoral, farto em recursos, os
Tarairiús (e os tapuias em geral) dominavam o árido sertão. O clima severo deu-lhes
robustez, compensando em força, destreza e vitalidade, a inferioridade técnica perante
os portugueses. Posteriormente os Janduís vieram a adquirir com os holandeses os
armamentos e técnicas europeias, tornando-se exímios cavaleiros (e também ladrões de
cavalos) além de habilidosos mosqueteiros, fabricando, inclusive, sua própria pólvora
com ingredientes locais.
Após a expulsão dos holandeses os Tarairiús, principalmente os Janduís, se rebelaram
contra os portugueses na chamada “Guerra dos Bárbaros”, ou ainda “Guerra do Açu”,
ofereceram uma resistência tão forte e tenaz que os colonos portugueses da antiga
capitania tiveram de pedir ajuda a Coroa, por fim, depois de muitas baixas para ambos
os lados, foram derrotados, nas margens do rio Seridó, pelas tropas paulistas
comandadas por Domingos Jorge Velho, a repartição de suas terras entre os colonos
propiciou a efetiva colonização do Seridó e do sertão potiguar.
Janduí foi um ilustre potiguar, pouco citado e lembrado por nossos conterrâneos, talvez
pela participação dos Tarairiús na chacina dos mártires (agora beatificados) de Cunhaú
e Uruaçu. Entretanto, pouco se fala nos mártires Tarairiús, muito mais numerosos,
meticulosamente exterminados mesmo tendo feito um acordo de paz diretamente com a
Coroa Portuguesa (um fato até então inédito). Apesar de sua crueldade, lutou por sua
terra ancestral, pelo sertão e toda a mística que o cercava, estavam na linha de frente da
resistência indígena no Brasil, sua história deve ser contada e cantada, seu legado de
resistência e autonomia iria reverberar ainda por muitos séculos nos sertões nordestinos.
Publicado originalmente na Carta Potiguar em 16/08/2012:
http://www.cartapotiguar.com.br/2012/08/16/jandui-o-primeiro-rei-do-sertao/

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  • 2. grande parte dos sertanejos nordestinos . Dizia-se que um Tarairiú podia com um único golpe de sua clava partir o inimigo ao meio. Para se tornar um Tarairiú respeitado era necessário matar muitos inimigos, inimigos estes que eram posteriormente devorados pela tribo, sua ferocidade e crueldade eram temidas até por seus aliados holandeses. Enquanto os Potiguares (que eram tupis) habitavam o litoral, farto em recursos, os Tarairiús (e os tapuias em geral) dominavam o árido sertão. O clima severo deu-lhes robustez, compensando em força, destreza e vitalidade, a inferioridade técnica perante os portugueses. Posteriormente os Janduís vieram a adquirir com os holandeses os armamentos e técnicas europeias, tornando-se exímios cavaleiros (e também ladrões de cavalos) além de habilidosos mosqueteiros, fabricando, inclusive, sua própria pólvora com ingredientes locais. Após a expulsão dos holandeses os Tarairiús, principalmente os Janduís, se rebelaram contra os portugueses na chamada “Guerra dos Bárbaros”, ou ainda “Guerra do Açu”, ofereceram uma resistência tão forte e tenaz que os colonos portugueses da antiga capitania tiveram de pedir ajuda a Coroa, por fim, depois de muitas baixas para ambos os lados, foram derrotados, nas margens do rio Seridó, pelas tropas paulistas comandadas por Domingos Jorge Velho, a repartição de suas terras entre os colonos propiciou a efetiva colonização do Seridó e do sertão potiguar. Janduí foi um ilustre potiguar, pouco citado e lembrado por nossos conterrâneos, talvez pela participação dos Tarairiús na chacina dos mártires (agora beatificados) de Cunhaú e Uruaçu. Entretanto, pouco se fala nos mártires Tarairiús, muito mais numerosos, meticulosamente exterminados mesmo tendo feito um acordo de paz diretamente com a Coroa Portuguesa (um fato até então inédito). Apesar de sua crueldade, lutou por sua terra ancestral, pelo sertão e toda a mística que o cercava, estavam na linha de frente da resistência indígena no Brasil, sua história deve ser contada e cantada, seu legado de resistência e autonomia iria reverberar ainda por muitos séculos nos sertões nordestinos. Publicado originalmente na Carta Potiguar em 16/08/2012: http://www.cartapotiguar.com.br/2012/08/16/jandui-o-primeiro-rei-do-sertao/