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Quase um retrato
    Conheciam a Ti'Ana?
Era uma mulherzita baixa, vestida de negro, que passava à minha
porta todos os dias ao fim da tarde. Saia rodada batendo nos
calcanhares, lenço atado na cabeça, dando um grande nó no
pescoço, taleigo ao alto onde se apoiava um embrulho talvez o
dinheirito da venda dos ovos ou o resto da merenda do dia... Era
pequenina a Ti'Ana. Parecia uma bonequita de trapos que sabia
andar tão bem como uma boneca de carne. Raras vezes trazia
calçado. Os seus pés pequeninos, morenos, habituados a palmilhar
milhas e milhas, não se sentiam bem metidos nuns socos ou em
sapatos.
- «Descalça! Descalça!» - dizia ela sorrindo - «Anda-se mais
depressa. Não estou para dar cabo dos que o meu sobrinho Toino
me mercou há um ror de tempo na feira pelo S. Miguel!...»
E lá se ia a caminho do povoado.
Os cabelos brancos saíam-lhe do lenço e vinham brincar-lhe em,
caracóis pequeninos no rosto branco, rugoso, onde se viam uns
olhitos pequenos, dum tom esverdeado, um pouco gaiatos,
marotos... Tinha sempre um sorriso amigo para a garotada da rua
que lhe gritava em surdina: - Ti'Ana, olhe o que lhe caiu!...»
Ela sorria e da sua boca já sem dentes, saíam estas palavras:
- «Marotos! Vocês lá irão para onde o paguem... Marotitos!... Ora
Vinde!... Ora Vinde que eu vos apanho...»
As crianças corriam atrás dela, numa gritaria que não a
incomodavam, mas que a fazia rir de prazer.
Ti'Ana era muito conhecida na vila. Aquela velhinha simpática era
querida de todos. Talvez pela sua alegria ou então pela popularidade
que os garotos lhe davam. Lá na aldeia diziam que a Ti'Ana era no
seu tempo a rapariga mais gaiata da freguesia. Nos bailes ouvia-se:
- «Ó Ana, bote lá uma cantiga!...»

E a Ti'Ana, cantava numa voz cristalina e alegre:
«Dentro da minha algibeira
Eu tenho um cravo escondido
Para ofertari ao peneira
Que queira seri meu marido!»
E logo uma voz forte, audível, respondia:

«Se me quiseres p'ra marido
Aqui me tens apruntado
Dá-me esse cravo escondido
Se me queres ver enfeitado!»

Todos sabiam que essa voz era a do João Malhado, o conversado da
Ti'Ana. Formavam o par mais azado da aldeia e era um gosto vê-los
ao domingo a caminho da Igreja.
A Ti'Ana moçoila fresca, linda, pequenina...
O João, rapagão moreno, desempenado...
E no «vira»?! Ninguém lhe ganhava! Aquilo é que era virar!...
A Ti'Ana também era uma mulher de trabalho.
Nos campos, de saia arregaçada, deixando ver o saiote de lã ou de
flanela vermelha, a fouce em punho, ceifando a erva fresca e
viçosa... E na malha do centeio?!
E na vindima!? Onde faltasse a Ana Domingueira, faltava a alegria e
a vontade de trabalhar. Todos sabiam isso e todos a chamavam
disputando entre si a ajuda daquela rapariga franzina.
Mas... veio a guerra. João teve de partir. Despediu-se galhofando:
- «Não chores rapariga?! Quando voltar aquilo é que vai ser...
Havemos de dançar e pagodar como nunca...»
Passaram meses e um dia veio a notícia que... João morrera! Ana
adoeceu mas a mocidade venceu-lhe a maleita.
E os anos rolaram uns após outros... e todas as Primaveras a
encontraram solteira.
Fidelidade ao primeiro amor?
Nunca mais cantou, nunca mais dançou, até que os tempos
enbranqueceram a sua cabeça e levaram a frescura das suas faces.
O tempo transformou a Ana Domingueira, a saloia alegre, na
velhinha vestida de negro, que passava à minha porta ao fim da
tarde. Mesmo nessa altura, quando as moças da aldeia bailavam à
roda das fogueiras na noite de S. João e gritavam: - «Ti'Ana bote lá
uma cantiga! Salte connosco!» - ela sorria e a sua voz trémula, onde
se adivinhava um caudal de lágrimas, cantava:
«Mocidade enganadora
Que é feito da tua cor?
Vai-se tudo... Vai-se tudo...
Nem mesmo fica o Amor!...»
E não cantava mais...
Sentada na borda do caminho, vendo as moças voltejarem
alegremente, recordava com saudade (quem sabe?), a sua mocidade
distante...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Soube há pouco que a Ti'Ana morreu.
Nunca mais a verei passar aqui à porta, com a criançada a gritar em
surdina:
- «Ti'Ana, olhe o que lhe caiu! Olhe o que lhe caiu...»

Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973.

Data da conclusão da edição no blogue - 22 de janeiro de 2012

http://mariahelenaamaro.blogspot.com/

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  • 2. E logo uma voz forte, audível, respondia: «Se me quiseres p'ra marido Aqui me tens apruntado Dá-me esse cravo escondido Se me queres ver enfeitado!» Todos sabiam que essa voz era a do João Malhado, o conversado da Ti'Ana. Formavam o par mais azado da aldeia e era um gosto vê-los ao domingo a caminho da Igreja. A Ti'Ana moçoila fresca, linda, pequenina... O João, rapagão moreno, desempenado... E no «vira»?! Ninguém lhe ganhava! Aquilo é que era virar!... A Ti'Ana também era uma mulher de trabalho. Nos campos, de saia arregaçada, deixando ver o saiote de lã ou de flanela vermelha, a fouce em punho, ceifando a erva fresca e viçosa... E na malha do centeio?! E na vindima!? Onde faltasse a Ana Domingueira, faltava a alegria e a vontade de trabalhar. Todos sabiam isso e todos a chamavam disputando entre si a ajuda daquela rapariga franzina. Mas... veio a guerra. João teve de partir. Despediu-se galhofando: - «Não chores rapariga?! Quando voltar aquilo é que vai ser... Havemos de dançar e pagodar como nunca...» Passaram meses e um dia veio a notícia que... João morrera! Ana adoeceu mas a mocidade venceu-lhe a maleita. E os anos rolaram uns após outros... e todas as Primaveras a encontraram solteira. Fidelidade ao primeiro amor? Nunca mais cantou, nunca mais dançou, até que os tempos enbranqueceram a sua cabeça e levaram a frescura das suas faces. O tempo transformou a Ana Domingueira, a saloia alegre, na velhinha vestida de negro, que passava à minha porta ao fim da tarde. Mesmo nessa altura, quando as moças da aldeia bailavam à roda das fogueiras na noite de S. João e gritavam: - «Ti'Ana bote lá uma cantiga! Salte connosco!» - ela sorria e a sua voz trémula, onde se adivinhava um caudal de lágrimas, cantava: «Mocidade enganadora Que é feito da tua cor? Vai-se tudo... Vai-se tudo... Nem mesmo fica o Amor!...»
  • 3. E não cantava mais... Sentada na borda do caminho, vendo as moças voltejarem alegremente, recordava com saudade (quem sabe?), a sua mocidade distante... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Soube há pouco que a Ti'Ana morreu. Nunca mais a verei passar aqui à porta, com a criançada a gritar em surdina: - «Ti'Ana, olhe o que lhe caiu! Olhe o que lhe caiu...» Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue - 22 de janeiro de 2012 http://mariahelenaamaro.blogspot.com/