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Título: A deusa Vencida.
Autora: Barbara Cartland.
Dados da Edição: Livros Abril, São Paulo.
Título Original: The Drums of Love
Género: romance.
Digitalização: Dores cunha.
Correcção: Edith Suli
Estado da Obra: Corrigida.
Numeração de Página: Rodapé.
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à
leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de
direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros
fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.
é a autora romântica mais conhecida e lida em todo o mundo. Seu
jeito insuperável de juntar amor, colorido e suspense conquistou o
entusiasmo de milhões de leitores. "Eu dou ao público romance,
ilusão e beleza... tudo o que ele secretamente procurar.
Adeusa vencida
Contracapa: Os tambores do vodu ecoavam pela
floresta, avisando do perigo,
enquanto André e Sãona fugiam
dos soldados do general Dessalines,
sedentos de sangue. A não ser que
conseguissem despistar seus perseguidores,
seriam torturados e mortos. Desde que chegara
ao Haiti, para procurar um tesouro enterrado
por seu tio, o conde André de Villaret tinha sido
protegido pelos deuses nativos. Disfarçado,
atravessou a ilha, dominada pelos ex-escravos
que haviam massacrado os colonizadores
franceses. Mas agora precisava de toda a
ajuda de Damballah, o deus-serpente,
para salvar sua maior riqueza: a
vida da mulher a quem amava (fim da contracapa).
NOTA DA AUTORA
Quando visitei o Haiti, conheci Katherine Dunham, uma das pessoas que
mais entende sobre o culto vodu, naquele país.
Ela é uma famosa bailarina negra, atualmente aposentada, que possui um
templo de vodu no jardim de sua casa, e me levou para assistir a uma
cerimónia. Ou, pelo menos, parte dela, pois o final só é permitido ser
presenciado pelos iniciados.
Achei as danças magníficas e os tambores pareciam me hipnotizar. E nesta
história, descrevo tudo o que vi, do modo mais verdadeiro possível.
No Haiti, o vodu agora é permitido por lei e praticado, segundo me
disseram, por sessenta por cento da população.
CAPÍTULO I
1805
- Estamos chegando!
Kirk Homer levantou-se e caminhou até a luneta, observando a cidade de
Port-au-Prínce, no Haiti, cheia de pequenos barcos ancorados no porto,
alguns navios, mas nada tão grande como a escuna americana em que
viajavam.
- Agora, começa minha aventura! - uma voz disse atrás dele. Kirk, um
americano alto e de rosto quadrado virou-se e olhou quem
falava.
- Mude de ideia, André - ele pediu. - Volte para Boston comigo. Está
cometendo um erro do qual se arrependerá amargamente. Isto é, se
continuar vivo, para se arrepender de alguma coisa.
- Já passamos por isso antes - André de Villaret respondeu - e a
alternativa entre seguir adiante e viver na miséria o resto da minha vida
é uma motivação bem forte.
- É loucura! Absoluta loucura! - Kirk Horner protestou. - Mas acho que
devo ajudá-lo, apesar disso tudo ser contra os meus princípios.
- Você prometeu me ajudar, antes de subirmos a bordo, e estou cobrando a
promessa. E agora, o que faremos?
Kirk virou-se novamente e olhou pela luneta.
Além do porto, estava a cidade e, além dela, as montanhas roxas e azuis,
escuras e ameaçadoras, mesmo à brilhante luz do sol.
Todo o resto era verde, de um verde tão profundo que parecia cintilar. As
casinhas brancas, vistas à distância, davam a impressão de ter luz
própria.
- O que quero que faça - Kirk disse -, é ficar aqui, a bordo, até que eu
entre em contato com a única pessoa que acho que pode ajudá-lo nessa
maluca caça ao tesouro.
- E quem é?
- Ele se chama Jacques Déjean e é mulato.
André já tinha visto mulatos nos Estados Unidos e Kirk lhe contara que,
no Haiti, os mulatos e os negros se desprezavam, quase tanto quanto
odiavam os brancos.
Kirk disse também que, para um francês, era pura loucura tentar
entrar no país, naquele momento.
Jean-Jacques Dessalines, comandante-em-chefe do Exército haitiano havia
massacrado cruelmente os fazendeiros franceses e todos os brancos da ilha
e, no ano anterior, se fez coroado imperador.
Uma de suas primeiras providências foi desenhar novos uniformes
para os soldados.
Dois mil uniformes foram encomendados a uma firma de Boston e estavam a
bordo da escuna em que André de Villaret e seu amigo Kirk
Horner viajavam.
Kirk havia sido comissionado para mandar um relatório secreto ao
presidente norte-americano, contando as condições atuais da ilha.
Os americanos pretendiam entrar novamente no mercado, do qual tinham sido
expulsos, no tempo da dominação francesa, pelo general Leclerc, cunhado
de Napoleão Bonaparte.
Na época, o vice-cônsul francês, em Filadélfia, protestou violentamente
contra os americanos, não apenas por estes comercializarem com o Exército
de Dessalines, mandando armas e munições, como também por estarem
enviando negros americanos para lutar junto com os rebeldes e contra os
espanhóis e franceses.
Tudo isso era pago em algodão, cobre, madeira e até mesmo em dinheiro.
As reservas de prata de Dessalines eram consideráveis.
A ilha havia ficado tão arrasada, que dificilmente os outros países
compreenderiam o que estava acontecendo. Kirk Horner, que estivera no
Haiti há dois anos, esperava descobrir o que tinha mudado sob o reinado
de Dessalines.
Por isso, temia pela vida do amigo, André de Villaret.
Os dois se conheciam há muito tempo e Kirk sempre ficava na casa da
família de André, quando visitava a Inglaterra.
Talvez tivessem sido suas descrições do Haiti que, a princípio
despertaram o interesse do amigo pela ilha. Isso, além do fato de André
ter tido um tio lá, fazendeiro muito rico, morto durante o primeiro
levante da revolução, em 1791.
Foi Kirk quem escreveu a André, contando o assassinato do velho e de seus
três filhos.
Ficou atónito, quando, há dois meses, o amigo apareceu em Boston, pedindo
sua ajuda para entrar na ilha.
- Impossível. Jean Jacques Dessalines jurou matar todos os brancos que
encontrar. Ele tem um ódio fanático de brancos. Não dou um tostão pela
sua vida, se puser os pés no Haiti.
Descreveu Dessalines ao amigo.
- Ele não é alto, mas parece um gorila. Tem ombros largos e um pescoço
muito grosso. Os lábios são grossos também e as narinas, muito abertas.
Tem o nariz chato, a testa baixa e o cabelo quase nasce junto às
sobrancelhas.
- Não parece muito atraente! - André comentou, rindo.
- Não é assunto para piadas. Ele espalha o terror por todo o país. Seu
próprio povo passa por períodos de histeria. Uns suspeitam dos outros e
só conversam sobre morte e destruição.
- Já ouvi contar que ele se comporta de modo diabólico. Promete proteção
aos brancos, se se entregarem, e depois mata aqueles que confiaram na
promessa.
- As ruas, em Jeremie, estão manchadas de sangue. Ele matou lá
quatrocentos e cinquenta homens e crianças - Kirk respondeu. - Até
Christophe, seu comandante-em-chefe, está apavorado com tanta selvageria.
Fez uma pausa, enquanto o outro meditava no que tinha ouvido.
- Não é de espantar que o presidente dos Estados Unidos tenha ficado
preocupado ao ler o ato de independência de Dessalines. Veja o que ele
escreveu:
"Para assinarmos esta declaração, precisamos da pele dos homens brancos,
dos seus crânios e do seu sangue. A baioneta será a nossa pena. "
- Está me deixando arrepiado - André interrompeu -, mas continuo decidido
a descobrir o tesouro que tio Phillippe enterrou em sua
fazenda.
Kirk sabia que aquele era o único objetivo da viagem do amigo. Seu avô
tinha três filhos. François, o pai de André, era o mais novo.
Percebendo que as coisas não estavam boas na França, e vendo a
insatisfação crescer entre os camponeses, Phillippe, o segundo filho,
partiu para o Haiti por volta de 1770, para começar ali uma vida nova.
Sempre escrevia para casa, contando aos parentes que estava se
transformando em um homem muito rico, pois o algodão e o café, que
cultivava, conseguiam bons preços em todo o Novo Mundo.
Então, aconteceu a Revolução Francesa. O conde de Villaret e seu filho
mais velho foram mortos na guilhotina.
Isto significou que Phillippe de Villaret tio de André se tornou o chefe
da família e herdou o título de conde, enquanto que seu irmão mais novo,
François, a esposa inglesa e o filho, André, fugiam para a
Inglaterra.
Mas François não tinha muito dinheiro. Só conseguiam viver com
algum conforto, graças à gentileza dos parentes da mulher.
com o assassinato do tio, no Haiti, e a morte do pai, um ano antes, André
se tornou o conde de Villaret, sem nenhum dinheiro para acompanhar esse
título tão antigo e pomposo.
Foi então que decidiu ler cuidadosamente as últimas cartas do tio
Phillippe. Na última, escrita poucos meses antes do massacre, encontrou
algo que parecia muito significativo:
"As coisas estão ficando horríveis por aqui. Todos os dias, ouvimos falar
de terríveis atrocidades que sucedem nas fazendas de meus amigos. Os
homens não apenas perdem a vida, mas são torturados e mutilados. As
mulheres são estupradas ou enviadas como escravas para as fazendas, que
agora estão sendo administradas pelos próprios negros.
Fazemos planos para fugir. Depois os rasgamos, pois não queremos chamar
atenção sobre nós, a fim de não precipitarmos um destino que parece cada
vez mais próximo. "
Então, havia aquela frase, que André leu muitas e muitas vezes: "Só
confio na terra e, naturalmente, na proteção da sombra de Deus. "
- Isto - André disse a Kirk, ao lhe mostrar a carta - é uma mensagem
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perfeita e clara, dizendo ao meu pai onde ele escondeu o dinheiro.
Acredito que esteja tudo enterrado, próximo da igreja.
- Pode ser. Todos os fazendeiros enterraram seu dinheiro e outros bens
que possuíam. Dessalines sabe muito bem disso e, torturou-os antes de
matá-los. Contaram-me que conseguiu desenterrar muitas riquezas das
diversas fazendas.
Fez uma pausa, antes de continuar:
- Quando Dessalines saiu de Jeremie, levou cinco mulas carregadas de
pratarias e outros valores. Mas ouvi dizer que isso nem se compara ao que
pilhou em Aux Cayes. Grande parte destes tesouros foi achada, enterrada.
- Preciso tentar uma busca - André disse. - Afinal, sempre fui um
otimista.
- Os otimistas também morrem, como milhares de patrícios seus já morreram
lá.
Então, ele sorriu:
- Mas tem sorte de não parecer francês.
- Esqueceu que minha mãe era inglesa?
Não havia dúvidas, o amigo pensou, de que a condessa de Villaret
transmitira ao filho todas as características dos homens de sua família:
ombros largos, quadris estreitos e um corpo atlético, semelhante ao dos
melhores amigos do príncipe de Gales.
André era também muito forte. Mas, Kirk sabia, isto não iria salvá-lo no
Haiti, pois tinha a pele branca.
Virou-se para olhar novamente o porto e disse:
- com um pouco de sorte, podemos trazer a bordo o meu amigo Jacques
Déjean. Ele está me esperando. Ou, pelo menos, deve estar, há dois meses.
- Tem amigos em toda parte - André disse de bom humor.
- Preciso deles, no mundo em que trabalho.
- O que está dizendo, na verdade, é que precisa de espiões, para lhe
contarem os últimos acontecimentos - André comentou. - Mas não me
importo, contanto que esses seus amigos sejam capazes de ajudar.
- Você é um grande egoísta!
Era típico do amigo nunca desistir, quando metia uma ideia na cabeça.
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Saiu da cabine e André sentou-se, olhando o porto pela escotilha, com
uma expressão obstinada.
Tinha lutado, não apenas com a mãe, que se opôs àquela expedição, mas
também com Kirk. Os dois discutiram durante um dia inteiro, antes que se
decidisse a ajudá-lo. Entretanto, era realista: sabia muito bem que suas
chances de sucesso seriam poucas.
Toda a história da revolta de escravos no Haiti, o incêndio da cidade de
Lê Cap, quando o general Leclerc tentou descer lá, a morte de Leclerc,
atacado por febre amarela, e o ressurgimento da guerra entre a França e a
Inglaterra, tinham sido acontecimentos catastróficos para os
franceses.
Pelo que André ouvira, sobre o tratamento dado pelos fazendeiros
aos seus escravos, a revolta começaria cedo ou tarde.
Os escravos tiveram a sorte de conseguir dois líderes brilhantes:
JeanJacques Dessalines e Henry Christophe.
Dessalines podia ser brutal e sádico, mas era também um soldado corajoso
e experiente. Christophe, muito mais gentil e razoável, havia poupado a
vida de alguns franceses que tratavam bem os negros e, principalmente, os
padres e médicos.
Entretanto, noventa por cento da população francesa foi massacrada por
Dessalines, que ainda matava e torturava todos os brancos que encontrava.
André respirou fundo.
- Se eu morrer... morri! - disse a si mesmo. - Ainda assim, acho que
vale a pena arriscar. Se não der certo, o meu sangue se misturará ao de
meus compatriotas.
A porta da cabine se abriu e Kirk apareceu.
- Boas notícias! Jacques Déjean já está a bordo. Agora, poderá conhecê-
lo.
Um homem entrou e André olhou-o atentamente, sabendo que quase
tudo dependeria dele.
A pele de Jacques Déjean era quase dourada. Se André o encontrasse na
Inglaterra, pensaria que estava bronzeado. Seus traços eram europeus, mas
o cabelo era negro, encarapinhado demais, e os olhos, muito escuros.
Vestia-se com a mesma elegância de Kirk e André. Usava uma gravata
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de musseline muito em moda e o casaco, azul-claro, tinha um caimento
perfeito.
- Jacques - Kirk disse -, este é o meu amigo André, que precisa dá sua
ajuda. Já disse a ele que você não recusará sua assistência.
- Seus amigos são meus amigos - o mulato respondeu. - Sabe que estou à
sua completa disposição.
Tinha um modo exagerado de falar, e André refletiu se devia mesmo confiar
naquele homem.
Kirk tinha certeza de que sim. Como se entendesse as suspeitas do amigo,
apressou-se a esclarecer:
- Uma vez, no mar bravio, salvei a vida de Jacques. Ele jurou me ajudar
sempre que pudesse, e nunca quebra suas promessas.
- É verdade. E então, monsieur, em que posso ajudá-lo?
André e Kirk ficaram espantados. Aquela palavra lhes dizia que, sem lhe
falarem nada, Jacques havia descoberto que estava diante de um francês.
Kirk foi até a porta da cabine, verificar se estava trancada. Então,
perguntou:
- A nacionalidade do meu amigo é assim tão óbvia?
- O fato de ele precisar da minha ajuda e não ter saído ao meu encontro
me fez suspeitar. Quando o vi, tive certeza de não se tratar de um
americano.
André riu.
- Pretendia dizer que era inglês. Na verdade, sou meio inglês.
- Metade do meu sangue é branca - Jacques respondeu -, mas os brancos
nunca me aceitaram, a não ser quando precisam usar os meus serviços.
Não falou com amargura. Estava apenas expondo um fato.
- Muito bem, admito que sou francês. Meu nome, que Kirk não lhe disse, é
André de Villaret.
O mulato pensou por um momento, e então disse:
- É parente do Villaret cuja fazenda ficava nas Montanhas Negras?
- sim.
- Ele esta morto.
- Foi o que Kirk me disse, há dois anos.
13
- Então, por que veio aqui?
André decidiu dizer a verdade, sentindo que nada teria a perder.
- Acredito que meu tio enterrou dinheiro em alguma parte da fazenda. Os
filhos dele morreram também e agora sou o chefe da família.
Este dinheiro me pertence.
- Terá muita sorte, se o nosso nobre imperador o deixou lá, esperando por
você.
- Temos algum modo de descobrir se ele o achou? - André perguntou. - Se
não tiver achado, quero ir à fazenda Villaret.
- Quer! Mas não é fácil. Acredite-me, vai ser muito difícil fazer
qualquer destas duas coisas.
- Ora, Jacques - Kirk interrompeu -, sabe, tão bem quanto eu, que, se
alguém pode ajudar André, este alguém é você. Deve haver um jeito de
descobrirmos o que Dessalines escavou e onde. Soube que ele tem muitos
tesouros guardados nas montanhas.
- É verdade, mas ele não sabe escrever, não sabe fazer contas e duvido de
que confie em alguém para realizar um levantamento dos
tesouros que trouxe.
André deu de ombros, como se achasse que estavam num beco sem
saída.
Então, Jacques disse:
- Só uma pessoa sabe o que há no cofre de Dessalines e se isso
inclui o que veio da fazenda Villaret.
- Quem é? - Kirk perguntou.
- Orchis.
- Orchis? Ela está aqui em Port-au-Prince?
Jacques fez que sim.
- Ela se instalou na mansão Leclerc e imita a irmã de Napoleão Bonaparte,
aquela que foi casada com o general Leclerc, que voltou à Europa depois
da morte dele. E agora Orchis imita Sua Alteza Imperial
Pauline Borghese.
- Não consigo acreditar!
- Quem é Orchis? - André interrompeu.
Kirk riu.
- Se ficar algum tempo no Haiti, logo ouvirá falar de Orchis!
- Quem é ela?
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- É uma das amantes de Dessalines - Kirk explicou. - Ele tem umas vinte,
mas todos dizem que Orchis é a favorita. Alguns acham mesmo que é ela
quem controla o próprio tesouro.
Jacques começou a rir.
- Esta descrição é excelente, meu amigo - comentou -, mas as
extravagâncias de Orchis aumentam a cada ano. Agora, ela quer ser coroada
imperatriz. Só que Dessalines tem uma esposa! Entretanto, apesar da falta
de respeitabilidade, ela desempenha brilhantemente o papel da princesa
Pauline.
- Você disse que ela se mudou para a mansão Leclerc? - Kirk perguntou.
- Recebe seus admiradores lá na hora do café da manhã e à noite. É quando
monsieur de Villaret poderá encontrá-la.
- Pensei que isso fosse impossível - Kirk disse.
- Claro que é... se se apresentar com o verdadeiro nome. Mas, se pretende
sair de Port-au-Prince em direção ao interior do país, não pode
desembarcar como um homem branco.
André e Kirk olharam-no, espantados.
- Os poucos brancos que há em Port-au-Prince são americanos que trabalham
com as armas e munições. São apenas tolerados por Dessalines. Se sair da
cidade com esta pele branca, estará fazendo um convite à morte, logo nos
primeiros quilómetros de estrada.
- Então, o que sugere? - Kirk perguntou. Jacques examinou André dos pés à
cabeça.
- Vai dar um bonito mulato!
- Um mulato!
- Felizmente, o seu cabelo é escuro - Jacques disse. - Precisamos apenas
cortá-lo um pouco. Se tivesse olhos azuis ou cinzentos, tudo seria mais
difícil. Mas são escuros o suficiente, monsieur, e combinam com uma pele
da cor da minha.
- Devo dizer que nunca pensei em me disfarçar.
- Então, morrerá! E se Dessalines e seus seguidores estiverem envolvidos
no acontecimento, posso-lhe adiantar que não será uma morte agradável!
- Compreendo! - André disse, rapidamente.
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Lembrou-se das atrocidades sofridas, não apenas pelos franceses, mas
também por alguns mulatos. Certa vez, Dessalines chamou um homem ao seu
quarto e, enquanto conversavam, esfaqueou-o no coração.
Jacques Déjean estava certo, pensou. Precisava se disfarçar, para que
ninguém, no Haiti, suspeitasse de que era branco e, principalmente,
francês.
- Agora vou para casa - Jacques disse - e voltou com a tinta de uma certa
árvore. Ela é exatamente o que você precisa para disfarçar sua cor.
Sugiro também, monsieur, que escolha roupas bem espalhafatosas e
complicadas. Nós, mulatos, gostamos de aparecer!
Dirigiu-se à porta e perguntou:
- Sabe um pouco da língua nativa?
- Estive aprendendo, neste último ano - André respondeu. - Só sei o que
li em livros. Mas um mulato a bordo deu-me algumas aulas.
- Isto é ótimo. Os mulatos são sempre, como Kirk pode lhe dizer,
extremamente educados. Tenho muitos diplomas para provar minha
inteligência, mas prefiro confiar mais no instinto.
André riu e Jacques saiu da cabine. Depois, sentou-se para esperar,
pacientemente, a volta do outro.
Já era quase noite, quando dois mulatos desceram da escuna americana.
André fora completamente pintado com uma tinta que cheirava terrivelmente
mal.
- Algum tempo depois de aplicada no corpo - Jacques disse -, o cheiro
desaparece. Mas não precisa apenas de uma pele escura para o seu
disfarce. Tem que mudar o seu modo de pensar.
Pela primeira vez, havia uma certa amargura na voz de Jacques.
- Os mulatos foram subjugados continuamente pelos brancos, o que os fez
passar, definitivamente, para o lado dos negros.
- Ouvi falar sobre isso - André disse.
- Os negros nunca nos apreciaram nem confiam em nós, mas, como temos uma
educação superior e, em muitos casos, chegamos a posições importantes,
eles nos acham úteis. Ao mesmo tempo, vivemos em um território estranho,
entre os brancos e os negros, o que não é uma posição agradável.
- Compreendo, e agradeço muito por me ajudar.
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Enquanto conversavam, André era coberto, de cima a baixo, com a tinta que agora
evaporava. Olhou-se no espelho, com ar crítico.
Não restava dúvida de que aquilo tinha alterado sua aparência. Já vira homens
tão bronzeados como estava agora. Imaginou se ninguém desconfiaria.
Como se Jacques percebesse suas dúvidas, esclareceu-as:
Coloque-se no papel. Você é um mulato. . . sempre um pouco
inseguro, sempre na defensiva.
Sorriu e continuou:
- Pense no que os americanos dizem: "uma sombra por trás dos ombros". Os mulatos
são assim.
- E de onde eu vim? Qual é a minha história?
- Nasceu no Haiti, mas estudou nos Estados Unidos. O seu nome é André. Não
precisa mudá-lo. Acho também que pode dizer ser um Villaret. Afinal, o seu pai
era um homem branco e você tem o nome dele, e não o de sua mãe.
- Está sugerindo que eu diga ser filho de Phillippe de Villaret, que na verdade
era meu tio.
- Por que não? Assim, se fizer perguntas sobre a fazenda Villaret. todos
compreenderão sua curiosidade. Sendo mulato, não provocará muito alarde.
- Isso foi, realmente, muito inteligente - Kirk disse. Ele havia entrado no
quarto, e viu André terminar o disfarce.
- Muito inteligente! - André concordou. - Obrigado, Jacques.
- Tudo que tem a fazer agora é levar a coisa adiante - Jacques disse. - Está por
sua conta.
- O que faço agora?
- Vamos descer em terra. Você diz que esteve na América e acaba de regressar.
Isto lhe possibilita fazer muitas perguntas sobre o que aconteceu por aqui,
durante a sua ausência.
Fez uma pausa e depois disse:
- Ainda não conhece Orchis, mas já ouviu falar dela. Orchis só passou a dominar
Port-au-Prince depois que se mudou para a mansão Leclerc.
- Foi Dessalines quem a instalou lá? - Kirk perguntou.
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- Acho que ela mesma se instalou - Jacques respondeu. - Está determinada
a se transformar em uma grande dama. Se o vodu funcionar, a esposa de
Dessalines pode até morrer. Neste caso, Orchis subirá ao trono. Pelo
menos, é o que ela pensa.
- Dessalines é muito apaixonado por ela?
- Ele gosta das mulheres educadas, sofisticadas e experientes, Kirk.
Orchis é tudo isso. Tem também todos os deuses a seu favor e eles são
muito poderosos.
- Está falando do vodu? - André perguntou.
- Que mais poderia ser?
- Pensei que fosse proibido.
- E é. Tanto Dessalines quanto Christophe o condenam. Dizem que são
restos da servidão, religião de escravos.
- Mas continuam a praticá-lo.
- Claro que continuam! - Jacques respondeu. - O vodu é parte de todo
negro, é parte de todos os que vivem no Haiti. Não conseguem viver sem
ele. Está presente também na mente dos católicos. Não se sabe dizer onde
o vodu termina e começa o catolicismo.
- Você me espanta!
- Aprenderá depressa, monsieur. Agora, vamos procurar madame Orchis. Você
verá que ela parece uma serpente, mas tem um rosto bonito.
André se despediu de Kirk e desceu em terra, com uma sensação de
irresponsabilidade e excitação.
Ali começava sua grande aventura. Era onde ia testar sua vontade contra a
do tirano e seus seguidores.
Ficara contente, ao saber que Dessalines estava ausente, liderando um
ataque militar na região dominada pelos espanhóis.
- Ele vencerá? - Kirk perguntou, quando Jacques lhe disse onde
estava o imperador.
- Duvido. Os espanhóis estão muito bem entrincheirados e são bons
guerreiros.
- E se ele falhar?
- Sem dúvida, tentará novamente, com mais armas americanas e melhores
canhões. Então, talvez consiga vencer.
Enquanto permaneceram a bordo, Jacques tinha sido muito espontâneo em
tudo que falava, sem ter medo de fazer comentários sobre o
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recém-coroado imperador. Mas, logo ao descerem em terra, André percebeu
que ele estava em guarda.
Tomaram uma carruagem e, temendo que o cocheiro ouvisse a conversa,
Jacques falou apenas sobre assuntos triviais. Dirigiram-se a uma rua
estreita, cheia de casas de madeira.
Pararam na casa de Jacques, onde André deixou a bagagem. Era uma
residência grande, de madeira, toda pintada de verde.
- Port-au-Prince está ficando em moda - ele disse -, mas, como todos
temem uma revanche dos franceses, não gastam dinheiro em nada que possa
ser destruído por um tiro de canhão.
André sabia que ele se referia ao fato de Christophe ter destruído
completamente Lê Cap, o porto do outro lado da ilha, quando a armada
francesa se aproximou.
O general Leclerc encontrou a cidade em ruínas, toda queimada. Contava-se
que sua esposa, Pauline Bonaparte, tinha chorado ao ver aquilo.
Entretanto, ela logo se consolou, com uma bonita casa em Port-auPrince: a
mansão Leclerc, onde agora Orchis vivia.
Quando a carruagem em que iam passou por impressionantes portões de
ferro, entraram em uma alameda cercada dos dois lados por uma espessa
vegetação tropical. À frente, André viu uma casa imensa, de pedras
cinzentas e pilares em toda a frente.
Antes, a guarda usava uniforme branco e vermelho, como os franceses.
Agora, só havia mulatos em roupas complicadas, cor de vinho, que de modo
educado lhes davam as boas-vindas e os conduziam aos aposentos da madame.
Jacques cochichou que Pauline achara os mulatos muito mais bonitos e
interessantes do que os oficiais franceses. Por isso, Orchis também só
tinha empregados mulatos.
No tempo de Pauline, eles usavam um uniforme desenhado pela própria
madame Leclerc, muito justo, de modo a ressaltar ainda mais os seus
encantos.
André viu que Orchis seguia o exemplo da princesa.
Desceram vários degraus. Sob um pórtico grego, sustentado por colunas e
se encontraram caminhando ao lado de uma piscina octogonal, onde avia um
chafariz de água cristalina.
A decoração era composta por arbustos e árvores altas. Duas portas
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de madeira entalhadas se abriram e ambos foram conduzidos à presença
de Orchis.
O aposento era todo enfeitado por colunas e janelas sem cortinas, por
onde entrava um ar quente e úmido. O ambiente se dividia em duas partes.
Numa extremidade, elevada a meio metro do solo, ficava uma enorme cama,
em forma de cisne, cheia de almofadas de cetim e renda. Orchis estava
deitada, usando um robe de chiffon amarelo pálido, transparente o
suficiente para revelar os bicos escuros dos seios.
Perto da cama, havia bancos de mogno pesado, no estilo napoleônico, onde
se acomodava quase uma dúzia de homens.
A maioria era negra. Havia, entretanto, alguns mulatos, quase todos
usando os uniformes bordados do Exército do imperador.
Todos se comportavam de modo subserviente e atencioso. Empurravam-se uns
aos outros, na tentativa de chegar mais próximos ao leito dela, atrair
sua atenção e demonstrar admiração.
Como se gostasse de novidades no seu círculo de admiradores, Orchis ficou
contente ao ver Jacques. Chamou-o pelo nome e lhe estendeu a
mão.
Ele se aproximou do leito, seguido por André, que agora podia vê-la
de perto.
Orchis não era nada do que havia esperado. Na verdade, tratava-se de uma
mulher exótica e diferente, como seu próprio nome. Nunca imaginou que
alguém fosse ao mesmo tempo tão bonita e tivesse uma expressão tão
diabólica.
Seus braços nus, seu rosto, tudo que aparecia do seu corpo era de um tom
dourado suave. Os lábios cheios, vermelhos, eram provocantes e, ao mesmo
tempo, misteriosos. Os olhos verdes pareciam cheios de segredos,
exigentes e possessivos. Quando olhava um homem, penetrava
profundamente em seu coração, para mantê-lo cativo.
Tudo nela era sedutor e sensual. Era uma felina... um animal
primitivo e selvagem da floresta, tentadora como a serpente no jardim do
Éden.
- Jacques! - ela disse, de um modo que mais parecia uma carícia.
- Por que demorou tanto para vir me ver?
- Fui a Lê Cap. Mas, agora que voltei, trouxe alguém que ainda não
conhece e que lhe pode contar as últimas novidades da América.
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- América!
Pousou os olhos em André e ele se sentiu despido. Obviamente, ficou
contente com o que viu, pois lhe estendeu a mão, dizendo:
- Precisa me contar qual é a última moda e quantos novos milionários há
naquele próspero país.
- Há muitas coisas que gostaria de lhe contar.
Orchis olhou-o por baixo dos cílios, como se o estivesse avaliando.
Então, de repente, bateu palmas e, com ar de rainha, disse:
- Saiam... vocês todos! Tenho que discutir algumas coisas em particular
com estes amigos e vocês fazem barulho demais. Saiam!
- Como pode ser tão cruel, madame? - um oficial perguntou. Usava tantas
ombreiras de ouro que seus ombros pareciam artificialmente altos e
largos.
- Algum dia fui cruel com você, Réné? Venha amanhã e, talvez, eu o receba
a sós.
Não havia dúvidas do que ela queria dizer com aquele convite. Réné ficou
entusiasmado com a honra.
Beijou os dedos dela e todos saíram, sem ousar desobedecer. Orchis ficou
sozinha com André e Jacques.
- Sentem-se, mês braves. Querem vinho?
- Você já me sobe à cabeça, Orchis. Não preciso de vinho - Jacques
respondeu, galante.
- Está sempre elogiando e, geralmente, sem sinceridade - Orchis
respondeu. - O que fez com aquela pequena poule que tomou meu lugar no
seu coração?
- Ninguém nunca conseguiu isso - Jacques protestou. - Enquanto estive
fora, ela encontrou outro protetor, um general. Não posso me comparar com
ele.
Falou de um modo que fez Orchis rir divertida. Depois, virou-se para
André e disse:
- Não acha uma boa ideia usar o uniforme dos no dos haitianos?
- Sou um homem de negócios.
- E, falando em uniformes - Jacques interrompeu, chegou da América com os dois
mil uniformes que o imperador encomendou.
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- Chegaram? Jean-Jacques vai adorar! Espero que os recebamos a tempo de
comemorar a vitória sobre os espanhóis.
- Uma batalha não revela toda a beleza dos uniformes - Jacques disse. - É
melhor guardá-los para a celebração.
- Naturalmente. Só espero que os uniformes desenhados pelo imperador
sejam tão bonitos quanto ele os imagina. Caso contrário, certas cabeças
rolarão.
Jacques estendeu as mãos.
- Não a minha! Não tenho nada a ver com isso. A coincidência foi o meu
amigo, André de Villaret, ter vindo junto com os uniformes.
Orchis inclinou a cabeça.
- Parece que conheço o seu nome.
- Era um nome muito conhecido, antes da Revolução.
- Quer dizer que havia algum Villaret importante no Haiti?
- Foi uma das fazendas mais prósperas daqui e o dono era o pai de
André.
- Oh, naturalmente! Por isso reconheci o nome. Bem, imagino que não
pretenda trabalhar nos campos de algodão, ou sei lá o quê cultivam!
- Não pretendo!
Achou que Jacques tinha mencionado muito cedo a fazenda. Procurou mudar
de assunto.
- É muito bonita, madame. Ouvi falar dos seus encantos, antes de ir para
a América. Mesmo em Boston, ouvi comentários sobre sua beleza. Agora, não
tenho palavras para descrevê-la.
Orchis fez um movimento sensual na direção dele e, por um momento, suas
mãos se tocaram. Ele sentiu como se a língua de uma serpente passasse
rapidamente sobre sua pele.
Então, novamente, ela pareceu avaliá-lo por trás dos cílios espessos.
Sentiu-se como se usasse um dos uniformes colantes dos empregados
mulatos.
- Precisa jantar comigo. Prometi a um certo oficial que estaria sozinha
esta noite, mas mudei de ideia.
Estendeu a mão para Jacques.
- Quando sair, querido, avise os empregados que não devo ser perturbada,
por nenhum motivo!
22
- Levarei seu recado. Só espero não encontrar o convidado rejeitado, com
uma espada na mão.
- Você conseguirá sobreviver. Sempre consegue. E, como nós dois sabemos,
sempre se torna indispensável.
Jacques beijou-lhe a mão e dirigiu-se para a porta.
- Tem muita sorte, André - disse, enquanto saía.
- Quase não consigo acreditar na minha boa sorte. - André respondeu.
A porta se fechou atrás de Jacques. Orchis e André ficaram sozinhos. Ela
virou-se para ele. Sabendo o que o esperava, sentou-se do outro lado da
cama, encarando-a.
- É muito bonito, mon ami, mas será que é tão másculo como aparenta
- Espero que sim, porque, entre todas as mulheres bonitas que conheci,
você é a mais feminina.
Sentiu que as mãos dela o acariciavam. Então, como era impossível não
ficar atraído por ela, pelo convite de seus lábios e a tentação de seus
olhos, ele se inclinou.
Os lábios dela se colaram aos dele e as unhas longas arranharam suas
costas.
Olhou-a nos olhos, profundamente, e se viu nadando em águas perigosas.
Fogos de artifício pareciam explodir em sua mente e não conseguiu pensar
em mais nada.
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CAPÍTULO II
Amanhecia, quando André saiu da mansão Leclerc.
Levantou-se, enquanto Orchis ainda dormia. Vestiu-se, achando que seus
dedos estavam inchados e que as pernas não o obedeciam.
Nunca, em toda a vida, havia passado uma noite como aquela. Mesmo
dormindo, a mulher parecia lhe enviar vibrações.
Tinham jantado juntos, sob as estrelas, no jardim ao lado da sala de
banquetes, à luz de castiçais.
Só se ouvia o som da água caindo de uma fonte e o barulho do vento na
vegetação tropical.
Tomaram vinho e saborearam os deliciosos pratos crioulos. Orchis insistiu
para que André provasse algo que mais tarde ele conheceria como "cerveja
do diabo".
Parecia um licor com perfume estranho. O gosto era diferente de tudo que
ele já havia tomado.
Depois de terminar seu copo, sentiu o corpo queimando, como se uma
corrente de fogo percorresse cada nervo, chegando até o cérebro. Já não
pensava em nada, sentia apenas um desejo imenso por Orchis, de um modo
que sabia não ser natural, mas irresistível.
Mais tarde, quando se deitaram, exaustos, no leito em forma de cisne, ele
forçou-se a lembrar por que estava ali e disse:
- Gostaria de colocar esmeraldas em seu pescoço, para combinar com o
verde dos seus olhos, e rubis em suas orelhas, iguais ao vermelho dos
seus lábios. Entretanto, não posso, não tenho dinheiro.
- Dinheiro não tem tanta importância, quando um homem é um homem. E é
isso, sem dúvida, que acontece com você, mon cher.
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Acha - perguntou André, escolhendo com cuidado as palavras
que há algum dinheiro ou tesouro enterrado na fazenda Villaret?
- Quer saber se o imperador escavou aquela fazenda, como escavou todas as
outras? - Ela riu, um riso que não tinha nada de agradável.
O meu Jean-Jacques é terrível. Ele encontra todos os cofres secretos
em que os brancos colocam seus tesouros, pensando que estão seguros. Mas
o imperador diz que há muito ouro à disposição dos brancos, no outro
mundo. Não precisarão mais usar o que deixaram aqui.
- Eu gostaria de ter um pouco deste ouro, para colocá-lo aos seus pés.
- Há outro presente que prefiro, no momento.
Virou-se para ele e seus lábios e mãos se encontraram novamente,
acendendo em André um fogo que pensava já estar extinto. Mais tarde, ele
tentou outra vez.
- Ajude-me a encontrar o que me pertence, não pela lei, mas por direito
natural. Por que meu pai não deveria pagar por meus prazeres, já que não
me aceitou como seu filho?
Orchis fez um ar de aborrecimento.
- Os brancos são sempre assim, os porcos sujos. Acho que devemos nos
livrar deles. Aqueles que sobraram serão punidos com algo pior do que a
morte.
Falou com tal violência que André percebeu uma imitação de Dessalines.
Entretanto, era muito desagradável ouvir uma mulher falando daquele jeito
e se divertindo ao lembrar da agonia dos que haviam morrido.
Era igual ao imperador, em sua sede de sangue. André precisava ser
cuidadoso e parecer simpatizante das ideias dela. Tinha que dar a
impressão de desejar a morte de todos os brancos e apoiar os que estavam
no poder.
- Ajude-me a realizar minha vingança particular - ele pediu contra o
homem que possuiu minha mãe à força e me fez nascer num mundo difícil,
onde não sou branco nem negro.
- Ele certamente lhe deu algo de que pode se orgulhar - Orchis brincou.
Passou os dedos pelo corpo dele e continuou:
- Tenho uma boa memória e o imperador sempre confiou em mim,
25
mas não me lembro de nada vindo da fazenda Villaret. Se ele encontrou
algo, certamente foi de pouca importância.
Era aquilo que André queria saber. Foi esperto o suficiente para dizer:
- Que o meu pai queime no inferno por me deixar sem nenhuma herança, a
não ser a minha inteligência.
- Ele lhe deu também... este corpo - Orchis disse, como se o acariciasse.
Então, ele não conseguiu conversar mais...
Quando se levantou para partir, tomou cuidado em não acordar a mulher.
André olhou-a e, de repente, sentiu uma revolta imensa, que não sabia
explicar.
Mesmo dormindo, ela era linda, com a graça e a sinuosidade de uma
serpente.
Sentiu um arrepio e lembrou quanto ela o havia excitado a noite toda.
Enlouquecido por aquela bebida estranha, ele se tornara quase um animal.
Caminhou pela alameda. O ar úmido; batendo em seu rosto, não era bastante
frio para despertá-lo.
De repente, desejou o inverno inglês, com o vento soprando do norte e o
frio intenso da neve.
Do lado de fora dos portões, viu uma carruagem. Os cavalos pareciam
cansados e sonolentos e o cocheiro dormia, enroscado no assento.
Acordou-o. O homem se espreguiçou e perguntou em crioulo:
- Para onde, m'úeur?
- Esperou aqui a noite toda? O negro fez que sim.
- Há sempre um cavalheiro cansado demais para andar, saindo pela manhã,
da mansão Leclerc.
André entrou na carruagem e desceram a montanha, em direção à cidade.
Um empregado deixou-o entrar na casa de Jacques Déjean, onde ele e Kirk
ficariam hospedados.
Sentia-se tão cansado que não conseguiu subir a escada de madeira.
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Atirou-se em uma cama no térreo, achando que jamais chegaria ao primeiro
andar.
Dormiu, assim que encostou a cabeça no travesseiro.
Era quase meio-dia, quando Kirk entrou no quarto e o acordou.
- bom dia, "Romeu!" Não parece tão ardente agora como na noite passada.
André gemeu.
- Senti inveja de você, quando foi se encontrar com a deliciosa Orchis -
Kirk continuou -, mas agora acho que foi melhor ter ficado jogando cartas
com Jacques.
André sentou-se na cama.
- Peça um café para mim e, pelo amor de Deus, pare de fazer gracinhas a
esta hora da manhã.
Kirk riu e se atirou em uma poltrona confortável, perto da janela que
dava para uma sacada.
- Está de péssimo humor e não vou provocá-lo, perguntando o que
aconteceu. Já sei, só de ver as suas olheiras.
André gemeu outra vez e se recusou a conversar, até que um empregado lhe
trouxe café com croissants quentinhos.
- Quero tomar um banho - disse, enquanto tomava a xícara de café de um só
gole.
- O empregado arranjará tudo. Mas Jogo verá que não é no estilo
americano.
- Quero me sentir limpo e isso se aplica tanto à minha mente quanto ao
corpo.
- Está de ressaca. Esta é a palavra certa para o que sente. Ficará bom
com alguns exercícios. Foi exatamente isso que Jacques lhe preparou.
André o olhou, curioso, e Kirk prosseguiu:
- Vai partir hoje e acho que Jacques está certo. Seria um erro ficar mais
tempo por aqui. Apesar de parecer um mulato, pode ser que os outros
mulatos percebam o disfarce.
- Também temo isso. Havia mulatos no quarto de Orchis, na noite passada.
Felizmente, como ela estava lá, eles não me olharam muito.
Você passaria num exame superficial. Mas Jacques estava me contando
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como é importante que pense como mulato. E isso, como sabe,
não é fácil.
- Tentarei. E tomarei todas as precauções. Se tiver contato com
Dessalines, sei que o menor descuido poderá ser fatal.
- Descobriu se o tesouro do seu tio ainda está na fazenda?
- Acho que sim. Dessalines nunca mencionou a Orchis ter trazido nada
daquela fazenda, e sei que ela confere cuidadosamente, para saber o que
veio das escavações.
- Jacques disse que ele tem uma quantia enorme em dinheiro e jóias
escondidas. Descobriu algo importante?
- Não houve tempo para muita conversa! A não ser durante o jantar, quando
falei sobre a América, e sobre coisas em que não estava
realmente interessado.
Só depois de André ter tomado banho, e estar se vestindo, foi que
Jacques voltou.
- Já acertei tudo para você deixar Port-au-Prince esta noite. A menos que
Orchis tenha dito que não há mais nada na fazenda. Então, não precisa
fazer a viagem.
- Orchis disse que Dessalines nunca mencionou a fazenda Villaret ou algo
especial trazido de lá - André respondeu. - Tem certeza de que ele não
encontrou nada importante.
- Eu lhe disse que Orchis era esperta. Se o seu tio era rico e sua tia
possuía jóias de valor, ela sem dúvida se lembraria.
- Então, preciso tentar encontrar o tesouro.
- Mas, primeiro, precisa de algo muito necessário, para não ser detido
logo nos primeiros quilómetros da estrada.
- O que quer dizer? - perguntou, preocupado.
- Precisa escrever uma carta agradecendo gloriosamente a Orchis e lhe
mandar um imenso buque de flores.
André pareceu confuso.
- Devia ter pensado nisso.
- Pauline Leclerc estava sempre rodeada de flores. Ganhava tantos buques,
que os empregados nem sabiam o que fazer com eles. E tudo que Pauline
recebia, Orchis também quer. Escreva uma carta muito eloquente. Deve ser
fácil para um francês, quanto mais para um mulato. Mas não assine.
28
André fez cara de espanto e Jacques explicou: - Orchis desafia
Dessalines com suas conquistas, para torná-lo ciumento. Se pensar que
você é um amante melhor do que ele, Dessalines sem dúvida mandará matá-
lo!
- Preciso admitir que o Haiti é um lugar muito perigoso para se viver! -
disse, brincalhão.
Kirk, que estava ouvindo, comentou:
- Mude de ideia. Vá para a escuna e espere por mim. Podemos voltar juntos
a Boston.
- Não vou fazer nada disso! Ao mesmo tempo, gostaria de poder deixar a
fuga preparada. Assim, quando precisar sair do Haiti, haverá um barco
esperando, para me levar embora.
- Há duas alternativas - Jacques disse, antes que Kirk pudesse falar. -
Primeiro, você volta a Port-au-Prince, o que, se tiver encontrado o
tesouro, será um risco desnecessário. Não apenas Dessalines, mas muitas
pessoas e inclusive Christophe farão o possível para que não leve nada.
Acham que tudo que é encontrado aqui pertence a eles.
André esperou que Jacques continuasse:
- Se encontrar o tesouro, sua única chance é ir a Lê Cap. A distância
entre esse lugar e a fazenda do seu tio é quase a mesma daqui.
- Acha que haverá um barco americano em Lê Cap?
- Pode haver. Muitos canhões e munições que os americanos estão enviando
ao Haiti são desembarcados lá. Há também chances de encontrar um barco
inglês.
- Inglês?
- A marinha britânica está patrulhando a região que vai da Jamaica até
Windward Passage e a saída para o Atlântico. Por isso, o imperador sabe
que, no momento, está a salvo de uma invasão francesa, por mar.
- Claro. Agora compreendo por que Dessalines foi atacar a parte espanhola
da ilha.
- Há muitas tropas brancas e negras lá - Jacques respondeu. Christophe
avançou de Lê Cap em direção à costa norte, para ajudá-lo. Portanto, no
momento, o seu caminho está limpo, tanto daqui até a fazenda do seu tio,
como de lá até Lê Cap.
- Como posso agradecer a sua ajuda?
- Tenho um cavalo esperando, e um empregado vai acompanhá-lo.
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André pareceu surpreso e ele explicou:
- Precisa de alguém que conheça o interior do país. Precisa também de um
homem que fale o dialeto do povo com o qual terá contato e onde
conseguirá comida.
- Sinto que lhe devo muito.
- O homem que escolhi para acompanhá-lo é alguém muito especial. Pode
confiar nele, como confiou em mim. Seu nome é Tomás. Apesar de ter
sofrido as crueldades de um amo francês, despreza, tanto quanto eu, o
tirano que nos governa agora.
Logo depois de uma refeição leve, André disse que estava pronto para
partir. Deu a Jacques a carta, com uma quantia em dinheiro para que
comprasse as flores de Orchis.
A carta era muito floreada, poética. Esperava que agradasse uma cortesã
de qualquer nacionalidade.
Os olhos de Jacques brilharam, ao lê-la.
- Excelente. É difícil acreditar que você tenha algum sangue inglês.
- Está insinuando que os ingleses são frios? Se um dia for à Inglaterra,
terá uma surpresa!
Pensava nas mulheres que haviam correspondido ao seu amor, não com a
paixão física de Orchis, mas com muito ardor e entusiasmo.
- Mandarei um criado levar a carta e um buque de orquídeas até a mansão
Leclerc, logo que você sair da cidade.
- Acha que Orchis pode querer me ver outra vez?
- Dificilmente ela deseja o mesmo homem mais do que uma noite, mas é uma
mulher imprevisível.
- É melhor não se arriscar - Kirk disse.
- Estou tentando prever tudo que pode acontecer - Jacques falou,
sorrindo. - Conheço Orchis há muitos anos e sei que é melhor prevenir,
quando se trata dela.
O criado levou a bagagem e André se despediu.
- Por favor, deixe-me pagar por tudo que lhe devo. O cavalo e todas as
despesas que fez por minha causa.
Jacques sorriu.
- Tudo é parte do que devo ao meu amigo Kirk. Devo a ele a minha vida.
Como posso aceitar, em troca dela, algo tão desprezível como dinheiro?
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Todos riram e Jacques garantiu que, se André insistisse, estaria
ofendendo sua dignidade de mulato.
André compreendeu que aquele orgulho era falta de confiança em si mesmo,
por causa de sua origem e do modo como tinha sido tratado. Dava prazer ao
mulato pensar que era importante para os brancos.
Na verdade, pensou, estaria completamente perdido se ele não o tivesse
ajudado.
Foi com um sentimento de superioridade que Jacques decidiu tornar André
bem-sucedido em sua busca. Escolheu o disfarce e estabeleceu o roteiro da
viagem.
Esperou que o criado saísse do aposento e disse:
- Na sua bagagem, coloquei um saco com a tintura para a sua pele.
- Quando devo usar novamente?
- Daqui a duas ou três semanas, porque apliquei uma camada bem grossa.
Está com uma cor mais escura do que a minha e a da maioria dos mulatos.
Mas, há algo que precisa tingir com mais frequência: a meia-lua das suas
unhas.
André olhou as mãos, enquanto ele falava.
Lembrou-se de que Jacques tinha sido muito cuidadoso em escurecer a base
de suas unhas.
- Na verdade, vai encontrar muitos mulatos claros - Jacques explicou - e
não o reconhecerão, a não ser por um detalhe: a meia-lua dos mulatos
verdadeiros tem sempre uma tonalidade escura. As unhas crescem depressa.
Portanto, tome muito cuidado: um traço branco na base, perto da cutícula,
poderá denunciá-lo instantaneamente.
- Lembrarei. E obrigado, mais uma vez. Despediu-se de Kirk, perguntando:
- Quando voltar para a América, posso ir direto para Boston?
- Sabe que será sempre bem-vindo. Minha família ficou encantada com você.
André virou-se para Jacques.
- Kirk me contou que você o informou da morte do meu tio e dos três
filhos dele. Tem alguma ideia de onde foram enterrados?
- Soube que todos os moradores da fazenda morreram no massacre: seu tio,
sua tia, os três filhos, a garotinha que adotaram e levava o nome de
Villaret e também alguns amigos que estavam escondidos
31
lá. Foi tudo o que descobri, quando Kirk me pediu para fazer algumas
perguntas.
Fez uma pausa e continuou, baixinho.
- Não é costume de Dessalines enterrar aqueles que destruiu. Geralmente,
permanecem atirados sobre a terra que possuíam ou seus corpos são jogados
em desfiladeiros, se houver algum por perto.
Jacques hesitou, antes de continuar:
- Acredito que os homens foram torturados. É um método de morte comum, no
Haiti. Mas não tenho informações detalhadas sobre o que aconteceu.
André apertou os lábios. Despediu-se de Kirk mais uma vez e caminharam
todos até o pé da escada.
Na parte de trás da casa, onde ninguém os veria, estavam dois cavalos.
Tomás segurava as rédeas.
Era um negro retinto, e seu rosto tinha uma estranha beleza, com um largo
sorriso.
O cabelo agarrava-se à cabeça, encarapinhado e preto, a testa era baixa e
os olhos, muito inteligentes.
André gostou dele à primeira vista e sentiu que se tratava de um homem
honesto.
Estendeu-lhe a mão.
- Prazer em conhecê-lo, Tomás. Estou satisfeito em que me acompanhe nesta
viagem.
O negro hesitou: nunca havia apertado a mão de um branco. Então, esticou
a mão imensa e fortíssima.
- Tomás cuidará de você - Jacques disse. - Confie nele e não guarde
nenhum segredo.
Tentou expressar sua gratidão, mais uma vez. Depois, montou e,
acompanhado de Tomás, saiu do pátio.
Quase imediatamente, começaram a subir as montanhas.
André percebeu que evitavam as ruas mais movimentadas e se mantinham nos
caminhos estreitos e empoeirados.
Olhando um mapa, na casa de Jacques, tinha visto que, para chegar à
fazenda do tio, precisava viajar ao longo do canal St. Mark, depois subir
as Montanhas Negras e chegaria ao vale onde Phillippe de Villaret havia
se estabelecido.
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No mapa, vira também que a distância entre a fazenda e Lê Cap era a mesma
entre esta e Port-au-Prince.
Estava tranquilo em saber que Lê Cap se submetia agora ao comando de
Henry Christophe, apesar de não ter nenhuma vontade de encontrá-lo. Na
verdade, este general queimara toda a cidade e também sua magnífica
mansão, ao ver o sinal de barcos franceses chegando para a invasão.
Christophe matara muitos brancos, mas tudo que se dizia sobre ele provava
ser menos cruel e menos tirânico do que o imperador.
O general também estava determinado a se livrar do domínio francês. Mas
sempre dizia que era melhor ter amigos entre os povos brancos, como os
americanos e ingleses, que podiam ajudá-lo.
No momento, tanto Christophe quanto Dessalines estavam ocupados, lutando
contra os espanhóis. André rezou para que sua busca não fosse muito
demorada.
Quando já tinham se afastado bastante da cidade, dirigiram-se a uma
estrada costeira. Puxou conversa com Tomás.
- Tomás, monsieur Jacques lhe disse o que procuro?
- Sim, m'sieur, mas não vai ser fácil.
- Ele lhe disse que tenho uma indicação de onde o dinheiro pode estar
escondido?
- Disse, m'sieur.
André tirou do bolso a carta do tio e, em voz alta, leu para Tomás a
frase mais importante.
- Tenho certeza de que isso significa que ele escondeu o dinheiro perto da
igreja.
Tomás não falou nada. Andaram em silêncio e então o negro disse:
- Vamos encontrar a igreja.
- Deve haver uma.
Passaram a primeira noite em uma casinha coberta de palha, uma caille,
num pequeno vilarejo.
Era grande o número de telhados de palha, sobre paredes de madeira ou
barro. Cada casa tinha seu pequeno jardim ou quintal, cercado e enfeitado
com cactus.
- Boas pessoas - Tomás observou. - Não fazem perguntas. Parou o cavalo,
desmontou e entrou na caille mais próxima para conversar,
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durante um longo tempo, com um velho que fumava um cachimbo de
barro.
Quando voltou, sorria.
- bom abrigo. A caille é nova, mas está vazia.
Ficava um pouco distante das outras e, pelo que Tomás disse, acabara de
ser construída. A palha ainda estava fresca e o barro das paredes,
úmido.
Dentro era muito limpa. Tomás esticou um tapete, sobre o qual André
dormiria.
Tinham trazido comida para dois dias.
"Confie em Tomás", Jacques tinha dito. "O que ele encontrar pode não
parecer muito gostoso, mas o manterá vivo. "
Saborearam galinha, ovos cozidos e peixe frio, preparado em um delicioso
molho crioulo.
André comeu tudo que o negro lhe ofereceu, sabendo que poderia ser sua
última refeição decente, durante um longo tempo.
Por causa da aventura da noite anterior, ainda se sentia cansado. Deitou-
se no tapete e dormiu imediatamente. No dia seguinte, Tomás o acordou bem
cedo, dizendo que precisavam continuar a viagem.
Tomaram uma xícara de café e comeram um bolinho francês seco. André
colheu laranjas. Estavam suculentas e doces.
Havia também muitas bananeiras pelo caminho. Mesmo se não comesse os
alimentos a que estava acostumado, dificilmente passaria fome. Viraram em
direcão às montanhas. Logo tiveram uma vista panorâmica de toda a ilha e,
ao longe, o mar azul.
Às vezes precisavam cavalgar lentamente, entre as árvores que escureciam
a floresta, formando um estranho ambiente, quase místico.
Flores de cores brilhantes surgiam de todos os lados, entre as quais
orquídeas verdes e brancas.
Elas fizeram André pensar em Orchis. Não conseguiu afastar a lembrança de
seu corpo sensual, seus lábios exigentes e os braços macios e
envolventes.
Sacudiu a cabeça, tentando se livrar das recordações.
Ela era como uma parasita, pensou; se enroscava em um homem e podia
apertá-lo tanto, que ele já não teria vontade própria, tornando-se apenas
um escravo de seus desejos,
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Naquela noite, não tiveram muita sorte.
As casinhas pelas quais passaram não agradaram a Tomás. André sentiu que
o criado tinha medo da floresta.
Em determinado ponto do caminho, onde uma trilha cruzava com outra, havia
um grande mastro. No alto, estava pendurado um bode preto, estrangulado,
amarrado pelos chifres.
Tomás lhe havia dito que as encruzilhadas eram consideradas lugares
sagrados, onde costumava haver um pequeno altar, erigido por algum
habitante do local; um loa.
- Está me dizendo que isso é parte do vodu, Tomás?
- Sim, m'sieur
O modo como falou e seu jeito de olhar o loa revelaram que era um
praticante de vodu e não diria mais nada.
Agora, olhando o bode negro, a expressão dele era de terror.
- O que significa, Tomás?
- Vodu, m'sieur. Feitiçaria de Pedro.
- Quem é ele?
- Pedro é mau! Cuba bom. Magia negra!
André teve vontade de rir do jeito do outro falar. Mas sabia que o negro
levava a sério tudo aquilo. Depois de um momento, perguntou:
- Quem são os deuses bons? Quais as divindades que você cultua? Achou que
Tomás não ia responder, mas ele disse:
- Damballah, m'sieur. Damballah Weydo é um grande deus. Ele o ajuda.
- Espero que ajude mesmo!
- M'sieur não odeia vodu? - Tomás perguntou, cauteloso.
- Por que deveria odiar? Não sei muito sobre isso, mas acho que todo
homem tem o direito de acreditar na religião que ele próprio escolher.
Viu uma expressão de alívio no rosto do negro e continuou:
- Nasci e fui batizado como católico, mas tenho muitos amigos que são
protestantes, budistas e maometanos. Eles são, acredito, tão bons ou maus
quanto eu mesmo. Só os avalio por suas ações e pelo bem que fazem.
Tomás olhou o bode. Então, enquanto prosseguiam, aproximou o cavalo do de
André
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- Damballah vai ajudá-lo, m'sieur. Vai ajudá-lo a descobrir onde o
tesouro está escondido.
- Se ele me disser isso, vou ouvi-lo com muito respeito. Depois, lhe
farei uma oferenda, para expressar minha gratidão.
Tomás fez que sim.
- Deixe tudo comigo, m'sieur - e continuaram cavalgando, sem
discutir mais o assunto.
Passaram uma noite desconfortável numa clareira. As árvores se erguiam
altas e os galhos pareciam prestes a despencar sobre suas cabeças. André
lembrou-se de uma enorme catedral.
Sabia, entretanto, que Tomás não se sentia à vontade e dormiu pouco. Aos
primeiros sinais do amanhecer, montaram e partiram.
Agora, já não havia mais café. Apenas alguns pedaços de pão seco e
frutas.
Quando desceram do outro lado íngreme da montanha, chegaram a um povoado.
Tomás encontrou alguém que lhe preparou um café e encheu o cantil.
Na noite seguinte, passaram em um povoado, onde as pessoas olhavam André,
cheias de suspeitas. Não pareciam acreditar no que Tomás lhes
dizia.
- Algumas vezes, m'sieur, os mulatos criam problemas. São inteligentes,
dão ordens e esperam que os negros obedeçam. Se recusam, os mulatos agem
cruelmente.
Aquele era um país atormentado, amedrontado e dividido, André pensou.
Sentiu pena do povo, que não sabia em quem confiar ou no quê acreditar.
Então, finalmente, quando parecia que nunca mais chegariam, viram o vale
que procuravam.
Se a floresta era bonita, o vale era de tirar o fôlego!
André não conseguia imaginar como teria sido aquele local nos anos de
prosperidade, quando o tio escrevia para a França, contando sobre a
grande fortuna que estava conseguindo acumular.
Passaram por engenhos de cana e entraram em campos realmente férteis,
cruzados por riachos cristalinos e protegidos por imensas montanhas.
Tudo ali era tão bonito que André pensou que estivesse no paraíso.
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Tomás levou-o diretamente à casa do tio.
Passaram pela porteira quebrada e entraram numa alameda cercada de
flamboyants que começavam a florir.
Cercas vivas de buganvílias caíam ao redor de colunas, formando uma
cobertura colorida e brilhante. Pés de jasmins dourados e lírios enchiam
O ar com seus perfumes.
Lutaram para passar por uma vegetação espessa e, de repente, viram a casa
à sua frente.
André conhecia, pelas descrições do tio, a construção branca de tijolos,
feita pela família, com tanto orgulho. Tinha dois andares e uma escada em
forma de ferradura, que levava à sacada principal. Tudo parecia quebrado
em mil pedaços.
O telhado perdera as telhas, todas as vidraças tinham sido despedaçadas e
a casa parecia ter estado nas mãos de vândalos.
A porta da frente, com a pesada fechadura e todas as dobradiças, tinha
caído. As parreiras se enroscavam pelos pórticos e colunas, subindo pela
sacada e escurecendo as janelas.
A destruição era tanta, que causava depressão.
Os dois homens desmontaram e André caminhou para a casa, pisando
cuidadosamente sobre o que tinha sido um assoalho de madeira.
Ficou surpreso ao ver que todos os quartos estavam vazios. A casa havia
sido completamente saqueada.
Uma parte estava incendiada, as paredes negras, o chão coberto de poeira
e teias de aranha por toda parte.
Ficou contente em sair novamente no jardim colorido.
- Não deixaram nada para nós - disse a Tomás.
- Ninguém vem aqui. Magia má!
- Magia? O que a magia tem a ver com isso? Em resposta, o negro virou-se
e apontou. André olhou na direção indicada.
- O que é? O que está me mostrando?
Então viu, num pilar, ao pé da escada, algo que lhe parecia um galho
torcido, ou um pedaço de corda.
- O que é?
- Pedro ouanga... magia negra demónio1
37
- Bobagem! Não acredito nessas coisas. Podem ser reais para você.
mas não para mim.
Falou secamente. Então, percebendo que Tomás parecia aborrecido,
tentou corrigir.
- Desculpe, Tomás, não quis ofender. Talvez esteja com tanto medo quanto
você. A magia, branca ou negra, é algo fácil de se acreditar, quando se
está neste país.
- Venha olhar, m'sieur.
Chegaram ao pilar e André viu que, na verdade, se tratava de uma corda
tingida de verde. Tinha mais ou menos meio metro e era tão grossa como o
pulso de um homem. As extremidades estavam amarradas juntas com lã
colorida e, nos nós havia penas de galinhas tingidas de vermelho e
branco.
Parte da corda tinha sido coberta com uma substância branca, que se
espalhou, quando André a tocou. A outra parte estava coberta com algo
seco e preto. Tinha certeza de que era sangue.
- O que é?
- Eu lhe digo, m'seur: esta é a cobra verde de Pedro ouanga
Magia forte... negra.
- Por que está aqui?
- Não sei, m'sieur. Só se souberam que vínhamos para cá.
- Eu? Vindo aqui? Como alguém podia saber? Tomás olhou para a montanha e
disse:
- Tudo se sabe. Os tambores falam.
- Está dizendo - perguntou, devagar -, que a minha chegada a esta fazenda
abandonada já é do conhecimento de algum praticante de vodu?
O negro fez que sim.
- É difícil acreditar numa coisa dessas.
Olhou o pedaço de corda e percebeu que havia sido colocado ali há
pouco tempo.
Tocou a parte escura, que pensara ser sangue coagulado. Pressionou-a com
os dedos: estava macia e úmida. Era mesmo sangue!
Viu então que aquele pilar estava completamente limpo das trepadeiras que
cresciam por toda parte.
Não havia dúvida de que aquela corda, representando uma serpente,
38
tinha sido colocada ali há pouco tempo, talvez naquela manhã ou na noite
anterior.
Não entendo, Tomás, mas não gosto disso.
- Não se preocupe, m'sieur, vou encontrar um bom papaloi que endireitará
as coisas.
- O que é isso?
- Um homem, m'sieur.
- Que tipo de homem?
- O que vocês chamam de sacerdote... um sacerdote do vodu. André pôs as
mãos na cabeça
- Quer dizer que, para acabar com esta feitiçaria, ou sei lá o quê, em
forma de cobra, precisamos encontrar um sacerdote vodu que pratique magia
branca?
- Certo, m'sieur'
- Parece uma completa... André não disse as últimas palavras.
De repente, lembrou-se de Jacques lhe dizendo que, para desempenhar bem o
papel de mulato, precisava pensar como um deles.
Mulatos acreditam em vodu, assim como os negros.
Muito bem... valia a pena tentar! Entretanto, coisas estranhas demais
estavam acontecendo. Mas, se devia se comportar como um haitiano, jogaria
a magia branca contra a negra. Precisava concordar que até fazia sentido.
- Onde podemos encontrar este sacerdote... este papaloi?
- Eu encontro, m'sieur.
- Muito bem. Estou de acordo. Enquanto isso, vou me livrar desta bobagem.
Pegou a corda de cima do pilar e atirou-a, com toda força, no meio do
mato que rodeava a casa.
- Pelo menos, não explodiu - disse, sorrindo. Mas Tomás continuava sério.
- A praga continua aí. Só o papaloi pode tirar. Bem-humorado, André lhe
deu um tapinha no ombro.
- Então, encontre o papaloi. E escolha um lugar onde possamos dormir, com
um teto que não caia sobre a minha cabeça, nem um chão Mue desabe sob os
meus pés
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Olhou em direção à casa e continuou, brincalhão:
- Pelo menos, enquanto estiver dormindo, vou fingir que sou o dono da
fazenda Villaret. Quero dormir na casa que legalmente deveria ser minha,
apesar de ninguém mais acreditar nisso, a não ser você.
Durante um momento, Tomás não falou. Quando o fez, foi em voz tão baixa,
que André mal pôde compreender:
Damballah vai dizer, m'sieur, onde o tesouro está escondido.
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CAPÍTULO III
André saiu da casa e desceu, cuidadosamente, os degraus que levavam ao
jardim.
Tinha comido bastante, um surpreendente jantar que Tomás preparara.
Compraram duas galinhas no vilarejo por onde passaram. O negro pendurou-
as na sela e André ficou imaginando se ele saberia como prepará-las.
Devia ter adivinhado que Jacques, com sua eficiência meticulosa, lhe
forneceria um criado, não apenas capaz de indicar os caminhos, mas também
apto a servi-lo de muitas outras formas.
Quando Tomás percebeu que André pretendia ficar na casa, improvisou uma
vassoura, varreu e tirou a poeira das paredes e do teto.
Conseguiu limpar completamente um quarto, que André achava ter sido uma
sala, e começou a limpar a cozinha.
Não demorou muito para que um cheiro apetitoso chegasse até a sacada,
onde o rapaz descascava uma laranja.
Ia sair para uma inspeção mais completa no dia seguinte, quando se
sentisse menos cansado.
Aquele dia tinha sido difícil, principalmente porque ambos haviam dormido
pouco, na noite anterior. Tomás quase nem dormira, de tão ansioso para
sair da floresta.
André sentou-se na sacada, tentando imaginar como era aquela casa, no
tempo de seu tio. Lembrou que a tia era uma mulher muito atraente e
supervisionava os empregados com a experiência e a rigidez que pareciam
natas nas francesas.
Deviam ter muitos criados, pois o tio era rico. André acreditava que
a mansão de Villaret conhecera todos os confortos europeus, transportados
até o Novo Mundo.
Imaginou se teria gostado de viver no Haiti. Mas, para ser honesto
consigo mesmo, precisava admitir que estava muito apegado aos seus
hábitos ingleses e, por outro lado, adorava a França.
Antes de ser obrigado a fugir com a família para a Inglaterra, para
escapar da Revolução Francesa, conheceu a grandiosidade em que vivia o
avô, seu poder e as imensas fazendas que possuía, empregando centenas de
pessoas.
Parecia duro que os únicos a desfrutarem do luxo e glória-de serem os
condes de Villaret tossem seu avô e o tio Phillippe.
Agora, o título era seu. Nada mais. Depois da busca ao tesouro, voltaria
à Inglaterra e tentaria achar um emprego, de modo a se manter e a ajudar
a mãe.
Sabia que há muito ela desejava que ele se casasse.
Em circunstâncias normais, qualquer família nobre da Europa ficaria
contente em unir uma de suas filhas ao conde de Villaret. Entretanto, ele
não aceitaria um casamento arranjado, muito menos agora, que não tinha
nada a oferecer, a não ser um título de nobreza.
Todos seus instintos masculinos fugiam da ideia de se casar com alguém a
quem teria que ser subserviente, porque controlaria as finanças.
Uma esposa rica seria muito inconveniente; uma mulher que, na verdade,
estaria pagando por tudo e a quem precisaria recorrer, até para pedir uma
mesada.
Ainda estava perdido nesses pensamentos, quando Tomás avisou que o jantar
ia ser servido.
Entrou por uma janela, tomando cuidado para não pisar nos cacos de vidro
e procurando o local onde a refeição tinha sido colocada.
Descobriu que um bloco de madeira serviria como cadeira e os pratos
seriam imensas folhas. Entretanto, teriam garfos e facas, trazidos da
casa de Jacques. A galinha, preparada à moda crioula, estava deliciosa.
Tomás tinha cozido também algumas espigas de milho, colhidas atrás da
casa, e alguns tomates.
André estava faminto e comeu tudo.
42
Havia água pura para beber, que o negro lhe disse vir de um poço do
pátio, na parte central da casa.
Durante um momento, ficou preocupado. Sabia que em tempos de guerra os
poços se tornam perigosos, pois servem como depósito de cadáveres. Mas
aquela água parecia transparente como cristal e, com a sede que sentia,
achou que a apreciaria mais do que qualquer vinho francês.
- Amanhã compraremos comida, pratos, xícaras e copos - Tomás murmurou. -
Além de vassouras e toalhas.
André riu:
- Acho melhor fazer uma lista.
Então, lembrou-se de que dificilmente Tomás saberia ler ou escrever.
- Tomás sabe o que precisa! - o negro disse, com dignidade, e André
sorriu, sacudindo os ombros. Estava contente em tê-lo ali, para resolver
esses problemas.
Pegou uma banana e descascou-a, dirigindo-se ao jardim.
O sol estava se pondo e a poeira fazia tudo parecer misterioso e
estranho. Morcegos voavam sobre sua cabeça e as primeiras estrelas
brilhavam no céu.
O ar quente e úmido era semelhante à pele de uma mulher. André lembrou de
Orchis. Depois, expulsou-a de sua mente.
Pensou ouvir longe, muito longe, o som de tambores.
Prestou mais atenção, para ter certeza de que não era imaginação.
Só ouviu o ruído dos morcegos e dos sapos.
Tudo era parte do mistério do Haiti. Kirk lhe falara alguma coisa sobre o
vodu e lera outras, enquanto navegavam para o Haiti.
Durante o último século, um milhão de negros, trazidos da África, tinham
sido vendidos nos mercados de São Domingos. Para eles, uma nova vida
começara, ao soar do chicote dos feitores. Foram tratados com uma
crueldade que parecia inacreditável a André e para a maioria dos
ingleses.
William Wilberforce contava histórias incríveis aos incrédulos membros do
Parlamento. Tentava abolir a escravatura, e dizia ter visto fazendeiros
matarem seus escravos, apenas para verificar se a pistola estava
carregada. Outras histórias diziam que os fazendeiros mandavam enterrar
seus escravos até o pescoço e usavam suas cabeças para um jogo de bolas.
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Kirk contara a André que, na fazenda Gallifet, os escravos que tentavam
fugir eram surrados e seus ferimentos tratados com pimenta.
Um fazendeiro de La Grande Rivière prendeu um escravo à parede, pelas
orelhas, com pregos, depois cortou-as com uma faca e forçou o homem a
comê-las.
Um homem em Plaine dês Gonaives foi apelidado de "Perna-de-Pau", porque,
sempre que capturava um escravo fugido, mandava que lhe cortassem uma das
pernas. Se o escravo sobrevivesse, o que era difícil de acontecer, tinha
que usar uma perna de pau.
O instrumento de tortura mais comum era o chicote, que assombrava toda
ilha. Taille era a palavra que todos gritavam e significava um homem
chicoteado até se transformar numa massa ensanguentada.
As escravas eram tão chicoteadas quanto os homens. Havia fazendeiros que
tratavam bem os escravos; entretanto, sempre tinham menos importância do
que os animais de estimação.
Seu único conforto, sua única esperança, eram os rituais vodu, que tinham
trazido da África.
Tratava-se de uma religião mágica, com adoração de muitos espíritos.
André ouvira falar de sacerdotes-reis e sacerdotisas-rainhas, os papaloi
e as mamaloi que podiam trazer os mortos de novo à vida, em forma de
zumbis.
Nunca acreditara nisso. Mas, agora, pensava que, naquele clima quente e
abafado, era fácil acreditar em muitas coisas das quais teria rido, se
estivesse na Inglaterra.
A revolução começara com o vodu, que se tornou o coração de uma sociedade
secreta, ligando os escravos de todas as fazendas.
Os papaloi e as mamaloi se transformaram em líderes naturais e eram
recrutados entre os escravos superiores das casas, os commandeurs.
Eram feitores que chicoteavam os outros, nos campos.
Entre esses commandeurs estava um escravo de nascimento britânico,
chamado Brickman, que liderou o primeiro levante, na grande Planície do
Norte.
Brickman usou o vodu como uma cadeia, para sincronizar todos os levantes
através da ilha.
De junho a julho de 1791, sucederam-se várias perturbações nas Proíncias
44
Orientais. Os rebeldes eram chicoteados, quebrados na roda ou
enforcados.
Os fazendeiros não encararam estes incidentes isolados como algo
importante. Então, Brickman reuniu seus conspiradores das plantações do
norte e lhes falou da necessidade de união.
Encontravam-se na floresta, debaixo de tempestades, pois acreditavam que,
assim, conseguiriam a aprovação dos deuses. Brickman realizava os rituais
de vodu.
Sua mamaloi cortou o pescoço de um javali negro e, com os lábios cheios
de sangue, os conspiradores fizeram um juramento de aliança com Brickman
e seus comandados. Marcaram a data do próximo levante para
22 de agosto, daquele ano.
Naquela noite, Brickman chamou seus seguidores para irem até a fazenda
Turpin. Não usou o chicote, mas sim uma tocha. E por todas as planícies
do norte, os escravos começaram a incendiar, estuprar e matar.
O fogo das chamas iluminou mansões e canaviais destruídos. Os fazendeiros
mais cruéis foram torturados e mortos com uma violência perfeitamente
compreensível.
Nas fazendas onde os escravos haviam sido bem tratados, houve
retribuição: esconderam seus amos, que fugiram em segurança, acompanhados
das famílias.
Entretanto, para a maioria, nenhum branco devia sobrar para contar o que
havia acontecido.
Odeluc, o administrador da fazenda Gallifet, que era muito cruel, estava
em Lê Cap. Ouviu dizer que algo estava acontecendo e partiu para a
fazenda.
No caminho, alguns guardas lhe falaram sobre os incidentes. Quando
chegou, descobriu que seus próprios escravos estavam entre os líderes da
revolta. Carregavam, como bandeira, o corpo de uma criança branca, nua,
empalada em um mastro.
Odeluc foi capturado e morto. Já não era mais necessário nenhum alarme.
Bandos de escravos intoxicados pelo desejo de vingança se esPalharam por
toda a planície.
André sentiu que podia ver tudo aquilo acontecendo.
O que o surpreendia era que depois de terem ganho o poder, declararem
45
independência e terem aclamado Dessalines imperador, tanto este
quanto Christophe haviam proibido o vodu, o instrumento que lhes dera a
vitória.
André não conseguia compreender. Entretanto, tinha certeza de que, mesmo
na clandestinidade, o vodu nunca poderia ser retirado dos coracoes e da
imaginação daqueles que nele acreditavam.
O dia se transformou em noite e Tomás veio até a sacada:
- A cama está pronta, m'sieur.
com um sorriso, André foi até a sala que usava como quarto, esperando
encontrar o tapete sobre o chão nu, como nas noites anteriores,
Desejava que os diversos lagartos que deslizavam para cima e para baixo,
nas paredes, se mantivessem à distância.
Então, à luz de uma vela que tinham trazido, viu que, em alguma parte
daquela casa destruída, Tomás havia encontrado uma cama: quatro pés de
madeira e um espaço vazio, preenchido com algo que parecia uma rede.
Era uma cama primitiva, como a usada em todos os países quentes pelos
criados e escravos. Naquela noite, foi um ótimo achado.
Enquanto estava na sacada, pensou ter ouvido batidas. Agora percebia que
era Tomás, remendando a cama, que devia estar quebrada; caso contrário,
teria sido roubada.
- M'sieur, tome cuidado! Amanhã, vou reforçá-la.
- Obrigado, Tomás. Foi muito engenhoso e acho que será bem mais
confortável do que dormir no chão, como nas outras noites.
Tomás sorriu, depois ajudou-o a tirar as botas de montaria, pegou as
roupas e preparou-se para levá-las.
- Vai precisar da vela - André disse.
- Há luz suficiente na cozinha. Boa noite, m'sieur!
Pensou como era estranho estar ali, deitado na casa do tio, auxiliado por
um criado negro e imaginando que aventuras o esperariam no dia seguinte.
- Tenho tido sorte, muita sorte, até o momento - disse, baixinho, Então,
lembrou-se de Pedro ouanga, que prendera a corda no pilar
quebrado.
Não importava o que Tomás dizia: não acreditava que aquilo tivesse algo a
ver com ele.
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Como alguém saberia que pretendia passar a noite ali? Que estava indo à
fazenda Villaret com um propósito especial?
Tudo não passa de um montão de histórias para amedrontar criansinhas,
murmurou, enquanto fechava os olhos.
Horas mais tarde, André acordou e encontrou a vela derretida, quase no
fim- Tinha sido muito distraído em não apagá-la, antes de dormir.
Então, imaginou se, na verdade, não estaria com medo de ficar sozinho na
escuridão. Depois, disse a si mesmo que não era nada disso; apenas
distração, descuido.
Pela janela, que dava para a sacada, podia ver as estrelas. No ar havia
um perfume de flor exótica, um perfume que tornava as noites marcantes.
Foi então que percebeu os tambores.
Estavam próximos, muito mais próximos do que no começo da noite, quando
não teve certeza completa de tê-los ouvido.
Sonolento, tentou imaginar que mensagem estaria enviando.
Devia mesmo acreditar que falavam dele?
Sentindo uma grande curiosidade, levantou-se da cama e foi até a sacada.
Moveu-se com cuidado, pois o soalho não estava seguro e poderia cair.
Agora, ouvia claramente os tambores. Estavam em algum ponto da floresta,
na direção de onde tinham vindo.
Pensou se devia chamar Tomás e perguntar o que significavam os sons. Mas
um sexto sentido, uma certeza interior, lhe disse que o negro não estava
na casa. Encontrava-se sozinho.
Não tinha provas disso; no entanto, sentia tanta certeza, que achou
desnecessário chamar o criado. Voltou para a cama.
Ficou acordado durante um longo tempo, olhando a chama pequenina da vela,
ouvindo, imaginando e sentindo uma grande curiosidade.
André acordou de manhã com o cheiro do café. Minuto depois, Tomás entrou,
trazendo uma caneca. Bebeu, deliciado.
O criado trouxe depois suas roupas, e viu que as botas tinham sido limpas
e engraxadas.
Vestiu uma camisa limpa, comeu ovos, frutas e tomou mais um pouco de
café.
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- Vou procurar comida, m'sieur. Fique aqui.
- Por quê? - perguntou, automaticamente, já sabendo a resposta.
- M'sieur não deve ser visto.
- Concordo. Leve um pouco de dinheiro. Se precisar de mais, é só pedir.
Viu que Tomás não compreendia.
- Não é bom ficar devendo nada. Compre o que precisar, mas se comprar
muitas coisas, os habitantes vão suspeitar de que está morando
na casa.
Tomás fez que sim. Mas André achava que, apesar do criado não querer que
fosse visto no vilarejo, já sabia que todos tinham conhecimento da sua
presença naquela casa, que estivera vazia por tanto tempo.
Não adiantava fazer muitas perguntas, a não ser depois de Tomás saber o
que estava acontecendo na região.
Enquanto o negro se afastava, André saiu sem chapéu e de mangas
arregaçadas. Foi até o jardim.
O sol ficava cada vez mais quente. Entretanto, debaixo das árvores havia
muita sombra. Estava decidido a explorar o máximo possível o local,
obedecendo aos conselhos de Tomás de não se deixar ver.
Era difícil descobrir que plantas eram cultivadas naquele jardim, ou onde
ficava a horta.
Olhou novamente a terra e pensou que a natureza havia se encarregado de
tomar conta do seu território, novamente.
O sol esquentou mais e ele procurou a sombra.
Agora via libélulas batendo as asas sobre orquídeas um pouco diferentes
das que encontraram na floresta.
Caminhou pela sombra, deixando que a beleza do lugar tomasse conta de sua
imaginação. Sentia-se intrigado pelas sensações que aquele lugar lhe
despertava.
Deu alguns passos, chegando a uma espécie de caminho, que se afastava da
casa.
Queria saber onde ia dar.
Então, enquanto se desviava dos galhos de uma imensa árvore, viu, um
pouco adiante, uma figura branca.
Parou onde estava, lembrando as palavras de Tomás.
Percebeu que a pessoa não se mexia.
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Parecia uma freira, usando um hábito branco que pensou ser típico Ao
Haiti-' tinha visto freiras vestidas assim nas ruas de Port-au-Prince.
A roupa dela era branca, mas, em vez do véu tradicional, usava um
turbante branco, que cobria completamente os cabelos e as orelhas.
Surpreso, percebeu que a freira, sentada num tronco caído, não estava
sozinha.
A sua volta, comendo em sua mão, havia uma multidão de pássaros. Eles lhe
bicavam os braços, pousavam em seus ombros e cabeça. Confiavam nela.
O quadro era tão bonito, tão extraordinário, que André prendeu a
respiração, enquanto observava a freira, à distância.
Depois, muito devagar, sem que ela o percebesse, aproximou-se mais.
Escondido pela folhagem dos arbustos e troncos das árvores, ficou bem
perto, observando-a.
Ao olhar seu rosto, voltado para os pássaros, viu que era muito bonita. E
mais: era branca!
Como era possível que houvesse uma mulher branca, vivendo nas terras de
Villaret?
Talvez, por ser freira, tivesse sido poupada.
Entretanto, não lhe parecia que o imperador tivesse alguma consideração
especial por qualquer mulher, mesmo uma religiosa.
Devia ser muito jovem. Não conseguia se lembrar de já ter visto alguém
tão adorável: grandes olhos, nariz reto, queixo delicado e lábios bem
feitos. Tinha um ar de nobreza.
Havia algo de muito delicado em sua beleza. O sangue que corria naquelas
veias devia ser da aristocracia.
Então, quase riu alto.
Que aristocratas havia no Haiti, depois da Revolução? Que brancos tinham
sobrevivido às lutas do imperador? Só os que trabalhavam com munições e
armas, em Port-au-Prince e Lê Cap.
Desejou ser um artista, para poder retratar a beleza da cena à sua
frente.
Os pássaros menores, de penas amarelas, pousavam em suas mãos, Beliscando
o milho ou o que quer que fosse que ela lhes oferecia.
Riu, divertida.
- São muito malcomportados! - Peguem a comida no chão!
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Espalhou alguns grãos, que tirou de uma sacola a seu lado. As libélulas e
beija-flores pareciam não temer os outros pássaros.
André percebeu que ela havia falado no mais puro francês, sem nenhum
sotaque crioulo. Sua voz era suave e delicada.
Colocou mais alguns grãos na palma da mão e a estendeu aos pássaros
menores.
Elas os observava, sorrindo, de um modo que a tornava ainda mais bonita.
André sentiu que devia lhe falar, perguntar quem era, por isso saiu de
seu esconderijo.
Tinha dado apenas dois passos, quando os pássarros perceberam sua
presença e saíram voando, em bandos, para os galhos mais altos das
árvores.
Durante um momento, a freira os seguiu com os olhos, surpresa, Então, viu
André.
Ficou imóvel, como que petrificada, com uma expressão de terror. Depois,
levantou-se de um salto.
- Não mademoiselle, por favor, não se vá - André gritou, mas era tarde.
A freira saiu correndo numa velocidade que o surpreendeu, e perdeu-
se entre os troncos das árvores.
Viu várias vezes o hábito branco aparecer e desaparecer, cada vez
mais longe. Quando chegou ao local onde ela estivera sentada, já não
conseguiu vê-la mais.
- Que pena! Não queria amedrontá-la.
Mesmo detestando ter perdido aquela oportunidade de lhe falar, concordou
que ela tinha razões para sentir medo.
Para ela, não se tratava da aproximação de um homem branco, mas sim de um
mulato, o que era muito diferente.
- Esqueci - ele disse, baixinho - e acho que, estando aqui sozinha e
sabendo o que aconteceu com as mulheres durante a revolução, tem motivos,
não apenas para sentir medo, mas para ficar aterrorizada!
- Preciso encontrá-la outra vez - André falou consigo. Então, lhe veio
outro pensamento.
Se havia uma freira, devia haver outras. E onde há freiras, geralmente há
uma igreja ou um convento.
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Era exatamente isso que procurava. O próximo passo seria em direção
ao tesouro que o tio havia escondido sob a proteção de Deus. Seria um erro,
pensou, seguir imediatamente a freira. Devia dizer a Tomás o que
pretendia fazer?
Voltou para a casa e, meia hora depois, o negro chegou. Vinha carregado
de compras, quatro galinhas vivas e um galo. André sorriu.
- Acho que planeja comer muitos ovos, não é?
- Elas botam, nós comemos - Tomás disse, com uma lógica simples. com uma
pequena quantia em dinheiro, conseguira comprar comida,
pregos, um martelo, utensílios de cozinha, pratos, xícaras, um bule e um
facão, que se parecia com a arma afiada e perigosa que os haitianos
sempre usavam nos canaviais.
Tomás olhou as compras, satisfeito, e André, contente em tê-lo como
ajudante, sorriu.
- Se vamos nos demorar aqui, acho que precisará de mais do que isso.
- Começo com pouco - Tomás disse -, senão as pessoas farão perguntas.
A lógica era irrefutável e André, ansioso por fazer perguntas, começou:
- Sabe se há um convento aqui perto? Pensou que Tomás não tivesse
entendido.
- Freiras. Vi uma freira na floresta.
- Vêm da igreja - disse Tomás.
Apontou na direção para onde a freira tinha fugido e continuou:
- A igreja é lá.
- Então, vamos dar uma olhada. Vá buscar o meu cavalo.
Sentiu que Tomás ia falar algo, dizer que aquilo podia ser um erro, mas
tinha mesmo a intenção de ir e, sabendo como ele se sentia, o criado não
disse nada.
Pegou o cavalo no estábulo e o trouxe. André colocou uma gravata, abotoou
as mangas da camisa e montou.
Tomou a direção em que a freira tinha ido.
No final do atalho, havia uma ligeira subida. Precisava cavalgar devagar,
evitando que o chapéu lhe fosse levado da cabeça pelos ramos mais baixos
das árvores.
Também tinha que tomar cuidado com os troncos caídos.
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Então, antes do que esperava, viu uma construção que parecia uma igreja.
Parou, numa pequena elevação de onde dava para avistar toda a fazenda.
A igreja era construída em pedra e muito antiga. Muito mais velha do que
a casa do tio. Estava coberta de trepadeiras e parecia tão verdt como
tudo que a rodeava.
Entretanto, reparando melhor, viu que, no telhado, havia vários lugares
remendados com madeira.
Isso dava à igreja uma aparência rústica. Devia ter mais de cem anos e,
talvez, por ela ficar ali, o tio tinha escolhido aquele local para
construir a casa.
Desejou poder se lembrar melhor das cartas que o tio escrevia fre
frequentemente para a França.
Tinham sido deixadas para trás, quando a família fugiu para Londres,
durante a Revolução Francesa.
Depois, o pai lhe escrevera, contando a tragédia que lhes sucedera e
receberam poucas cartas em resposta, antes de um silêncio total.
Qualquer que fosse a explicação para as atitudes do tio, quando veio para
o Haiti, agora não importava mais. No momento, André só pensava que tinha
encontrado a igreja onde o dinheiro estava enterrado.
Porém, sentia um certo desânimo. A vegetação cobria tudo, com exceção da
frente, que dava para a floresta.
As raízes se entrelaçavam, dificultando uma escavação naquele local, sem
antes ser feita uma limpeza.
Era um problema sem resposta, no momento.
Chegou até a igreja e, vendo a porta aberta, desmontou e amarrou o
cavalo.
Novamente, olhou em volta. Havia várias cailles abandonadas. Talvez,
antigamente, ali fosse o centro de um vilarejo nativo, de onde todos os
habitantes haviam partido.
Só restava a igreja.
Olhou mais atentamente e descobriu uma construção baixa, quase escondida
por uma árvore imensa.
As paredes eram brancas, como as da casa do tio, mas estavam mais
52
conservadas e tinham vidraças intactas. No centro, uma porta e um sino
de
bronze muito polido.
Devia ser ali que as freiras viviam. Mas elas iriam esperar. Primeiro,
queria visitar a igreja.
Era toda de pedra. No altar, havia murais coloridos, que o deixaram
curioso. Quando ficou na casa de Jacques, viu quadros semelhantes, que,
na Europa, só tinha visto nos museus ingleses.
Tinham cores brilhantes e desenhos rústicos. Porém, possuíam o mesmo
toque que, há séculos, os italianos conseguiram.
Quando demonstrou interesse, Jacques disse:
O Haiti tem uma história de piratas e degoladores, mas, por outro
lado, temos um talento artístico que nunca foi desenvolvido.
- O que quer dizer com isso?
- Alguns mulatos, como eu mesmo, viram quadros em outros lugares do
mundo, que tentam reproduzir aqui. Querem ver o que conseguem, como
artistas. Este é o resultado.
- São muito diferentes e surpreendentes. Apesar de eu não ser um
especialista em arte, acho que têm talento.
- É o que penso. Um dia, vou levar um destes quadros à América do Norte.
Ou então, Kirk poderá levar.
- Duvido que os americanos os apreciem - Kirk respondera. Deixe André
levá-los para a Inglaterra. Ou, melhor ainda, para a França.
Agora, lembrava-se daquela conversa, ao olhar para os murais que se
pareciam muito com os quadros de Jacques: representações primitivas de
santos e anjos, da Virgem Maria, do nascimento de Cristo e da
crucificação.
Os desenhos, apesar de rústicos e exagerados, eram coloridos com
tonalidades brilhantes. Os fiéis deviam se sentir inspirados por eles.
Estava tão distraído, que não percebeu uma freira entrar na igreja e
Parar a seu lado.
- O que procura, meu filho?
Era negra e tão velha, que sua pele parecia pergaminho. Usava um habito
branco, com véu, e um rosário com um enorme crucifixo, na cintura.
Falou calmamente, sem nenhuma preocupação. Mas, olhando-a, André Percebeu
que estava com medo.
53
- Vim rezar, irmã. Olhou novamente os murais.
- Estava admirando as pinturas.
- Quando reformamos nossa igreja, não tivemos dinheiro para enfeitá-la.
Recentemente, uma das irmãs tentou decorar as paredes.
- Quando reformaram a igreja? O que houve com ela?
Pensou que sua pergunta tinha deixado a velha um pouco ansiosa. Ela não
sabia se devia responder ou mandá-lo cuidar da própria vida. Depois de
alguma hesitação, disse:
- Aqueles que estão dominados pela violência nem sempre respeitam a casa
de Deus.
André teve certeza de que a igreja fora danificada na mesma época do
massacre da família Villaret, quando a casa do tio fora arrasada.
- Posso conversar com a senhora, irmã?
- Sobre o quê, meu filho?
- Sobre o que aconteceu aqui e na fazenda Villaret. Deixe-me explicar:
meu nome é André de Villaret e sou filho natural do conde Phillippe.
A freira fez um movimento com a cabeça, como se aceitasse aquela
possibilidade. Depois, disse:
- O conde era um homem generoso e gentil. Construiu uma casa para nós,
quando viemos do norte.
- E quando foi isso?
- Em 1791, quando começaram os levantes. Lembrou-se do que havia lido
sobre a Revolução de Brickman ter!
começado no norte.
- Estávamos em segurança, aqui - a freira disse -, até que nosso
protetor foi morto.
Em sua voz soou uma nota de terror e suas mãos ficaram trémulas,
agarrando depressa o crucifixo, como se ele lhe desse proteção contra as
próprias recordações.
- O que aconteceu à senhora e às outras freiras?
- A maioria escapou, escondendo-se na floresta.
- A maioria?
Durante um momento, ela não pareceu disposta a responder. Então, quase
num murmúrio, falou:
- Eles não deixariam as brancas irem embora.
54
Soube, então, que as freiras brancas tinham sido mortas. Ou sofrido
coisas piores.
Então, como vira aquela freira na floresta? A que fugira correndo?
Ficou em dúvida, se devia mencioná-la, e decidiu que não.
Como se as recordações a enfraquecessem, a velha sentou-se num dos bancos
do coro. André sentou-se ao seu lado.
- Foi uma experiência terrível! - ela disse. - Terrível! Mas, o bom Deus
nos protegeu. Quando tudo acabou, voltamos e encontramos a igreja só um
pouco danificada e nossa casa quase do jeito que a tínhamos deixado.
- Tiveram muita sorte.
- Agradecemos a Deus.
- E agora? O que está acontecendo com vocês?
A freira olhou em direção ao altar. Seguindo seu olhar, André viu que o
altar era entalhado em madeira bruta.
Mesmo sem perguntar, sabia que tudo que a igreja possuíra, de algum
valor, tinha sido roubado.
- Acho que estamos seguras aqui. Henry Christophe é um bom católico, mas
o imperador...
Parou, sabendo que estava sendo indiscreta. Seus lábios tremiam.
- O imperador detesta os brancos e não gosta dos mulatos - André disse -,
mas alguns de nós somos úteis a ele e, por isso, poupou nossas vidas.
Não desejava amedrontá-la ainda mais. Mesmo assim, precisava fazer mais
uma pergunta:
- Na sua ordem, onde imagino que seja a madre superiora, todas são
mulatas ou negras?
Houve um momento de silêncio. Então, com voz calma e sem expressão, ela
respondeu.
- Todas, monsieur!
55
CAPÍTULO IV
André voltou para casa, mergulhado em pensamentos.
Sabia que a madre superiora estava mentindo, mas não conseguira lhe dizer
que havia encontrado uma freira branca, na floresta.
Imaginou que, depois de fugir aterrorizada, a moça devia ter mencionado o
que acontecera. Era de se esperar que nenhuma outra fosse vista nas
vizinhanças.
Entretanto, estava quase certo de que a superiora o olhara, com surpresa
e não com medo. Seus pensamentos não o levavam a parte alguma.
- Mais um quebra-cabecas nesta terra misteriosa - disse a si mesmo.
Tentou visualizar os canaviais, as plantações de banana. No momento,
a terra parecia selvagem, mas devia ter sido muito lucrativa.
Por que o novo imperador ou Henry Christophe não mandaram negros para
continuar cuidando da fazenda?
Lembrou-se de ter ouvido dizer que os escravos, agora livres, não
gostavam da ideia de trabalhar em seus antigos empregos, mesmo que o
patrão fosse outro.
Todo ex-escravo queria uma pequena caille em algum lugar onde pudesse
viver sozinho ou com a família, com pouca terra, onde cultivava uma horta
suficiente apenas para seu sustento.
Entardecia, quando, finalmente, amarrou o cavalo nos fundos da casa, onde
ficavam os estábulos semidestruídos e capazes de abrigar apenas os dois
cavalos, agora.
Entrou e encontrou Tomás arrumando a madeira que iria servir de mesa, com
os novos pratos.
- Não está preparando uma refeição assim tão cedo, está?
56
M'sieur come agora e depois vai encontrar DambaJlah.
Olhou-o, surpreso.
Quer dizer que marcou a cerimónia vodu para esta noite?
Não precisou esperar pela resposta. Sabia, agora, onde Tomás estivera na
noite passada e por que os tambores tinham parecido tão próximos.
Pelo menos, aprenderia alguma coisa sobre o vodu, apesar de não acreditar
muito na ideia otimista de Tomás, querendo resolver todos os problemas
através dos deuses.
Sentia-se suado da cavalgada, foi até o poço e se lavou, tirando vários
baldes de água.
Mais tarde, inspecionou cuidadosamente o corpo, procurando ver se a tinta
estava desbotando. O trabalho de Jacques tinha sido muito eficiente.
Ninguém suspeitaria de que era um branco.
Entendia que, se fosse descoberto na cerimónia de vodu, seria sacrificado
imediatamente.
Vestiu roupas limpas e comeu uma refeição excelente. Mais uma vez,
sentiu-se feliz por Tomás ser um cozinheiro tão bom.
Então, sem mais conversa, o criado trouxe os dois cavalos.
Tomaram o mesmo caminho pelo qual tinham vindo das montanhas.
O céu estava cheio de cores vivas: alaranjado, vinho, verde. Enquanto
viajavam, tudo foi ficando azulado e, depois, cor de ametista.
Morcegos esvoaçaram sobre suas cabeças, perturbando alguns pássaros que
procuravam o ninho.
Então, baixinho, muito longe, sem ter muita certeza do que ouvia, André
percebeu o som de tambores.
O som ficou mais alto e parecia ecoar por todas as árvores e pela
montanha, estendendo-se pela escuridão do vale, que agora era semelhante
a um lago negro a seus pés.
As estrelas começaram a aparecer, brilhando através dos ramos das
árvores. André seguia atrás de Tomás.
Não tinha nenhuma ideia de para onde iam. O criado dirigia o cavalo com
a segurança de quem caminha, mais pelo ouvido do que pelos olhos.
A noite se tornou viva, pulsante, cheia de sons que pareciam levar uma
mensagem, mas André não a entendia.
Já estavam quase no topo da montanha, quando, inesperadamente,
T1
Tomás parou e desmontou.
57
André hesitou, depois fez o mesmo. Sem falar, o negro pegou as rédeas dos
dois cavalos e se afastou.
Amarrou os animais num velho tronco caído e voltou para junto do rapaz.
Seguiram adiante, a pé.
Através da escuridão, André viu luzes fraquinhas, brilhando à distân cia,
enquanto que o som dos tambores aumentava cada vez mais, a ponto da
vibração ser quase insuportável.
Surgiu uma clareira e André parou, quando viu pessoas movendo-se contra
as luzes. Depois, elas se perderam na escuridão.
Tomás percebeu sua hesitação e disse:
- Venha!
Era quase num cochicho. Envergonhado por estar com medo, André o seguiu.
No momento seguinte, estavam na beira da clareira. No centro, havia um
mastro muito alto - ou podia ser uma enorme árvore, André não tinha
certeza. Ao lado, luzinhas brilhavam: eram lamparinas em tigelas de
óleo.
De repente, surgiu um fogo na base do mastro. Agora, vozes humanas se
misturavam ao som dos tambores.
Por um momento, pareceu que aquela multidão gritava com toda força de
seus pulmões, produzindo sons estranhos, como um desafio ao medo e, ao
mesmo tempo, um convite a ele.
André sentiu que Tomás o puxava para o chão. Sentou-se ao lado do negro e
a dança começou.
Achou que a dançarina era uma mamaloi. Depois surgiu um homem vestido
apenas com uma tanga cor de vinho, que começou a traçar no chão
estranhos desenhos, feitos com farinha de milho.
De onde André estava, podia ver claramente os dedos do papaloi fazendo
movimentos rápidos, dando ao desenho uma aparência de serpente.
Apesar de não saber com certeza o significado daquilo, havia lido que, no
início da cerimónia, era feita uma invocação especial aos deuses aos
quais iriam pedir favores.
O canto atingiu o som mais alto, os dançarinos aceleraram os movimentos.
Mesmo os que assistiam, como Tomás e André, moviam o corpo,
instintivamente, seguindo o ritmo dos tambores.
Era uma coisa estranha, estar ali, ouvindo palavras que ele não
58
compreendia, pronunciadas podançarinos que sacudiam os corpos
violentamente, com um abandono quase histérico.
De vez em quando, ouviam um grito diferente, um grito de súplica.
Quando o papaloi terminou o desenho, o ritmo se tornou mais forte e André
teve uma sensação sensual, erótica e, ao mesmo tempo, violenta.
O papaloi entrou na luz da fogueira. Na cabeça, usava um turbante feito
de trapos coloridos, enfeitado com penas de galo.
Era óbvio que estava em transe. Seu corpo todo tremia, assim como o
chicote que trazia nas mãos.
A dança se intensificou e a velha mamatoi começou a levantar e abaixar os
braços. Segurava dois pombos brancos, que se debatiam furiosamente, e
André ficou contente, quando os outros dançarinos esconderam o que
aconteceu em seguida.
Sabia que era um sacrifício aos deuses. Faziam aquilo, antes de pedirem
qualquer coisa. A mamaloi matava as aves a dentadas.
O sacrifício devia ter terminado, pois agora a música diminuía e a
mamaloi, segurando o que restou dos pombos, rodopiava, de modo que todos
pudessem ver a oferenda.
Quando passou dançando perto de André, viu que usava apenas colares
brancos cobrindo o busto. Colares feitos com vértebras de serpente.
De repente, como um rugido, todos gritaram juntos:
- Damballah Weydo! Damballah Weydo!
O clamor das vozes parecia sacudir todos os ramos das árvores. Gritaram
mais uma vez e mais outra. O papaloi bebeu em uma garrafa negra e soprou
uma nuvem branca.
- Aquilo é clarin - Tomás murmurou.
André sabia que se tratava de um rum branco nativo, muito forte, capaz,
não apenas de queimar o estômago de um homem, mas também sua mente.
O papaloi se aproximou deles, rodopiando e tremendo tanto que parecia não
ter controle sobre o próprio corpo.
Depois se afastou, caiu de joelhos e começou a murmurar alguma coisa.
Uma mulher saiu do meio das dançarinas e veio para o seu lado. Uepois,
atirou sobre ele algo que parecia um cobertor grosso de lã. Cobriu-lhe
primeiro os pés, depois o corpo trémulo e, finalmente, a cabeça.
59
Todas as vozes silenciaram e o som dos tambores diminuiu tornando se
apenas um murmúrio.
A figura enrolada no chão foi ficando mais e mais achatada. Durante um
momento, ficou imóvel. Então, o cobertor começou a se mexer. A princípio,
era quase imperceptível; depois, o movimento ficou mais e mais aparente.
O fogo diminuiu, quase desaparecendo. André não conseguia ver bem Uma mão
apareceu na extremidade do cobertor; mesmo assim, ele não tinha certeza
do que era.
Parecia mais a cabeça de uma cobra e se movia com uma graça quase
sensual.
Vagarosamente, saindo da escuridão, surgiu uma figura, que devia ser de
um homem, do próprio papaloi. Só que, agora, apesar de conservar a
aparência humana, ele parecia não ter ossos: seu corpo possuía a
sinuosidade de uma serpente.
- Fui hipnotizado - pensou.
Não conseguia desviar os olhos da figura que aparecia à luz bruxuleante
da fogueira e das poucas lamparinas. Era inacreditável, mas aquele corpo
deixara de ser o de um homem.
Então, da escuridão, veio uma voz.
- Está aqui, André. Isso é bom! O rapaz ficou tenso.
Devia estar sonhando. As palavras eram em francês e a voz era... de seu
tio.
- Vai encontrar o que procura - a voz disse -, porque Sãona lhe mostrará.
Sãona sabe onde está escondido... Sãona... Sãona...
A voz foi sumindo, seguida pela batida dos tambores.
Agora o papaloi-cobra já não estava mais de pé, e sim de costas no chão,
coberto pelo cobertor. Sua mão desapareceu por último e ainda parecia a
cabeça de uma serpente.
André achou que não conseguiria respirar. Então, as danças começaram
outra vez, o som dos tambores aumentou e o fogo duplicou de tamanho Um
homem começou a subir no mastro, gritando, como se estivesse em êxtase.
André ficou sentado, imóvel, olhando o que acontecia e, ao mesmo tempo
60
esforcando-se a pensar com clareza e descobrir se o que havia
ouvido não era produto da sua imaginação.
Era a voz do tio, seu tio, falando um pouco rouco, mas muito autoritário
e com as palavras educadas dos franceses nobres.
Seria impossível que um daqueles negros seminus, reunidos ali para
realizar um ritual tão antigo e primitivo, fosse capaz de falar daquele
jeito.
O papaloi levantou-se. Veio até André e estendeu a mão.
Compreendeu e cumprimentou-o. Então, o papaloi virou-se para Tomás e fez
a mesma coisa, mas de um modo diferente, usando um gesto que, mais tarde,
André soube que era um sinal secreto entre os praticantes de vodu.
Depois, disse algo que ele não ouviu e dirigiu-se a um outro homem
sentado ali perto.
Tomás tocou André no braço.
- Vamos m'sieur.
Levantou-se, relutante. Queria ficar, queria ouvir mais, queria se
convencer de que o que acontecera ali era verdade.
Viu que as danças se tornavam mais frenéticas. Um homem atirou ao chão
uma mulher e cobriu-a com o corpo.
Tomás puxou André e o levou para fora da floresta, caminhando com
segurança em direção ao local onde tinham deixado os cavalos.
Só então, o rapaz conseguiu falar.
- Ouviu o que ele disse, Tomás?
- Não, m'sieur, não ouvi nada.
- Não ouviu nada? Mas tem que ter ouvido! O papaloi, quando saiu de
debaixo do cobertor, falou comigo.
Tomás soltou os cavalos.
- Não ouvi nada, m'seur,
André montou. Não adiantava conversar. Seguiu Tomás em direção à
Planície.
Só quando não havia mais árvores gigantescas à sua volta, o criado falou:
- M'sieur foi abençoado por Damballah. Damballah vai ajudar.
- Se não ouviu nada, como sabe?
61
- O papaloi disse que m'sieur está sob a proteção de Damballa Agora, tudo
estará bem.
- Não percebeu que o papaloi falou comigo sobre o tesouro qUl procuro?
- Damballah fala ao coração, m'sieur. Aquela era a resposta, pensou
André.
Agora, acreditava que Tomás não tinha ouvido nada. Seu instinto lhe dizia
que a voz do tio só havia sido ouvida por ele.
Como era possível? Como um homem civilizado podia acreditar que aquela
voz vinha de um morto?
Lutou contra sua convicção interior de que aqueles acontecimentos eram
verdadeiros. Seria possível?
Era algo espantoso demais para compreender.
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  • 1. Título: A deusa Vencida. Autora: Barbara Cartland. Dados da Edição: Livros Abril, São Paulo. Título Original: The Drums of Love Género: romance. Digitalização: Dores cunha. Correcção: Edith Suli Estado da Obra: Corrigida. Numeração de Página: Rodapé. Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. é a autora romântica mais conhecida e lida em todo o mundo. Seu jeito insuperável de juntar amor, colorido e suspense conquistou o entusiasmo de milhões de leitores. "Eu dou ao público romance, ilusão e beleza... tudo o que ele secretamente procurar. Adeusa vencida Contracapa: Os tambores do vodu ecoavam pela floresta, avisando do perigo, enquanto André e Sãona fugiam dos soldados do general Dessalines, sedentos de sangue. A não ser que conseguissem despistar seus perseguidores, seriam torturados e mortos. Desde que chegara ao Haiti, para procurar um tesouro enterrado por seu tio, o conde André de Villaret tinha sido protegido pelos deuses nativos. Disfarçado, atravessou a ilha, dominada pelos ex-escravos que haviam massacrado os colonizadores franceses. Mas agora precisava de toda a ajuda de Damballah, o deus-serpente, para salvar sua maior riqueza: a vida da mulher a quem amava (fim da contracapa). NOTA DA AUTORA Quando visitei o Haiti, conheci Katherine Dunham, uma das pessoas que mais entende sobre o culto vodu, naquele país. Ela é uma famosa bailarina negra, atualmente aposentada, que possui um templo de vodu no jardim de sua casa, e me levou para assistir a uma cerimónia. Ou, pelo menos, parte dela, pois o final só é permitido ser presenciado pelos iniciados. Achei as danças magníficas e os tambores pareciam me hipnotizar. E nesta história, descrevo tudo o que vi, do modo mais verdadeiro possível. No Haiti, o vodu agora é permitido por lei e praticado, segundo me disseram, por sessenta por cento da população. CAPÍTULO I 1805 - Estamos chegando! Kirk Homer levantou-se e caminhou até a luneta, observando a cidade de Port-au-Prínce, no Haiti, cheia de pequenos barcos ancorados no porto, alguns navios, mas nada tão grande como a escuna americana em que viajavam. - Agora, começa minha aventura! - uma voz disse atrás dele. Kirk, um americano alto e de rosto quadrado virou-se e olhou quem falava. - Mude de ideia, André - ele pediu. - Volte para Boston comigo. Está cometendo um erro do qual se arrependerá amargamente. Isto é, se continuar vivo, para se arrepender de alguma coisa. - Já passamos por isso antes - André de Villaret respondeu - e a
  • 2. alternativa entre seguir adiante e viver na miséria o resto da minha vida é uma motivação bem forte. - É loucura! Absoluta loucura! - Kirk Horner protestou. - Mas acho que devo ajudá-lo, apesar disso tudo ser contra os meus princípios. - Você prometeu me ajudar, antes de subirmos a bordo, e estou cobrando a promessa. E agora, o que faremos? Kirk virou-se novamente e olhou pela luneta. Além do porto, estava a cidade e, além dela, as montanhas roxas e azuis, escuras e ameaçadoras, mesmo à brilhante luz do sol. Todo o resto era verde, de um verde tão profundo que parecia cintilar. As casinhas brancas, vistas à distância, davam a impressão de ter luz própria. - O que quero que faça - Kirk disse -, é ficar aqui, a bordo, até que eu entre em contato com a única pessoa que acho que pode ajudá-lo nessa maluca caça ao tesouro. - E quem é? - Ele se chama Jacques Déjean e é mulato. André já tinha visto mulatos nos Estados Unidos e Kirk lhe contara que, no Haiti, os mulatos e os negros se desprezavam, quase tanto quanto odiavam os brancos. Kirk disse também que, para um francês, era pura loucura tentar entrar no país, naquele momento. Jean-Jacques Dessalines, comandante-em-chefe do Exército haitiano havia massacrado cruelmente os fazendeiros franceses e todos os brancos da ilha e, no ano anterior, se fez coroado imperador. Uma de suas primeiras providências foi desenhar novos uniformes para os soldados. Dois mil uniformes foram encomendados a uma firma de Boston e estavam a bordo da escuna em que André de Villaret e seu amigo Kirk Horner viajavam. Kirk havia sido comissionado para mandar um relatório secreto ao presidente norte-americano, contando as condições atuais da ilha. Os americanos pretendiam entrar novamente no mercado, do qual tinham sido expulsos, no tempo da dominação francesa, pelo general Leclerc, cunhado de Napoleão Bonaparte. Na época, o vice-cônsul francês, em Filadélfia, protestou violentamente contra os americanos, não apenas por estes comercializarem com o Exército de Dessalines, mandando armas e munições, como também por estarem enviando negros americanos para lutar junto com os rebeldes e contra os espanhóis e franceses. Tudo isso era pago em algodão, cobre, madeira e até mesmo em dinheiro. As reservas de prata de Dessalines eram consideráveis. A ilha havia ficado tão arrasada, que dificilmente os outros países compreenderiam o que estava acontecendo. Kirk Horner, que estivera no Haiti há dois anos, esperava descobrir o que tinha mudado sob o reinado de Dessalines. Por isso, temia pela vida do amigo, André de Villaret. Os dois se conheciam há muito tempo e Kirk sempre ficava na casa da família de André, quando visitava a Inglaterra. Talvez tivessem sido suas descrições do Haiti que, a princípio despertaram o interesse do amigo pela ilha. Isso, além do fato de André ter tido um tio lá, fazendeiro muito rico, morto durante o primeiro levante da revolução, em 1791. Foi Kirk quem escreveu a André, contando o assassinato do velho e de seus três filhos. Ficou atónito, quando, há dois meses, o amigo apareceu em Boston, pedindo sua ajuda para entrar na ilha. - Impossível. Jean Jacques Dessalines jurou matar todos os brancos que encontrar. Ele tem um ódio fanático de brancos. Não dou um tostão pela sua vida, se puser os pés no Haiti. Descreveu Dessalines ao amigo. - Ele não é alto, mas parece um gorila. Tem ombros largos e um pescoço muito grosso. Os lábios são grossos também e as narinas, muito abertas. Tem o nariz chato, a testa baixa e o cabelo quase nasce junto às
  • 3. sobrancelhas. - Não parece muito atraente! - André comentou, rindo. - Não é assunto para piadas. Ele espalha o terror por todo o país. Seu próprio povo passa por períodos de histeria. Uns suspeitam dos outros e só conversam sobre morte e destruição. - Já ouvi contar que ele se comporta de modo diabólico. Promete proteção aos brancos, se se entregarem, e depois mata aqueles que confiaram na promessa. - As ruas, em Jeremie, estão manchadas de sangue. Ele matou lá quatrocentos e cinquenta homens e crianças - Kirk respondeu. - Até Christophe, seu comandante-em-chefe, está apavorado com tanta selvageria. Fez uma pausa, enquanto o outro meditava no que tinha ouvido. - Não é de espantar que o presidente dos Estados Unidos tenha ficado preocupado ao ler o ato de independência de Dessalines. Veja o que ele escreveu: "Para assinarmos esta declaração, precisamos da pele dos homens brancos, dos seus crânios e do seu sangue. A baioneta será a nossa pena. " - Está me deixando arrepiado - André interrompeu -, mas continuo decidido a descobrir o tesouro que tio Phillippe enterrou em sua fazenda. Kirk sabia que aquele era o único objetivo da viagem do amigo. Seu avô tinha três filhos. François, o pai de André, era o mais novo. Percebendo que as coisas não estavam boas na França, e vendo a insatisfação crescer entre os camponeses, Phillippe, o segundo filho, partiu para o Haiti por volta de 1770, para começar ali uma vida nova. Sempre escrevia para casa, contando aos parentes que estava se transformando em um homem muito rico, pois o algodão e o café, que cultivava, conseguiam bons preços em todo o Novo Mundo. Então, aconteceu a Revolução Francesa. O conde de Villaret e seu filho mais velho foram mortos na guilhotina. Isto significou que Phillippe de Villaret tio de André se tornou o chefe da família e herdou o título de conde, enquanto que seu irmão mais novo, François, a esposa inglesa e o filho, André, fugiam para a Inglaterra. Mas François não tinha muito dinheiro. Só conseguiam viver com algum conforto, graças à gentileza dos parentes da mulher. com o assassinato do tio, no Haiti, e a morte do pai, um ano antes, André se tornou o conde de Villaret, sem nenhum dinheiro para acompanhar esse título tão antigo e pomposo. Foi então que decidiu ler cuidadosamente as últimas cartas do tio Phillippe. Na última, escrita poucos meses antes do massacre, encontrou algo que parecia muito significativo: "As coisas estão ficando horríveis por aqui. Todos os dias, ouvimos falar de terríveis atrocidades que sucedem nas fazendas de meus amigos. Os homens não apenas perdem a vida, mas são torturados e mutilados. As mulheres são estupradas ou enviadas como escravas para as fazendas, que agora estão sendo administradas pelos próprios negros. Fazemos planos para fugir. Depois os rasgamos, pois não queremos chamar atenção sobre nós, a fim de não precipitarmos um destino que parece cada vez mais próximo. " Então, havia aquela frase, que André leu muitas e muitas vezes: "Só confio na terra e, naturalmente, na proteção da sombra de Deus. " - Isto - André disse a Kirk, ao lhe mostrar a carta - é uma mensagem 10 perfeita e clara, dizendo ao meu pai onde ele escondeu o dinheiro. Acredito que esteja tudo enterrado, próximo da igreja. - Pode ser. Todos os fazendeiros enterraram seu dinheiro e outros bens que possuíam. Dessalines sabe muito bem disso e, torturou-os antes de matá-los. Contaram-me que conseguiu desenterrar muitas riquezas das diversas fazendas. Fez uma pausa, antes de continuar: - Quando Dessalines saiu de Jeremie, levou cinco mulas carregadas de pratarias e outros valores. Mas ouvi dizer que isso nem se compara ao que pilhou em Aux Cayes. Grande parte destes tesouros foi achada, enterrada.
  • 4. - Preciso tentar uma busca - André disse. - Afinal, sempre fui um otimista. - Os otimistas também morrem, como milhares de patrícios seus já morreram lá. Então, ele sorriu: - Mas tem sorte de não parecer francês. - Esqueceu que minha mãe era inglesa? Não havia dúvidas, o amigo pensou, de que a condessa de Villaret transmitira ao filho todas as características dos homens de sua família: ombros largos, quadris estreitos e um corpo atlético, semelhante ao dos melhores amigos do príncipe de Gales. André era também muito forte. Mas, Kirk sabia, isto não iria salvá-lo no Haiti, pois tinha a pele branca. Virou-se para olhar novamente o porto e disse: - com um pouco de sorte, podemos trazer a bordo o meu amigo Jacques Déjean. Ele está me esperando. Ou, pelo menos, deve estar, há dois meses. - Tem amigos em toda parte - André disse de bom humor. - Preciso deles, no mundo em que trabalho. - O que está dizendo, na verdade, é que precisa de espiões, para lhe contarem os últimos acontecimentos - André comentou. - Mas não me importo, contanto que esses seus amigos sejam capazes de ajudar. - Você é um grande egoísta! Era típico do amigo nunca desistir, quando metia uma ideia na cabeça. 11 Saiu da cabine e André sentou-se, olhando o porto pela escotilha, com uma expressão obstinada. Tinha lutado, não apenas com a mãe, que se opôs àquela expedição, mas também com Kirk. Os dois discutiram durante um dia inteiro, antes que se decidisse a ajudá-lo. Entretanto, era realista: sabia muito bem que suas chances de sucesso seriam poucas. Toda a história da revolta de escravos no Haiti, o incêndio da cidade de Lê Cap, quando o general Leclerc tentou descer lá, a morte de Leclerc, atacado por febre amarela, e o ressurgimento da guerra entre a França e a Inglaterra, tinham sido acontecimentos catastróficos para os franceses. Pelo que André ouvira, sobre o tratamento dado pelos fazendeiros aos seus escravos, a revolta começaria cedo ou tarde. Os escravos tiveram a sorte de conseguir dois líderes brilhantes: JeanJacques Dessalines e Henry Christophe. Dessalines podia ser brutal e sádico, mas era também um soldado corajoso e experiente. Christophe, muito mais gentil e razoável, havia poupado a vida de alguns franceses que tratavam bem os negros e, principalmente, os padres e médicos. Entretanto, noventa por cento da população francesa foi massacrada por Dessalines, que ainda matava e torturava todos os brancos que encontrava. André respirou fundo. - Se eu morrer... morri! - disse a si mesmo. - Ainda assim, acho que vale a pena arriscar. Se não der certo, o meu sangue se misturará ao de meus compatriotas. A porta da cabine se abriu e Kirk apareceu. - Boas notícias! Jacques Déjean já está a bordo. Agora, poderá conhecê- lo. Um homem entrou e André olhou-o atentamente, sabendo que quase tudo dependeria dele. A pele de Jacques Déjean era quase dourada. Se André o encontrasse na Inglaterra, pensaria que estava bronzeado. Seus traços eram europeus, mas o cabelo era negro, encarapinhado demais, e os olhos, muito escuros. Vestia-se com a mesma elegância de Kirk e André. Usava uma gravata 12 de musseline muito em moda e o casaco, azul-claro, tinha um caimento perfeito. - Jacques - Kirk disse -, este é o meu amigo André, que precisa dá sua ajuda. Já disse a ele que você não recusará sua assistência. - Seus amigos são meus amigos - o mulato respondeu. - Sabe que estou à
  • 5. sua completa disposição. Tinha um modo exagerado de falar, e André refletiu se devia mesmo confiar naquele homem. Kirk tinha certeza de que sim. Como se entendesse as suspeitas do amigo, apressou-se a esclarecer: - Uma vez, no mar bravio, salvei a vida de Jacques. Ele jurou me ajudar sempre que pudesse, e nunca quebra suas promessas. - É verdade. E então, monsieur, em que posso ajudá-lo? André e Kirk ficaram espantados. Aquela palavra lhes dizia que, sem lhe falarem nada, Jacques havia descoberto que estava diante de um francês. Kirk foi até a porta da cabine, verificar se estava trancada. Então, perguntou: - A nacionalidade do meu amigo é assim tão óbvia? - O fato de ele precisar da minha ajuda e não ter saído ao meu encontro me fez suspeitar. Quando o vi, tive certeza de não se tratar de um americano. André riu. - Pretendia dizer que era inglês. Na verdade, sou meio inglês. - Metade do meu sangue é branca - Jacques respondeu -, mas os brancos nunca me aceitaram, a não ser quando precisam usar os meus serviços. Não falou com amargura. Estava apenas expondo um fato. - Muito bem, admito que sou francês. Meu nome, que Kirk não lhe disse, é André de Villaret. O mulato pensou por um momento, e então disse: - É parente do Villaret cuja fazenda ficava nas Montanhas Negras? - sim. - Ele esta morto. - Foi o que Kirk me disse, há dois anos. 13 - Então, por que veio aqui? André decidiu dizer a verdade, sentindo que nada teria a perder. - Acredito que meu tio enterrou dinheiro em alguma parte da fazenda. Os filhos dele morreram também e agora sou o chefe da família. Este dinheiro me pertence. - Terá muita sorte, se o nosso nobre imperador o deixou lá, esperando por você. - Temos algum modo de descobrir se ele o achou? - André perguntou. - Se não tiver achado, quero ir à fazenda Villaret. - Quer! Mas não é fácil. Acredite-me, vai ser muito difícil fazer qualquer destas duas coisas. - Ora, Jacques - Kirk interrompeu -, sabe, tão bem quanto eu, que, se alguém pode ajudar André, este alguém é você. Deve haver um jeito de descobrirmos o que Dessalines escavou e onde. Soube que ele tem muitos tesouros guardados nas montanhas. - É verdade, mas ele não sabe escrever, não sabe fazer contas e duvido de que confie em alguém para realizar um levantamento dos tesouros que trouxe. André deu de ombros, como se achasse que estavam num beco sem saída. Então, Jacques disse: - Só uma pessoa sabe o que há no cofre de Dessalines e se isso inclui o que veio da fazenda Villaret. - Quem é? - Kirk perguntou. - Orchis. - Orchis? Ela está aqui em Port-au-Prince? Jacques fez que sim. - Ela se instalou na mansão Leclerc e imita a irmã de Napoleão Bonaparte, aquela que foi casada com o general Leclerc, que voltou à Europa depois da morte dele. E agora Orchis imita Sua Alteza Imperial Pauline Borghese. - Não consigo acreditar! - Quem é Orchis? - André interrompeu. Kirk riu. - Se ficar algum tempo no Haiti, logo ouvirá falar de Orchis!
  • 6. - Quem é ela? 14 - É uma das amantes de Dessalines - Kirk explicou. - Ele tem umas vinte, mas todos dizem que Orchis é a favorita. Alguns acham mesmo que é ela quem controla o próprio tesouro. Jacques começou a rir. - Esta descrição é excelente, meu amigo - comentou -, mas as extravagâncias de Orchis aumentam a cada ano. Agora, ela quer ser coroada imperatriz. Só que Dessalines tem uma esposa! Entretanto, apesar da falta de respeitabilidade, ela desempenha brilhantemente o papel da princesa Pauline. - Você disse que ela se mudou para a mansão Leclerc? - Kirk perguntou. - Recebe seus admiradores lá na hora do café da manhã e à noite. É quando monsieur de Villaret poderá encontrá-la. - Pensei que isso fosse impossível - Kirk disse. - Claro que é... se se apresentar com o verdadeiro nome. Mas, se pretende sair de Port-au-Prince em direção ao interior do país, não pode desembarcar como um homem branco. André e Kirk olharam-no, espantados. - Os poucos brancos que há em Port-au-Prince são americanos que trabalham com as armas e munições. São apenas tolerados por Dessalines. Se sair da cidade com esta pele branca, estará fazendo um convite à morte, logo nos primeiros quilómetros de estrada. - Então, o que sugere? - Kirk perguntou. Jacques examinou André dos pés à cabeça. - Vai dar um bonito mulato! - Um mulato! - Felizmente, o seu cabelo é escuro - Jacques disse. - Precisamos apenas cortá-lo um pouco. Se tivesse olhos azuis ou cinzentos, tudo seria mais difícil. Mas são escuros o suficiente, monsieur, e combinam com uma pele da cor da minha. - Devo dizer que nunca pensei em me disfarçar. - Então, morrerá! E se Dessalines e seus seguidores estiverem envolvidos no acontecimento, posso-lhe adiantar que não será uma morte agradável! - Compreendo! - André disse, rapidamente. 15 Lembrou-se das atrocidades sofridas, não apenas pelos franceses, mas também por alguns mulatos. Certa vez, Dessalines chamou um homem ao seu quarto e, enquanto conversavam, esfaqueou-o no coração. Jacques Déjean estava certo, pensou. Precisava se disfarçar, para que ninguém, no Haiti, suspeitasse de que era branco e, principalmente, francês. - Agora vou para casa - Jacques disse - e voltou com a tinta de uma certa árvore. Ela é exatamente o que você precisa para disfarçar sua cor. Sugiro também, monsieur, que escolha roupas bem espalhafatosas e complicadas. Nós, mulatos, gostamos de aparecer! Dirigiu-se à porta e perguntou: - Sabe um pouco da língua nativa? - Estive aprendendo, neste último ano - André respondeu. - Só sei o que li em livros. Mas um mulato a bordo deu-me algumas aulas. - Isto é ótimo. Os mulatos são sempre, como Kirk pode lhe dizer, extremamente educados. Tenho muitos diplomas para provar minha inteligência, mas prefiro confiar mais no instinto. André riu e Jacques saiu da cabine. Depois, sentou-se para esperar, pacientemente, a volta do outro. Já era quase noite, quando dois mulatos desceram da escuna americana. André fora completamente pintado com uma tinta que cheirava terrivelmente mal. - Algum tempo depois de aplicada no corpo - Jacques disse -, o cheiro desaparece. Mas não precisa apenas de uma pele escura para o seu disfarce. Tem que mudar o seu modo de pensar. Pela primeira vez, havia uma certa amargura na voz de Jacques. - Os mulatos foram subjugados continuamente pelos brancos, o que os fez passar, definitivamente, para o lado dos negros.
  • 7. - Ouvi falar sobre isso - André disse. - Os negros nunca nos apreciaram nem confiam em nós, mas, como temos uma educação superior e, em muitos casos, chegamos a posições importantes, eles nos acham úteis. Ao mesmo tempo, vivemos em um território estranho, entre os brancos e os negros, o que não é uma posição agradável. - Compreendo, e agradeço muito por me ajudar. 16 Enquanto conversavam, André era coberto, de cima a baixo, com a tinta que agora evaporava. Olhou-se no espelho, com ar crítico. Não restava dúvida de que aquilo tinha alterado sua aparência. Já vira homens tão bronzeados como estava agora. Imaginou se ninguém desconfiaria. Como se Jacques percebesse suas dúvidas, esclareceu-as: Coloque-se no papel. Você é um mulato. . . sempre um pouco inseguro, sempre na defensiva. Sorriu e continuou: - Pense no que os americanos dizem: "uma sombra por trás dos ombros". Os mulatos são assim. - E de onde eu vim? Qual é a minha história? - Nasceu no Haiti, mas estudou nos Estados Unidos. O seu nome é André. Não precisa mudá-lo. Acho também que pode dizer ser um Villaret. Afinal, o seu pai era um homem branco e você tem o nome dele, e não o de sua mãe. - Está sugerindo que eu diga ser filho de Phillippe de Villaret, que na verdade era meu tio. - Por que não? Assim, se fizer perguntas sobre a fazenda Villaret. todos compreenderão sua curiosidade. Sendo mulato, não provocará muito alarde. - Isso foi, realmente, muito inteligente - Kirk disse. Ele havia entrado no quarto, e viu André terminar o disfarce. - Muito inteligente! - André concordou. - Obrigado, Jacques. - Tudo que tem a fazer agora é levar a coisa adiante - Jacques disse. - Está por sua conta. - O que faço agora? - Vamos descer em terra. Você diz que esteve na América e acaba de regressar. Isto lhe possibilita fazer muitas perguntas sobre o que aconteceu por aqui, durante a sua ausência. Fez uma pausa e depois disse: - Ainda não conhece Orchis, mas já ouviu falar dela. Orchis só passou a dominar Port-au-Prince depois que se mudou para a mansão Leclerc. - Foi Dessalines quem a instalou lá? - Kirk perguntou. 17 - Acho que ela mesma se instalou - Jacques respondeu. - Está determinada a se transformar em uma grande dama. Se o vodu funcionar, a esposa de Dessalines pode até morrer. Neste caso, Orchis subirá ao trono. Pelo menos, é o que ela pensa. - Dessalines é muito apaixonado por ela? - Ele gosta das mulheres educadas, sofisticadas e experientes, Kirk. Orchis é tudo isso. Tem também todos os deuses a seu favor e eles são muito poderosos. - Está falando do vodu? - André perguntou. - Que mais poderia ser? - Pensei que fosse proibido. - E é. Tanto Dessalines quanto Christophe o condenam. Dizem que são restos da servidão, religião de escravos. - Mas continuam a praticá-lo. - Claro que continuam! - Jacques respondeu. - O vodu é parte de todo negro, é parte de todos os que vivem no Haiti. Não conseguem viver sem ele. Está presente também na mente dos católicos. Não se sabe dizer onde o vodu termina e começa o catolicismo. - Você me espanta! - Aprenderá depressa, monsieur. Agora, vamos procurar madame Orchis. Você verá que ela parece uma serpente, mas tem um rosto bonito. André se despediu de Kirk e desceu em terra, com uma sensação de irresponsabilidade e excitação. Ali começava sua grande aventura. Era onde ia testar sua vontade contra a do tirano e seus seguidores.
  • 8. Ficara contente, ao saber que Dessalines estava ausente, liderando um ataque militar na região dominada pelos espanhóis. - Ele vencerá? - Kirk perguntou, quando Jacques lhe disse onde estava o imperador. - Duvido. Os espanhóis estão muito bem entrincheirados e são bons guerreiros. - E se ele falhar? - Sem dúvida, tentará novamente, com mais armas americanas e melhores canhões. Então, talvez consiga vencer. Enquanto permaneceram a bordo, Jacques tinha sido muito espontâneo em tudo que falava, sem ter medo de fazer comentários sobre o 18 recém-coroado imperador. Mas, logo ao descerem em terra, André percebeu que ele estava em guarda. Tomaram uma carruagem e, temendo que o cocheiro ouvisse a conversa, Jacques falou apenas sobre assuntos triviais. Dirigiram-se a uma rua estreita, cheia de casas de madeira. Pararam na casa de Jacques, onde André deixou a bagagem. Era uma residência grande, de madeira, toda pintada de verde. - Port-au-Prince está ficando em moda - ele disse -, mas, como todos temem uma revanche dos franceses, não gastam dinheiro em nada que possa ser destruído por um tiro de canhão. André sabia que ele se referia ao fato de Christophe ter destruído completamente Lê Cap, o porto do outro lado da ilha, quando a armada francesa se aproximou. O general Leclerc encontrou a cidade em ruínas, toda queimada. Contava-se que sua esposa, Pauline Bonaparte, tinha chorado ao ver aquilo. Entretanto, ela logo se consolou, com uma bonita casa em Port-auPrince: a mansão Leclerc, onde agora Orchis vivia. Quando a carruagem em que iam passou por impressionantes portões de ferro, entraram em uma alameda cercada dos dois lados por uma espessa vegetação tropical. À frente, André viu uma casa imensa, de pedras cinzentas e pilares em toda a frente. Antes, a guarda usava uniforme branco e vermelho, como os franceses. Agora, só havia mulatos em roupas complicadas, cor de vinho, que de modo educado lhes davam as boas-vindas e os conduziam aos aposentos da madame. Jacques cochichou que Pauline achara os mulatos muito mais bonitos e interessantes do que os oficiais franceses. Por isso, Orchis também só tinha empregados mulatos. No tempo de Pauline, eles usavam um uniforme desenhado pela própria madame Leclerc, muito justo, de modo a ressaltar ainda mais os seus encantos. André viu que Orchis seguia o exemplo da princesa. Desceram vários degraus. Sob um pórtico grego, sustentado por colunas e se encontraram caminhando ao lado de uma piscina octogonal, onde avia um chafariz de água cristalina. A decoração era composta por arbustos e árvores altas. Duas portas 19 de madeira entalhadas se abriram e ambos foram conduzidos à presença de Orchis. O aposento era todo enfeitado por colunas e janelas sem cortinas, por onde entrava um ar quente e úmido. O ambiente se dividia em duas partes. Numa extremidade, elevada a meio metro do solo, ficava uma enorme cama, em forma de cisne, cheia de almofadas de cetim e renda. Orchis estava deitada, usando um robe de chiffon amarelo pálido, transparente o suficiente para revelar os bicos escuros dos seios. Perto da cama, havia bancos de mogno pesado, no estilo napoleônico, onde se acomodava quase uma dúzia de homens. A maioria era negra. Havia, entretanto, alguns mulatos, quase todos usando os uniformes bordados do Exército do imperador. Todos se comportavam de modo subserviente e atencioso. Empurravam-se uns aos outros, na tentativa de chegar mais próximos ao leito dela, atrair sua atenção e demonstrar admiração. Como se gostasse de novidades no seu círculo de admiradores, Orchis ficou
  • 9. contente ao ver Jacques. Chamou-o pelo nome e lhe estendeu a mão. Ele se aproximou do leito, seguido por André, que agora podia vê-la de perto. Orchis não era nada do que havia esperado. Na verdade, tratava-se de uma mulher exótica e diferente, como seu próprio nome. Nunca imaginou que alguém fosse ao mesmo tempo tão bonita e tivesse uma expressão tão diabólica. Seus braços nus, seu rosto, tudo que aparecia do seu corpo era de um tom dourado suave. Os lábios cheios, vermelhos, eram provocantes e, ao mesmo tempo, misteriosos. Os olhos verdes pareciam cheios de segredos, exigentes e possessivos. Quando olhava um homem, penetrava profundamente em seu coração, para mantê-lo cativo. Tudo nela era sedutor e sensual. Era uma felina... um animal primitivo e selvagem da floresta, tentadora como a serpente no jardim do Éden. - Jacques! - ela disse, de um modo que mais parecia uma carícia. - Por que demorou tanto para vir me ver? - Fui a Lê Cap. Mas, agora que voltei, trouxe alguém que ainda não conhece e que lhe pode contar as últimas novidades da América. 20 - América! Pousou os olhos em André e ele se sentiu despido. Obviamente, ficou contente com o que viu, pois lhe estendeu a mão, dizendo: - Precisa me contar qual é a última moda e quantos novos milionários há naquele próspero país. - Há muitas coisas que gostaria de lhe contar. Orchis olhou-o por baixo dos cílios, como se o estivesse avaliando. Então, de repente, bateu palmas e, com ar de rainha, disse: - Saiam... vocês todos! Tenho que discutir algumas coisas em particular com estes amigos e vocês fazem barulho demais. Saiam! - Como pode ser tão cruel, madame? - um oficial perguntou. Usava tantas ombreiras de ouro que seus ombros pareciam artificialmente altos e largos. - Algum dia fui cruel com você, Réné? Venha amanhã e, talvez, eu o receba a sós. Não havia dúvidas do que ela queria dizer com aquele convite. Réné ficou entusiasmado com a honra. Beijou os dedos dela e todos saíram, sem ousar desobedecer. Orchis ficou sozinha com André e Jacques. - Sentem-se, mês braves. Querem vinho? - Você já me sobe à cabeça, Orchis. Não preciso de vinho - Jacques respondeu, galante. - Está sempre elogiando e, geralmente, sem sinceridade - Orchis respondeu. - O que fez com aquela pequena poule que tomou meu lugar no seu coração? - Ninguém nunca conseguiu isso - Jacques protestou. - Enquanto estive fora, ela encontrou outro protetor, um general. Não posso me comparar com ele. Falou de um modo que fez Orchis rir divertida. Depois, virou-se para André e disse: - Não acha uma boa ideia usar o uniforme dos no dos haitianos? - Sou um homem de negócios. - E, falando em uniformes - Jacques interrompeu, chegou da América com os dois mil uniformes que o imperador encomendou. 21 - Chegaram? Jean-Jacques vai adorar! Espero que os recebamos a tempo de comemorar a vitória sobre os espanhóis. - Uma batalha não revela toda a beleza dos uniformes - Jacques disse. - É melhor guardá-los para a celebração. - Naturalmente. Só espero que os uniformes desenhados pelo imperador sejam tão bonitos quanto ele os imagina. Caso contrário, certas cabeças rolarão. Jacques estendeu as mãos.
  • 10. - Não a minha! Não tenho nada a ver com isso. A coincidência foi o meu amigo, André de Villaret, ter vindo junto com os uniformes. Orchis inclinou a cabeça. - Parece que conheço o seu nome. - Era um nome muito conhecido, antes da Revolução. - Quer dizer que havia algum Villaret importante no Haiti? - Foi uma das fazendas mais prósperas daqui e o dono era o pai de André. - Oh, naturalmente! Por isso reconheci o nome. Bem, imagino que não pretenda trabalhar nos campos de algodão, ou sei lá o quê cultivam! - Não pretendo! Achou que Jacques tinha mencionado muito cedo a fazenda. Procurou mudar de assunto. - É muito bonita, madame. Ouvi falar dos seus encantos, antes de ir para a América. Mesmo em Boston, ouvi comentários sobre sua beleza. Agora, não tenho palavras para descrevê-la. Orchis fez um movimento sensual na direção dele e, por um momento, suas mãos se tocaram. Ele sentiu como se a língua de uma serpente passasse rapidamente sobre sua pele. Então, novamente, ela pareceu avaliá-lo por trás dos cílios espessos. Sentiu-se como se usasse um dos uniformes colantes dos empregados mulatos. - Precisa jantar comigo. Prometi a um certo oficial que estaria sozinha esta noite, mas mudei de ideia. Estendeu a mão para Jacques. - Quando sair, querido, avise os empregados que não devo ser perturbada, por nenhum motivo! 22 - Levarei seu recado. Só espero não encontrar o convidado rejeitado, com uma espada na mão. - Você conseguirá sobreviver. Sempre consegue. E, como nós dois sabemos, sempre se torna indispensável. Jacques beijou-lhe a mão e dirigiu-se para a porta. - Tem muita sorte, André - disse, enquanto saía. - Quase não consigo acreditar na minha boa sorte. - André respondeu. A porta se fechou atrás de Jacques. Orchis e André ficaram sozinhos. Ela virou-se para ele. Sabendo o que o esperava, sentou-se do outro lado da cama, encarando-a. - É muito bonito, mon ami, mas será que é tão másculo como aparenta - Espero que sim, porque, entre todas as mulheres bonitas que conheci, você é a mais feminina. Sentiu que as mãos dela o acariciavam. Então, como era impossível não ficar atraído por ela, pelo convite de seus lábios e a tentação de seus olhos, ele se inclinou. Os lábios dela se colaram aos dele e as unhas longas arranharam suas costas. Olhou-a nos olhos, profundamente, e se viu nadando em águas perigosas. Fogos de artifício pareciam explodir em sua mente e não conseguiu pensar em mais nada. 23 CAPÍTULO II Amanhecia, quando André saiu da mansão Leclerc. Levantou-se, enquanto Orchis ainda dormia. Vestiu-se, achando que seus dedos estavam inchados e que as pernas não o obedeciam. Nunca, em toda a vida, havia passado uma noite como aquela. Mesmo dormindo, a mulher parecia lhe enviar vibrações. Tinham jantado juntos, sob as estrelas, no jardim ao lado da sala de banquetes, à luz de castiçais. Só se ouvia o som da água caindo de uma fonte e o barulho do vento na vegetação tropical. Tomaram vinho e saborearam os deliciosos pratos crioulos. Orchis insistiu para que André provasse algo que mais tarde ele conheceria como "cerveja
  • 11. do diabo". Parecia um licor com perfume estranho. O gosto era diferente de tudo que ele já havia tomado. Depois de terminar seu copo, sentiu o corpo queimando, como se uma corrente de fogo percorresse cada nervo, chegando até o cérebro. Já não pensava em nada, sentia apenas um desejo imenso por Orchis, de um modo que sabia não ser natural, mas irresistível. Mais tarde, quando se deitaram, exaustos, no leito em forma de cisne, ele forçou-se a lembrar por que estava ali e disse: - Gostaria de colocar esmeraldas em seu pescoço, para combinar com o verde dos seus olhos, e rubis em suas orelhas, iguais ao vermelho dos seus lábios. Entretanto, não posso, não tenho dinheiro. - Dinheiro não tem tanta importância, quando um homem é um homem. E é isso, sem dúvida, que acontece com você, mon cher. 24 Acha - perguntou André, escolhendo com cuidado as palavras que há algum dinheiro ou tesouro enterrado na fazenda Villaret? - Quer saber se o imperador escavou aquela fazenda, como escavou todas as outras? - Ela riu, um riso que não tinha nada de agradável. O meu Jean-Jacques é terrível. Ele encontra todos os cofres secretos em que os brancos colocam seus tesouros, pensando que estão seguros. Mas o imperador diz que há muito ouro à disposição dos brancos, no outro mundo. Não precisarão mais usar o que deixaram aqui. - Eu gostaria de ter um pouco deste ouro, para colocá-lo aos seus pés. - Há outro presente que prefiro, no momento. Virou-se para ele e seus lábios e mãos se encontraram novamente, acendendo em André um fogo que pensava já estar extinto. Mais tarde, ele tentou outra vez. - Ajude-me a encontrar o que me pertence, não pela lei, mas por direito natural. Por que meu pai não deveria pagar por meus prazeres, já que não me aceitou como seu filho? Orchis fez um ar de aborrecimento. - Os brancos são sempre assim, os porcos sujos. Acho que devemos nos livrar deles. Aqueles que sobraram serão punidos com algo pior do que a morte. Falou com tal violência que André percebeu uma imitação de Dessalines. Entretanto, era muito desagradável ouvir uma mulher falando daquele jeito e se divertindo ao lembrar da agonia dos que haviam morrido. Era igual ao imperador, em sua sede de sangue. André precisava ser cuidadoso e parecer simpatizante das ideias dela. Tinha que dar a impressão de desejar a morte de todos os brancos e apoiar os que estavam no poder. - Ajude-me a realizar minha vingança particular - ele pediu contra o homem que possuiu minha mãe à força e me fez nascer num mundo difícil, onde não sou branco nem negro. - Ele certamente lhe deu algo de que pode se orgulhar - Orchis brincou. Passou os dedos pelo corpo dele e continuou: - Tenho uma boa memória e o imperador sempre confiou em mim, 25 mas não me lembro de nada vindo da fazenda Villaret. Se ele encontrou algo, certamente foi de pouca importância. Era aquilo que André queria saber. Foi esperto o suficiente para dizer: - Que o meu pai queime no inferno por me deixar sem nenhuma herança, a não ser a minha inteligência. - Ele lhe deu também... este corpo - Orchis disse, como se o acariciasse. Então, ele não conseguiu conversar mais... Quando se levantou para partir, tomou cuidado em não acordar a mulher. André olhou-a e, de repente, sentiu uma revolta imensa, que não sabia explicar. Mesmo dormindo, ela era linda, com a graça e a sinuosidade de uma serpente. Sentiu um arrepio e lembrou quanto ela o havia excitado a noite toda. Enlouquecido por aquela bebida estranha, ele se tornara quase um animal. Caminhou pela alameda. O ar úmido; batendo em seu rosto, não era bastante
  • 12. frio para despertá-lo. De repente, desejou o inverno inglês, com o vento soprando do norte e o frio intenso da neve. Do lado de fora dos portões, viu uma carruagem. Os cavalos pareciam cansados e sonolentos e o cocheiro dormia, enroscado no assento. Acordou-o. O homem se espreguiçou e perguntou em crioulo: - Para onde, m'úeur? - Esperou aqui a noite toda? O negro fez que sim. - Há sempre um cavalheiro cansado demais para andar, saindo pela manhã, da mansão Leclerc. André entrou na carruagem e desceram a montanha, em direção à cidade. Um empregado deixou-o entrar na casa de Jacques Déjean, onde ele e Kirk ficariam hospedados. Sentia-se tão cansado que não conseguiu subir a escada de madeira. 26 Atirou-se em uma cama no térreo, achando que jamais chegaria ao primeiro andar. Dormiu, assim que encostou a cabeça no travesseiro. Era quase meio-dia, quando Kirk entrou no quarto e o acordou. - bom dia, "Romeu!" Não parece tão ardente agora como na noite passada. André gemeu. - Senti inveja de você, quando foi se encontrar com a deliciosa Orchis - Kirk continuou -, mas agora acho que foi melhor ter ficado jogando cartas com Jacques. André sentou-se na cama. - Peça um café para mim e, pelo amor de Deus, pare de fazer gracinhas a esta hora da manhã. Kirk riu e se atirou em uma poltrona confortável, perto da janela que dava para uma sacada. - Está de péssimo humor e não vou provocá-lo, perguntando o que aconteceu. Já sei, só de ver as suas olheiras. André gemeu outra vez e se recusou a conversar, até que um empregado lhe trouxe café com croissants quentinhos. - Quero tomar um banho - disse, enquanto tomava a xícara de café de um só gole. - O empregado arranjará tudo. Mas Jogo verá que não é no estilo americano. - Quero me sentir limpo e isso se aplica tanto à minha mente quanto ao corpo. - Está de ressaca. Esta é a palavra certa para o que sente. Ficará bom com alguns exercícios. Foi exatamente isso que Jacques lhe preparou. André o olhou, curioso, e Kirk prosseguiu: - Vai partir hoje e acho que Jacques está certo. Seria um erro ficar mais tempo por aqui. Apesar de parecer um mulato, pode ser que os outros mulatos percebam o disfarce. - Também temo isso. Havia mulatos no quarto de Orchis, na noite passada. Felizmente, como ela estava lá, eles não me olharam muito. Você passaria num exame superficial. Mas Jacques estava me contando 27 como é importante que pense como mulato. E isso, como sabe, não é fácil. - Tentarei. E tomarei todas as precauções. Se tiver contato com Dessalines, sei que o menor descuido poderá ser fatal. - Descobriu se o tesouro do seu tio ainda está na fazenda? - Acho que sim. Dessalines nunca mencionou a Orchis ter trazido nada daquela fazenda, e sei que ela confere cuidadosamente, para saber o que veio das escavações. - Jacques disse que ele tem uma quantia enorme em dinheiro e jóias escondidas. Descobriu algo importante? - Não houve tempo para muita conversa! A não ser durante o jantar, quando falei sobre a América, e sobre coisas em que não estava realmente interessado. Só depois de André ter tomado banho, e estar se vestindo, foi que Jacques voltou.
  • 13. - Já acertei tudo para você deixar Port-au-Prince esta noite. A menos que Orchis tenha dito que não há mais nada na fazenda. Então, não precisa fazer a viagem. - Orchis disse que Dessalines nunca mencionou a fazenda Villaret ou algo especial trazido de lá - André respondeu. - Tem certeza de que ele não encontrou nada importante. - Eu lhe disse que Orchis era esperta. Se o seu tio era rico e sua tia possuía jóias de valor, ela sem dúvida se lembraria. - Então, preciso tentar encontrar o tesouro. - Mas, primeiro, precisa de algo muito necessário, para não ser detido logo nos primeiros quilómetros da estrada. - O que quer dizer? - perguntou, preocupado. - Precisa escrever uma carta agradecendo gloriosamente a Orchis e lhe mandar um imenso buque de flores. André pareceu confuso. - Devia ter pensado nisso. - Pauline Leclerc estava sempre rodeada de flores. Ganhava tantos buques, que os empregados nem sabiam o que fazer com eles. E tudo que Pauline recebia, Orchis também quer. Escreva uma carta muito eloquente. Deve ser fácil para um francês, quanto mais para um mulato. Mas não assine. 28 André fez cara de espanto e Jacques explicou: - Orchis desafia Dessalines com suas conquistas, para torná-lo ciumento. Se pensar que você é um amante melhor do que ele, Dessalines sem dúvida mandará matá- lo! - Preciso admitir que o Haiti é um lugar muito perigoso para se viver! - disse, brincalhão. Kirk, que estava ouvindo, comentou: - Mude de ideia. Vá para a escuna e espere por mim. Podemos voltar juntos a Boston. - Não vou fazer nada disso! Ao mesmo tempo, gostaria de poder deixar a fuga preparada. Assim, quando precisar sair do Haiti, haverá um barco esperando, para me levar embora. - Há duas alternativas - Jacques disse, antes que Kirk pudesse falar. - Primeiro, você volta a Port-au-Prince, o que, se tiver encontrado o tesouro, será um risco desnecessário. Não apenas Dessalines, mas muitas pessoas e inclusive Christophe farão o possível para que não leve nada. Acham que tudo que é encontrado aqui pertence a eles. André esperou que Jacques continuasse: - Se encontrar o tesouro, sua única chance é ir a Lê Cap. A distância entre esse lugar e a fazenda do seu tio é quase a mesma daqui. - Acha que haverá um barco americano em Lê Cap? - Pode haver. Muitos canhões e munições que os americanos estão enviando ao Haiti são desembarcados lá. Há também chances de encontrar um barco inglês. - Inglês? - A marinha britânica está patrulhando a região que vai da Jamaica até Windward Passage e a saída para o Atlântico. Por isso, o imperador sabe que, no momento, está a salvo de uma invasão francesa, por mar. - Claro. Agora compreendo por que Dessalines foi atacar a parte espanhola da ilha. - Há muitas tropas brancas e negras lá - Jacques respondeu. Christophe avançou de Lê Cap em direção à costa norte, para ajudá-lo. Portanto, no momento, o seu caminho está limpo, tanto daqui até a fazenda do seu tio, como de lá até Lê Cap. - Como posso agradecer a sua ajuda? - Tenho um cavalo esperando, e um empregado vai acompanhá-lo. 29 André pareceu surpreso e ele explicou: - Precisa de alguém que conheça o interior do país. Precisa também de um homem que fale o dialeto do povo com o qual terá contato e onde conseguirá comida. - Sinto que lhe devo muito. - O homem que escolhi para acompanhá-lo é alguém muito especial. Pode
  • 14. confiar nele, como confiou em mim. Seu nome é Tomás. Apesar de ter sofrido as crueldades de um amo francês, despreza, tanto quanto eu, o tirano que nos governa agora. Logo depois de uma refeição leve, André disse que estava pronto para partir. Deu a Jacques a carta, com uma quantia em dinheiro para que comprasse as flores de Orchis. A carta era muito floreada, poética. Esperava que agradasse uma cortesã de qualquer nacionalidade. Os olhos de Jacques brilharam, ao lê-la. - Excelente. É difícil acreditar que você tenha algum sangue inglês. - Está insinuando que os ingleses são frios? Se um dia for à Inglaterra, terá uma surpresa! Pensava nas mulheres que haviam correspondido ao seu amor, não com a paixão física de Orchis, mas com muito ardor e entusiasmo. - Mandarei um criado levar a carta e um buque de orquídeas até a mansão Leclerc, logo que você sair da cidade. - Acha que Orchis pode querer me ver outra vez? - Dificilmente ela deseja o mesmo homem mais do que uma noite, mas é uma mulher imprevisível. - É melhor não se arriscar - Kirk disse. - Estou tentando prever tudo que pode acontecer - Jacques falou, sorrindo. - Conheço Orchis há muitos anos e sei que é melhor prevenir, quando se trata dela. O criado levou a bagagem e André se despediu. - Por favor, deixe-me pagar por tudo que lhe devo. O cavalo e todas as despesas que fez por minha causa. Jacques sorriu. - Tudo é parte do que devo ao meu amigo Kirk. Devo a ele a minha vida. Como posso aceitar, em troca dela, algo tão desprezível como dinheiro? 30 Todos riram e Jacques garantiu que, se André insistisse, estaria ofendendo sua dignidade de mulato. André compreendeu que aquele orgulho era falta de confiança em si mesmo, por causa de sua origem e do modo como tinha sido tratado. Dava prazer ao mulato pensar que era importante para os brancos. Na verdade, pensou, estaria completamente perdido se ele não o tivesse ajudado. Foi com um sentimento de superioridade que Jacques decidiu tornar André bem-sucedido em sua busca. Escolheu o disfarce e estabeleceu o roteiro da viagem. Esperou que o criado saísse do aposento e disse: - Na sua bagagem, coloquei um saco com a tintura para a sua pele. - Quando devo usar novamente? - Daqui a duas ou três semanas, porque apliquei uma camada bem grossa. Está com uma cor mais escura do que a minha e a da maioria dos mulatos. Mas, há algo que precisa tingir com mais frequência: a meia-lua das suas unhas. André olhou as mãos, enquanto ele falava. Lembrou-se de que Jacques tinha sido muito cuidadoso em escurecer a base de suas unhas. - Na verdade, vai encontrar muitos mulatos claros - Jacques explicou - e não o reconhecerão, a não ser por um detalhe: a meia-lua dos mulatos verdadeiros tem sempre uma tonalidade escura. As unhas crescem depressa. Portanto, tome muito cuidado: um traço branco na base, perto da cutícula, poderá denunciá-lo instantaneamente. - Lembrarei. E obrigado, mais uma vez. Despediu-se de Kirk, perguntando: - Quando voltar para a América, posso ir direto para Boston? - Sabe que será sempre bem-vindo. Minha família ficou encantada com você. André virou-se para Jacques. - Kirk me contou que você o informou da morte do meu tio e dos três filhos dele. Tem alguma ideia de onde foram enterrados? - Soube que todos os moradores da fazenda morreram no massacre: seu tio, sua tia, os três filhos, a garotinha que adotaram e levava o nome de Villaret e também alguns amigos que estavam escondidos
  • 15. 31 lá. Foi tudo o que descobri, quando Kirk me pediu para fazer algumas perguntas. Fez uma pausa e continuou, baixinho. - Não é costume de Dessalines enterrar aqueles que destruiu. Geralmente, permanecem atirados sobre a terra que possuíam ou seus corpos são jogados em desfiladeiros, se houver algum por perto. Jacques hesitou, antes de continuar: - Acredito que os homens foram torturados. É um método de morte comum, no Haiti. Mas não tenho informações detalhadas sobre o que aconteceu. André apertou os lábios. Despediu-se de Kirk mais uma vez e caminharam todos até o pé da escada. Na parte de trás da casa, onde ninguém os veria, estavam dois cavalos. Tomás segurava as rédeas. Era um negro retinto, e seu rosto tinha uma estranha beleza, com um largo sorriso. O cabelo agarrava-se à cabeça, encarapinhado e preto, a testa era baixa e os olhos, muito inteligentes. André gostou dele à primeira vista e sentiu que se tratava de um homem honesto. Estendeu-lhe a mão. - Prazer em conhecê-lo, Tomás. Estou satisfeito em que me acompanhe nesta viagem. O negro hesitou: nunca havia apertado a mão de um branco. Então, esticou a mão imensa e fortíssima. - Tomás cuidará de você - Jacques disse. - Confie nele e não guarde nenhum segredo. Tentou expressar sua gratidão, mais uma vez. Depois, montou e, acompanhado de Tomás, saiu do pátio. Quase imediatamente, começaram a subir as montanhas. André percebeu que evitavam as ruas mais movimentadas e se mantinham nos caminhos estreitos e empoeirados. Olhando um mapa, na casa de Jacques, tinha visto que, para chegar à fazenda do tio, precisava viajar ao longo do canal St. Mark, depois subir as Montanhas Negras e chegaria ao vale onde Phillippe de Villaret havia se estabelecido. 32 No mapa, vira também que a distância entre a fazenda e Lê Cap era a mesma entre esta e Port-au-Prince. Estava tranquilo em saber que Lê Cap se submetia agora ao comando de Henry Christophe, apesar de não ter nenhuma vontade de encontrá-lo. Na verdade, este general queimara toda a cidade e também sua magnífica mansão, ao ver o sinal de barcos franceses chegando para a invasão. Christophe matara muitos brancos, mas tudo que se dizia sobre ele provava ser menos cruel e menos tirânico do que o imperador. O general também estava determinado a se livrar do domínio francês. Mas sempre dizia que era melhor ter amigos entre os povos brancos, como os americanos e ingleses, que podiam ajudá-lo. No momento, tanto Christophe quanto Dessalines estavam ocupados, lutando contra os espanhóis. André rezou para que sua busca não fosse muito demorada. Quando já tinham se afastado bastante da cidade, dirigiram-se a uma estrada costeira. Puxou conversa com Tomás. - Tomás, monsieur Jacques lhe disse o que procuro? - Sim, m'sieur, mas não vai ser fácil. - Ele lhe disse que tenho uma indicação de onde o dinheiro pode estar escondido? - Disse, m'sieur. André tirou do bolso a carta do tio e, em voz alta, leu para Tomás a frase mais importante. - Tenho certeza de que isso significa que ele escondeu o dinheiro perto da igreja. Tomás não falou nada. Andaram em silêncio e então o negro disse: - Vamos encontrar a igreja.
  • 16. - Deve haver uma. Passaram a primeira noite em uma casinha coberta de palha, uma caille, num pequeno vilarejo. Era grande o número de telhados de palha, sobre paredes de madeira ou barro. Cada casa tinha seu pequeno jardim ou quintal, cercado e enfeitado com cactus. - Boas pessoas - Tomás observou. - Não fazem perguntas. Parou o cavalo, desmontou e entrou na caille mais próxima para conversar, 33 durante um longo tempo, com um velho que fumava um cachimbo de barro. Quando voltou, sorria. - bom abrigo. A caille é nova, mas está vazia. Ficava um pouco distante das outras e, pelo que Tomás disse, acabara de ser construída. A palha ainda estava fresca e o barro das paredes, úmido. Dentro era muito limpa. Tomás esticou um tapete, sobre o qual André dormiria. Tinham trazido comida para dois dias. "Confie em Tomás", Jacques tinha dito. "O que ele encontrar pode não parecer muito gostoso, mas o manterá vivo. " Saborearam galinha, ovos cozidos e peixe frio, preparado em um delicioso molho crioulo. André comeu tudo que o negro lhe ofereceu, sabendo que poderia ser sua última refeição decente, durante um longo tempo. Por causa da aventura da noite anterior, ainda se sentia cansado. Deitou- se no tapete e dormiu imediatamente. No dia seguinte, Tomás o acordou bem cedo, dizendo que precisavam continuar a viagem. Tomaram uma xícara de café e comeram um bolinho francês seco. André colheu laranjas. Estavam suculentas e doces. Havia também muitas bananeiras pelo caminho. Mesmo se não comesse os alimentos a que estava acostumado, dificilmente passaria fome. Viraram em direcão às montanhas. Logo tiveram uma vista panorâmica de toda a ilha e, ao longe, o mar azul. Às vezes precisavam cavalgar lentamente, entre as árvores que escureciam a floresta, formando um estranho ambiente, quase místico. Flores de cores brilhantes surgiam de todos os lados, entre as quais orquídeas verdes e brancas. Elas fizeram André pensar em Orchis. Não conseguiu afastar a lembrança de seu corpo sensual, seus lábios exigentes e os braços macios e envolventes. Sacudiu a cabeça, tentando se livrar das recordações. Ela era como uma parasita, pensou; se enroscava em um homem e podia apertá-lo tanto, que ele já não teria vontade própria, tornando-se apenas um escravo de seus desejos, 34 Naquela noite, não tiveram muita sorte. As casinhas pelas quais passaram não agradaram a Tomás. André sentiu que o criado tinha medo da floresta. Em determinado ponto do caminho, onde uma trilha cruzava com outra, havia um grande mastro. No alto, estava pendurado um bode preto, estrangulado, amarrado pelos chifres. Tomás lhe havia dito que as encruzilhadas eram consideradas lugares sagrados, onde costumava haver um pequeno altar, erigido por algum habitante do local; um loa. - Está me dizendo que isso é parte do vodu, Tomás? - Sim, m'sieur O modo como falou e seu jeito de olhar o loa revelaram que era um praticante de vodu e não diria mais nada. Agora, olhando o bode negro, a expressão dele era de terror. - O que significa, Tomás? - Vodu, m'sieur. Feitiçaria de Pedro. - Quem é ele? - Pedro é mau! Cuba bom. Magia negra!
  • 17. André teve vontade de rir do jeito do outro falar. Mas sabia que o negro levava a sério tudo aquilo. Depois de um momento, perguntou: - Quem são os deuses bons? Quais as divindades que você cultua? Achou que Tomás não ia responder, mas ele disse: - Damballah, m'sieur. Damballah Weydo é um grande deus. Ele o ajuda. - Espero que ajude mesmo! - M'sieur não odeia vodu? - Tomás perguntou, cauteloso. - Por que deveria odiar? Não sei muito sobre isso, mas acho que todo homem tem o direito de acreditar na religião que ele próprio escolher. Viu uma expressão de alívio no rosto do negro e continuou: - Nasci e fui batizado como católico, mas tenho muitos amigos que são protestantes, budistas e maometanos. Eles são, acredito, tão bons ou maus quanto eu mesmo. Só os avalio por suas ações e pelo bem que fazem. Tomás olhou o bode. Então, enquanto prosseguiam, aproximou o cavalo do de André 35 - Damballah vai ajudá-lo, m'sieur. Vai ajudá-lo a descobrir onde o tesouro está escondido. - Se ele me disser isso, vou ouvi-lo com muito respeito. Depois, lhe farei uma oferenda, para expressar minha gratidão. Tomás fez que sim. - Deixe tudo comigo, m'sieur - e continuaram cavalgando, sem discutir mais o assunto. Passaram uma noite desconfortável numa clareira. As árvores se erguiam altas e os galhos pareciam prestes a despencar sobre suas cabeças. André lembrou-se de uma enorme catedral. Sabia, entretanto, que Tomás não se sentia à vontade e dormiu pouco. Aos primeiros sinais do amanhecer, montaram e partiram. Agora, já não havia mais café. Apenas alguns pedaços de pão seco e frutas. Quando desceram do outro lado íngreme da montanha, chegaram a um povoado. Tomás encontrou alguém que lhe preparou um café e encheu o cantil. Na noite seguinte, passaram em um povoado, onde as pessoas olhavam André, cheias de suspeitas. Não pareciam acreditar no que Tomás lhes dizia. - Algumas vezes, m'sieur, os mulatos criam problemas. São inteligentes, dão ordens e esperam que os negros obedeçam. Se recusam, os mulatos agem cruelmente. Aquele era um país atormentado, amedrontado e dividido, André pensou. Sentiu pena do povo, que não sabia em quem confiar ou no quê acreditar. Então, finalmente, quando parecia que nunca mais chegariam, viram o vale que procuravam. Se a floresta era bonita, o vale era de tirar o fôlego! André não conseguia imaginar como teria sido aquele local nos anos de prosperidade, quando o tio escrevia para a França, contando sobre a grande fortuna que estava conseguindo acumular. Passaram por engenhos de cana e entraram em campos realmente férteis, cruzados por riachos cristalinos e protegidos por imensas montanhas. Tudo ali era tão bonito que André pensou que estivesse no paraíso. 36 Tomás levou-o diretamente à casa do tio. Passaram pela porteira quebrada e entraram numa alameda cercada de flamboyants que começavam a florir. Cercas vivas de buganvílias caíam ao redor de colunas, formando uma cobertura colorida e brilhante. Pés de jasmins dourados e lírios enchiam O ar com seus perfumes. Lutaram para passar por uma vegetação espessa e, de repente, viram a casa à sua frente. André conhecia, pelas descrições do tio, a construção branca de tijolos, feita pela família, com tanto orgulho. Tinha dois andares e uma escada em forma de ferradura, que levava à sacada principal. Tudo parecia quebrado em mil pedaços. O telhado perdera as telhas, todas as vidraças tinham sido despedaçadas e a casa parecia ter estado nas mãos de vândalos.
  • 18. A porta da frente, com a pesada fechadura e todas as dobradiças, tinha caído. As parreiras se enroscavam pelos pórticos e colunas, subindo pela sacada e escurecendo as janelas. A destruição era tanta, que causava depressão. Os dois homens desmontaram e André caminhou para a casa, pisando cuidadosamente sobre o que tinha sido um assoalho de madeira. Ficou surpreso ao ver que todos os quartos estavam vazios. A casa havia sido completamente saqueada. Uma parte estava incendiada, as paredes negras, o chão coberto de poeira e teias de aranha por toda parte. Ficou contente em sair novamente no jardim colorido. - Não deixaram nada para nós - disse a Tomás. - Ninguém vem aqui. Magia má! - Magia? O que a magia tem a ver com isso? Em resposta, o negro virou-se e apontou. André olhou na direção indicada. - O que é? O que está me mostrando? Então viu, num pilar, ao pé da escada, algo que lhe parecia um galho torcido, ou um pedaço de corda. - O que é? - Pedro ouanga... magia negra demónio1 37 - Bobagem! Não acredito nessas coisas. Podem ser reais para você. mas não para mim. Falou secamente. Então, percebendo que Tomás parecia aborrecido, tentou corrigir. - Desculpe, Tomás, não quis ofender. Talvez esteja com tanto medo quanto você. A magia, branca ou negra, é algo fácil de se acreditar, quando se está neste país. - Venha olhar, m'sieur. Chegaram ao pilar e André viu que, na verdade, se tratava de uma corda tingida de verde. Tinha mais ou menos meio metro e era tão grossa como o pulso de um homem. As extremidades estavam amarradas juntas com lã colorida e, nos nós havia penas de galinhas tingidas de vermelho e branco. Parte da corda tinha sido coberta com uma substância branca, que se espalhou, quando André a tocou. A outra parte estava coberta com algo seco e preto. Tinha certeza de que era sangue. - O que é? - Eu lhe digo, m'seur: esta é a cobra verde de Pedro ouanga Magia forte... negra. - Por que está aqui? - Não sei, m'sieur. Só se souberam que vínhamos para cá. - Eu? Vindo aqui? Como alguém podia saber? Tomás olhou para a montanha e disse: - Tudo se sabe. Os tambores falam. - Está dizendo - perguntou, devagar -, que a minha chegada a esta fazenda abandonada já é do conhecimento de algum praticante de vodu? O negro fez que sim. - É difícil acreditar numa coisa dessas. Olhou o pedaço de corda e percebeu que havia sido colocado ali há pouco tempo. Tocou a parte escura, que pensara ser sangue coagulado. Pressionou-a com os dedos: estava macia e úmida. Era mesmo sangue! Viu então que aquele pilar estava completamente limpo das trepadeiras que cresciam por toda parte. Não havia dúvida de que aquela corda, representando uma serpente, 38 tinha sido colocada ali há pouco tempo, talvez naquela manhã ou na noite anterior. Não entendo, Tomás, mas não gosto disso. - Não se preocupe, m'sieur, vou encontrar um bom papaloi que endireitará as coisas. - O que é isso? - Um homem, m'sieur.
  • 19. - Que tipo de homem? - O que vocês chamam de sacerdote... um sacerdote do vodu. André pôs as mãos na cabeça - Quer dizer que, para acabar com esta feitiçaria, ou sei lá o quê, em forma de cobra, precisamos encontrar um sacerdote vodu que pratique magia branca? - Certo, m'sieur' - Parece uma completa... André não disse as últimas palavras. De repente, lembrou-se de Jacques lhe dizendo que, para desempenhar bem o papel de mulato, precisava pensar como um deles. Mulatos acreditam em vodu, assim como os negros. Muito bem... valia a pena tentar! Entretanto, coisas estranhas demais estavam acontecendo. Mas, se devia se comportar como um haitiano, jogaria a magia branca contra a negra. Precisava concordar que até fazia sentido. - Onde podemos encontrar este sacerdote... este papaloi? - Eu encontro, m'sieur. - Muito bem. Estou de acordo. Enquanto isso, vou me livrar desta bobagem. Pegou a corda de cima do pilar e atirou-a, com toda força, no meio do mato que rodeava a casa. - Pelo menos, não explodiu - disse, sorrindo. Mas Tomás continuava sério. - A praga continua aí. Só o papaloi pode tirar. Bem-humorado, André lhe deu um tapinha no ombro. - Então, encontre o papaloi. E escolha um lugar onde possamos dormir, com um teto que não caia sobre a minha cabeça, nem um chão Mue desabe sob os meus pés 39 Olhou em direção à casa e continuou, brincalhão: - Pelo menos, enquanto estiver dormindo, vou fingir que sou o dono da fazenda Villaret. Quero dormir na casa que legalmente deveria ser minha, apesar de ninguém mais acreditar nisso, a não ser você. Durante um momento, Tomás não falou. Quando o fez, foi em voz tão baixa, que André mal pôde compreender: Damballah vai dizer, m'sieur, onde o tesouro está escondido. 40 CAPÍTULO III André saiu da casa e desceu, cuidadosamente, os degraus que levavam ao jardim. Tinha comido bastante, um surpreendente jantar que Tomás preparara. Compraram duas galinhas no vilarejo por onde passaram. O negro pendurou- as na sela e André ficou imaginando se ele saberia como prepará-las. Devia ter adivinhado que Jacques, com sua eficiência meticulosa, lhe forneceria um criado, não apenas capaz de indicar os caminhos, mas também apto a servi-lo de muitas outras formas. Quando Tomás percebeu que André pretendia ficar na casa, improvisou uma vassoura, varreu e tirou a poeira das paredes e do teto. Conseguiu limpar completamente um quarto, que André achava ter sido uma sala, e começou a limpar a cozinha. Não demorou muito para que um cheiro apetitoso chegasse até a sacada, onde o rapaz descascava uma laranja. Ia sair para uma inspeção mais completa no dia seguinte, quando se sentisse menos cansado. Aquele dia tinha sido difícil, principalmente porque ambos haviam dormido pouco, na noite anterior. Tomás quase nem dormira, de tão ansioso para sair da floresta. André sentou-se na sacada, tentando imaginar como era aquela casa, no tempo de seu tio. Lembrou que a tia era uma mulher muito atraente e supervisionava os empregados com a experiência e a rigidez que pareciam natas nas francesas. Deviam ter muitos criados, pois o tio era rico. André acreditava que a mansão de Villaret conhecera todos os confortos europeus, transportados até o Novo Mundo. Imaginou se teria gostado de viver no Haiti. Mas, para ser honesto
  • 20. consigo mesmo, precisava admitir que estava muito apegado aos seus hábitos ingleses e, por outro lado, adorava a França. Antes de ser obrigado a fugir com a família para a Inglaterra, para escapar da Revolução Francesa, conheceu a grandiosidade em que vivia o avô, seu poder e as imensas fazendas que possuía, empregando centenas de pessoas. Parecia duro que os únicos a desfrutarem do luxo e glória-de serem os condes de Villaret tossem seu avô e o tio Phillippe. Agora, o título era seu. Nada mais. Depois da busca ao tesouro, voltaria à Inglaterra e tentaria achar um emprego, de modo a se manter e a ajudar a mãe. Sabia que há muito ela desejava que ele se casasse. Em circunstâncias normais, qualquer família nobre da Europa ficaria contente em unir uma de suas filhas ao conde de Villaret. Entretanto, ele não aceitaria um casamento arranjado, muito menos agora, que não tinha nada a oferecer, a não ser um título de nobreza. Todos seus instintos masculinos fugiam da ideia de se casar com alguém a quem teria que ser subserviente, porque controlaria as finanças. Uma esposa rica seria muito inconveniente; uma mulher que, na verdade, estaria pagando por tudo e a quem precisaria recorrer, até para pedir uma mesada. Ainda estava perdido nesses pensamentos, quando Tomás avisou que o jantar ia ser servido. Entrou por uma janela, tomando cuidado para não pisar nos cacos de vidro e procurando o local onde a refeição tinha sido colocada. Descobriu que um bloco de madeira serviria como cadeira e os pratos seriam imensas folhas. Entretanto, teriam garfos e facas, trazidos da casa de Jacques. A galinha, preparada à moda crioula, estava deliciosa. Tomás tinha cozido também algumas espigas de milho, colhidas atrás da casa, e alguns tomates. André estava faminto e comeu tudo. 42 Havia água pura para beber, que o negro lhe disse vir de um poço do pátio, na parte central da casa. Durante um momento, ficou preocupado. Sabia que em tempos de guerra os poços se tornam perigosos, pois servem como depósito de cadáveres. Mas aquela água parecia transparente como cristal e, com a sede que sentia, achou que a apreciaria mais do que qualquer vinho francês. - Amanhã compraremos comida, pratos, xícaras e copos - Tomás murmurou. - Além de vassouras e toalhas. André riu: - Acho melhor fazer uma lista. Então, lembrou-se de que dificilmente Tomás saberia ler ou escrever. - Tomás sabe o que precisa! - o negro disse, com dignidade, e André sorriu, sacudindo os ombros. Estava contente em tê-lo ali, para resolver esses problemas. Pegou uma banana e descascou-a, dirigindo-se ao jardim. O sol estava se pondo e a poeira fazia tudo parecer misterioso e estranho. Morcegos voavam sobre sua cabeça e as primeiras estrelas brilhavam no céu. O ar quente e úmido era semelhante à pele de uma mulher. André lembrou de Orchis. Depois, expulsou-a de sua mente. Pensou ouvir longe, muito longe, o som de tambores. Prestou mais atenção, para ter certeza de que não era imaginação. Só ouviu o ruído dos morcegos e dos sapos. Tudo era parte do mistério do Haiti. Kirk lhe falara alguma coisa sobre o vodu e lera outras, enquanto navegavam para o Haiti. Durante o último século, um milhão de negros, trazidos da África, tinham sido vendidos nos mercados de São Domingos. Para eles, uma nova vida começara, ao soar do chicote dos feitores. Foram tratados com uma crueldade que parecia inacreditável a André e para a maioria dos ingleses. William Wilberforce contava histórias incríveis aos incrédulos membros do Parlamento. Tentava abolir a escravatura, e dizia ter visto fazendeiros
  • 21. matarem seus escravos, apenas para verificar se a pistola estava carregada. Outras histórias diziam que os fazendeiros mandavam enterrar seus escravos até o pescoço e usavam suas cabeças para um jogo de bolas. 43 Kirk contara a André que, na fazenda Gallifet, os escravos que tentavam fugir eram surrados e seus ferimentos tratados com pimenta. Um fazendeiro de La Grande Rivière prendeu um escravo à parede, pelas orelhas, com pregos, depois cortou-as com uma faca e forçou o homem a comê-las. Um homem em Plaine dês Gonaives foi apelidado de "Perna-de-Pau", porque, sempre que capturava um escravo fugido, mandava que lhe cortassem uma das pernas. Se o escravo sobrevivesse, o que era difícil de acontecer, tinha que usar uma perna de pau. O instrumento de tortura mais comum era o chicote, que assombrava toda ilha. Taille era a palavra que todos gritavam e significava um homem chicoteado até se transformar numa massa ensanguentada. As escravas eram tão chicoteadas quanto os homens. Havia fazendeiros que tratavam bem os escravos; entretanto, sempre tinham menos importância do que os animais de estimação. Seu único conforto, sua única esperança, eram os rituais vodu, que tinham trazido da África. Tratava-se de uma religião mágica, com adoração de muitos espíritos. André ouvira falar de sacerdotes-reis e sacerdotisas-rainhas, os papaloi e as mamaloi que podiam trazer os mortos de novo à vida, em forma de zumbis. Nunca acreditara nisso. Mas, agora, pensava que, naquele clima quente e abafado, era fácil acreditar em muitas coisas das quais teria rido, se estivesse na Inglaterra. A revolução começara com o vodu, que se tornou o coração de uma sociedade secreta, ligando os escravos de todas as fazendas. Os papaloi e as mamaloi se transformaram em líderes naturais e eram recrutados entre os escravos superiores das casas, os commandeurs. Eram feitores que chicoteavam os outros, nos campos. Entre esses commandeurs estava um escravo de nascimento britânico, chamado Brickman, que liderou o primeiro levante, na grande Planície do Norte. Brickman usou o vodu como uma cadeia, para sincronizar todos os levantes através da ilha. De junho a julho de 1791, sucederam-se várias perturbações nas Proíncias 44 Orientais. Os rebeldes eram chicoteados, quebrados na roda ou enforcados. Os fazendeiros não encararam estes incidentes isolados como algo importante. Então, Brickman reuniu seus conspiradores das plantações do norte e lhes falou da necessidade de união. Encontravam-se na floresta, debaixo de tempestades, pois acreditavam que, assim, conseguiriam a aprovação dos deuses. Brickman realizava os rituais de vodu. Sua mamaloi cortou o pescoço de um javali negro e, com os lábios cheios de sangue, os conspiradores fizeram um juramento de aliança com Brickman e seus comandados. Marcaram a data do próximo levante para 22 de agosto, daquele ano. Naquela noite, Brickman chamou seus seguidores para irem até a fazenda Turpin. Não usou o chicote, mas sim uma tocha. E por todas as planícies do norte, os escravos começaram a incendiar, estuprar e matar. O fogo das chamas iluminou mansões e canaviais destruídos. Os fazendeiros mais cruéis foram torturados e mortos com uma violência perfeitamente compreensível. Nas fazendas onde os escravos haviam sido bem tratados, houve retribuição: esconderam seus amos, que fugiram em segurança, acompanhados das famílias. Entretanto, para a maioria, nenhum branco devia sobrar para contar o que havia acontecido. Odeluc, o administrador da fazenda Gallifet, que era muito cruel, estava
  • 22. em Lê Cap. Ouviu dizer que algo estava acontecendo e partiu para a fazenda. No caminho, alguns guardas lhe falaram sobre os incidentes. Quando chegou, descobriu que seus próprios escravos estavam entre os líderes da revolta. Carregavam, como bandeira, o corpo de uma criança branca, nua, empalada em um mastro. Odeluc foi capturado e morto. Já não era mais necessário nenhum alarme. Bandos de escravos intoxicados pelo desejo de vingança se esPalharam por toda a planície. André sentiu que podia ver tudo aquilo acontecendo. O que o surpreendia era que depois de terem ganho o poder, declararem 45 independência e terem aclamado Dessalines imperador, tanto este quanto Christophe haviam proibido o vodu, o instrumento que lhes dera a vitória. André não conseguia compreender. Entretanto, tinha certeza de que, mesmo na clandestinidade, o vodu nunca poderia ser retirado dos coracoes e da imaginação daqueles que nele acreditavam. O dia se transformou em noite e Tomás veio até a sacada: - A cama está pronta, m'sieur. com um sorriso, André foi até a sala que usava como quarto, esperando encontrar o tapete sobre o chão nu, como nas noites anteriores, Desejava que os diversos lagartos que deslizavam para cima e para baixo, nas paredes, se mantivessem à distância. Então, à luz de uma vela que tinham trazido, viu que, em alguma parte daquela casa destruída, Tomás havia encontrado uma cama: quatro pés de madeira e um espaço vazio, preenchido com algo que parecia uma rede. Era uma cama primitiva, como a usada em todos os países quentes pelos criados e escravos. Naquela noite, foi um ótimo achado. Enquanto estava na sacada, pensou ter ouvido batidas. Agora percebia que era Tomás, remendando a cama, que devia estar quebrada; caso contrário, teria sido roubada. - M'sieur, tome cuidado! Amanhã, vou reforçá-la. - Obrigado, Tomás. Foi muito engenhoso e acho que será bem mais confortável do que dormir no chão, como nas outras noites. Tomás sorriu, depois ajudou-o a tirar as botas de montaria, pegou as roupas e preparou-se para levá-las. - Vai precisar da vela - André disse. - Há luz suficiente na cozinha. Boa noite, m'sieur! Pensou como era estranho estar ali, deitado na casa do tio, auxiliado por um criado negro e imaginando que aventuras o esperariam no dia seguinte. - Tenho tido sorte, muita sorte, até o momento - disse, baixinho, Então, lembrou-se de Pedro ouanga, que prendera a corda no pilar quebrado. Não importava o que Tomás dizia: não acreditava que aquilo tivesse algo a ver com ele. 46 Como alguém saberia que pretendia passar a noite ali? Que estava indo à fazenda Villaret com um propósito especial? Tudo não passa de um montão de histórias para amedrontar criansinhas, murmurou, enquanto fechava os olhos. Horas mais tarde, André acordou e encontrou a vela derretida, quase no fim- Tinha sido muito distraído em não apagá-la, antes de dormir. Então, imaginou se, na verdade, não estaria com medo de ficar sozinho na escuridão. Depois, disse a si mesmo que não era nada disso; apenas distração, descuido. Pela janela, que dava para a sacada, podia ver as estrelas. No ar havia um perfume de flor exótica, um perfume que tornava as noites marcantes. Foi então que percebeu os tambores. Estavam próximos, muito mais próximos do que no começo da noite, quando não teve certeza completa de tê-los ouvido. Sonolento, tentou imaginar que mensagem estaria enviando. Devia mesmo acreditar que falavam dele? Sentindo uma grande curiosidade, levantou-se da cama e foi até a sacada.
  • 23. Moveu-se com cuidado, pois o soalho não estava seguro e poderia cair. Agora, ouvia claramente os tambores. Estavam em algum ponto da floresta, na direção de onde tinham vindo. Pensou se devia chamar Tomás e perguntar o que significavam os sons. Mas um sexto sentido, uma certeza interior, lhe disse que o negro não estava na casa. Encontrava-se sozinho. Não tinha provas disso; no entanto, sentia tanta certeza, que achou desnecessário chamar o criado. Voltou para a cama. Ficou acordado durante um longo tempo, olhando a chama pequenina da vela, ouvindo, imaginando e sentindo uma grande curiosidade. André acordou de manhã com o cheiro do café. Minuto depois, Tomás entrou, trazendo uma caneca. Bebeu, deliciado. O criado trouxe depois suas roupas, e viu que as botas tinham sido limpas e engraxadas. Vestiu uma camisa limpa, comeu ovos, frutas e tomou mais um pouco de café. 47 - Vou procurar comida, m'sieur. Fique aqui. - Por quê? - perguntou, automaticamente, já sabendo a resposta. - M'sieur não deve ser visto. - Concordo. Leve um pouco de dinheiro. Se precisar de mais, é só pedir. Viu que Tomás não compreendia. - Não é bom ficar devendo nada. Compre o que precisar, mas se comprar muitas coisas, os habitantes vão suspeitar de que está morando na casa. Tomás fez que sim. Mas André achava que, apesar do criado não querer que fosse visto no vilarejo, já sabia que todos tinham conhecimento da sua presença naquela casa, que estivera vazia por tanto tempo. Não adiantava fazer muitas perguntas, a não ser depois de Tomás saber o que estava acontecendo na região. Enquanto o negro se afastava, André saiu sem chapéu e de mangas arregaçadas. Foi até o jardim. O sol ficava cada vez mais quente. Entretanto, debaixo das árvores havia muita sombra. Estava decidido a explorar o máximo possível o local, obedecendo aos conselhos de Tomás de não se deixar ver. Era difícil descobrir que plantas eram cultivadas naquele jardim, ou onde ficava a horta. Olhou novamente a terra e pensou que a natureza havia se encarregado de tomar conta do seu território, novamente. O sol esquentou mais e ele procurou a sombra. Agora via libélulas batendo as asas sobre orquídeas um pouco diferentes das que encontraram na floresta. Caminhou pela sombra, deixando que a beleza do lugar tomasse conta de sua imaginação. Sentia-se intrigado pelas sensações que aquele lugar lhe despertava. Deu alguns passos, chegando a uma espécie de caminho, que se afastava da casa. Queria saber onde ia dar. Então, enquanto se desviava dos galhos de uma imensa árvore, viu, um pouco adiante, uma figura branca. Parou onde estava, lembrando as palavras de Tomás. Percebeu que a pessoa não se mexia. 48 Parecia uma freira, usando um hábito branco que pensou ser típico Ao Haiti-' tinha visto freiras vestidas assim nas ruas de Port-au-Prince. A roupa dela era branca, mas, em vez do véu tradicional, usava um turbante branco, que cobria completamente os cabelos e as orelhas. Surpreso, percebeu que a freira, sentada num tronco caído, não estava sozinha. A sua volta, comendo em sua mão, havia uma multidão de pássaros. Eles lhe bicavam os braços, pousavam em seus ombros e cabeça. Confiavam nela. O quadro era tão bonito, tão extraordinário, que André prendeu a respiração, enquanto observava a freira, à distância. Depois, muito devagar, sem que ela o percebesse, aproximou-se mais.
  • 24. Escondido pela folhagem dos arbustos e troncos das árvores, ficou bem perto, observando-a. Ao olhar seu rosto, voltado para os pássaros, viu que era muito bonita. E mais: era branca! Como era possível que houvesse uma mulher branca, vivendo nas terras de Villaret? Talvez, por ser freira, tivesse sido poupada. Entretanto, não lhe parecia que o imperador tivesse alguma consideração especial por qualquer mulher, mesmo uma religiosa. Devia ser muito jovem. Não conseguia se lembrar de já ter visto alguém tão adorável: grandes olhos, nariz reto, queixo delicado e lábios bem feitos. Tinha um ar de nobreza. Havia algo de muito delicado em sua beleza. O sangue que corria naquelas veias devia ser da aristocracia. Então, quase riu alto. Que aristocratas havia no Haiti, depois da Revolução? Que brancos tinham sobrevivido às lutas do imperador? Só os que trabalhavam com munições e armas, em Port-au-Prince e Lê Cap. Desejou ser um artista, para poder retratar a beleza da cena à sua frente. Os pássaros menores, de penas amarelas, pousavam em suas mãos, Beliscando o milho ou o que quer que fosse que ela lhes oferecia. Riu, divertida. - São muito malcomportados! - Peguem a comida no chão! 49 Espalhou alguns grãos, que tirou de uma sacola a seu lado. As libélulas e beija-flores pareciam não temer os outros pássaros. André percebeu que ela havia falado no mais puro francês, sem nenhum sotaque crioulo. Sua voz era suave e delicada. Colocou mais alguns grãos na palma da mão e a estendeu aos pássaros menores. Elas os observava, sorrindo, de um modo que a tornava ainda mais bonita. André sentiu que devia lhe falar, perguntar quem era, por isso saiu de seu esconderijo. Tinha dado apenas dois passos, quando os pássarros perceberam sua presença e saíram voando, em bandos, para os galhos mais altos das árvores. Durante um momento, a freira os seguiu com os olhos, surpresa, Então, viu André. Ficou imóvel, como que petrificada, com uma expressão de terror. Depois, levantou-se de um salto. - Não mademoiselle, por favor, não se vá - André gritou, mas era tarde. A freira saiu correndo numa velocidade que o surpreendeu, e perdeu- se entre os troncos das árvores. Viu várias vezes o hábito branco aparecer e desaparecer, cada vez mais longe. Quando chegou ao local onde ela estivera sentada, já não conseguiu vê-la mais. - Que pena! Não queria amedrontá-la. Mesmo detestando ter perdido aquela oportunidade de lhe falar, concordou que ela tinha razões para sentir medo. Para ela, não se tratava da aproximação de um homem branco, mas sim de um mulato, o que era muito diferente. - Esqueci - ele disse, baixinho - e acho que, estando aqui sozinha e sabendo o que aconteceu com as mulheres durante a revolução, tem motivos, não apenas para sentir medo, mas para ficar aterrorizada! - Preciso encontrá-la outra vez - André falou consigo. Então, lhe veio outro pensamento. Se havia uma freira, devia haver outras. E onde há freiras, geralmente há uma igreja ou um convento. 50 Era exatamente isso que procurava. O próximo passo seria em direção ao tesouro que o tio havia escondido sob a proteção de Deus. Seria um erro, pensou, seguir imediatamente a freira. Devia dizer a Tomás o que pretendia fazer?
  • 25. Voltou para a casa e, meia hora depois, o negro chegou. Vinha carregado de compras, quatro galinhas vivas e um galo. André sorriu. - Acho que planeja comer muitos ovos, não é? - Elas botam, nós comemos - Tomás disse, com uma lógica simples. com uma pequena quantia em dinheiro, conseguira comprar comida, pregos, um martelo, utensílios de cozinha, pratos, xícaras, um bule e um facão, que se parecia com a arma afiada e perigosa que os haitianos sempre usavam nos canaviais. Tomás olhou as compras, satisfeito, e André, contente em tê-lo como ajudante, sorriu. - Se vamos nos demorar aqui, acho que precisará de mais do que isso. - Começo com pouco - Tomás disse -, senão as pessoas farão perguntas. A lógica era irrefutável e André, ansioso por fazer perguntas, começou: - Sabe se há um convento aqui perto? Pensou que Tomás não tivesse entendido. - Freiras. Vi uma freira na floresta. - Vêm da igreja - disse Tomás. Apontou na direção para onde a freira tinha fugido e continuou: - A igreja é lá. - Então, vamos dar uma olhada. Vá buscar o meu cavalo. Sentiu que Tomás ia falar algo, dizer que aquilo podia ser um erro, mas tinha mesmo a intenção de ir e, sabendo como ele se sentia, o criado não disse nada. Pegou o cavalo no estábulo e o trouxe. André colocou uma gravata, abotoou as mangas da camisa e montou. Tomou a direção em que a freira tinha ido. No final do atalho, havia uma ligeira subida. Precisava cavalgar devagar, evitando que o chapéu lhe fosse levado da cabeça pelos ramos mais baixos das árvores. Também tinha que tomar cuidado com os troncos caídos. 51 Então, antes do que esperava, viu uma construção que parecia uma igreja. Parou, numa pequena elevação de onde dava para avistar toda a fazenda. A igreja era construída em pedra e muito antiga. Muito mais velha do que a casa do tio. Estava coberta de trepadeiras e parecia tão verdt como tudo que a rodeava. Entretanto, reparando melhor, viu que, no telhado, havia vários lugares remendados com madeira. Isso dava à igreja uma aparência rústica. Devia ter mais de cem anos e, talvez, por ela ficar ali, o tio tinha escolhido aquele local para construir a casa. Desejou poder se lembrar melhor das cartas que o tio escrevia fre frequentemente para a França. Tinham sido deixadas para trás, quando a família fugiu para Londres, durante a Revolução Francesa. Depois, o pai lhe escrevera, contando a tragédia que lhes sucedera e receberam poucas cartas em resposta, antes de um silêncio total. Qualquer que fosse a explicação para as atitudes do tio, quando veio para o Haiti, agora não importava mais. No momento, André só pensava que tinha encontrado a igreja onde o dinheiro estava enterrado. Porém, sentia um certo desânimo. A vegetação cobria tudo, com exceção da frente, que dava para a floresta. As raízes se entrelaçavam, dificultando uma escavação naquele local, sem antes ser feita uma limpeza. Era um problema sem resposta, no momento. Chegou até a igreja e, vendo a porta aberta, desmontou e amarrou o cavalo. Novamente, olhou em volta. Havia várias cailles abandonadas. Talvez, antigamente, ali fosse o centro de um vilarejo nativo, de onde todos os habitantes haviam partido. Só restava a igreja. Olhou mais atentamente e descobriu uma construção baixa, quase escondida por uma árvore imensa. As paredes eram brancas, como as da casa do tio, mas estavam mais
  • 26. 52 conservadas e tinham vidraças intactas. No centro, uma porta e um sino de bronze muito polido. Devia ser ali que as freiras viviam. Mas elas iriam esperar. Primeiro, queria visitar a igreja. Era toda de pedra. No altar, havia murais coloridos, que o deixaram curioso. Quando ficou na casa de Jacques, viu quadros semelhantes, que, na Europa, só tinha visto nos museus ingleses. Tinham cores brilhantes e desenhos rústicos. Porém, possuíam o mesmo toque que, há séculos, os italianos conseguiram. Quando demonstrou interesse, Jacques disse: O Haiti tem uma história de piratas e degoladores, mas, por outro lado, temos um talento artístico que nunca foi desenvolvido. - O que quer dizer com isso? - Alguns mulatos, como eu mesmo, viram quadros em outros lugares do mundo, que tentam reproduzir aqui. Querem ver o que conseguem, como artistas. Este é o resultado. - São muito diferentes e surpreendentes. Apesar de eu não ser um especialista em arte, acho que têm talento. - É o que penso. Um dia, vou levar um destes quadros à América do Norte. Ou então, Kirk poderá levar. - Duvido que os americanos os apreciem - Kirk respondera. Deixe André levá-los para a Inglaterra. Ou, melhor ainda, para a França. Agora, lembrava-se daquela conversa, ao olhar para os murais que se pareciam muito com os quadros de Jacques: representações primitivas de santos e anjos, da Virgem Maria, do nascimento de Cristo e da crucificação. Os desenhos, apesar de rústicos e exagerados, eram coloridos com tonalidades brilhantes. Os fiéis deviam se sentir inspirados por eles. Estava tão distraído, que não percebeu uma freira entrar na igreja e Parar a seu lado. - O que procura, meu filho? Era negra e tão velha, que sua pele parecia pergaminho. Usava um habito branco, com véu, e um rosário com um enorme crucifixo, na cintura. Falou calmamente, sem nenhuma preocupação. Mas, olhando-a, André Percebeu que estava com medo. 53 - Vim rezar, irmã. Olhou novamente os murais. - Estava admirando as pinturas. - Quando reformamos nossa igreja, não tivemos dinheiro para enfeitá-la. Recentemente, uma das irmãs tentou decorar as paredes. - Quando reformaram a igreja? O que houve com ela? Pensou que sua pergunta tinha deixado a velha um pouco ansiosa. Ela não sabia se devia responder ou mandá-lo cuidar da própria vida. Depois de alguma hesitação, disse: - Aqueles que estão dominados pela violência nem sempre respeitam a casa de Deus. André teve certeza de que a igreja fora danificada na mesma época do massacre da família Villaret, quando a casa do tio fora arrasada. - Posso conversar com a senhora, irmã? - Sobre o quê, meu filho? - Sobre o que aconteceu aqui e na fazenda Villaret. Deixe-me explicar: meu nome é André de Villaret e sou filho natural do conde Phillippe. A freira fez um movimento com a cabeça, como se aceitasse aquela possibilidade. Depois, disse: - O conde era um homem generoso e gentil. Construiu uma casa para nós, quando viemos do norte. - E quando foi isso? - Em 1791, quando começaram os levantes. Lembrou-se do que havia lido sobre a Revolução de Brickman ter! começado no norte. - Estávamos em segurança, aqui - a freira disse -, até que nosso protetor foi morto.
  • 27. Em sua voz soou uma nota de terror e suas mãos ficaram trémulas, agarrando depressa o crucifixo, como se ele lhe desse proteção contra as próprias recordações. - O que aconteceu à senhora e às outras freiras? - A maioria escapou, escondendo-se na floresta. - A maioria? Durante um momento, ela não pareceu disposta a responder. Então, quase num murmúrio, falou: - Eles não deixariam as brancas irem embora. 54 Soube, então, que as freiras brancas tinham sido mortas. Ou sofrido coisas piores. Então, como vira aquela freira na floresta? A que fugira correndo? Ficou em dúvida, se devia mencioná-la, e decidiu que não. Como se as recordações a enfraquecessem, a velha sentou-se num dos bancos do coro. André sentou-se ao seu lado. - Foi uma experiência terrível! - ela disse. - Terrível! Mas, o bom Deus nos protegeu. Quando tudo acabou, voltamos e encontramos a igreja só um pouco danificada e nossa casa quase do jeito que a tínhamos deixado. - Tiveram muita sorte. - Agradecemos a Deus. - E agora? O que está acontecendo com vocês? A freira olhou em direção ao altar. Seguindo seu olhar, André viu que o altar era entalhado em madeira bruta. Mesmo sem perguntar, sabia que tudo que a igreja possuíra, de algum valor, tinha sido roubado. - Acho que estamos seguras aqui. Henry Christophe é um bom católico, mas o imperador... Parou, sabendo que estava sendo indiscreta. Seus lábios tremiam. - O imperador detesta os brancos e não gosta dos mulatos - André disse -, mas alguns de nós somos úteis a ele e, por isso, poupou nossas vidas. Não desejava amedrontá-la ainda mais. Mesmo assim, precisava fazer mais uma pergunta: - Na sua ordem, onde imagino que seja a madre superiora, todas são mulatas ou negras? Houve um momento de silêncio. Então, com voz calma e sem expressão, ela respondeu. - Todas, monsieur! 55 CAPÍTULO IV André voltou para casa, mergulhado em pensamentos. Sabia que a madre superiora estava mentindo, mas não conseguira lhe dizer que havia encontrado uma freira branca, na floresta. Imaginou que, depois de fugir aterrorizada, a moça devia ter mencionado o que acontecera. Era de se esperar que nenhuma outra fosse vista nas vizinhanças. Entretanto, estava quase certo de que a superiora o olhara, com surpresa e não com medo. Seus pensamentos não o levavam a parte alguma. - Mais um quebra-cabecas nesta terra misteriosa - disse a si mesmo. Tentou visualizar os canaviais, as plantações de banana. No momento, a terra parecia selvagem, mas devia ter sido muito lucrativa. Por que o novo imperador ou Henry Christophe não mandaram negros para continuar cuidando da fazenda? Lembrou-se de ter ouvido dizer que os escravos, agora livres, não gostavam da ideia de trabalhar em seus antigos empregos, mesmo que o patrão fosse outro. Todo ex-escravo queria uma pequena caille em algum lugar onde pudesse viver sozinho ou com a família, com pouca terra, onde cultivava uma horta suficiente apenas para seu sustento. Entardecia, quando, finalmente, amarrou o cavalo nos fundos da casa, onde ficavam os estábulos semidestruídos e capazes de abrigar apenas os dois cavalos, agora.
  • 28. Entrou e encontrou Tomás arrumando a madeira que iria servir de mesa, com os novos pratos. - Não está preparando uma refeição assim tão cedo, está? 56 M'sieur come agora e depois vai encontrar DambaJlah. Olhou-o, surpreso. Quer dizer que marcou a cerimónia vodu para esta noite? Não precisou esperar pela resposta. Sabia, agora, onde Tomás estivera na noite passada e por que os tambores tinham parecido tão próximos. Pelo menos, aprenderia alguma coisa sobre o vodu, apesar de não acreditar muito na ideia otimista de Tomás, querendo resolver todos os problemas através dos deuses. Sentia-se suado da cavalgada, foi até o poço e se lavou, tirando vários baldes de água. Mais tarde, inspecionou cuidadosamente o corpo, procurando ver se a tinta estava desbotando. O trabalho de Jacques tinha sido muito eficiente. Ninguém suspeitaria de que era um branco. Entendia que, se fosse descoberto na cerimónia de vodu, seria sacrificado imediatamente. Vestiu roupas limpas e comeu uma refeição excelente. Mais uma vez, sentiu-se feliz por Tomás ser um cozinheiro tão bom. Então, sem mais conversa, o criado trouxe os dois cavalos. Tomaram o mesmo caminho pelo qual tinham vindo das montanhas. O céu estava cheio de cores vivas: alaranjado, vinho, verde. Enquanto viajavam, tudo foi ficando azulado e, depois, cor de ametista. Morcegos esvoaçaram sobre suas cabeças, perturbando alguns pássaros que procuravam o ninho. Então, baixinho, muito longe, sem ter muita certeza do que ouvia, André percebeu o som de tambores. O som ficou mais alto e parecia ecoar por todas as árvores e pela montanha, estendendo-se pela escuridão do vale, que agora era semelhante a um lago negro a seus pés. As estrelas começaram a aparecer, brilhando através dos ramos das árvores. André seguia atrás de Tomás. Não tinha nenhuma ideia de para onde iam. O criado dirigia o cavalo com a segurança de quem caminha, mais pelo ouvido do que pelos olhos. A noite se tornou viva, pulsante, cheia de sons que pareciam levar uma mensagem, mas André não a entendia. Já estavam quase no topo da montanha, quando, inesperadamente, T1 Tomás parou e desmontou. 57 André hesitou, depois fez o mesmo. Sem falar, o negro pegou as rédeas dos dois cavalos e se afastou. Amarrou os animais num velho tronco caído e voltou para junto do rapaz. Seguiram adiante, a pé. Através da escuridão, André viu luzes fraquinhas, brilhando à distân cia, enquanto que o som dos tambores aumentava cada vez mais, a ponto da vibração ser quase insuportável. Surgiu uma clareira e André parou, quando viu pessoas movendo-se contra as luzes. Depois, elas se perderam na escuridão. Tomás percebeu sua hesitação e disse: - Venha! Era quase num cochicho. Envergonhado por estar com medo, André o seguiu. No momento seguinte, estavam na beira da clareira. No centro, havia um mastro muito alto - ou podia ser uma enorme árvore, André não tinha certeza. Ao lado, luzinhas brilhavam: eram lamparinas em tigelas de óleo. De repente, surgiu um fogo na base do mastro. Agora, vozes humanas se misturavam ao som dos tambores. Por um momento, pareceu que aquela multidão gritava com toda força de seus pulmões, produzindo sons estranhos, como um desafio ao medo e, ao mesmo tempo, um convite a ele. André sentiu que Tomás o puxava para o chão. Sentou-se ao lado do negro e
  • 29. a dança começou. Achou que a dançarina era uma mamaloi. Depois surgiu um homem vestido apenas com uma tanga cor de vinho, que começou a traçar no chão estranhos desenhos, feitos com farinha de milho. De onde André estava, podia ver claramente os dedos do papaloi fazendo movimentos rápidos, dando ao desenho uma aparência de serpente. Apesar de não saber com certeza o significado daquilo, havia lido que, no início da cerimónia, era feita uma invocação especial aos deuses aos quais iriam pedir favores. O canto atingiu o som mais alto, os dançarinos aceleraram os movimentos. Mesmo os que assistiam, como Tomás e André, moviam o corpo, instintivamente, seguindo o ritmo dos tambores. Era uma coisa estranha, estar ali, ouvindo palavras que ele não 58 compreendia, pronunciadas podançarinos que sacudiam os corpos violentamente, com um abandono quase histérico. De vez em quando, ouviam um grito diferente, um grito de súplica. Quando o papaloi terminou o desenho, o ritmo se tornou mais forte e André teve uma sensação sensual, erótica e, ao mesmo tempo, violenta. O papaloi entrou na luz da fogueira. Na cabeça, usava um turbante feito de trapos coloridos, enfeitado com penas de galo. Era óbvio que estava em transe. Seu corpo todo tremia, assim como o chicote que trazia nas mãos. A dança se intensificou e a velha mamatoi começou a levantar e abaixar os braços. Segurava dois pombos brancos, que se debatiam furiosamente, e André ficou contente, quando os outros dançarinos esconderam o que aconteceu em seguida. Sabia que era um sacrifício aos deuses. Faziam aquilo, antes de pedirem qualquer coisa. A mamaloi matava as aves a dentadas. O sacrifício devia ter terminado, pois agora a música diminuía e a mamaloi, segurando o que restou dos pombos, rodopiava, de modo que todos pudessem ver a oferenda. Quando passou dançando perto de André, viu que usava apenas colares brancos cobrindo o busto. Colares feitos com vértebras de serpente. De repente, como um rugido, todos gritaram juntos: - Damballah Weydo! Damballah Weydo! O clamor das vozes parecia sacudir todos os ramos das árvores. Gritaram mais uma vez e mais outra. O papaloi bebeu em uma garrafa negra e soprou uma nuvem branca. - Aquilo é clarin - Tomás murmurou. André sabia que se tratava de um rum branco nativo, muito forte, capaz, não apenas de queimar o estômago de um homem, mas também sua mente. O papaloi se aproximou deles, rodopiando e tremendo tanto que parecia não ter controle sobre o próprio corpo. Depois se afastou, caiu de joelhos e começou a murmurar alguma coisa. Uma mulher saiu do meio das dançarinas e veio para o seu lado. Uepois, atirou sobre ele algo que parecia um cobertor grosso de lã. Cobriu-lhe primeiro os pés, depois o corpo trémulo e, finalmente, a cabeça. 59 Todas as vozes silenciaram e o som dos tambores diminuiu tornando se apenas um murmúrio. A figura enrolada no chão foi ficando mais e mais achatada. Durante um momento, ficou imóvel. Então, o cobertor começou a se mexer. A princípio, era quase imperceptível; depois, o movimento ficou mais e mais aparente. O fogo diminuiu, quase desaparecendo. André não conseguia ver bem Uma mão apareceu na extremidade do cobertor; mesmo assim, ele não tinha certeza do que era. Parecia mais a cabeça de uma cobra e se movia com uma graça quase sensual. Vagarosamente, saindo da escuridão, surgiu uma figura, que devia ser de um homem, do próprio papaloi. Só que, agora, apesar de conservar a aparência humana, ele parecia não ter ossos: seu corpo possuía a sinuosidade de uma serpente. - Fui hipnotizado - pensou.
  • 30. Não conseguia desviar os olhos da figura que aparecia à luz bruxuleante da fogueira e das poucas lamparinas. Era inacreditável, mas aquele corpo deixara de ser o de um homem. Então, da escuridão, veio uma voz. - Está aqui, André. Isso é bom! O rapaz ficou tenso. Devia estar sonhando. As palavras eram em francês e a voz era... de seu tio. - Vai encontrar o que procura - a voz disse -, porque Sãona lhe mostrará. Sãona sabe onde está escondido... Sãona... Sãona... A voz foi sumindo, seguida pela batida dos tambores. Agora o papaloi-cobra já não estava mais de pé, e sim de costas no chão, coberto pelo cobertor. Sua mão desapareceu por último e ainda parecia a cabeça de uma serpente. André achou que não conseguiria respirar. Então, as danças começaram outra vez, o som dos tambores aumentou e o fogo duplicou de tamanho Um homem começou a subir no mastro, gritando, como se estivesse em êxtase. André ficou sentado, imóvel, olhando o que acontecia e, ao mesmo tempo 60 esforcando-se a pensar com clareza e descobrir se o que havia ouvido não era produto da sua imaginação. Era a voz do tio, seu tio, falando um pouco rouco, mas muito autoritário e com as palavras educadas dos franceses nobres. Seria impossível que um daqueles negros seminus, reunidos ali para realizar um ritual tão antigo e primitivo, fosse capaz de falar daquele jeito. O papaloi levantou-se. Veio até André e estendeu a mão. Compreendeu e cumprimentou-o. Então, o papaloi virou-se para Tomás e fez a mesma coisa, mas de um modo diferente, usando um gesto que, mais tarde, André soube que era um sinal secreto entre os praticantes de vodu. Depois, disse algo que ele não ouviu e dirigiu-se a um outro homem sentado ali perto. Tomás tocou André no braço. - Vamos m'sieur. Levantou-se, relutante. Queria ficar, queria ouvir mais, queria se convencer de que o que acontecera ali era verdade. Viu que as danças se tornavam mais frenéticas. Um homem atirou ao chão uma mulher e cobriu-a com o corpo. Tomás puxou André e o levou para fora da floresta, caminhando com segurança em direção ao local onde tinham deixado os cavalos. Só então, o rapaz conseguiu falar. - Ouviu o que ele disse, Tomás? - Não, m'sieur, não ouvi nada. - Não ouviu nada? Mas tem que ter ouvido! O papaloi, quando saiu de debaixo do cobertor, falou comigo. Tomás soltou os cavalos. - Não ouvi nada, m'seur, André montou. Não adiantava conversar. Seguiu Tomás em direção à Planície. Só quando não havia mais árvores gigantescas à sua volta, o criado falou: - M'sieur foi abençoado por Damballah. Damballah vai ajudar. - Se não ouviu nada, como sabe? 61 - O papaloi disse que m'sieur está sob a proteção de Damballa Agora, tudo estará bem. - Não percebeu que o papaloi falou comigo sobre o tesouro qUl procuro? - Damballah fala ao coração, m'sieur. Aquela era a resposta, pensou André. Agora, acreditava que Tomás não tinha ouvido nada. Seu instinto lhe dizia que a voz do tio só havia sido ouvida por ele. Como era possível? Como um homem civilizado podia acreditar que aquela voz vinha de um morto? Lutou contra sua convicção interior de que aqueles acontecimentos eram verdadeiros. Seria possível? Era algo espantoso demais para compreender.