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A versão original desta conferência foi escrita e proferida em inglês por Paul Ricoeur a 8 de
Março de 2003 em Budapeste sob o título “Memory, history, oblivion” no âmbito de uma
conferência internacional intitulada “Haunting Memories? History in Europe after
Authoritarianism”.
Paul Ricoeur
Memória, história, esquecimento
O título que dou a esta conferência relembra, obviamente, o do meu recente livro; contudo, o
que eu proponho aqui não é um simples afloramento desse volume, feito de três partes, mas
antes uma espécie de releitura crítica a partir de uma inversão de ponto de vista. Em que
sentido? O fio condutor do meu livro é a escrita da história de acordo com a definição lexical
da história como historiografia. Daí a ordem seguida pela temática: em primeiro lugar, a
memória enquanto tal; depois, a história enquanto ciência humana, e o esquecimento como
dimensão da condição histórica de humanos que somos. A memória, segundo esta construção
linear, era vista simplesmente como matriz da história, enquanto a historiografia desenvolvia o
seu próprio percurso além da memória, desde o nível dos testemunhos escritos conservados
nos arquivos, até ao nível das operações de explicação; depois, até à elaboração do
documento histórico como obra literária. O esquecimento era, neste caso, tratado sobretudo
como uma ameaça para a operação central da memória, a reminiscência, a anamnesis dos
gregos, e, logo, como um limite da exigência do conhecimento histórico de providenciar uma
narrativa que ligue os acontecimentos passados. Do ponto de vista da escrita da história, a
noção de passado histórico parece ser a última e irredutível referência de todo o trabalho da
historiografia.
O que proponho hoje, é deslocar o ponto de vista adotado, o da escrita para a leitura, ou, mais
genericamente, da elaboração literária do trabalho histórico para a sua receção, seja ela
pública ou privada, de acordo com as linhas de uma hermenêutica da receção. Este
deslocamento dar-me-á oportunidade de extrair certos problemas cruciais que dizem
manifestamente mais respeito à recepção da história do que à sua escrita, para os trazer à luz.
As questões em jogo dizem respeito à memória, já não como simples matriz da história, mas
como reapropriação do passado histórico por uma memória que a história instruiu) e muitas
vezes feriu.
Como veremos, a questão do dever de memória ou de outros problemas cruciais que apelam a
uma política da memória – amnistia vs crimes imprescritíveis - podem ser colocados sob o
título da reapropriação do passado histórico por uma memória instruída pela história, e ferida
muitas vezes por ela.
Proponho-me aqui extrair as consequências mais interessantes deste deslocamento de ponto
de vista no que diz respeito à relação entre a memória e a história. Se a tratarmos de um modo
não linear mas circular, a memória pode aparecer duas vezes ao longo da nossa análise: antes
de mais, como matriz da história, se nos colocarmos no ponto de vista da escrita da história,
depois como canal da reapropriação do passado histórico tal como nos é narrado pelos relatos
históricos. Mas esta modificação do ponto de vista não implica que abandonemos a descrição
fenomenológica da memória em si, seja qual for a sua ligação com a história. Não poderíamos
falar seriamente da reapropriação do passado histórico efectuado pela memória, se não
tivéssemos, considerado previamente, os enigmas que incomodam o processo da memória
enquanto tal.
O primeiro enigma em jogo relaciona-se com a própria ideia de representação do passado
como memória. Como se vê em Aristóteles, no seu pequeno tratado “Da memória e da
reminiscência”, a memória é “do passado”. Que sentido dar a essa simples preposição “de”?
Este: uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente,
se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos
como tendo existido no passado. Encontram-se reunidos três traços de forma paradoxal: a
presença, a ausência, a anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordação está
presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve.
Uma metáfora tem um papel importante ao longo do trabalho de elucidação desse enigma e
pode ajudar-nos num momento: o da impressão, como o da marca do sinete na cera; a noção
de rasto faz, também ela, parte do mesmo conjunto de metáforas úteis. Mas permanece o
mesmo enigma: a impressão ou o rasto, ambos, estão plenamente presentes, no entanto, pela
sua presença reenviam para a chancela do sinete ou para a inscrição inicial do rasto. Além
disso, a noção de ausência tem múltiplas significações: pode referir a irrealidade de entidades
fictícias, de fantasmas, de sonhos, de utopias; ora a ausência do passado é qualquer coisa de
inteiramente diferente. Compreende o sentido da distância temporal, do afastamento, do
afundamento na ausência, marcado na nossa língua pelo tempo verbal ou por advérbios como
“antes”, “depois”. Reside aí o enigma que a memória deixa como herança à história: o passado
está, por assim dizer, presente na imagem como signo da sua ausência, mas trata-se de uma
ausência que, não estando mais, é tida como tendo estado. Esse “tendo estado” é o que a
memória se esforça por reencontrar. Ela reivindica a sua fidelidade a esse “tendo estado”. A
tese é que o deslocamento da escrita para a receção e a reapropriação não suprime esse
enigma.
Confrontada com um tal enigma, a memória não deixa de ter recursos. Desde Platão e
Aristóteles, falamos da memória não só em termos de presença/ausência, mas também em
termos de lembrança, de rememoração, aquilo que chamavam anamnesis. E quando essa
busca termina, falamos de reconhecimento. É a Bergson que devemos o ter recolocado o
reconhecimento no centro de toda a problemática da memória. Em relação ao difícil conceito
da sobrevivência das imagens do passado, seja qual for a conjunção feita entre as noções de
reconhecimento e de sobrevivência do passado, o reconhecimento, tomado como um dado
fenomenológico, permanece, como gosto de dizer, uma espécie de “pequeno milagre”.
Nenhuma outra experiência dá a este ponto a certeza da presença real da ausência do
passado. Ainda que não estando mais lá, o passado é reconhecido como tendo estado. É claro
que podemos colocar em dúvida uma tal pretensão de verdade. Mas não temos nada melhor
do que a memória para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que
declarássemos lembrar-nos dela. Isto é simultaneamente o enigma e a sua frágil resolução,
que a memória transmite à história, mas que ela transmite também à reapropriação do
passado histórico pela memória uma vez que o reconhecimento continua um privilégio da
memória, do qual a história está desprovida. Mas dele está igualmente desprovida a
reapropriação do passado histórico pela memória. A história pode, no máximo, fornecer
construções que ela declara serem reconstruções. Mas entre as reconstruções, tão precisas e
próximas dos factos quanto possível, e o reconhecimento, subsiste um fosso lógico e
fenomenológico. Nós podemos a partir de agora antecipar as situações conflituais que
resultam da reivindicação de fidelidade da memória, demasiado facilmente assimilada a uma
rememoração que não acaba perante as estratégias longas e complicadas da história.
Gostaria de dizer algumas palavras a propósito da história como epistemologia. Não podemos
economizar esta etapa na medida em que a receção da história, como modo de apropriação
do passado pela memória, constitui o contraponto de toda a operação historiográfica. É na
possibilidade e pretensão de reduzir a memória a um simples objeto da história entre outros
fenómenos culturais que se diferenciam muito claramente as duas abordagens. Essa redução é
um dos efeitos mais surpreendentes da inversão dos papéis gerada pela emergência e
desenvolvimento da história como ciência humana. Podemos atribuir a primeira fratura
potencial entre a história e a memória ao desenvolvimento da escrita como meio de inscrever
a experiência humana sobre um suporte material, distinto do corpo: tijolo, papiro,
pergaminho, papel, disco compacto, para já não falar das inscrições que não transcrevem a voz
humana: marcas, desenhos, jogo de cores no vestuário, jardins, estelas, monumentos…
Poderíamos seguir a linha de fratura com a memória ao longo das etapas da constituição do
conhecimento histórico. Não é isso que nos ocupa aqui hoje, e contudo quero abrir uma
exceção pelo interesse por certos métodos críticos com os quais a memória, que se reapropria
do passado histórico hic et nunc, pode ter de se confrontar.
Limitarei a três grandes fenómenos essa incursão no trabalho da historiografia.
Primeiramente, o lugar e o papel do testemunho na fase da investigação documental. O
testemunho é, num sentido, uma extensão da memória, tomada na sua fase narrativa. Mas só
há testemunho quando a narrativa de um acontecimento é publicitada: o indivíduo afirma a
alguém que foi testemunha de alguma coisa que teve lugar; a testemunha diz: “creiam ou não,
em mim, eu estava lá”. O outro recebe o seu testemunho, escreve-o e conserva-o. O
testemunho é reforçado pela promessa de testemunhar de novo, se necessário; o que implica
a fiabilidade da testemunha e dá ao testemunho a gravidade de um sermão. A dimensão
fiduciária de todos os tipos de relações humanas é assim trazida à luz: tratados, pactos,
contratos e outras interacções que repousam na nossa confiança na palavra do outro. Mas o
testemunho é, ao mesmo tempo, o ponto fraco do estabelecer da prova documental. É sempre
possível opor os testemunhos uns aos outros, quer no que diz respeito aos factos relatados,
quer no que respeita à fiabilidade das testemunhas. Uma parte importante da batalha dos
historiadores para o estabelecimento da verdade, nasce da confrontação dos testemunhos,
principalmente dos testemunhos escritos; são levantadas questões: porque foram
preservados? Por quem? Para benefício de quem? Essa situação de conflito não pode limitar-
se ao campo da história como ciência, reaparece ao nível dos nossos conflitos entre
contemporâneos, ao nível das questões fortes, às vezes formuladas coletivamente, em prol de
uma tradição memorial contra outras memórias tradicionais.
Uma segunda série de características relativas à fase explicativa da operação histórica terá
consequências no estádio da leitura e da receção. Isso prende-se com o cruzamento de
explicações causais e intencionais. A esse respeito não há nos historiadores imposições
estabelecidas quanto aos diversos empregos do termo “porque”, em resposta à questão
“porquê?”. Certos usos da conexão causal estão muito próximos daqueles que são utilizados
nas ciências da natureza: é o caso na história económica, na demografia, na linguística e
mesmo no tratamento de configurações culturais. São, ao mesmo tempo, explicações em
termos de razões, e razões de agir de tal ou tal forma. Neste último caso, deveríamos poder
falar mais de compreensão do que de explicação. A essa arquitetura complexa do que se
chama a explicação histórica, é preciso juntar a possibilidade da operação histórica de variar a
escala de um fenómeno, e de passar de uma escala a outra no que diz respeito às durações
temporais: “longa duração” de Braudel, em suma intervalos de tempos no género de micro
história que a escola italiana pratica. Este “jogo de escala” é apenas um exemplo do
emaranhado de interpretações, sejam elas causais ou finais, durante o processo explicativo.
Com a interpretação, passa a primeiro plano a implicação pessoal do historiador. Sem
sobrestimar os preconceitos, as paixões, a parcialidade do comprometimento do historiador, é
suficiente sublinhar o papel que estes elementos têm na escolha do seu tema de predileção,
do seu campo de pesquisa, a escolha dos arquivos que frequentam, e até a escolha de
explicações causais ou finais. A interpretação não é uma fase à margem do conjunto da
operação histórica; pelo contrário, ela trabalha a todos os níveis, desde o estabelecimento do
testemunho e dos arquivos até à explicação em termos de finalidade ou de causalidade, desde
a esfera da economia à da cultura.
É com a história cultural que a pretensão da história de anexar a memória à esfera da cultura
atinge o seu auge. Da memória como matriz da história passámos à memória como objeto da
história. Com o desenvolvimento do que chamámos a história das mentalidades – embora este
termo esteja atualmente mais ou menos desacreditado – essa inserção da história entre
outros fenómenos culturais que podemos chamar representações, está, em princípio,
legitimada. Ela pode até revelar-se útil no interesse da autocrítica da memória, sobretudo ao
nível da memória coletiva. O caráter seletivo da memória, auxiliado nesse aspeto pelas
narrativas, implica que os mesmos acontecimentos não sejam memorizados da mesma forma
em períodos diferentes. Por exemplo em França, depois de 1945, o discurso público
concentrou-se primeiramente sobre o que se apresentava como factos de colaboração e de
resistência. Só mais tarde, com o processo Barbie, é que a especificidade da atroz experiência
dos judeus, com as narrativas da deportação e exterminação de milhões de judeus, foi
reconhecido como um crime distinto de todos os outros. Aqui, a fronteira entre a memória
objeto de história e a memória efetiva dos indivíduos e das comunidades – chamemos-lhes
comunidades históricas – esboroa-se. O caso das narrativas realizadas pelos sobreviventes é,
aqui, exemplar: pertencem à história como fenómenos culturais entre outros.
Esse dilema leva-me ao assunto que introduzi no início desta conferência sob o título da
memória instruída pela história. É no ponto de interseção entre a história como trabalho
literário e a leitura como meio de receção privilegiado, no sentido de uma hermenêutica da
receção, que a memória é instruída; ela é instruída por esses dois processos, de escrita e de
leitura. Passaríamos ao lado dessa conjunção de base se não tomássemos em linha de conta a
última etapa da operação historiográfica: a produção de uma literatura que lhe é própria.
Naturalmente, a tarefa histórica repousa inteiramente sobre a escrita, como indica o papel
desempenhado pelos testemunhos escritos dos nossos arquivos: ousamos inclusive ligar a
origem da história à da escrita. Mas a história gera novas espécies de escrita: livros e artigos,
conjunto de cartas, de imagens, de fotos e de outras inscrições. É justamente nesta fase que a
historiografia, no sentido lato do termo, pode instruir a memória. Essa conjunção da escrita e
da leitura encontra-se na experiência partilhada da narrativa; até a história económica ou
demográfica descreve mudanças, ciclos, desenvolvimentos que são narrados; o que implica
imposições narrativas de maneira a permitir ao historiador fornecer uma legibilidade ao texto
e uma visibilidade aos eventos que narra, por vezes, em detrimento da complexidade e da
opacidade do passado histórico. A isto acrescenta-se a parte mais discreta desempenhada
pelas imposições retóricas que possibilitaram a alguns exagerar o risco de aproximar a história
da retórica mais do que da ciência. O que não impede que a ideia de objetividade histórica
mereça ser defendida contra formas de relativismo que privariam a historiografia da sua
ambição primeira: a de oferecer uma representação fiável do passado. Essa afirmação de
fiabilidade deve ser renovada não só contra o tratamento retórico do conhecimento histórico,
mas também contra alegadas reivindicações que nascem e são preservadas por memórias
comunitárias. Sem essa ambição de verdade do saber histórico, a história não teria o seu papel
no confronto com a memória; voltarei a isso mais adiante. Certamente que a história está
privada dessa “graça” do reconhecimento que dá à memória uma espécie de iluminação; essa
ausência cria o seu mal-estar, mas não a condena; podemos apenas esperar das suas
construções que elas sejam conduzidas como reconstruções segundo uma lógica de
probabilidade, para utilizar os termos de C. Ginzburg a propósito do seu modelo da verdade
histórica.
Na última parte da minha conferência cingir-me-ei a três questões cruciais do problema da
memória instruída pela história: o mal-entendido potencial entre historiadores e advogados da
memória, a questão tão controversa do dever de memória e, para finalizar, os usos e abusos
do esquecimento.
A primeira questão discutiu o possível choque entre os objectivos que o conhecimento
histórico persegue e os da memória, sejam eles pessoais ou coletivos. A história engloba um
horizonte de acontecimentos passados mais amplo do que a memória, cujo alcance é mais
reduzido e pode parecer devorado pelo vasto campo do tempo histórico. Além disso, a história
pode introduzir comparações que tendem a relativizar a unicidade e o caráter incomparável de
memórias dolorosas. Acrescente-se a isso a pluralidade de perspetivas que a história abre
sobre os eventos: económica, social, política, cultural. Enfim, esse esforço de compreensão
pode dar a impressão de que se é impedido de julgar, de condenar; contrariamente ao juiz ou
ao cidadão comum, não é inclusive permitido ao historiador concluir; a sua preocupação reside
em compreender, explicar, discutir e debater. Todas estas razões fazem com que possa existir
um mal-entendido persistente entre o conhecimento histórico e a memória. A memória
coletiva não está privada de recursos críticos; os trabalhos escritos dos historiadores não são
os seus únicos recursos de representação do passado; concorrem com outros tipos de escrita:
textos de ficção, adaptações ao teatro, ensaios, panfletos; mas existem igualmente modos de
expressão não escrita: fotos, quadros e, sobretudo, filmes (pensemos em Shoah de Claude
Lanzmann, em A Lista de Schindler de Spielberg). Além disso, o género retrospetivo próprio à
história concorre com os discursos prospetivos, os projetos de reforma, as utopias; em suma,
concorre com os discursos voltados para o futuro. Os historiadores não devem esquecer que
são os cidadãos que fazem realmente a história – os historiadores apenas a dizem; mas eles
são também cidadãos responsáveis pelo que dizem, sobretudo quando o seu trabalho toca nas
memórias feridas. A memória não foi apenas instruída mas igualmente ferida pela história.
Esse comentário leva-me ao segundo problema, o do dever de fazer memória, como se diz; o
dever de não esquecer, para antecipar a nossa última reflexão. O dever de memória é, muitas
vezes, uma reivindicação, de uma história criminosa, feita pelas vítimas; a sua derradeira
justificação é esse apelo à justiça que devemos às vítimas.
É aí que a incompreensão entre os advogados da memória e os adeptos do saber histórico
atinge o seu auge, na medida em que a heterogeneidade das intenções é exacerbada: por um
lado, o campo demasiado breve da memória face ao vasto horizonte do conhecimento
histórico; por outro, a persistência das feridas feitas pela história; por um lado, o uso da
comparação em história, por outro, a afirmação de unicidade dos sofrimentos suportados por
uma comunidade particular ou por todo um povo; para os historiadores, a dimensão
incomparável de um evento só pode ser afirmada depois de se terem avaliado as semelhanças
e as diferenças. Para arbitrar estas reivindicações concorrentes, pode ser útil olhar para os
conceitos da psicanálise: num ensaio intitulado Erinnern, Wiedreholen, Durch/arbeiten,
[rememoração, repetição, perlaboração], Freud introduz a noção de Errinnerungarbeit
[trabalho da memória], para caracterizar a luta a empreender contra a imposição de repetição
estabelecida sob a pressão das resistências solidamente estabelecidas. Dela podemos
conservar e transpor alguma coisa para o campo da memória histórica, sobretudo se
completamos a noção de trabalho de memória pela de trabalho de luto, tomado de um outro
ensaio consagrado ao luto e à melancolia. Sugiro que unamos a noção de dever de memória,
que é uma noção moral, às de trabalho de memória e trabalho de luto, que são noções
puramente psicológicas. A vantagem desta aproximação é que ela permite incluir a dimensão
crítica do conhecimento histórico no seio do trabalho de memória e de luto. Mas a última
palavra deve ser do conceito moral de dever de memória, que se dirige, como se disse, à
noção de justiça devida às vítimas.
O nosso terceiro e último problema diz respeito ao lugar do esquecimento no campo que é
comum à memória e à história; deriva da evocação que acaba de ser feita do dever de
memória: este pode ser igualmente expresso como um dever de não esquecer. O
esquecimento é, certamente, um tema em si mesmo. Diz respeito à noção de rasto, de que
falamos antes, e da qual tínhamos constatado a multiplicidade das suas formas: rastos
cerebrais, impressões psíquicas, documentos escritos dos nossos arquivos. O que a noção de
rasto e esquecimento têm em comum é, antes de tudo o mais, a noção de apagamento, de
destruição. Mas este processo inevitável de apagamento não esgota o problema do
esquecimento. O esquecimento tem igualmente um polo ativo ligado ao processo de
rememoração, essa busca para reencontrar as memórias perdidas, que, embora tornadas
indisponíveis, não estão realmente desaparecidas. De uma certa forma, essa indisponibilidade
encontra a sua explicação ao nível de conflitos inconscientes. A esse respeito, uma das lições
preciosas da psicanálise é que esquecemos menos do que pensamos ou cremos. Podemos
reencontrar uma experiência traumática da infância com a ajuda de procedimentos específicos
próprios àquilo que se chama “talking cure”. Freud atribui às resistências solidamente
instaladas, a compulsão para repetir em vez de se rememorar. Rememorar é uma forma de
trabalho; o trabalho de luto, ao qual Freud consagra um outro ensaio importante, Luto e
melancolia, não está afastado dele.
Mas essa aproximação através da psicanálise das ambiguidades do esquecimento, não deve
impedir-nos de explorar outras formas de esquecimento às quais podemos ter de responder.
Começamos por essa nota muito simples segundo a qual as recordações são, por assim dizer,
narrativas e que as narrativas são necessariamente seletivas. Se somos incapazes de nos
lembrar de tudo, somos ainda mais incapazes de tudo narrar; a ideia de narrativa exaustiva é
uma perfeita insensatez. As consequências no que diz respeito à reapropriação do passado
histórico são enormes. A ideologização da memória, e todas as espécies de manipulações da
mesma ordem, tornaram-se possíveis através das possibilidades de variação que o trabalho de
configuração narrativa dos nossos textos oferece. As estratégias do esquecimento enxertam-se
diretamente no trabalho de configuração: evitamento, evasão, fuga.
Falámos de reapropriação do passado histórico, é preciso falarmos igualmente da privação dos
atores do seu poder originário, o de narrarem-se a eles próprios. É difícil destrinçar a
responsabilidade pessoal dos atores individuais, da das pressões sociais que trabalham
subterraneamente a memória colectiva. Essa privação é responsável por esta mistura de abuso
de memória e de abuso de esquecimento que nos levaram a falar de demasiada memória aqui
e de demasiado esquecimento ali. É da responsabilidade do cidadão guardar um justo
equilíbrio entre estes dois excessos.
Não quero dar por encerrada esta série de notas sobre os ardis do esquecimento, sem
mencionar a dimensão jurídica e política deste problema. A prática da amnistia vem-me à
cabeça. Ela começa com o famoso decreto promulgado em Atenas em 403 a.C., segundo o
qual é interdito recordar os crimes cometidos pelos dois partidos, crimes a que chamamos de
“infelicidade”; daí o juramento pronunciado pelos cidadãos um a um: “não recordarei as
infelicidades” (mnesikakein – contra- memória). Muitas democracias modernas fazem amplo
uso deste género de esquecimento por imposição, por honrosas razões que visam a
manutenção da paz social. Mas subsiste um problema filosófico: não será a prática da amnistia
prejudicial à verdade à justiça? Por onde passa a linha de demarcação entre a amnistia e a
amnésia? As respostas a estas questões não se encontram ao nível político, mas ao nível mais
íntimo de cada cidadão, no seu foro interior. Graças ao trabalho de memória, completado pelo
de luto, cada um de nós tem o dever de não esquecer mas de dizer o passado, de um modo
pacífico, sem cólera, por muito doloroso que seja.
Gostaria de concluir a minha conferência com uma frase plena de poesia que devemos a Isak
Dinesen e que Hannah Arendt colocou no frontispício do seu capítulo consagrado ao conceito
de ação em A condição humana:
All sorrows can be borne if you put them into a story or tell a story about it.
As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se as narrarmos ou fizermos delas
uma história.

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Ricoeur memoria historia

  • 1. A versão original desta conferência foi escrita e proferida em inglês por Paul Ricoeur a 8 de Março de 2003 em Budapeste sob o título “Memory, history, oblivion” no âmbito de uma conferência internacional intitulada “Haunting Memories? History in Europe after Authoritarianism”. Paul Ricoeur Memória, história, esquecimento O título que dou a esta conferência relembra, obviamente, o do meu recente livro; contudo, o que eu proponho aqui não é um simples afloramento desse volume, feito de três partes, mas antes uma espécie de releitura crítica a partir de uma inversão de ponto de vista. Em que sentido? O fio condutor do meu livro é a escrita da história de acordo com a definição lexical da história como historiografia. Daí a ordem seguida pela temática: em primeiro lugar, a memória enquanto tal; depois, a história enquanto ciência humana, e o esquecimento como dimensão da condição histórica de humanos que somos. A memória, segundo esta construção linear, era vista simplesmente como matriz da história, enquanto a historiografia desenvolvia o seu próprio percurso além da memória, desde o nível dos testemunhos escritos conservados nos arquivos, até ao nível das operações de explicação; depois, até à elaboração do documento histórico como obra literária. O esquecimento era, neste caso, tratado sobretudo como uma ameaça para a operação central da memória, a reminiscência, a anamnesis dos gregos, e, logo, como um limite da exigência do conhecimento histórico de providenciar uma narrativa que ligue os acontecimentos passados. Do ponto de vista da escrita da história, a noção de passado histórico parece ser a última e irredutível referência de todo o trabalho da historiografia. O que proponho hoje, é deslocar o ponto de vista adotado, o da escrita para a leitura, ou, mais genericamente, da elaboração literária do trabalho histórico para a sua receção, seja ela pública ou privada, de acordo com as linhas de uma hermenêutica da receção. Este deslocamento dar-me-á oportunidade de extrair certos problemas cruciais que dizem manifestamente mais respeito à recepção da história do que à sua escrita, para os trazer à luz. As questões em jogo dizem respeito à memória, já não como simples matriz da história, mas como reapropriação do passado histórico por uma memória que a história instruiu) e muitas vezes feriu. Como veremos, a questão do dever de memória ou de outros problemas cruciais que apelam a uma política da memória – amnistia vs crimes imprescritíveis - podem ser colocados sob o título da reapropriação do passado histórico por uma memória instruída pela história, e ferida muitas vezes por ela. Proponho-me aqui extrair as consequências mais interessantes deste deslocamento de ponto de vista no que diz respeito à relação entre a memória e a história. Se a tratarmos de um modo
  • 2. não linear mas circular, a memória pode aparecer duas vezes ao longo da nossa análise: antes de mais, como matriz da história, se nos colocarmos no ponto de vista da escrita da história, depois como canal da reapropriação do passado histórico tal como nos é narrado pelos relatos históricos. Mas esta modificação do ponto de vista não implica que abandonemos a descrição fenomenológica da memória em si, seja qual for a sua ligação com a história. Não poderíamos falar seriamente da reapropriação do passado histórico efectuado pela memória, se não tivéssemos, considerado previamente, os enigmas que incomodam o processo da memória enquanto tal. O primeiro enigma em jogo relaciona-se com a própria ideia de representação do passado como memória. Como se vê em Aristóteles, no seu pequeno tratado “Da memória e da reminiscência”, a memória é “do passado”. Que sentido dar a essa simples preposição “de”? Este: uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente, se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos como tendo existido no passado. Encontram-se reunidos três traços de forma paradoxal: a presença, a ausência, a anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve. Uma metáfora tem um papel importante ao longo do trabalho de elucidação desse enigma e pode ajudar-nos num momento: o da impressão, como o da marca do sinete na cera; a noção de rasto faz, também ela, parte do mesmo conjunto de metáforas úteis. Mas permanece o mesmo enigma: a impressão ou o rasto, ambos, estão plenamente presentes, no entanto, pela sua presença reenviam para a chancela do sinete ou para a inscrição inicial do rasto. Além disso, a noção de ausência tem múltiplas significações: pode referir a irrealidade de entidades fictícias, de fantasmas, de sonhos, de utopias; ora a ausência do passado é qualquer coisa de inteiramente diferente. Compreende o sentido da distância temporal, do afastamento, do afundamento na ausência, marcado na nossa língua pelo tempo verbal ou por advérbios como “antes”, “depois”. Reside aí o enigma que a memória deixa como herança à história: o passado está, por assim dizer, presente na imagem como signo da sua ausência, mas trata-se de uma ausência que, não estando mais, é tida como tendo estado. Esse “tendo estado” é o que a memória se esforça por reencontrar. Ela reivindica a sua fidelidade a esse “tendo estado”. A tese é que o deslocamento da escrita para a receção e a reapropriação não suprime esse enigma. Confrontada com um tal enigma, a memória não deixa de ter recursos. Desde Platão e Aristóteles, falamos da memória não só em termos de presença/ausência, mas também em termos de lembrança, de rememoração, aquilo que chamavam anamnesis. E quando essa busca termina, falamos de reconhecimento. É a Bergson que devemos o ter recolocado o reconhecimento no centro de toda a problemática da memória. Em relação ao difícil conceito da sobrevivência das imagens do passado, seja qual for a conjunção feita entre as noções de reconhecimento e de sobrevivência do passado, o reconhecimento, tomado como um dado fenomenológico, permanece, como gosto de dizer, uma espécie de “pequeno milagre”. Nenhuma outra experiência dá a este ponto a certeza da presença real da ausência do passado. Ainda que não estando mais lá, o passado é reconhecido como tendo estado. É claro que podemos colocar em dúvida uma tal pretensão de verdade. Mas não temos nada melhor do que a memória para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que
  • 3. declarássemos lembrar-nos dela. Isto é simultaneamente o enigma e a sua frágil resolução, que a memória transmite à história, mas que ela transmite também à reapropriação do passado histórico pela memória uma vez que o reconhecimento continua um privilégio da memória, do qual a história está desprovida. Mas dele está igualmente desprovida a reapropriação do passado histórico pela memória. A história pode, no máximo, fornecer construções que ela declara serem reconstruções. Mas entre as reconstruções, tão precisas e próximas dos factos quanto possível, e o reconhecimento, subsiste um fosso lógico e fenomenológico. Nós podemos a partir de agora antecipar as situações conflituais que resultam da reivindicação de fidelidade da memória, demasiado facilmente assimilada a uma rememoração que não acaba perante as estratégias longas e complicadas da história. Gostaria de dizer algumas palavras a propósito da história como epistemologia. Não podemos economizar esta etapa na medida em que a receção da história, como modo de apropriação do passado pela memória, constitui o contraponto de toda a operação historiográfica. É na possibilidade e pretensão de reduzir a memória a um simples objeto da história entre outros fenómenos culturais que se diferenciam muito claramente as duas abordagens. Essa redução é um dos efeitos mais surpreendentes da inversão dos papéis gerada pela emergência e desenvolvimento da história como ciência humana. Podemos atribuir a primeira fratura potencial entre a história e a memória ao desenvolvimento da escrita como meio de inscrever a experiência humana sobre um suporte material, distinto do corpo: tijolo, papiro, pergaminho, papel, disco compacto, para já não falar das inscrições que não transcrevem a voz humana: marcas, desenhos, jogo de cores no vestuário, jardins, estelas, monumentos… Poderíamos seguir a linha de fratura com a memória ao longo das etapas da constituição do conhecimento histórico. Não é isso que nos ocupa aqui hoje, e contudo quero abrir uma exceção pelo interesse por certos métodos críticos com os quais a memória, que se reapropria do passado histórico hic et nunc, pode ter de se confrontar. Limitarei a três grandes fenómenos essa incursão no trabalho da historiografia. Primeiramente, o lugar e o papel do testemunho na fase da investigação documental. O testemunho é, num sentido, uma extensão da memória, tomada na sua fase narrativa. Mas só há testemunho quando a narrativa de um acontecimento é publicitada: o indivíduo afirma a alguém que foi testemunha de alguma coisa que teve lugar; a testemunha diz: “creiam ou não, em mim, eu estava lá”. O outro recebe o seu testemunho, escreve-o e conserva-o. O testemunho é reforçado pela promessa de testemunhar de novo, se necessário; o que implica a fiabilidade da testemunha e dá ao testemunho a gravidade de um sermão. A dimensão fiduciária de todos os tipos de relações humanas é assim trazida à luz: tratados, pactos, contratos e outras interacções que repousam na nossa confiança na palavra do outro. Mas o testemunho é, ao mesmo tempo, o ponto fraco do estabelecer da prova documental. É sempre possível opor os testemunhos uns aos outros, quer no que diz respeito aos factos relatados, quer no que respeita à fiabilidade das testemunhas. Uma parte importante da batalha dos historiadores para o estabelecimento da verdade, nasce da confrontação dos testemunhos, principalmente dos testemunhos escritos; são levantadas questões: porque foram preservados? Por quem? Para benefício de quem? Essa situação de conflito não pode limitar- se ao campo da história como ciência, reaparece ao nível dos nossos conflitos entre contemporâneos, ao nível das questões fortes, às vezes formuladas coletivamente, em prol de uma tradição memorial contra outras memórias tradicionais.
  • 4. Uma segunda série de características relativas à fase explicativa da operação histórica terá consequências no estádio da leitura e da receção. Isso prende-se com o cruzamento de explicações causais e intencionais. A esse respeito não há nos historiadores imposições estabelecidas quanto aos diversos empregos do termo “porque”, em resposta à questão “porquê?”. Certos usos da conexão causal estão muito próximos daqueles que são utilizados nas ciências da natureza: é o caso na história económica, na demografia, na linguística e mesmo no tratamento de configurações culturais. São, ao mesmo tempo, explicações em termos de razões, e razões de agir de tal ou tal forma. Neste último caso, deveríamos poder falar mais de compreensão do que de explicação. A essa arquitetura complexa do que se chama a explicação histórica, é preciso juntar a possibilidade da operação histórica de variar a escala de um fenómeno, e de passar de uma escala a outra no que diz respeito às durações temporais: “longa duração” de Braudel, em suma intervalos de tempos no género de micro história que a escola italiana pratica. Este “jogo de escala” é apenas um exemplo do emaranhado de interpretações, sejam elas causais ou finais, durante o processo explicativo. Com a interpretação, passa a primeiro plano a implicação pessoal do historiador. Sem sobrestimar os preconceitos, as paixões, a parcialidade do comprometimento do historiador, é suficiente sublinhar o papel que estes elementos têm na escolha do seu tema de predileção, do seu campo de pesquisa, a escolha dos arquivos que frequentam, e até a escolha de explicações causais ou finais. A interpretação não é uma fase à margem do conjunto da operação histórica; pelo contrário, ela trabalha a todos os níveis, desde o estabelecimento do testemunho e dos arquivos até à explicação em termos de finalidade ou de causalidade, desde a esfera da economia à da cultura. É com a história cultural que a pretensão da história de anexar a memória à esfera da cultura atinge o seu auge. Da memória como matriz da história passámos à memória como objeto da história. Com o desenvolvimento do que chamámos a história das mentalidades – embora este termo esteja atualmente mais ou menos desacreditado – essa inserção da história entre outros fenómenos culturais que podemos chamar representações, está, em princípio, legitimada. Ela pode até revelar-se útil no interesse da autocrítica da memória, sobretudo ao nível da memória coletiva. O caráter seletivo da memória, auxiliado nesse aspeto pelas narrativas, implica que os mesmos acontecimentos não sejam memorizados da mesma forma em períodos diferentes. Por exemplo em França, depois de 1945, o discurso público concentrou-se primeiramente sobre o que se apresentava como factos de colaboração e de resistência. Só mais tarde, com o processo Barbie, é que a especificidade da atroz experiência dos judeus, com as narrativas da deportação e exterminação de milhões de judeus, foi reconhecido como um crime distinto de todos os outros. Aqui, a fronteira entre a memória objeto de história e a memória efetiva dos indivíduos e das comunidades – chamemos-lhes comunidades históricas – esboroa-se. O caso das narrativas realizadas pelos sobreviventes é, aqui, exemplar: pertencem à história como fenómenos culturais entre outros. Esse dilema leva-me ao assunto que introduzi no início desta conferência sob o título da memória instruída pela história. É no ponto de interseção entre a história como trabalho literário e a leitura como meio de receção privilegiado, no sentido de uma hermenêutica da receção, que a memória é instruída; ela é instruída por esses dois processos, de escrita e de leitura. Passaríamos ao lado dessa conjunção de base se não tomássemos em linha de conta a última etapa da operação historiográfica: a produção de uma literatura que lhe é própria.
  • 5. Naturalmente, a tarefa histórica repousa inteiramente sobre a escrita, como indica o papel desempenhado pelos testemunhos escritos dos nossos arquivos: ousamos inclusive ligar a origem da história à da escrita. Mas a história gera novas espécies de escrita: livros e artigos, conjunto de cartas, de imagens, de fotos e de outras inscrições. É justamente nesta fase que a historiografia, no sentido lato do termo, pode instruir a memória. Essa conjunção da escrita e da leitura encontra-se na experiência partilhada da narrativa; até a história económica ou demográfica descreve mudanças, ciclos, desenvolvimentos que são narrados; o que implica imposições narrativas de maneira a permitir ao historiador fornecer uma legibilidade ao texto e uma visibilidade aos eventos que narra, por vezes, em detrimento da complexidade e da opacidade do passado histórico. A isto acrescenta-se a parte mais discreta desempenhada pelas imposições retóricas que possibilitaram a alguns exagerar o risco de aproximar a história da retórica mais do que da ciência. O que não impede que a ideia de objetividade histórica mereça ser defendida contra formas de relativismo que privariam a historiografia da sua ambição primeira: a de oferecer uma representação fiável do passado. Essa afirmação de fiabilidade deve ser renovada não só contra o tratamento retórico do conhecimento histórico, mas também contra alegadas reivindicações que nascem e são preservadas por memórias comunitárias. Sem essa ambição de verdade do saber histórico, a história não teria o seu papel no confronto com a memória; voltarei a isso mais adiante. Certamente que a história está privada dessa “graça” do reconhecimento que dá à memória uma espécie de iluminação; essa ausência cria o seu mal-estar, mas não a condena; podemos apenas esperar das suas construções que elas sejam conduzidas como reconstruções segundo uma lógica de probabilidade, para utilizar os termos de C. Ginzburg a propósito do seu modelo da verdade histórica. Na última parte da minha conferência cingir-me-ei a três questões cruciais do problema da memória instruída pela história: o mal-entendido potencial entre historiadores e advogados da memória, a questão tão controversa do dever de memória e, para finalizar, os usos e abusos do esquecimento. A primeira questão discutiu o possível choque entre os objectivos que o conhecimento histórico persegue e os da memória, sejam eles pessoais ou coletivos. A história engloba um horizonte de acontecimentos passados mais amplo do que a memória, cujo alcance é mais reduzido e pode parecer devorado pelo vasto campo do tempo histórico. Além disso, a história pode introduzir comparações que tendem a relativizar a unicidade e o caráter incomparável de memórias dolorosas. Acrescente-se a isso a pluralidade de perspetivas que a história abre sobre os eventos: económica, social, política, cultural. Enfim, esse esforço de compreensão pode dar a impressão de que se é impedido de julgar, de condenar; contrariamente ao juiz ou ao cidadão comum, não é inclusive permitido ao historiador concluir; a sua preocupação reside em compreender, explicar, discutir e debater. Todas estas razões fazem com que possa existir um mal-entendido persistente entre o conhecimento histórico e a memória. A memória coletiva não está privada de recursos críticos; os trabalhos escritos dos historiadores não são os seus únicos recursos de representação do passado; concorrem com outros tipos de escrita: textos de ficção, adaptações ao teatro, ensaios, panfletos; mas existem igualmente modos de expressão não escrita: fotos, quadros e, sobretudo, filmes (pensemos em Shoah de Claude Lanzmann, em A Lista de Schindler de Spielberg). Além disso, o género retrospetivo próprio à história concorre com os discursos prospetivos, os projetos de reforma, as utopias; em suma,
  • 6. concorre com os discursos voltados para o futuro. Os historiadores não devem esquecer que são os cidadãos que fazem realmente a história – os historiadores apenas a dizem; mas eles são também cidadãos responsáveis pelo que dizem, sobretudo quando o seu trabalho toca nas memórias feridas. A memória não foi apenas instruída mas igualmente ferida pela história. Esse comentário leva-me ao segundo problema, o do dever de fazer memória, como se diz; o dever de não esquecer, para antecipar a nossa última reflexão. O dever de memória é, muitas vezes, uma reivindicação, de uma história criminosa, feita pelas vítimas; a sua derradeira justificação é esse apelo à justiça que devemos às vítimas. É aí que a incompreensão entre os advogados da memória e os adeptos do saber histórico atinge o seu auge, na medida em que a heterogeneidade das intenções é exacerbada: por um lado, o campo demasiado breve da memória face ao vasto horizonte do conhecimento histórico; por outro, a persistência das feridas feitas pela história; por um lado, o uso da comparação em história, por outro, a afirmação de unicidade dos sofrimentos suportados por uma comunidade particular ou por todo um povo; para os historiadores, a dimensão incomparável de um evento só pode ser afirmada depois de se terem avaliado as semelhanças e as diferenças. Para arbitrar estas reivindicações concorrentes, pode ser útil olhar para os conceitos da psicanálise: num ensaio intitulado Erinnern, Wiedreholen, Durch/arbeiten, [rememoração, repetição, perlaboração], Freud introduz a noção de Errinnerungarbeit [trabalho da memória], para caracterizar a luta a empreender contra a imposição de repetição estabelecida sob a pressão das resistências solidamente estabelecidas. Dela podemos conservar e transpor alguma coisa para o campo da memória histórica, sobretudo se completamos a noção de trabalho de memória pela de trabalho de luto, tomado de um outro ensaio consagrado ao luto e à melancolia. Sugiro que unamos a noção de dever de memória, que é uma noção moral, às de trabalho de memória e trabalho de luto, que são noções puramente psicológicas. A vantagem desta aproximação é que ela permite incluir a dimensão crítica do conhecimento histórico no seio do trabalho de memória e de luto. Mas a última palavra deve ser do conceito moral de dever de memória, que se dirige, como se disse, à noção de justiça devida às vítimas. O nosso terceiro e último problema diz respeito ao lugar do esquecimento no campo que é comum à memória e à história; deriva da evocação que acaba de ser feita do dever de memória: este pode ser igualmente expresso como um dever de não esquecer. O esquecimento é, certamente, um tema em si mesmo. Diz respeito à noção de rasto, de que falamos antes, e da qual tínhamos constatado a multiplicidade das suas formas: rastos cerebrais, impressões psíquicas, documentos escritos dos nossos arquivos. O que a noção de rasto e esquecimento têm em comum é, antes de tudo o mais, a noção de apagamento, de destruição. Mas este processo inevitável de apagamento não esgota o problema do esquecimento. O esquecimento tem igualmente um polo ativo ligado ao processo de rememoração, essa busca para reencontrar as memórias perdidas, que, embora tornadas indisponíveis, não estão realmente desaparecidas. De uma certa forma, essa indisponibilidade encontra a sua explicação ao nível de conflitos inconscientes. A esse respeito, uma das lições preciosas da psicanálise é que esquecemos menos do que pensamos ou cremos. Podemos reencontrar uma experiência traumática da infância com a ajuda de procedimentos específicos próprios àquilo que se chama “talking cure”. Freud atribui às resistências solidamente
  • 7. instaladas, a compulsão para repetir em vez de se rememorar. Rememorar é uma forma de trabalho; o trabalho de luto, ao qual Freud consagra um outro ensaio importante, Luto e melancolia, não está afastado dele. Mas essa aproximação através da psicanálise das ambiguidades do esquecimento, não deve impedir-nos de explorar outras formas de esquecimento às quais podemos ter de responder. Começamos por essa nota muito simples segundo a qual as recordações são, por assim dizer, narrativas e que as narrativas são necessariamente seletivas. Se somos incapazes de nos lembrar de tudo, somos ainda mais incapazes de tudo narrar; a ideia de narrativa exaustiva é uma perfeita insensatez. As consequências no que diz respeito à reapropriação do passado histórico são enormes. A ideologização da memória, e todas as espécies de manipulações da mesma ordem, tornaram-se possíveis através das possibilidades de variação que o trabalho de configuração narrativa dos nossos textos oferece. As estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente no trabalho de configuração: evitamento, evasão, fuga. Falámos de reapropriação do passado histórico, é preciso falarmos igualmente da privação dos atores do seu poder originário, o de narrarem-se a eles próprios. É difícil destrinçar a responsabilidade pessoal dos atores individuais, da das pressões sociais que trabalham subterraneamente a memória colectiva. Essa privação é responsável por esta mistura de abuso de memória e de abuso de esquecimento que nos levaram a falar de demasiada memória aqui e de demasiado esquecimento ali. É da responsabilidade do cidadão guardar um justo equilíbrio entre estes dois excessos. Não quero dar por encerrada esta série de notas sobre os ardis do esquecimento, sem mencionar a dimensão jurídica e política deste problema. A prática da amnistia vem-me à cabeça. Ela começa com o famoso decreto promulgado em Atenas em 403 a.C., segundo o qual é interdito recordar os crimes cometidos pelos dois partidos, crimes a que chamamos de “infelicidade”; daí o juramento pronunciado pelos cidadãos um a um: “não recordarei as infelicidades” (mnesikakein – contra- memória). Muitas democracias modernas fazem amplo uso deste género de esquecimento por imposição, por honrosas razões que visam a manutenção da paz social. Mas subsiste um problema filosófico: não será a prática da amnistia prejudicial à verdade à justiça? Por onde passa a linha de demarcação entre a amnistia e a amnésia? As respostas a estas questões não se encontram ao nível político, mas ao nível mais íntimo de cada cidadão, no seu foro interior. Graças ao trabalho de memória, completado pelo de luto, cada um de nós tem o dever de não esquecer mas de dizer o passado, de um modo pacífico, sem cólera, por muito doloroso que seja. Gostaria de concluir a minha conferência com uma frase plena de poesia que devemos a Isak Dinesen e que Hannah Arendt colocou no frontispício do seu capítulo consagrado ao conceito de ação em A condição humana: All sorrows can be borne if you put them into a story or tell a story about it. As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se as narrarmos ou fizermos delas uma história.