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r e v i s ta
               direitos
               humanos
                            AlexAndre CiConello,
                     luCiAnA PivAtto e dArCi Frigo


                                      PAul singer


                            eduArdo luis duHAlde


                          vAlter roBerto silvÉrio


                                  giusePPe CoCCo


                                 Antonio lAnCetti


                                 Mário tHeodoro


                                      CHiCo CÉsAr


                                 ClAudiA AndujAr




                      04
                      dezembro 2009
Apresentação
     Este quarto número da revista Direitos Humanos se abre com um         reagem como se fosse ameaça de censura qualquer proposta que se
artigo de Darci Frigo, Alexandre Ciconelo e Luciana Pivato analisam o      apresente com a intenção de democratizar e ampliar acesso.
terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos. Seus autores inte-              O psicanalista Antonio Lancetti, com papel-chave na experiência
graram a coordenação de todo o processo da 11ª Conferência Nacio-          paradigmática da Casa de Saúde Anchieta, em Santos, durante a gestão
nal de Direitos Humanos, realizada em Brasília, em dezembro de 2008,       Davi Capistrano da Costa, traça um panorama atualizado dos avanços
como coroamento das conferências locais e estaduais organizadas nas        obtidos e das resistências enfrentadas pela Reforma Psiquiátrica em
27 unidades da Federação.                                                  nosso país. Desde a promulgação da Lei nº 10.216, em 2001, já se
     O fechamento da edição ocorre sem que ainda esteja concluída a        reduziram de 85 mil para 35 mil os leitos manicomiais, substituídos
etapa de ajustes de texto entre diferentes áreas do governo. Sua ótica é   com êxito pela estruturação de 1.400 Centros de Atenção Psicossociais,
a da representação da sociedade civil, que estabeleceu parceria com a      onde os pacientes estão livres de repetir as lamentáveis ocorrências de
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República       instituições gigantescas que durante décadas existiram como verdadei-
e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para              ros presídios onde os pacientes eram segregados, submetidos a medi-
levar a cabo o vitorioso processo democrático que preparou a estrutu-      cações alienantes e, muitas vezes, vítimas de torturas.
ra básica do PNDH-3. Por sua importância histórica, é previsível que            O artista entrevistado nesta edição é o cantor e compositor Chico
novos artigos sejam publicados nas edições seguintes da revista para       César, paraibano formado em Jornalismo em João Pessoa, com uma
completar a análise.                                                       trajetória que funde a militância política e social com uma criação
     Paul Singer, um dos mais importantes economistas brasileiros,         artística inovadora e ousada, que promoveu verdadeira atualização na
símbolo maior das mobilizações brasileiras em favor da economia so-        música popular brasileira a partir dos anos 90. Sua entrevista narra
lidária, foi convidado para escrever sobre a relação entre a crise eco-    a infância em Catolé do Rocha e valoriza em sua formação o papel
nômica mundial e seus múltiplos impactos nas questões universais           do irmão quinze anos mais velho, Gegê, militante dos movimentos
dos Direitos Humanos.                                                      populares de moradia que vem enfrentando há anos uma implacável
     O Secretário de Direitos Humanos da Argentina, Eduardo Luiz           perseguição policial e judicial.
Duhalde, ele próprio um exilado político que escapou por pouco do               Claudia Andujar, fotógrafa que se tornou célebre não só por suas
verdadeiro genocídio praticado pela ditadura militar instaurada naque-     imagens como por sua luta em defesa dos direitos do povo indígena
le país irmão em 1976, desenvolve uma acurada síntese sobre a luta         Yanomami, apresenta nesta edição as fotos de seu mais recente livro,
pelo direito à memória, à verdade e à justiça. No crescente debate         Marcados, lançado em 2009 pela Cosac Naify. Os retratos, nos quais
brasileiro sobre o mesmo tema, é muito importante conhecer a expe-         os índios fotografados seguram placas com números de identificação,
riência em curso nos países vizinhos, sabendo aproveitar os pontos de      foram feitas no início dos anos 80, quando Cláudia viajou à fronteira
semelhança e identificar diferenças.                                       norte para fazer um registro de vacinação dos Yanomami – fotogra-
     Dois artigos deste número se voltam para a defesa das ações afir-     fados, registrados, “marcados para viver”. A série fotográfica é uma
mativas hoje em curso no Brasil. O professor da Universidade Federal       representação poética que se dá em diálogo com sua infância e início
de São Carlos Valter Roberto Silvério e o pesquisador do Ipea Mário        da adolescência. Aos 13 anos, Claúdia teve seu último encontro com
Theodoro lançam olhares bastante convergentes, um da sociedade ci-         aqueles que, levando a estrela de Davi afixada à roupa, haviam sido
vil, outro de um centro de excelência do poder público, sobre o desafio    “marcados para morrer”: sua família, amigos e o menino Gyuri, seu
central que representa para a afirmação dos Direitos Humanos o en-         primeiro amor, deportados da Hungria ocupada e assassinados num
frentamento do racismo, do preconceito, da discriminação e de todas        campo de concentração nazista.
as modalidades de exclusão.                                                     As ilustrações da edição ficam por conta do artista Rinaldo – um
     A conexão entre Direitos Humanos e o mundo da comunicação             paulistano de nascimento, mas cuja obra reflete o envolvimento e vida
é trabalhada por Giuseppe Cocco, parceiro de Antonio Negri em              em Pernambuco, ou, em suas palavras, “suco e sumo de uma geração:                     3
Glob(AL) - biopoder e luta em uma América Latina globalizada, e pro-       Agreste e Litoral”.
                                                                                                                                                       Revista Direitos Humanos




fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua contribuição foi
solicitada para ecoar o debate em curso rumo à inédita Conferência
Nacional de Comunicação, realizada em dezembro, no momento em                                                           Brasília, Dezembro de 2009
que este número da revista é fechado. Seu texto abre uma consistente                                                                 Paulo Vannuchi
plataforma teórica para compreender o trabalhoso desafio de ampliar                                              Ministro da Secretaria Especial dos
a defesa dos Direitos Humanos em uma área na qual muitos veículos                                     Direitos Humanos da Presidência da República
Arquivo Ciranda
                                                            Internacional de
          wcl.american.edu      Arquivo Terra de Direitos   Informação Independente




sumário   Elza Fiúza/ABr
                                                                                      6
                                                                                               Programa Nacional
                                                                                               de Direitos Humanos:
                                                                                               efetivar direitos e combater
                                                                                               as desigualdades
                                                                                               AlexAndre CiConello,
                                                                                               luCiAnA PivAtto e dArCi Frigo




                                                               13                     Impactos da crise econômica
                                                                                      mundial sobre o exercício dos
                                                                                      Direitos Humanos
                                                                                      PAul singer




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                                                               16                     Memória, Verdade e Justiça:
                                                                                      a experiência argentina

                                                                                      eduArdo luis duHAlde




          ufscar.br




                                                               20                     Interseccionalidade de direitos
                                                                                      como fundamento do antirracismo
                                                                                      diferencialista
                                                                                      vAlter roBerto silvÉrio




          Marco Fernandes - CoordCOM/UFRJ




                                                               25                     Comunicação e Direitos
                                                                                      Humanos: o trabalho dos direitos

                                                                                      giusePPe CoCCo
Expediente
                                                       Presidente da República:
                                                       Luiz Inácio Lula da Silva
 Juvenal Pereira                                       Ministro da Secretaria Especial dos Direitos
                                                       Humanos da Presidência da República:
                                                       Paulo Vannuchi



                   30   Saúde Mental e Direitos
                        Humanos
                                                       Secretário Adjunto:
                                                       Rogério Sottili
                                                       Conselho editorial:
                                                       Paulo Vannuchi (Presidente)
                                                       Aída Monteiro
                        Antonio lAnCetti
                                                       André Lázaro
                                                       Carmen Silveira de Oliveira
                                                       Dalmo Dallari
                                                       Darci Frigo
                                                       Egydio Salles Filho
  Elza Fiúza/ABr                                       Erasto Fortes Mendonça
                                                       José Geraldo Souza Júnior
                                                       José Gregori



                   34
                                                       Marcos Rolim
                        Ações Afirmativas no           Marília Muricy
                        Contexto Brasileiro: algumas   Izabel de Loureiro Maior
                                                       Maria Victoria Benevides
                        notas sobre o debate recente   Matilde Ribeiro
                                                       Nilmário Miranda
                                                       Oscar Vilhena
                        Mário tHeodoro                 Paulo Carbonari
                                                       Paulo Sérgio Pinheiro
                                                       Perly Cipriano
                                                       Ricardo Brisolla Balestreri
                                                       Samuel Pinheiro Guimarães
Sérgio Schnaider
                                                       Coordenação editorial:
                                                       Erasto Fortes



                   38
                                                       Mariana Carpanezzi
                                                       Paulo Vannuchi
                        Entrevista                     Patrícia Cunegundes

                                                       Tradução:
                                                       Ordanka Furquim
                        CHiCo CÉsAr                    Revisão:
                                                       Joíra Coelho e Lúcia Iwanov
                                                       Colaboração:
                                                       Fernanda Reis Brito
                                                       Projeto gráfico e diagramação:
   Juan Esteves
                                                       Wagner Ulisses




                   52
                                                       Capa e ilustrações:
                                                       Rinaldo Silva
                        Imagens                        Produção editorial:
                                                       Liberdade de Expressão – Agência
                                                       e Assessoria de Comunicação
                        ClAudiA AndujAr

                                                       Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede,
                                                       sala 424
                                                       70.064-900 Brasília – DF
                                                       direitoshumanos@sedh.gov.br
                                                       www.direitoshumanos.gov.br

                                                       ISSN 1984-9613
                                                       Distribuição gratuita
                                                       Tiragem: 10.000 exemplares


                   60   Serviços                       Direitos Humanos é uma revista quadrimestral, de distribui-
                                                       ção gratuita, publicada pela Secretaria Especial dos Direitos
                                                       Humanos da Presidência da República do Brasil.

                                                                                                                                   5
                                                       As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade
                                                       exclusiva dos autores e não representam necessariamente a
                                                                                                                         Revista Direitos Humanos




                                                       posição da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Pre-
                                                       sidência da República ou do Governo Federal.

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                                                       comercial.
artigo




                                                                                              PRogRAMA
                                                                                              NACIoNAl
                                                                                              DE DIREIToS
                                                                                              HuMANoS:
                                                                                              EfETIVAR DIREIToS
                                                                                              E CoMBATER AS
                                                                                              DESIguAlDADES

                             AlexAndre CiConello é assessor de Direitos Humanos do Inesc.

                             luCiAnA PivAto é advogada e coordenadora da Terra de Direitos - Organização de               Humanos no País e estabeleceram diretrizes
                             Direitos Humanos. Formada pela PUC - PR, é especialista em Direito Penal e Criminologia      e metas para o novo Programa Nacional de
                             pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal/ Universidade Federal do Paraná.          Direitos Humanos (PNDH).
                                                                                                                              O objetivo deste artigo é abrir o debate
                             dArCi Frigo é advogado e coordenador da Terra de Direitos - Organização de Direitos
                             Humanos. Em 2001, ganhou o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos.                     sobre o processo e o resultado da mobiliza-
                                                                                                                          ção que culminou com o terceiro Programa
                                                                                                                          Nacional de Direitos Humanos, no que diz
        6                  Introdução                                     os(as) brasileiros(as). Esse debate ocorreu     respeito a sua importância, seus avanços,



                           o
Revista Direitos Humanos




                                   Brasil realizou, ao longo de 2008,     devido à realização da 11ª Conferência Na-      seu formato e seu sistema de monitoramento.
                                   um grande debate nacional sobre as     cional dos Direitos Humanos, momento em             Entre os desafios a ser enfrentados está
                                   prioridades que o Estado brasileiro    que representantes do poder público e das       o de garantir que o PNDH seja efetivo e pro-
                           deveria assumir ao longo dos próximos anos     organizações da sociedade civil e movimen-      voque mudanças reais na vida das pessoas
                           a fim de garantir uma vida digna a todos(as)   tos sociais avaliaram a situação dos Direitos   ao longo dos próximos anos. Em face das
graves violações de Direitos Humanos evi-                meio dos quais os Estados avançariam na pro-      programas sociais a ser desenvolvidos no
denciadas durante o processo de mobiliza-                moção e na proteção dos direitos.                 País até 2007, ano em que se procederia a
                                                                                                                                   2
ção da Conferência, o PNDH não pode ser                       Explicitamente, o primeiro PNDH atribuiu     nova revisão do PNDH .”
apenas uma declaração de intenções, mas                  maior ênfase à promoção e à defesa dos di-             Essa intencionalidade foi um grande
deve ser, acima de tudo, um documento po-                reitos civis, ou seja, com 228 propostas de       avanço do PNDH II, ou seja, a preocupação
lítico e gerencial, que tenha articulação com            ações governamentais prioritariamente vol-        de que as propostas constantes do programa
os instrumentos de planejamento do estado                tadas para integridade física, liberdade e es-    tivessem concretude com a formulação de
brasileiro, em especial com o orçamento                  paço de cidadania de populações vulneráveis       políticas públicas e a destinação de recur-
público, e sirva também de instrumento para              ou com histórico de discriminação.                sos para sua execução. Nesse sentido, foi
referenciar a sociedade civil no processo de                  Não havia, no PNDH I, mecanismos de          formulado pelo governo federal, na época,
monitoramento e exigibilidade dos Direitos               incorporação das propostas de ação previs-        um Plano de Ação para 2002, por meio da
Humanos no Brasil.                                       tas nos instrumentos de planejamento e or-        vinculação entre parte das 518 propostas do
     O processo de construção do PNDH evi-               çamento do Estado brasileiro. Além disso, a       PNDH e os programas e ações governamen-
denciou a ausência de importantes poderes da             maioria das propostas se colocava de manei-       tais, incluindo a previsão dos recursos previs-
República, conflitos entre gestores públicos,            ra pouco afirmativa, genérica, no sentido de      tos na Lei Orçamentária Anual (LOA 2002) e
descaso de autoridades nos Estados e também              apoiar, estimular, incentivar.                    as metas físicas a ser atingidas naquele ano.
as graves, históricas e estruturais violações de                                                                Cabe dizer, contudo, que o PNDH II foi
Direitos Humanos na sociedade brasileira.                PndH II: a emergência                             publicado no último ano do governo FHC, não
     Evidenciou também a emergência de                   dos direitos econômicos,                          tendo tido muita influência na formulação das
diversos sujeitos políticos e movimentos                 sociais e culturais                               políticas públicas vigentes na época. Embora
sociais que dão cara e conteúdos novos aos                   Devido a essas e a outras críticas com        o PNDH II tenha sido pensado como uma po-
Direitos Humanos (DH). São, na verdade, os               relação ao formato do PNDH I, foi iniciado em     lítica de Estado e não de um governo, houve
verdadeiros destinatários desse processo, os             2001 um processo de debates e construção          dificuldades de prosseguir com seu monito-
quais, com suas lutas e seus anseios, ressig-            do PNDH II, por meio de seminários regio-         ramento e de considerá-lo como um instru-
nificam os pactos políticos internacionais e             nais, que foi concluído com a publicação do       mento relevante na formulação das políticas
nacionais que reconhecem os Direitos Huma-               Decreto Presidencial nº 4.229, de 2002. O         públicas no País a partir do governo Lula.
nos, entre eles, o PNDH.                                 PNDH II incluiu os direitos sociais, econômi-          Isso ocorreu tanto por parte do governo
                                                         cos e culturais, “de forma consentânea com a      como das organizações da sociedade civil.
Programa nacIonal de                                     noção de indivisibilidade e interdependência      Ocorre que essa tentativa de criar uma po-
dIreItos Humanos: contexto                               de todos os Direitos Humanos expressa na          lítica pública estrutural e articulada sobre os
PolítIco e HIstórIco                                     Declaração e no Programa de Ação da Confe-        Direitos Humanos sofreu diversos problemas,
                                                         rência de Viena1” .                               tais como cortes em seus programas e falta
PndH I: ênfase nos direitos civis                            Importante novidade foi a diretriz de cria-   de atualização em face dos novos desafios
e políticos                                              ção de novas formas de acompanhamento             enfrentados pela sociedade brasileira.
    É importante mencionar que o primeiro                e monitoramento das ações contempladas                 Os gestores públicos de 2003 até a pre-
PNDH, publicado pelo Decreto Presidencial                no PNDH, por meio da relação entre a im-          sente data pouco utilizaram o PNDH como
nº 1.904, em 1996, foi objeto de debate da               plementação do programa e a elaboração            instrumento efetivo para a definição de políti-
1ª Conferência Nacional de Direitos Humanos.             dos orçamentos nos níveis federal, estadual       cas públicas. Também não houve continuida-
Isso ocorreu três anos depois da Conferência             e municipal. Assim, o PNDH II deveria “in-        de na elaboração de planos de ação anuais.                  7
de Viena de 1993, que recomendava, em seu                fluenciar a discussão no transcurso de 2003,      A própria sociedade civil não lutou para sua
                                                                                                                                                             Revista Direitos Humanos




plano de ação, que os países elaborassem                 do Plano Plurianual 2004-2007, servindo de        implementação, ou para o estabelecimento
Programas Nacionais de Direitos Humanos por              parâmetro e orientação para a definição dos       de um sistema de monitoramento.

  1. Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH II. Introdução.
  2. Idem.
artigo             Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdades

                               Uma pesquisa realizada pelo Inesc reve-                so de construção do PNDH III contou com a                   um contexto de desigualdades e o impacto
                           lou, por exemplo, que                                      participação de diversos sujeitos por meio da               de um modelo de desenvolvimento insusten-
                                                                                      realização da 11ª Conferência Nacional dos                  tável e concentrador de renda na promoção
                                        Com a aprovação do Plano Plu-                 Direitos Humanos. Foram realizados debates                  dos Direitos Humanos.
                                    rianual – PPA 2004/2007 – ocorreu                 em todos os 27 estados da Federação, com                         Muito se avançou após a Constituição
                                    uma nova revisão do PNDH, sem que                 mais de quatorze mil participantes.                         Federal de 1988 na construção de um ar-
                                    fosse realizada qualquer consulta aos                   A etapa nacional, realizada em dezem-                 cabouço legal de afirmação e garantia de
                                    diversos atores envolvidos. O resulta-            bro de 2008, reuniu duas mil pessoas, tendo                 direitos. Essas declarações e esses reco-
                                    do foi a supressão de 30 programas                produzido como deliberações: 36 diretrizes,                 nhecimentos formais são conquistas impor-
                                    voltados à proteção dos Direitos Hu-              702 resoluções e 100 moções. É verdade que                  tantes, muitas delas decorrentes das lutas
                                    manos. No PPA 2000/2003, havia                    o processo das conferências sofreu diversos                 populares. Contudo, ainda há no Brasil um
                                    87 programas, número que foi redu-                problemas, especialmente nas etapas esta-                   fosso imenso entre a previsão normativa e
                                    zido para 57 no PPA 2004/2007. A                  duais. Em diversos estados, a sociedade civil               a ação executiva de implementação de polí-
                                    maioria dos programas que estão em                apontou dificuldades metodológicas, ausên-                  ticas públicas que efetivem os Direitos Hu-
                                    descontinuidade é ligada aos Direi-               cia de orçamento adequado, pouca partici-                   manos em geral e os Direitos Econômicos,
                                    tos Econômicos, Sociais e Culturais               pação dos movimentos sociais e defensores                   Sociais, Culturais e Ambientais (Desca), em
                                             3
                                    – DESCs .                                         de Direitos Humanos oriundos das regiões                    particular. De fato, pouco se avançou na efe-
                                                                                      distantes das capitais – que deram à etapa                  tivação de direitos dentro de um contexto de
                                Durante o ano de 2008, a Secretaria Es-               estadual um caráter metropolitano.                          grandes desigualdades.
                           pecial dos Direitos Humanos (SEDH) elabo-                       Apesar desses entraves, é inegável que                      No caso da sociedade brasileira, essa di-
                           rou, como subsídio para a 11ª Conferência                  a construção do terceiro PNDH, a partir da                  mensão é essencial. Não há como se falar em
                           Nacional de DHs, uma atualização do PNDH                   11ª Conferência Nacional, contribuiu muito                  direitos sem considerar o ambiente de desi-
                           II, no sentido de sistematizar o que foi feito             para o avanço do programa, principalmente                   gualdades estruturais, que permite que certos
                           desde 2002 em termos de ações governa-                     porque permitiu a incorporação de uma série                 sujeitos de direitos, em razão de fatores como
                           mentais. Muitos dos gestores de diversos                   de desafios do cenário atual dos Direitos Hu-               cor, sexo, faixa etária, situação regional, orien-
                           ministérios nem sequer conheciam o PNDH.                   manos no Brasil.                                            tação sexual, etnia, classe social, etc., tenham
                                                                                           Desde o início, o principal desafio político           maiores dificuldades de acessar direitos ou
                           alguns avanços do PndH III                                 e metodológico do PNDH foi o de construir um                tenham seus direitos negados e violados.
                               O processo de organização da 11ª CNDH                  programa que considerasse a indivisibilidade                     Combater a pobreza ou as desigualdades
                           demandou grande esforço de articulação da                  e a interdependência dos Direitos Humanos                   de renda no Brasil passa necessariamente
                           sociedade civil e dos movimentos sociais no                em todas as suas dimensões: civis, políticas,               pelo entendimento de que aqui ambas têm
                           sentido de construir um amplo acordo polí-                 econômicas, sociais, culturais, sexuais, repro-             relação com as variantes de cor e sexo. As
                           tico, para não repetir experiências negativas              dutivas e ambientais. Para tanto, o debate se               mulheres negras são as mais pobres e têm
                           anteriores nem gastar energia com um amplo                 deu a partir de eixos temáticos estruturantes,              menor grau de escolaridade, enquanto os
                           processo de mobilização sem que se che-                    trazendo os principais desafios para a efetiva-             homens jovens e negros são os que mais so-
                           gasse a lugar algum. A proposta de retomar                 ção dos direitos em nosso país, destacando as               frem com a violência, por exemplo.
                           o Programa de Direitos Humanos exigia abrir                dimensões de desigualdade, violência, mode-                      As inaceitáveis distâncias que ainda se-
                           um debate com o governo sobre quais seriam                 lo de desenvolvimento, cultura e educação em                param negros de brancos, em pleno século
        8                  suas bases, como seria conduzido o proces-                 Direitos Humanos, democracia, monitoramen-                  XXI, se expressam no microcosmo das re-
                           so de mobilização e que garantias seriam                   to e direito à memória e à Justiça.                         lações interpessoais diárias e se refletem
Revista Direitos Humanos




                           apresentadas sobre seu processo de imple-                       Cabe ressaltar duas dimensões que foram                nos acessos desiguais a bens e serviços, ao
                           mentação. De início, cabe ressaltar que, dife-             consideradas estruturantes na construção do                 mercado de trabalho, à educação – que per-
                           rentemente dos demais programas, o proces-                 PNDH III: a universalização dos direitos em                 sistem, apesar das melhorias nos indicadores

                             3. INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos. A política de Direitos no governo Lula. Nota técnica nº 99, agosto de 2005. Disponível em http://www.inesc.org.br.
tomados para o conjunto da população – bem       destinadas à proteção da terra e dos territó-   de desigualdades sociais, além de beneficiar
como no gozo de direitos civis, políticos, so-   rios tradicionais.                              o grande capital.
ciais e econômicos.                                   Outra inovação do processo de constru-         O PNDH III também incorporou diretri-
     Enfrentar as desigualdades sociais pas-     ção do PNDH é a tentativa de incorporação       zes dirigidas à promoção, à defesa e à pro-
sa, ainda, pela necessidade de compreender       dos impactos do modelo de desenvolvimento       teção da ação dos defensores de Direitos
que a opção pelo atual modelo de “desen-         em curso no País sobre os Direitos Humanos.     Humanos. Os instrumentos anteriores nem
volvimento” hegemônico – que é insus-            O direito ao meio ambiente e ao desenvol-       sequer mencionavam a temática dos defen-
tentável ambientalmente e concentrador           vimento sustentável foi, portanto, incorpo-     sores, cujo papel é essencial à construção
de renda – transformou as terras, urbana e       rado pelo programa, não só como elemento        de uma cultura de direitos no País e à con-
rural, e os territórios tradicionais em merca-   necessário à conformação da conjuntura,         solidação da democracia. Nesse sentido, é
dorias. Desse modo, para privilegiar grupos      mas como Direito Humano. O desafio é criar      um avanço que o programa tenha absorvido
de empresas nacionais e transnacionais, a        mecanismos efetivos para garantir o controle    desafios como a proteção aos defensores
todo tempo os direitos à terra e ao território   social, a responsabilização e a reparação das   de Direitos Humanos, que têm suas vidas
de povos indígenas, comunidades tradicio-        violações causadas pelas atividades das em-     ameaçadas em razão de suas atividades,
nais, trabalhadores rurais e populações ur-      presas transnacionais e por grandes obras de    bem como o enfrentamento à criminaliza-
banas são negados. Nesse sentido, o PNDH         infraestrutura, pois a impunidade das ações     ção dos movimentos sociais, povos e co-
III avançou ao estabelecer diretrizes e ações    violadoras desses grupos perpetua o cenário     munidades tradicionais.

destacamos abaIxo, como exemPlos, algumas ações ProgramátIcas
sIgnIfIcatIvas estabelecIdas no PndH:
 eixo orientador I: Interação democrática entre estado e sociedade civil
 • Apoiar, no Poder Legislativo, a instituição do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, garantindo recursos humanos, materiais e orçamen-
 tários para seu pleno funcionamento, e efetuar seu credenciamento no Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos
 Humanos como “Instituição Nacional Brasileira”, como primeiro passo rumo à adoção plena dos “Princípios de Paris”.
 • Incorporar as diretrizes e objetivos estratégicos do PNDH-3 nos instrumentos de planejamento do Estado, em especial no Plano Plurianual
 (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA).
 • Construir e manter um Sistema Nacional de Indicadores em Direitos Humanos, de forma articulada com órgãos públicos e sociedade civil.
 eixo orientador II: desenvolvimento e direitos Humanos
 • Fomentar o debate sobre a expansão de plantios de monoculturas, tais como eucalipto, cana-de-açúcar, soja, e sobre o manejo florestal, a
 grande pecuária, mineração, turismo e pesca, que geram impacto no meio ambiente e na cultura dos povos e das comunidades tradicionais.
 • Garantir que os grandes empreendimentos e os projetos de infraestrutura resguardem os direitos dos povos indígenas e das comunidades
 quilombolas e tradicionais, conforme previsto na Constituição Federal e nos tratados e convenções internacionais.
 • Fomentar políticas públicas de apoio aos estados e municípios em ações sustentáveis de urbanização e regularização fundiária dos assen-
 tamentos de população de baixa renda, comunidades pesqueiras e de provisão habitacional de interesse social, materializando a função social
 da propriedade.
 • Reforçar o papel do Plano Plurianual (PPA) como instrumento de consolidação dos Direitos Humanos, enfrentando a concentração de renda
 e riqueza e promovendo a inclusão da população de baixa renda.
 eixo orientador III: universalizar direitos em um contexto de desigualdades
                                                                                                                                                          9
 • Fortalecer a agricultura familiar e camponesa no desenvolvimento de ações específicas que promovam a geração de renda no campo e o
                                                                                                                                                Revista Direitos Humanos




 aumento da produção de alimentos agroecológicos para o autoconsumo e para o mercado local.
 • Fortalecer a reforma agrária, dando prioridade à implementação e à recuperação de assentamentos, à regularização do crédito fundiário e à
 assistência técnica aos assentados, com:
 • Atualização dos índices Grau de Utilização da Terra (GUT) e Grau de Eficiência na Exploração (GEE), conforme padrões atuais.
 • Regulamentação da desapropriação de áreas pelo descumprimento da função social plena.
artigo          Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdades


                           • Garantir demarcação, homologação, regularização e desintrusão das terras indígenas, em harmonia com os projetos de futuro de cada povo
                           indígena, assegurando seu etnodesenvolvimento e sua autonomia produtiva.
                           • Assegurar às comunidades quilombolas a posse de seus territórios, acelerando a identificação, o reconhecimento, a demarcação e a titula-
                           ção desses territórios, respeitando e preservando os sítios de alto valor simbólico e histórico.
                           • Apoiar a alteração do texto constitucional para prever a expropriação dos imóveis, rurais e urbanos, em que forem encontrados trabalhadores
                           reduzidos à condição análoga a de escravos.
                           • Erradicar os hospitais psiquiátricos e manicômios e fomentar programas de tratamentos substitutivos à internação, que garantam às pessoas
                           com transtorno mental a possibilidade de escolha autônoma de tratamento, com convivência familiar e acesso aos recursos psiquiátricos e
                           farmacológicos.
                           • Fiscalizar a implementação do Programa Nacional de Ações Afirmativas (Decreto nº 4.228/2002) no âmbito da administração pública fe-
                           deral, direta e indireta, com vistas à realização de metas percentuais da ocupação de cargos comissionados por mulheres, populações negras
                           e pessoas com deficiências.
                           • Garantir a igualdade de direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores domésticos com os dos demais trabalhadores.
                           • Desenvolver campanhas de informação sobre o adolescente em conflito com a lei, defendendo a não-redução da maioridade penal, em
                           observância à cláusula pétrea da Constituição.
                           • Elaborar programas de combate ao racismo institucional e estrutural, implementando normas administrativas e legislação nacional e inter-
                           nacional.
                           • Trabalhar pela aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos.
                           • Apoiar projeto de lei que dispõe sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo, assegurando os reflexos jurídicos desse ato.
                           • Instituir mecanismos que assegurem o livre exercício das diversas práticas religiosas, assegurando-lhes espaço físico e coibindo manifes-
                           tações de intolerância religiosa.
                           eixo orientador Iv: segurança pública, acesso à Justiça e combate à violência
                           • Ampliar recursos orçamentários para a realização das ações dos programas de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, defensores de
                           Direitos Humanos e crianças e adolescentes ameaçados de morte.
                           • Implementar o Observatório da Justiça Brasileira, em parceria com a sociedade civil.
                           • Assegurar a criação de um marco jurídico brasileiro na prevenção e na mediação de conflitos fundiários urbanos, garantindo o devido pro-
                           cesso legal e a função social da propriedade.
                           • Reorganizar as Polícias Militares, desvinculando-as do Exército, extinguindo as Justiças Militares estaduais, disciplinando sua estrutura, seu
                           treinamento, controle e emprego de modo a orientar suas atividades à proteção da sociedade.
                           • Criar uma base de dados unificada que permita o fluxo de informações entre os diversos componentes do sistema de segurança pública e
                           a Justiça criminal.
                           • Fortalecer ações estratégicas de prevenção à violência contra jovens negros.
                           • Fortalecer ações de combate às execuções extrajudiciais realizadas por agentes do Estado, assegurando a investigação dessas violações.
                           • Implementar mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto legalmente autorizado, garantindo seu cumprimento e
                           facilidade de acesso.
                           eixo orientador vI: direito à memória e à verdade
                           • Elaborar, até abril de 2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade, composta de forma plural e suprapartidária, com man-
    10                     dato e prazo definidos, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política no período 1964-1985.
                           • Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais
Revista Direitos Humanos




                           de perseguidos políticos.
                           • Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de
                           educação básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão.
                           • Revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustenta-
                           ção a graves violações.
outros desafIos                                        Por mais genéricas que possam ser as di-     nível de acesso da população aos diversos
     O principal desafio para a implemen-         retrizes e metas estabelecidas, todas se devem    direitos, quais sejam, educação, saúde, mo-
tação do PNDH é transformá-lo em uma              materializar em ações concretas, monitoráveis     radia, segurança, trabalho, etc., em um dado
política de Estado, não de um governo ou          e com recursos suficientes para sua realização.   momento, e quais metas devemos traçar
mesmo da Secretaria Especial dos Direitos              Isto é, devem ser elaborados planos anu-     para cinco, dez, quinze anos de ampliação
Humanos. Isso significa que esse deve ser         ais, como um instrumento sintético, monito-       desses direitos. Poderemos, assim, respon-
um instrumento de referência para a formula-      rável, composto de diretrizes e metas de Di-      der a várias perguntas: as políticas públicas
ção de programas e ações tanto para o Poder       reitos Humanos a ser efetivadas e cumpridas       existentes estão conseguindo efetivar os di-
Executivo, como para os Poderes Legislativo       pelo Estado brasileiro em toda a sua exten-       reitos previstos no PNDH? Os recursos são
e Judiciário. Uma das principais dificuldades     são – União, estados, municípios, executivo,      suficientes? Que novas políticas devem ser
de todo o processo foi envolver represen-         Legislativo, Judiciário, Ministério Público e     criadas, ou que modificações devem sofrer
tantes do Poder Judiciário na discussão e         Defensoria – um plano de metas para a re-         as políticas existentes?
também no compromisso de implementa-              alização progressiva dos Direitos Humanos.             A definição de indicadores em Direitos
ção do programa. É notório que, dentro do              Cabe dizer que, em 2008, o Conselho          Humanos é um debate eminentemente políti-
próprio governo federal, há contradições que      de Direitos Humanos da ONU aprovou uma            co e não apenas técnico. Por essa razão, a so-
emergiram nesse processo, como a recusa           proposta brasileira que estabelece me-            ciedade civil deve ter participação no debate
do Ministério da Defesa em subscrever o           tas voluntárias em Direitos Humanos a ser         sobre a construção e manutenção do sistema
PNDH, retardando ainda mais seu lançamen-         assumidas pelos países. O Brasil, como            de indicadores em Direitos Humanos.
to público, por opor-se à criação da Comis-       proponente dessa iniciativa, deveria dar o             Sugere-se que o sistema de indicadores
são Nacional da Verdade, aprovada durante a       exemplo e estabelecer um amplo conjunto           deva ser o mais desagregado possível e que
Conferência e subscrita pela SEDH e a quase       de metas nacionais em matéria de Direitos         o Estado brasileiro garanta sua continuidade. A
totalidade dos ministérios.                       Humanos, por meio do PNDH.                        observância das desigualdades de raça, gêne-
     Para que o programa tenha efetividade, é                                                       ro e etnia e da forma como homens e mulhe-
necessário que as diretrizes que o compõem        monitoramento – sistema                           res, negros(as) e brancos(as) têm acesso aos
tenham reflexos nos instrumentos de planeja-      nacional de Indicadores de                        direitos devem ser componentes centrais do
mento do Estado Brasileiro: Plano Plurianual,     direitos Humanos                                  sistema, assim como a formulação de indica-
Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lei Orçamen-          Um dos principais instrumentos de mo-        dores de riqueza e concentração de renda e de
tária Anual.                                      nitoramento do PNDH deve ser a criação            indicadores de aferição de violação de direitos.
     Embora o Estado brasileiro tenha-se com-     e manutenção de um Sistema Nacional de
prometido, com a ratificação do Pacto Inter-      Indicadores em Direitos Humanos. Quando           controle social
nacional sobre Direitos Econômicos, Sociais       falamos em progressiva realização dos Di-             Outro grande desafio se dá com relação
e Culturais (Pidesc), em 1992, a destinar o       reitos Humanos, significa que precisamos          ao monitoramento do PNDH, que deve ser
máximo de recursos disponíveis para asse-         desenvolver indicadores que demonstrem o          participativo e envolver não apenas o Exe-
gurar progressivamente os direitos listados no
Pacto, não é isso que ocorre.
     O orçamento da União não se destina,
prioritariamente, a garantir os direitos da po-
pulação, mas sim à manutenção de privilé-
                                                  O principal desafio para a implementação do
gios, como o pagamento de juros da dívida do      PNDH é transformá-lo em uma política de                                                                     11
governo, a investimentos, diminuindo o custo
                                                  Estado, não de governo ou mesmo da
                                                                                                                                                       Revista Direitos Humanos




para a reprodução do capital e, em muitos ca-
sos, a políticas sociais compensatórias, que      Secretaria Especial de Direitos Humanos
não garantem a emancipação de seus sujeitos
de direitos.
artigo           Programa Nacional de Direitos Humanos: Efetivar Direitos e Combater as Desigualdades

                           cutivo federal, mas também o Legislativo e o     para quem o Conselho não deve ter participa-     Especial dos Direitos Humanos (SEDH). O
                           Judiciário. Atualmente, temos pouquíssimos       ção da sociedade civil. Em todas as ocasiões,    que podemos arriscar a dizer é que acredita-
                           instrumentos de monitoramento sobre as           em comissões e em plenário, o deputado tem       mos que a SEDH tenha papel central de arti-
                           ações do Poder Judiciário, essenciais para a     adotado uma postura que busca inviabilizar o     culação do PNDH dentro do governo federal,
                           efetivação de direitos no País.                  andamento e a consequente aprovação do PL        em outros poderes, estados e municípios.
                                Acreditamos também que o futuro Con-        que cria o Conselho.                                   Para além de executar ações vincu-
                           selho Nacional de Direitos Humanos seja                                                           ladas ao PNDH nas áreas da criança e do
                           o lócus privilegiado de monitoramento            articulação institucional da                     adolescente, da pessoa com deficiência, da
                           do PNDH. Cabe dizer que o Projeto de Lei         implementação do PndH                            população LGBT, dos defensores de Direi-
                           nº. 4.715/1994, que transforma o Conselho        dentro do estado                                 tos Humanos, etc., a SEDH deve manter um
                           de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana              Um tema que necessita entrar na agenda       sistema de indicadores nacionais de Direitos
                           (CDDPH) em Conselho de Direitos Humanos          de debates diz respeito ao papel da Secretaria   Humanos, além de atuar de forma transversal
                           está pronto para ser votado no plenário da Câ-                                                    com outros ministérios e poderes, trabalhan-
                           mara e isso só não ocorre pela intransigência                                                     do em conjunto para elaborar e monitorar os
                           do deputado José Carlos Aleluia-DEM/BA,                                                           diversos programas e as diversas ações que
                                                                                                                             contribuirão para a realização das diretrizes e
                                                                                                                             metas do PNDH.




    12
Revista Direitos Humanos
impactos da
crise econômica
mundial sobre
o exercício dos
direitos Humanos
PAul singer – nasceu em Viena (Áustria), em 1932, e vive no Brasil desde 1940.
Professor titular na Universidade de São Paulo (USP), foi membro fundador e econo-
mista sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) (1969-1988)
e atualmente desempenha a função de secretário nacional de Economia Solidária
do Ministério do Trabalho e Emprego. É autor de várias obras, entre elas Desenvol-
vimento e crise (1968) e O capitalismo – sua evolução, sua lógica e sua dinâmica
(1987).




a
        crise econômica mundial se ma-           A presente crise mundial foi causada
        nifesta sob a forma de uma para-     pela suspensão, pelas famílias menos
        lisia das atividades econômicas,     aquinhoadas, do serviço de suas dívidas
sufocadas por forte queda da oferta de       hipotecárias. Essas dívidas haviam sido
crédito. O capitalismo contemporâneo é,      adquiridas, sob a forma de títulos, pelos
simplesmente, incapaz de funcionar sem       maiores bancos não apenas dos EUA,
ampla e flexível disponibilidade de finan-   mas também da Europa e do Japão. Sua
ciamento, tanto da acumulação de capital     súbita desvalorização fez que sofressem
como de consumo. A maioria dos consu-        perdas imensas. Essa crise foi precipita-
midores não tem dinheiro para adquirir, à    da em 2007, nos EUA, pelo estouro de
vista, os bens e serviços que usualmente     uma bolha imobiliária que já durava seis
consome. Nos EUA, as famílias ficam cro-     anos. Os preços dos imóveis passaram a
nicamente endividadas para ostentar um       cair bruscamente, atingindo, sobretudo,
padrão de vida considerado essencial para    os devedores de hipotecas de segunda
merecer o respeito e a confiança dos vi-     classe – subprime, de baixa renda, que
                                                                                               13
zinhos, amigos, colegas e demais conhe-      viam o valor de seus imóveis cair abai-
                                                                                         Revista Direitos Humanos




cidos. Ultimamente, antes que estourasse     xo da dívida a ser amortizada. Tornou-se
a crise mundial, a poupança do domicílio     vantajoso para eles suspender o paga-
estadunidense era negativa, ou seja, seus    mento das prestações, mesmo correndo
gastos com compras e pagamento de ju-        o risco de perder a moradia. A completa
ros superavam seu rendimento normal.         desvalorização de uma massa de títulos,
artigo            Impactos da crise econômica mundial sobre o exercício dos Direitos Humanos

                           no valor de trilhões de dólares, levou à ban-     ser geral, o mesmo se aplicando aos demais           As maiores vítimas da crise são aqueles
                           carrota os maiores intermediários financeiros     países capitalistas. Em todos, a desigualdade    que já eram pobres antes que estourasse.
                           do mundo.                                         e a injustiça social afetam parcelas variáveis   Grande parte das pessoas que se encontravam
                                Com a retração não só do crédito imobi-      de suas populações. No capitalismo, em sua       nessa situação pertence a grupos estigmati-
                           liário, mas de todas as espécies de crédito,      atual fase neoliberal, o pleno emprego está      zados, que são muitas vezes objetos de dis-
                           provocada pela crise financeira, a demanda        longe de ser normal. Em parte das famílias,      criminação por gênero, por etnia, por idade,
                           por bens e serviços em geral passa a cair,        nenhum dos membros possui renda regular,         por comportamentos considerados desvian-
                           ocasionando a retração de quase todas as ati-     proveniente de um trabalho assalariado, por      tes – loucos, homossexuais, mães solteiras,
                           vidades produtivas. Surge um círculo vicioso:     conta própria ou de alguma aposentadoria,        dependentes de tóxicos, etc. –, sem falar dos
                           a queda da produção obriga as empresas a          pensão ou outro tipo de beneficio continuado.    portadores de deficiência física, dos egressos
                           demitir empregados, esses imediatamente           Sua renda é ganha pelo exercício de ativida-     de prisões e de manicômios, dos moradores
                           reduzem seus gastos ao mínimo, o que ace-         des eventuais: serviços variados, os chama-      de rua ou de lixões e tantos outros.
                           lera a queda da demanda e, em consequên-          dos “bicos”, mendicância, prostituição, ou           Se as pessoas desprovidas de capital pró-
                           cia, o aumento do desemprego; a cada volta        prática de delitos. E há, ainda, famílias que    prio já têm escassas oportunidades de escapar
                           desse círculo infernal, mais famílias perdem      praticamente não têm qualquer tipo de renda,     da pobreza, as que somam à carência de recur-
                           suas moradias, mais trabalhadores ficam sem       vivendo da caridade pública ou de vizinhos.      sos alguma característica que lhes gera alguma
                           trabalho e sem renda e as cotações nas bolsas     Como hoje a quase totalidade das famílias        forma de discriminação têm, obviamente, muito
                           de valores desabam, aniquilando, também,          desamparadas faz jus, no Brasil, à Bolsa Fa-     menos oportunidades ainda. A crise econômica
                           os proventos de milhões de aposentados.           mília, sabemos de sua dimensão: são cerca        mundial faz que aumente o número de pesso-
                                A crise econômica impacta o exercício dos    de treze milhões de famílias, cinquenta mi-      as que perdem o trabalho que lhes permitia
                           Direitos Humanos, principalmente dos direitos     lhões de pessoas, por volta de um quarto da      escapar da pobreza, ao mesmo tempo que faz
                           sociais, que procuram garantir a todos os ci-     população do País.                               diminuir a quantidade total de postos de traba-
                           dadãos o atendimento de suas necessidades             Os impactos da crise econômica atingem       lho disponíveis. O resultado, naturalmente, é o
                           básicas: de comida e bebida, abrigo, vestuário,   a maioria da população em cada país, mas         encolhimento dramático do número de pessoas
                           educação, saúde, transporte, cultura e recre-     de forma extremamente desigual. As classes       que podem exercer seus Direitos Humanos.
                           ação. A Constituição brasileira, por exemplo,     possuidoras de capital sofrem perdas que,            A esses impactos quantitativos é preci-
                           declara que o acesso à educação e à assistên-     medidas em moeda, atingem valores muito          so somar os qualitativos. As
                           cia à saúde são direitos do cidadão e deveres     elevados, mas apenas uma parcela pequena         pessoas que perdem o em-
                           do Estado. Estabelece, também, o direito de       delas se arruína. A grande maioria dos inte-     prego, no Brasil, têm direito
                           todos os brasileiros ao trabalho e a um salário   grantes dessas classes possui propriedades       ao seguro-desemprego por
                           mínimo suficiente para o sustento do trabalha-    e tesouros acumulados nas formas de títulos      alguns meses. Esse prazo
                           dor e de seus dependentes.                        financeiros, imóveis, joias, obras de arte e     é calculado como o neces-
                                É verdade que, mesmo antes da atual cri-     similares. A crise os torna menos ricos, mas     sário para que as pessoas
                           se econômica mundial, o usufruto dos direi-       são provavelmente poucos os que perdem           possam encontrar outro em-
                           tos sociais pelos brasileiros estava longe de     tudo e se tornam verdadeiramente pobres.         prego. Em tempos de crise,
                                                                                                                              encontrar outro emprego

                           As maiores vítimas da crise são aqueles que                                                        torna-se quase impossível.
                                                                                                                              O seguro-desemprego, jun-
    14                     já eram pobres antes que estourasse. Grande                                                        tamente com o Fundo de

                           parte das pessoas que se encontravam nessa                                                         Garantia por Tempo de Ser-
Revista Direitos Humanos




                                                                                                                              viço, quase sempre serve
                           situação pertence a grupos estigmatizados,                                                         apenas para moderar a que-
                                                                                                                              da na pobreza e para retardar
                           que são muitas vezes objetos de discriminação                                                      o mergulho na miséria.
sistência do exercício dos Direitos Humanos

A conquista dos Direitos Humanos é parte                                                        depende, vitalmente, de que uma outra Eco-
                                                                                                nomia, uma Economia imune à ocorrência
essencial de uma conquista maior, a da                                                          de crises gerais como a atual, que flagela o

democracia, não só como regime político,                                                        mundo, possa tomar o lugar hoje ocupado
                                                                                                pelo capitalismo.
mas como modo de convivência social.                                                                 Esta crise econômica, à medida que
                                                                                                multiplica o número de suas vítimas, de-
                                                                                                monstra que o capitalismo é incompatível
     As famílias atingidas pelo desemprego       humana, torna-se inevitável que parte delas    com o exercício dos Direitos Humanos por
do chefe começam por perder a moradia,           opte pelo crime como forma de sobrevivên-      todos. Direitos que só podem ser exercidos
porque não conseguem mais pagar a pres-          cia e também de “socialização das perdas”      por alguns não podem ser considerados
tação da hipoteca ou o aluguel. Quando           que sofreram. Uma das lições da crise eco-     humanos. É possível que a solução desse
podem, passam a morar com parentes ou            nômica é que a possibilidade de satisfazer     dilema esteja na luta das classes sociais,
amigos; quando não podem, as alternativas        regularmente as necessidades básicas é não     cuja humanidade a crise inadvertidamen-
costumam ser a favela, o cortiço, o lixão ou a   só um direito humano, mas também con-          te nega. Essa luta assume, hoje em dia,
rua. A perda do teto frequentemente ocasiona     dição essencial para que os outros Direitos    novas dimensões, que são econômicas e
a dissolução da família, cada membro procu-      Humanos – as liberdades de ir e vir, de ma-    políticas ao mesmo tempo. As classes tra-
rando se virar para arranjar algum abrigo. A     nifestação do pensamento, de eleger e de ser   balhadoras, para escapar do risco de ser
dissolução também se dá pela perda da afei-      eleito, etc. – possam ser exercidos. Alguém    privadas de seus Direitos Humanos, ou
ção ou do autorrespeito do chefe da família      que não tem onde morar, que não dispõe de      seja, de seus direitos como membros da
que, impossibilitado de cumprir seus deveres     endereço fixo em que possa ser encontrado,     humanidade, adotam, como objetivo pri-
de pai e de marido, se entrega ao desespero      que pode ser enxotado de qualquer espaço       mordial, se tornar proprietárias dos meios
na forma de alcoolismo, loucura, enfermida-      público que porventura ocupe, ainda que seja   de produção, que utilizam para satisfazer
de psicossomática ou suicídio. Há estudos        por algumas horas para descansar, é alguém     suas necessidades, não apenas as básicas.
feitos em diferentes lugares e em diferentes     que perdeu o reconhecimento de sua condi-      E para não reproduzir a desigualdade que
                    épocas, mostrando forte      ção humana.                                    resulta da apropriação privada dos meios
                    correlação entre a varia-         A conquista dos Direitos Humanos é        de produção, as novas formas de apropria-
                    ção do desemprego e do       parte essencial de uma conquista maior, a      ção dos meios de produção tendem a ser
                    gasto com saúde pública.     da democracia, não só como regime polí-        associativas, ou coletivas.
                         A tragédia do aban-     tico, mas como modo de convivência so-              Inúmeras experiências de organização
                    dono de crianças, que        cial. A base da democracia, nesta acepção,     econômica baseadas na cooperação e na auto-
                    sobrevivem em bandos,        é o reconhecimento da igualdade de todos       gestão estão-se espalhando pelos bolsões de
                    em condições desu-           os seres humanos que formam uma dada           pobreza que as frequentes crises econômicas
                    manas, torna-se muito        sociedade. A conquista da democracia po-       deixam atrás de si, no mundo inteiro. Dessa
                    maior, por causa dos im-     lítica, a partir das grandes revoluções dos    maneira, as vítimas das crises se defendem
                    pactos da crise sobre as     séculos XVIII, XIX e XX, criou, aos poucos,    da desapropriação de seus Direitos Humanos
                    classes desfavorecidas.      as condições de possibilidade para que a       e constroem vias de reconquistá-los. Como já
                    É nesse meio que o cri-      democracia pudesse extravasar o terreno        dizia saudoso filósofo alemão, a humanidade,         15
                    me organizado, em suas       da política e penetrar na economia, na vida    quando coloca um problema, já tem a seu al-
                                                                                                                                               Revista Direitos Humanos




                    múltiplas formas, recruta    familiar, em síntese, na própria cultura. O    cance os meios de solucioná-lo. As grandes
                    seus asseclas. Se a cri-     surgimento dos novos movimentos sociais        crises econômicas do terceiro milênio podem,
                    se despoja milhões de        e sua intensa luta para que esse extravasa-    quem sabe, motivar suas vítimas a procurar
                    pessoas de sua condição      mento possa se dar é prova de que a per-       vias de superá-las definitivamente.
artigo           Memória, Verdade e Justiça: a experiência argentina


                            eduArdo luis duHAlde é advogado, historiador e




                                                                                           Memória,
                            jornalista argentino. É secretário de Direitos Humanos do
                            Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos da
                            Argentina.
                            Foi consultor de Direitos Humanos das Nações Unidas




                                                                                           Verdade
                            e é professor da Faculdade de Ciências Sociais da
                            Universidade de Buenos Aires. Tem longa trajetória como
                            defensor de presos políticos e atua há várias décadas no
                            movimento de Direitos Humanos.




                                                                                           e Justiça:
                            Foi também professor titular de Direito, História e Política
                            em diversas universidades argentinas e estrangeiras,
                            e membro de instituições acadêmicas no seu país, na
                            América Latina e na Europa, bem como de organismos
                            de Direitos Humanos da Argentina e de outros países.



                                                                                           a experiência
                            Em 1976, no início da ditadura militar na Argentina,
                            teve os direitos civis e políticos cassados. No fim
                            deste mesmo ano foi exilado na Espanha. Foi um
                            dos organizadores da denúncia internacional contra o


                                                                                           argentina
                            terrorismo de Estado na Argentina. É autor de 24 livros,
                            entre eles “O Estado terrorista argentino” (“El Estado
                            terrorista argentino”). Foi responsável pela publicação
                            Militância Peronista pela Liberação, ao lado de Ortega
                            Peña, morto em um atentado em 1974.


                           o estado terrorIsta e suas
                           conseQuÊncIas




                           É
                                   impossível compreender o processo
                                   de Memória, Verdade e Justiça que se
                                   leva adiante na Argentina, talvez por
                           sua profundidade quase incomparável na re-
                           alidade internacional atual, sem a prévia ca-
                           racterização do que temos denominado como
                           Estado Terrorista Argentino.
                               A dimensão da tragédia ocorrida em meu
                           país, por sua abrangência, só pode se com-
                           parar, na América Latina do século XX, com a
                           sofrida pelo povo guatemalteco ao longo de
                           mais de cinquenta anos, a partir da derrocada
                           de Jacobo Arbenz, em 1954.
    16                         Diferentemente daquele, o processo re-
                           pressivo ilegal argentino teve um período de
Revista Direitos Humanos




                           implementação muitíssimo mais concen-
                           trado e, ao mesmo tempo, de elaboração e
                           de planejamento sistemáticos, que adquiriu
                           formas específicas e singulares dentro do
                           estado de exceção na América Latina, que
jogou por terra os regimes institucionais         de “mortos civis”, sem acesso a empregos              O poder político foi sensível a essas
democráticos.                                     públicos ou privados por ter sido considera-      pressões, ditando as chamadas leis de
     O regime militar instaurado a partir de 24   dos vinculados à “delinquência subversiva”,       Obediência Devida e Ponto Final, comple-
de março de 1976, com sua prolixa e siste-        em decorrência de sua militância política,        mentadas com indultos concedidos pelo
mática preparação e a crescente ação repres-      social, ou de sua atividade intelectual, quali-   presidente Menem aos comandantes con-
siva ilegal, se baseou em uma elaborada te-       ficada como dissidente, ou incompatível com       denados. A partir daí, abriu-se uma etapa
oria, que configurou o Estado terrorista e sua    o processo militar em curso.                      de mais de quinze anos de luta de amplos
face clandestina permanente.                           Mas o regime militar também gerou um         setores da sociedade civil, encabeçada pe-
     Produzido no decorrer de uma crise po-       processo civil de resistência, encabeçado por     las Mães, as Avós e os demais organismos
lítica catastrófica e fundado na necessidade      um emergente Movimento de Direitos Huma-          de Direitos Humanos, contra a impunidade.
de ajustes permanentes no modo de acumu-          nos liderado, como expressão pública, pelas           Essa impunidade começou a chegar ao
lação de capital para a manutenção de uma         Mães da Praça de Maio, que simbolizaram os        fim quando Nestor Kirchner assumiu a Pre-
ordem social injusta, trouxe, em si, mudança      fatores éticos e políticos violados e a vontade   sidência da República, colocando como eixo
substancial de formas: configurou-se como         de um povo oprimido, mas não vencido. Esse        das políticas públicas de seu governo os
Estado terrorista, partindo de pressupostos       processo de resistência se intensificou depois    princípios de Memória, Verdade e Justiça.
que se esgrimiram como permanentes e que          da derrota da ditadura em uma guerra irres-       Tratava-se não somente de cumprir com as
contradiziam as bases fundamentais do Esta-       ponsável pela recuperação das Ilhas Malvinas,     responsabilidades do Estado pela reparação,
do democrático.                                   que finalmente levou os militares ao abando-      previstas nos instrumentos internacionais
     Afirmou-se sobre o princípio de que          no do governo, em dezembro de 1983.               subscritos pela Argentina – e que gozam
sujeição à lei, à publicidade dos atos e a             A recuperada democracia constitucional,      de status constitucional – como também de
seu controle judicial incapacitaria definitiva-   presidida por Raúl Alfonsín, criou logo em        recuperar os fundamentos éticos do Estado
mente o Estado para a defesa dos interesses       seguida, a pedido das organizações de Di-         democrático, inseparáveis da vigência dos
da sociedade. Em consequência, apareceu,          reitos Humanos, a Comissão Nacional sobre         Direitos Humanos.
como substrato de tal concepção, a neces-         o Desaparecimento de Pessoas (Conadep),               O reconhecimento da nulidade das cha-
sidade de estruturação – quase com tanta          primeira constatação oficial da dimensão do       madas leis de perdão, pelo Parlamento, e sua
força como a do Estado público – do Estado        extermínio coletivo levado adiante pelos mili-    declaração de inconstitucionalidade por parte
clandestino e, como instrumento deste, o          tares usurpadores do poder.                       da Corte Suprema de Justiça, colocaram os três
terror como método. Assim, o Estado terro-             Depois disso, era inevitável o julgamento    poderes do Estado no caminho de pôr fim à im-
rista é a culminação degenerativa do Estado       das três juntas militares que se haviam reve-     punidade. A reabertura dos julgamentos por cri-
militar “eficiente”.                              zado no poder. Em um processo histórico e         mes contra a humanidade, imprescritíveis, foi o
     O trágico resultado registra, aproximada-    sem precedentes no mundo, um tribunal ju-         passo seguinte. Hoje, a Memória, a Verdade e a
mente, trinta mil detidos desaparecidos, as-      dicial condenava os chefes de uma ditadura        Justiça constituem o corpo doutrinário efetivado
sassinados, de todas as idades e condições        militar sangrenta a penas de prisão perpétua,     em políticas estampadas e irreversíveis.
sociais, a maior parte deles arremessada com      como no caso de Videla e Massera, seus                Façamos uma breve revisão.
vida ao mar, depois de inenarráveis proces-       principais responsáveis.
sos de torturas física e mental, ou fuzilados          O governo civil se deu por satisfeito com    a memórIa
e enterrados clandestinamente; outros dez         esse enorme gesto e com sua ressonância               Uma peça nodal dessas políticas, que
mil detidos prisioneiros, a maioria deles sem     simbólica. As vítimas sobreviventes, os fa-       não é asséptica nem neutra, é o combate pela
processos jurídicos, apenas “à disposição do      miliares dos presos desaparecidos e assas-        Memória.                                                 17
Poder Executivo”, nos presídios da Repúbli-       sinados, o movimento de direitos humanos              Os atores do privilégio e da exclusão,
                                                                                                                                                       Revista Direitos Humanos




ca; mais de duzentos mil cidadãos exilados        e amplos setores da sociedade civil, não. E       bem como da consequente atividade anti-
e um número superior de demitidos de seus         passaram a promover a continuidade dos jul-       democrática e repressiva ao longo do século
trabalhos, públicos e privados; professores e     gamentos dos genocidas, até que se fizeram        XX e até agora, tentaram, juntamente com o
estudantes expulsos das escolas, homens e         ouvir as demandas militares clamando por          assalto às instituições de 1976, fazer uma lei-
mulheres que aumentaram “as listas negras”        impunidade.                                       tura da história legitimadora de seu agir.
artigo            Memória, Verdade e Justiça: a experiência argentina

                                A partir dessa perspectiva, buscaram         vo, com capacidade de atuar sobre a vida so-      tos, outros meios, mas o combate continua.
                           fazer toda sua violência sistemática parecer      cial, sustentando o reconhecimento coletivo            O desafio que hoje enfrentamos na Ar-
                           mera resposta de defesa da nação contra a         da identidade e as projeções futuras.             gentina é construir um legado do nunca mais,
                           irracional violência militante e social, à qual        A memória é a vida, sempre levada por        um discurso narrativo nem cristalizado nem
                           não hesitam em qualificar como gerada pela        grupos vivos e, por isso, em evolução per-        estático, do qual possam reapropriar-se as
                           subversão apátrida. Como eixo dessa pos-          manente, aberta à dialética da lembrança e do     novas gerações, com o olhar do presente que
                           tura, aparece a defesa desavergonhada do          esquecimento: é um fenômeno sempre atual,         queiram viver e que lhes garanta, assim, o
                           terrorismo de Estado. A partir disso, preten-     alimenta-se de lembranças indefinidas, glo-       direito de conhecer sua própria História e de
                           deram impor a organização do esquecimen-          bais ou flutuantes, particulares ou simbólicas.   receber a memória coletiva, sob os princípios
                           to, apagando tudo o que se faça aparecer          É sensível a todos os modos de transferência,     de Memória, Verdade e Justiça e da vigência
                           nu em seu modelo genocida de repressão            censura ou projeção. A memória instala a lem-     irrestrita dos Direitos Humanos.
                           e exclusão.                                       brança no sagrado, como apontou Pierre Nora.           A designação, como tais, das Bases e
                                Diante dessa manipulação da História e            A memória também está ligada à cons-         Quartéis onde funcionaram Centros Clan-
                           das tentativas de construção de uma falsa         trução da sociedade que queremos. Quando          destinos de Detenção e Extermínio, mediante
                           memória coletiva, é dever da democracia           falamos de terrorismo de Estado, estamos          placas e pilares, a conversão dos grandes
                           social e dos governos republicanos opor,          fazendo referência também à metodologia           centros clandestinos emblemáticos em Es-
                           a essa visão contrabandeada dos fatos, um         impulsionada por setores políticos e econô-       paços da Memória, como a Escola de Me-
                           forte resgate da memória histórica, assentado     micos concentrados, que, por meio das For-        cânica da Armada (ESMA), em Buenos Aires
                           na irrefutável verdade do ocorrido, trazendo      ças Armadas, impuseram, criminal e maciça-        e La Perla, em Córdoba, é parte da obra que
                           à luz e convertendo em lembranças perma-          mente, um modelo de sociedade ferozmente          realiza a Secretaria de Direitos Humanos, por
                           nentes aquilo que os sujeitos populares, as       excludente e totalmente dependente.               meio do Arquivo Nacional da Memória.
                           vítimas levam como bandeira reivindicativa e           E, hoje, apesar de essa experiência ge-           Esse arquivo é a custódia pública de toda
                           reparatória, ao longo de décadas de luta pela     nocida, que forma parte do nosso passado          a documentação recuperada sobre a repres-
                           verdade e pela justiça.                           lacerante, estar sendo condenada por meio         são ilegal, seus autores e suas vítimas. Mais
                                Não há receita para a construção de uma      de processos que a Justiça leva a cabo, não       de dez milhões de folhas constituem seu
                           memória histórica fora do esforço por esti-       alcançou esses fatores político-econômicos        acervo documental, fonte de investigação e,
                           mulá-la, resgatar suas marcas, muitas vezes       que impulsionaram o golpe de Estado e que         ao mesmo tempo, prova documental de todos
                           cobertas pelo esquecimento, relembrando           estão entre nós. Hoje usam outros instrumen-      os processos judiciais.
                           o passado e pondo à luz a continuidade do
                           acontecer histórico e seus pontos essenciais,
                           que não devem deixar de ser parte de nosso          Não há receita para a construção de uma
                           presente, como passado vivo.
                                Claro está que essa tarefa tem um rigor,       memória histórica fora do esforço por
                           em sua elaboração, que não é simples es-            estimulá-la, resgatar suas marcas, mui-
                           pontaneidade da lembrança. Narração e sim-
                           bolização na ressignificação do horror não é        tas vezes cobertas pelo esquecimento,
                           a mera lembrança de fatos do passado. Sua
                           iluminação significante implica muito mais:
                                                                               relembrando o passado e pondo à luz a
    18                     analisar, segundo as Ciências Sociais, a sis-       continuidade do acontecer histórico e
                           tematicidade de sua prática ilegal e de sua
                                                                               seus pontos essenciais, que não devem
Revista Direitos Humanos




                           persistência no tempo, pelos olhares cruza-
                           dos dos atores sociais vítimas.                     deixar de ser parte de nosso presente,
                                A Memória não busca “coisificar” a His-
                           tória em forma gélida e estática, mas sim
                                                                               como passado vivo
                           convertê-la em elemento dinâmico e operati-
Assim, a memória tem um sentido coletivo           Em consonância com tal interpretação,           dade que tem toda pessoa, independentemente
de recuperação da História a partir do presente,   afirmou-se também que                                de sua condição econômica, social ou de qual-
de ensino e de caminho em direção ao futuro.            “Existe uma expectativa não-individual do       quer outra natureza, de recorrer aos tribunais
É, ao mesmo tempo, autodefesa de nossa prá-             direito à verdade, que se assenta no direito    para formular pretensões ou para defender-se,
tica diária e assentamento das bases de uma             de a comunidade conhecer seu passado...         e de obter o pronunciamento, o cumprimento e
sociedade futura sobre os pilares do aprofun-           É o direito da sociedade de conhecer suas       a execução de uma sentença desses tribunais.
damento democrático, da vigência plena dos              instituições, seus atores, os fatos acon-            A Justiça como tal foi negada às vítimas
Direitos Humanos e dos princípios da tolerân-           tecidos, para poder saber, por meio do          do terror estatal, ao amparo das leis de Obe-
cia, da solidariedade e do respeito ao outro.           conhecimento de seus acertos ou de suas         diência Devida e do Ponto Final, assim como
                                                        falhas, qual é o caminho a seguir para con-     dos indultos. Os processos judiciais foram
o dIreIto à verdade                                     solidar a democracia”.                          arquivados e os responsáveis não foram jul-
    Essa ideia se expressa também na con-               Tais conceitos foram recepcionados tam-         gados, por falta de provas.
sagração do Direito à Verdade. O direito ao        bém pela Comissão Interamericana de Direitos              O caminho de reconstrução do direito à
conhecimento da verdade acerca do come-            Humanos, ao assinalar que o direito de saber         Justiça levou à substituição da vergonhosa
timento de crimes aberrantes vale tanto para       a verdade sobre os fatos, assim como a identi-       Corte Suprema de Justiça do menemismo, me-
o nefasto capítulo do passado quanto como          dade de quem deles participou, constitui obri-       diante uma avaliação política da composição de
obrigação diante do presente e do futuro. Para     gação do Estado para com os familiares das ví-       seus membros e sua substituição por prestigio-
isso tem-se de manter em vigília as consci-        timas e a sociedade, como consequência das           sos juristas independentes. O segundo passo
ências ética e moral e sua sanção jurídica.        obrigações e dos deveres por ele assumidos           foi a ratificação da Convenção sobre impres-
    A respeito disso, cabe recordar que, no        como Estado-Parte da Convenção.                      critibilidade dos delitos de lesa-humanidade. O
campo do direito internacional dos Direitos             Tanto o Conselho de Direitos Humanos            terceiro passo foi a declaração de inconstitucio-
Humanos, há muito tempo começou a de-              das Nações Unidas (proposta da Argentina             nalidade das leis de Obediência Devida e Ponto
senvolver-se o chamado                             apoiada por 54 países) como a Assembleia             Final, assim como dos Indultos.
    “Direito à Verdade”, para o qual foi           da OEA reconheceram em resoluções impor-                  A seu lado, o governo nacional começou a
    marco importante o pronunciamento da           tantes a relevância de respeitar e garantir o        apresentar-se como polo ativo nas ações judi-
    Corte Interamericana de Direitos Huma-         direito à verdade para o fim da impunidade,          ciais, impulsionando a reabertura dos proces-
    nos em um caso de desaparição força-           promover e proteger os Direitos Humanos.             sos, sempre observando todas as garantias do
    da de pessoas. Naquele caso, a Corte                Foi bem recebida a criação, em vários           devido processo legal. Hoje o resultado está à
    sustentou que “O dever de investigar           Estados, de mecanismos judiciais específi-           vista: cinquenta e seis responsáveis importantes
    fatos desse gênero subsiste enquanto           cos, assim como outros, extrajudiciais ou ad         pela prática de crimes de lesa-humanidade já
    se mantenha a incerteza sobre o destino        hoc, que complementam o sistema judicial             foram condenados, contando-se desde o pro-
    final da pessoa desaparecida. Na hipó-         de investigação das violações dos Direitos           cesso das juntas militares; 182 estão sendo
    tese de que circunstâncias legítimas da        Humanos e do direito internacional humani-           processados e outros 130 o serão nos próximos
    ordem jurídica interna não tenham per-         tário e servem de base para a preparação dos         anos. Há 289 causas abertas contra repressores,
    mitido a aplicação das sanções corres-         informes e das decisões desses órgãos.               nas quais 556 pessoas são processadas, em
    pondentes a quem seja individualmente               Os militares responsáveis pela aplicação        todo o país, por violações aos Direitos Huma-
    responsável pelos delitos dessa natu-          do terrorismo de Estado seguem negando-              nos cometidas durante a última ditadura militar.
    reza, o direito dos familiares da vítima       se a revelar a verdade: persistem ocultando               O mais importante, entretanto, não é essa
    de reconhecer qual foi seu destino e           a lista de pessoas assassinadas, o destino           estatística, mas esse processo inédito, no qual           19
    onde se encontram seus restos mortais          das crianças apropriadas, os responsáveis de         a Justiça de um país, em nome dos direitos
                                                                                                                                                            Revista Direitos Humanos




    representa justa expectativa, que o Esta-      cada crime e o destino dos corpos.                   fundamentais e dos princípios democráticos,
    do deve satisfazer com os meios ao seu                                                              julga e condena os responsáveis de uma épo-
    alcance” (Corte Interamericana de Di-          JustIça                                              ca marcada pelo horror sistemático, sem que,
    reitos Humanos, caso Velásquez Rodrí-               De maneira geral, pode-se sustentar que o       ao fazê-lo, coloque em perigo as instituições
    guez, sentença de 29 de julho de 1988).        direito de acesso à Justiça consiste na possibili-   da República, mas, pelo contrário, as fortaleça.
artigo   Interseccionalidade de direitos como fundamento do antirracismo diferencialista




                           Interseccionalidade
                             de Direitos como
                              fundamento do
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                               diferencialista




                                                                                                          vAlter roBerto silvÉrio é
                                                                                                          professor associado do Departa-
  20
                                                                                                          mento e Programa de Sociologia da
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                                                                                                          (UFSCar) e coordenador do Núcleo
                                                                                                          de Estudos Afro-Brasileiros da
                                                                                                          Universidade.
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Revista direitos humanos 04

  • 1. r e v i s ta direitos humanos AlexAndre CiConello, luCiAnA PivAtto e dArCi Frigo PAul singer eduArdo luis duHAlde vAlter roBerto silvÉrio giusePPe CoCCo Antonio lAnCetti Mário tHeodoro CHiCo CÉsAr ClAudiA AndujAr 04 dezembro 2009
  • 2.
  • 3. Apresentação Este quarto número da revista Direitos Humanos se abre com um reagem como se fosse ameaça de censura qualquer proposta que se artigo de Darci Frigo, Alexandre Ciconelo e Luciana Pivato analisam o apresente com a intenção de democratizar e ampliar acesso. terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos. Seus autores inte- O psicanalista Antonio Lancetti, com papel-chave na experiência graram a coordenação de todo o processo da 11ª Conferência Nacio- paradigmática da Casa de Saúde Anchieta, em Santos, durante a gestão nal de Direitos Humanos, realizada em Brasília, em dezembro de 2008, Davi Capistrano da Costa, traça um panorama atualizado dos avanços como coroamento das conferências locais e estaduais organizadas nas obtidos e das resistências enfrentadas pela Reforma Psiquiátrica em 27 unidades da Federação. nosso país. Desde a promulgação da Lei nº 10.216, em 2001, já se O fechamento da edição ocorre sem que ainda esteja concluída a reduziram de 85 mil para 35 mil os leitos manicomiais, substituídos etapa de ajustes de texto entre diferentes áreas do governo. Sua ótica é com êxito pela estruturação de 1.400 Centros de Atenção Psicossociais, a da representação da sociedade civil, que estabeleceu parceria com a onde os pacientes estão livres de repetir as lamentáveis ocorrências de Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República instituições gigantescas que durante décadas existiram como verdadei- e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para ros presídios onde os pacientes eram segregados, submetidos a medi- levar a cabo o vitorioso processo democrático que preparou a estrutu- cações alienantes e, muitas vezes, vítimas de torturas. ra básica do PNDH-3. Por sua importância histórica, é previsível que O artista entrevistado nesta edição é o cantor e compositor Chico novos artigos sejam publicados nas edições seguintes da revista para César, paraibano formado em Jornalismo em João Pessoa, com uma completar a análise. trajetória que funde a militância política e social com uma criação Paul Singer, um dos mais importantes economistas brasileiros, artística inovadora e ousada, que promoveu verdadeira atualização na símbolo maior das mobilizações brasileiras em favor da economia so- música popular brasileira a partir dos anos 90. Sua entrevista narra lidária, foi convidado para escrever sobre a relação entre a crise eco- a infância em Catolé do Rocha e valoriza em sua formação o papel nômica mundial e seus múltiplos impactos nas questões universais do irmão quinze anos mais velho, Gegê, militante dos movimentos dos Direitos Humanos. populares de moradia que vem enfrentando há anos uma implacável O Secretário de Direitos Humanos da Argentina, Eduardo Luiz perseguição policial e judicial. Duhalde, ele próprio um exilado político que escapou por pouco do Claudia Andujar, fotógrafa que se tornou célebre não só por suas verdadeiro genocídio praticado pela ditadura militar instaurada naque- imagens como por sua luta em defesa dos direitos do povo indígena le país irmão em 1976, desenvolve uma acurada síntese sobre a luta Yanomami, apresenta nesta edição as fotos de seu mais recente livro, pelo direito à memória, à verdade e à justiça. No crescente debate Marcados, lançado em 2009 pela Cosac Naify. Os retratos, nos quais brasileiro sobre o mesmo tema, é muito importante conhecer a expe- os índios fotografados seguram placas com números de identificação, riência em curso nos países vizinhos, sabendo aproveitar os pontos de foram feitas no início dos anos 80, quando Cláudia viajou à fronteira semelhança e identificar diferenças. norte para fazer um registro de vacinação dos Yanomami – fotogra- Dois artigos deste número se voltam para a defesa das ações afir- fados, registrados, “marcados para viver”. A série fotográfica é uma mativas hoje em curso no Brasil. O professor da Universidade Federal representação poética que se dá em diálogo com sua infância e início de São Carlos Valter Roberto Silvério e o pesquisador do Ipea Mário da adolescência. Aos 13 anos, Claúdia teve seu último encontro com Theodoro lançam olhares bastante convergentes, um da sociedade ci- aqueles que, levando a estrela de Davi afixada à roupa, haviam sido vil, outro de um centro de excelência do poder público, sobre o desafio “marcados para morrer”: sua família, amigos e o menino Gyuri, seu central que representa para a afirmação dos Direitos Humanos o en- primeiro amor, deportados da Hungria ocupada e assassinados num frentamento do racismo, do preconceito, da discriminação e de todas campo de concentração nazista. as modalidades de exclusão. As ilustrações da edição ficam por conta do artista Rinaldo – um A conexão entre Direitos Humanos e o mundo da comunicação paulistano de nascimento, mas cuja obra reflete o envolvimento e vida é trabalhada por Giuseppe Cocco, parceiro de Antonio Negri em em Pernambuco, ou, em suas palavras, “suco e sumo de uma geração: 3 Glob(AL) - biopoder e luta em uma América Latina globalizada, e pro- Agreste e Litoral”. Revista Direitos Humanos fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua contribuição foi solicitada para ecoar o debate em curso rumo à inédita Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro, no momento em Brasília, Dezembro de 2009 que este número da revista é fechado. Seu texto abre uma consistente Paulo Vannuchi plataforma teórica para compreender o trabalhoso desafio de ampliar Ministro da Secretaria Especial dos a defesa dos Direitos Humanos em uma área na qual muitos veículos Direitos Humanos da Presidência da República
  • 4. Arquivo Ciranda Internacional de wcl.american.edu Arquivo Terra de Direitos Informação Independente sumário Elza Fiúza/ABr 6 Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdades AlexAndre CiConello, luCiAnA PivAtto e dArCi Frigo 13 Impactos da crise econômica mundial sobre o exercício dos Direitos Humanos PAul singer Google Images 16 Memória, Verdade e Justiça: a experiência argentina eduArdo luis duHAlde ufscar.br 20 Interseccionalidade de direitos como fundamento do antirracismo diferencialista vAlter roBerto silvÉrio Marco Fernandes - CoordCOM/UFRJ 25 Comunicação e Direitos Humanos: o trabalho dos direitos giusePPe CoCCo
  • 5. Expediente Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva Juvenal Pereira Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República: Paulo Vannuchi 30 Saúde Mental e Direitos Humanos Secretário Adjunto: Rogério Sottili Conselho editorial: Paulo Vannuchi (Presidente) Aída Monteiro Antonio lAnCetti André Lázaro Carmen Silveira de Oliveira Dalmo Dallari Darci Frigo Egydio Salles Filho Elza Fiúza/ABr Erasto Fortes Mendonça José Geraldo Souza Júnior José Gregori 34 Marcos Rolim Ações Afirmativas no Marília Muricy Contexto Brasileiro: algumas Izabel de Loureiro Maior Maria Victoria Benevides notas sobre o debate recente Matilde Ribeiro Nilmário Miranda Oscar Vilhena Mário tHeodoro Paulo Carbonari Paulo Sérgio Pinheiro Perly Cipriano Ricardo Brisolla Balestreri Samuel Pinheiro Guimarães Sérgio Schnaider Coordenação editorial: Erasto Fortes 38 Mariana Carpanezzi Paulo Vannuchi Entrevista Patrícia Cunegundes Tradução: Ordanka Furquim CHiCo CÉsAr Revisão: Joíra Coelho e Lúcia Iwanov Colaboração: Fernanda Reis Brito Projeto gráfico e diagramação: Juan Esteves Wagner Ulisses 52 Capa e ilustrações: Rinaldo Silva Imagens Produção editorial: Liberdade de Expressão – Agência e Assessoria de Comunicação ClAudiA AndujAr Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede, sala 424 70.064-900 Brasília – DF direitoshumanos@sedh.gov.br www.direitoshumanos.gov.br ISSN 1984-9613 Distribuição gratuita Tiragem: 10.000 exemplares 60 Serviços Direitos Humanos é uma revista quadrimestral, de distribui- ção gratuita, publicada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil. 5 As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam necessariamente a Revista Direitos Humanos posição da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Pre- sidência da República ou do Governo Federal. Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, exceto de fotografias e ilustrações, desde que citada a fonte e não seja para venda ou qualquer fim comercial.
  • 6. artigo PRogRAMA NACIoNAl DE DIREIToS HuMANoS: EfETIVAR DIREIToS E CoMBATER AS DESIguAlDADES AlexAndre CiConello é assessor de Direitos Humanos do Inesc. luCiAnA PivAto é advogada e coordenadora da Terra de Direitos - Organização de Humanos no País e estabeleceram diretrizes Direitos Humanos. Formada pela PUC - PR, é especialista em Direito Penal e Criminologia e metas para o novo Programa Nacional de pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal/ Universidade Federal do Paraná. Direitos Humanos (PNDH). O objetivo deste artigo é abrir o debate dArCi Frigo é advogado e coordenador da Terra de Direitos - Organização de Direitos Humanos. Em 2001, ganhou o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos. sobre o processo e o resultado da mobiliza- ção que culminou com o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, no que diz 6 Introdução os(as) brasileiros(as). Esse debate ocorreu respeito a sua importância, seus avanços, o Revista Direitos Humanos Brasil realizou, ao longo de 2008, devido à realização da 11ª Conferência Na- seu formato e seu sistema de monitoramento. um grande debate nacional sobre as cional dos Direitos Humanos, momento em Entre os desafios a ser enfrentados está prioridades que o Estado brasileiro que representantes do poder público e das o de garantir que o PNDH seja efetivo e pro- deveria assumir ao longo dos próximos anos organizações da sociedade civil e movimen- voque mudanças reais na vida das pessoas a fim de garantir uma vida digna a todos(as) tos sociais avaliaram a situação dos Direitos ao longo dos próximos anos. Em face das
  • 7. graves violações de Direitos Humanos evi- meio dos quais os Estados avançariam na pro- programas sociais a ser desenvolvidos no denciadas durante o processo de mobiliza- moção e na proteção dos direitos. País até 2007, ano em que se procederia a 2 ção da Conferência, o PNDH não pode ser Explicitamente, o primeiro PNDH atribuiu nova revisão do PNDH .” apenas uma declaração de intenções, mas maior ênfase à promoção e à defesa dos di- Essa intencionalidade foi um grande deve ser, acima de tudo, um documento po- reitos civis, ou seja, com 228 propostas de avanço do PNDH II, ou seja, a preocupação lítico e gerencial, que tenha articulação com ações governamentais prioritariamente vol- de que as propostas constantes do programa os instrumentos de planejamento do estado tadas para integridade física, liberdade e es- tivessem concretude com a formulação de brasileiro, em especial com o orçamento paço de cidadania de populações vulneráveis políticas públicas e a destinação de recur- público, e sirva também de instrumento para ou com histórico de discriminação. sos para sua execução. Nesse sentido, foi referenciar a sociedade civil no processo de Não havia, no PNDH I, mecanismos de formulado pelo governo federal, na época, monitoramento e exigibilidade dos Direitos incorporação das propostas de ação previs- um Plano de Ação para 2002, por meio da Humanos no Brasil. tas nos instrumentos de planejamento e or- vinculação entre parte das 518 propostas do O processo de construção do PNDH evi- çamento do Estado brasileiro. Além disso, a PNDH e os programas e ações governamen- denciou a ausência de importantes poderes da maioria das propostas se colocava de manei- tais, incluindo a previsão dos recursos previs- República, conflitos entre gestores públicos, ra pouco afirmativa, genérica, no sentido de tos na Lei Orçamentária Anual (LOA 2002) e descaso de autoridades nos Estados e também apoiar, estimular, incentivar. as metas físicas a ser atingidas naquele ano. as graves, históricas e estruturais violações de Cabe dizer, contudo, que o PNDH II foi Direitos Humanos na sociedade brasileira. PndH II: a emergência publicado no último ano do governo FHC, não Evidenciou também a emergência de dos direitos econômicos, tendo tido muita influência na formulação das diversos sujeitos políticos e movimentos sociais e culturais políticas públicas vigentes na época. Embora sociais que dão cara e conteúdos novos aos Devido a essas e a outras críticas com o PNDH II tenha sido pensado como uma po- Direitos Humanos (DH). São, na verdade, os relação ao formato do PNDH I, foi iniciado em lítica de Estado e não de um governo, houve verdadeiros destinatários desse processo, os 2001 um processo de debates e construção dificuldades de prosseguir com seu monito- quais, com suas lutas e seus anseios, ressig- do PNDH II, por meio de seminários regio- ramento e de considerá-lo como um instru- nificam os pactos políticos internacionais e nais, que foi concluído com a publicação do mento relevante na formulação das políticas nacionais que reconhecem os Direitos Huma- Decreto Presidencial nº 4.229, de 2002. O públicas no País a partir do governo Lula. nos, entre eles, o PNDH. PNDH II incluiu os direitos sociais, econômi- Isso ocorreu tanto por parte do governo cos e culturais, “de forma consentânea com a como das organizações da sociedade civil. Programa nacIonal de noção de indivisibilidade e interdependência Ocorre que essa tentativa de criar uma po- dIreItos Humanos: contexto de todos os Direitos Humanos expressa na lítica pública estrutural e articulada sobre os PolítIco e HIstórIco Declaração e no Programa de Ação da Confe- Direitos Humanos sofreu diversos problemas, rência de Viena1” . tais como cortes em seus programas e falta PndH I: ênfase nos direitos civis Importante novidade foi a diretriz de cria- de atualização em face dos novos desafios e políticos ção de novas formas de acompanhamento enfrentados pela sociedade brasileira. É importante mencionar que o primeiro e monitoramento das ações contempladas Os gestores públicos de 2003 até a pre- PNDH, publicado pelo Decreto Presidencial no PNDH, por meio da relação entre a im- sente data pouco utilizaram o PNDH como nº 1.904, em 1996, foi objeto de debate da plementação do programa e a elaboração instrumento efetivo para a definição de políti- 1ª Conferência Nacional de Direitos Humanos. dos orçamentos nos níveis federal, estadual cas públicas. Também não houve continuida- Isso ocorreu três anos depois da Conferência e municipal. Assim, o PNDH II deveria “in- de na elaboração de planos de ação anuais. 7 de Viena de 1993, que recomendava, em seu fluenciar a discussão no transcurso de 2003, A própria sociedade civil não lutou para sua Revista Direitos Humanos plano de ação, que os países elaborassem do Plano Plurianual 2004-2007, servindo de implementação, ou para o estabelecimento Programas Nacionais de Direitos Humanos por parâmetro e orientação para a definição dos de um sistema de monitoramento. 1. Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH II. Introdução. 2. Idem.
  • 8. artigo Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdades Uma pesquisa realizada pelo Inesc reve- so de construção do PNDH III contou com a um contexto de desigualdades e o impacto lou, por exemplo, que participação de diversos sujeitos por meio da de um modelo de desenvolvimento insusten- realização da 11ª Conferência Nacional dos tável e concentrador de renda na promoção Com a aprovação do Plano Plu- Direitos Humanos. Foram realizados debates dos Direitos Humanos. rianual – PPA 2004/2007 – ocorreu em todos os 27 estados da Federação, com Muito se avançou após a Constituição uma nova revisão do PNDH, sem que mais de quatorze mil participantes. Federal de 1988 na construção de um ar- fosse realizada qualquer consulta aos A etapa nacional, realizada em dezem- cabouço legal de afirmação e garantia de diversos atores envolvidos. O resulta- bro de 2008, reuniu duas mil pessoas, tendo direitos. Essas declarações e esses reco- do foi a supressão de 30 programas produzido como deliberações: 36 diretrizes, nhecimentos formais são conquistas impor- voltados à proteção dos Direitos Hu- 702 resoluções e 100 moções. É verdade que tantes, muitas delas decorrentes das lutas manos. No PPA 2000/2003, havia o processo das conferências sofreu diversos populares. Contudo, ainda há no Brasil um 87 programas, número que foi redu- problemas, especialmente nas etapas esta- fosso imenso entre a previsão normativa e zido para 57 no PPA 2004/2007. A duais. Em diversos estados, a sociedade civil a ação executiva de implementação de polí- maioria dos programas que estão em apontou dificuldades metodológicas, ausên- ticas públicas que efetivem os Direitos Hu- descontinuidade é ligada aos Direi- cia de orçamento adequado, pouca partici- manos em geral e os Direitos Econômicos, tos Econômicos, Sociais e Culturais pação dos movimentos sociais e defensores Sociais, Culturais e Ambientais (Desca), em 3 – DESCs . de Direitos Humanos oriundos das regiões particular. De fato, pouco se avançou na efe- distantes das capitais – que deram à etapa tivação de direitos dentro de um contexto de Durante o ano de 2008, a Secretaria Es- estadual um caráter metropolitano. grandes desigualdades. pecial dos Direitos Humanos (SEDH) elabo- Apesar desses entraves, é inegável que No caso da sociedade brasileira, essa di- rou, como subsídio para a 11ª Conferência a construção do terceiro PNDH, a partir da mensão é essencial. Não há como se falar em Nacional de DHs, uma atualização do PNDH 11ª Conferência Nacional, contribuiu muito direitos sem considerar o ambiente de desi- II, no sentido de sistematizar o que foi feito para o avanço do programa, principalmente gualdades estruturais, que permite que certos desde 2002 em termos de ações governa- porque permitiu a incorporação de uma série sujeitos de direitos, em razão de fatores como mentais. Muitos dos gestores de diversos de desafios do cenário atual dos Direitos Hu- cor, sexo, faixa etária, situação regional, orien- ministérios nem sequer conheciam o PNDH. manos no Brasil. tação sexual, etnia, classe social, etc., tenham Desde o início, o principal desafio político maiores dificuldades de acessar direitos ou alguns avanços do PndH III e metodológico do PNDH foi o de construir um tenham seus direitos negados e violados. O processo de organização da 11ª CNDH programa que considerasse a indivisibilidade Combater a pobreza ou as desigualdades demandou grande esforço de articulação da e a interdependência dos Direitos Humanos de renda no Brasil passa necessariamente sociedade civil e dos movimentos sociais no em todas as suas dimensões: civis, políticas, pelo entendimento de que aqui ambas têm sentido de construir um amplo acordo polí- econômicas, sociais, culturais, sexuais, repro- relação com as variantes de cor e sexo. As tico, para não repetir experiências negativas dutivas e ambientais. Para tanto, o debate se mulheres negras são as mais pobres e têm anteriores nem gastar energia com um amplo deu a partir de eixos temáticos estruturantes, menor grau de escolaridade, enquanto os processo de mobilização sem que se che- trazendo os principais desafios para a efetiva- homens jovens e negros são os que mais so- gasse a lugar algum. A proposta de retomar ção dos direitos em nosso país, destacando as frem com a violência, por exemplo. o Programa de Direitos Humanos exigia abrir dimensões de desigualdade, violência, mode- As inaceitáveis distâncias que ainda se- um debate com o governo sobre quais seriam lo de desenvolvimento, cultura e educação em param negros de brancos, em pleno século 8 suas bases, como seria conduzido o proces- Direitos Humanos, democracia, monitoramen- XXI, se expressam no microcosmo das re- so de mobilização e que garantias seriam to e direito à memória e à Justiça. lações interpessoais diárias e se refletem Revista Direitos Humanos apresentadas sobre seu processo de imple- Cabe ressaltar duas dimensões que foram nos acessos desiguais a bens e serviços, ao mentação. De início, cabe ressaltar que, dife- consideradas estruturantes na construção do mercado de trabalho, à educação – que per- rentemente dos demais programas, o proces- PNDH III: a universalização dos direitos em sistem, apesar das melhorias nos indicadores 3. INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos. A política de Direitos no governo Lula. Nota técnica nº 99, agosto de 2005. Disponível em http://www.inesc.org.br.
  • 9. tomados para o conjunto da população – bem destinadas à proteção da terra e dos territó- de desigualdades sociais, além de beneficiar como no gozo de direitos civis, políticos, so- rios tradicionais. o grande capital. ciais e econômicos. Outra inovação do processo de constru- O PNDH III também incorporou diretri- Enfrentar as desigualdades sociais pas- ção do PNDH é a tentativa de incorporação zes dirigidas à promoção, à defesa e à pro- sa, ainda, pela necessidade de compreender dos impactos do modelo de desenvolvimento teção da ação dos defensores de Direitos que a opção pelo atual modelo de “desen- em curso no País sobre os Direitos Humanos. Humanos. Os instrumentos anteriores nem volvimento” hegemônico – que é insus- O direito ao meio ambiente e ao desenvol- sequer mencionavam a temática dos defen- tentável ambientalmente e concentrador vimento sustentável foi, portanto, incorpo- sores, cujo papel é essencial à construção de renda – transformou as terras, urbana e rado pelo programa, não só como elemento de uma cultura de direitos no País e à con- rural, e os territórios tradicionais em merca- necessário à conformação da conjuntura, solidação da democracia. Nesse sentido, é dorias. Desse modo, para privilegiar grupos mas como Direito Humano. O desafio é criar um avanço que o programa tenha absorvido de empresas nacionais e transnacionais, a mecanismos efetivos para garantir o controle desafios como a proteção aos defensores todo tempo os direitos à terra e ao território social, a responsabilização e a reparação das de Direitos Humanos, que têm suas vidas de povos indígenas, comunidades tradicio- violações causadas pelas atividades das em- ameaçadas em razão de suas atividades, nais, trabalhadores rurais e populações ur- presas transnacionais e por grandes obras de bem como o enfrentamento à criminaliza- banas são negados. Nesse sentido, o PNDH infraestrutura, pois a impunidade das ações ção dos movimentos sociais, povos e co- III avançou ao estabelecer diretrizes e ações violadoras desses grupos perpetua o cenário munidades tradicionais. destacamos abaIxo, como exemPlos, algumas ações ProgramátIcas sIgnIfIcatIvas estabelecIdas no PndH: eixo orientador I: Interação democrática entre estado e sociedade civil • Apoiar, no Poder Legislativo, a instituição do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, garantindo recursos humanos, materiais e orçamen- tários para seu pleno funcionamento, e efetuar seu credenciamento no Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos como “Instituição Nacional Brasileira”, como primeiro passo rumo à adoção plena dos “Princípios de Paris”. • Incorporar as diretrizes e objetivos estratégicos do PNDH-3 nos instrumentos de planejamento do Estado, em especial no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA). • Construir e manter um Sistema Nacional de Indicadores em Direitos Humanos, de forma articulada com órgãos públicos e sociedade civil. eixo orientador II: desenvolvimento e direitos Humanos • Fomentar o debate sobre a expansão de plantios de monoculturas, tais como eucalipto, cana-de-açúcar, soja, e sobre o manejo florestal, a grande pecuária, mineração, turismo e pesca, que geram impacto no meio ambiente e na cultura dos povos e das comunidades tradicionais. • Garantir que os grandes empreendimentos e os projetos de infraestrutura resguardem os direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas e tradicionais, conforme previsto na Constituição Federal e nos tratados e convenções internacionais. • Fomentar políticas públicas de apoio aos estados e municípios em ações sustentáveis de urbanização e regularização fundiária dos assen- tamentos de população de baixa renda, comunidades pesqueiras e de provisão habitacional de interesse social, materializando a função social da propriedade. • Reforçar o papel do Plano Plurianual (PPA) como instrumento de consolidação dos Direitos Humanos, enfrentando a concentração de renda e riqueza e promovendo a inclusão da população de baixa renda. eixo orientador III: universalizar direitos em um contexto de desigualdades 9 • Fortalecer a agricultura familiar e camponesa no desenvolvimento de ações específicas que promovam a geração de renda no campo e o Revista Direitos Humanos aumento da produção de alimentos agroecológicos para o autoconsumo e para o mercado local. • Fortalecer a reforma agrária, dando prioridade à implementação e à recuperação de assentamentos, à regularização do crédito fundiário e à assistência técnica aos assentados, com: • Atualização dos índices Grau de Utilização da Terra (GUT) e Grau de Eficiência na Exploração (GEE), conforme padrões atuais. • Regulamentação da desapropriação de áreas pelo descumprimento da função social plena.
  • 10. artigo Programa Nacional de Direitos Humanos: efetivar direitos e combater as desigualdades • Garantir demarcação, homologação, regularização e desintrusão das terras indígenas, em harmonia com os projetos de futuro de cada povo indígena, assegurando seu etnodesenvolvimento e sua autonomia produtiva. • Assegurar às comunidades quilombolas a posse de seus territórios, acelerando a identificação, o reconhecimento, a demarcação e a titula- ção desses territórios, respeitando e preservando os sítios de alto valor simbólico e histórico. • Apoiar a alteração do texto constitucional para prever a expropriação dos imóveis, rurais e urbanos, em que forem encontrados trabalhadores reduzidos à condição análoga a de escravos. • Erradicar os hospitais psiquiátricos e manicômios e fomentar programas de tratamentos substitutivos à internação, que garantam às pessoas com transtorno mental a possibilidade de escolha autônoma de tratamento, com convivência familiar e acesso aos recursos psiquiátricos e farmacológicos. • Fiscalizar a implementação do Programa Nacional de Ações Afirmativas (Decreto nº 4.228/2002) no âmbito da administração pública fe- deral, direta e indireta, com vistas à realização de metas percentuais da ocupação de cargos comissionados por mulheres, populações negras e pessoas com deficiências. • Garantir a igualdade de direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores domésticos com os dos demais trabalhadores. • Desenvolver campanhas de informação sobre o adolescente em conflito com a lei, defendendo a não-redução da maioridade penal, em observância à cláusula pétrea da Constituição. • Elaborar programas de combate ao racismo institucional e estrutural, implementando normas administrativas e legislação nacional e inter- nacional. • Trabalhar pela aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos. • Apoiar projeto de lei que dispõe sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo, assegurando os reflexos jurídicos desse ato. • Instituir mecanismos que assegurem o livre exercício das diversas práticas religiosas, assegurando-lhes espaço físico e coibindo manifes- tações de intolerância religiosa. eixo orientador Iv: segurança pública, acesso à Justiça e combate à violência • Ampliar recursos orçamentários para a realização das ações dos programas de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, defensores de Direitos Humanos e crianças e adolescentes ameaçados de morte. • Implementar o Observatório da Justiça Brasileira, em parceria com a sociedade civil. • Assegurar a criação de um marco jurídico brasileiro na prevenção e na mediação de conflitos fundiários urbanos, garantindo o devido pro- cesso legal e a função social da propriedade. • Reorganizar as Polícias Militares, desvinculando-as do Exército, extinguindo as Justiças Militares estaduais, disciplinando sua estrutura, seu treinamento, controle e emprego de modo a orientar suas atividades à proteção da sociedade. • Criar uma base de dados unificada que permita o fluxo de informações entre os diversos componentes do sistema de segurança pública e a Justiça criminal. • Fortalecer ações estratégicas de prevenção à violência contra jovens negros. • Fortalecer ações de combate às execuções extrajudiciais realizadas por agentes do Estado, assegurando a investigação dessas violações. • Implementar mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto legalmente autorizado, garantindo seu cumprimento e facilidade de acesso. eixo orientador vI: direito à memória e à verdade • Elaborar, até abril de 2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade, composta de forma plural e suprapartidária, com man- 10 dato e prazo definidos, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política no período 1964-1985. • Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais Revista Direitos Humanos de perseguidos políticos. • Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão. • Revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustenta- ção a graves violações.
  • 11. outros desafIos Por mais genéricas que possam ser as di- nível de acesso da população aos diversos O principal desafio para a implemen- retrizes e metas estabelecidas, todas se devem direitos, quais sejam, educação, saúde, mo- tação do PNDH é transformá-lo em uma materializar em ações concretas, monitoráveis radia, segurança, trabalho, etc., em um dado política de Estado, não de um governo ou e com recursos suficientes para sua realização. momento, e quais metas devemos traçar mesmo da Secretaria Especial dos Direitos Isto é, devem ser elaborados planos anu- para cinco, dez, quinze anos de ampliação Humanos. Isso significa que esse deve ser ais, como um instrumento sintético, monito- desses direitos. Poderemos, assim, respon- um instrumento de referência para a formula- rável, composto de diretrizes e metas de Di- der a várias perguntas: as políticas públicas ção de programas e ações tanto para o Poder reitos Humanos a ser efetivadas e cumpridas existentes estão conseguindo efetivar os di- Executivo, como para os Poderes Legislativo pelo Estado brasileiro em toda a sua exten- reitos previstos no PNDH? Os recursos são e Judiciário. Uma das principais dificuldades são – União, estados, municípios, executivo, suficientes? Que novas políticas devem ser de todo o processo foi envolver represen- Legislativo, Judiciário, Ministério Público e criadas, ou que modificações devem sofrer tantes do Poder Judiciário na discussão e Defensoria – um plano de metas para a re- as políticas existentes? também no compromisso de implementa- alização progressiva dos Direitos Humanos. A definição de indicadores em Direitos ção do programa. É notório que, dentro do Cabe dizer que, em 2008, o Conselho Humanos é um debate eminentemente políti- próprio governo federal, há contradições que de Direitos Humanos da ONU aprovou uma co e não apenas técnico. Por essa razão, a so- emergiram nesse processo, como a recusa proposta brasileira que estabelece me- ciedade civil deve ter participação no debate do Ministério da Defesa em subscrever o tas voluntárias em Direitos Humanos a ser sobre a construção e manutenção do sistema PNDH, retardando ainda mais seu lançamen- assumidas pelos países. O Brasil, como de indicadores em Direitos Humanos. to público, por opor-se à criação da Comis- proponente dessa iniciativa, deveria dar o Sugere-se que o sistema de indicadores são Nacional da Verdade, aprovada durante a exemplo e estabelecer um amplo conjunto deva ser o mais desagregado possível e que Conferência e subscrita pela SEDH e a quase de metas nacionais em matéria de Direitos o Estado brasileiro garanta sua continuidade. A totalidade dos ministérios. Humanos, por meio do PNDH. observância das desigualdades de raça, gêne- Para que o programa tenha efetividade, é ro e etnia e da forma como homens e mulhe- necessário que as diretrizes que o compõem monitoramento – sistema res, negros(as) e brancos(as) têm acesso aos tenham reflexos nos instrumentos de planeja- nacional de Indicadores de direitos devem ser componentes centrais do mento do Estado Brasileiro: Plano Plurianual, direitos Humanos sistema, assim como a formulação de indica- Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lei Orçamen- Um dos principais instrumentos de mo- dores de riqueza e concentração de renda e de tária Anual. nitoramento do PNDH deve ser a criação indicadores de aferição de violação de direitos. Embora o Estado brasileiro tenha-se com- e manutenção de um Sistema Nacional de prometido, com a ratificação do Pacto Inter- Indicadores em Direitos Humanos. Quando controle social nacional sobre Direitos Econômicos, Sociais falamos em progressiva realização dos Di- Outro grande desafio se dá com relação e Culturais (Pidesc), em 1992, a destinar o reitos Humanos, significa que precisamos ao monitoramento do PNDH, que deve ser máximo de recursos disponíveis para asse- desenvolver indicadores que demonstrem o participativo e envolver não apenas o Exe- gurar progressivamente os direitos listados no Pacto, não é isso que ocorre. O orçamento da União não se destina, prioritariamente, a garantir os direitos da po- pulação, mas sim à manutenção de privilé- O principal desafio para a implementação do gios, como o pagamento de juros da dívida do PNDH é transformá-lo em uma política de 11 governo, a investimentos, diminuindo o custo Estado, não de governo ou mesmo da Revista Direitos Humanos para a reprodução do capital e, em muitos ca- sos, a políticas sociais compensatórias, que Secretaria Especial de Direitos Humanos não garantem a emancipação de seus sujeitos de direitos.
  • 12. artigo Programa Nacional de Direitos Humanos: Efetivar Direitos e Combater as Desigualdades cutivo federal, mas também o Legislativo e o para quem o Conselho não deve ter participa- Especial dos Direitos Humanos (SEDH). O Judiciário. Atualmente, temos pouquíssimos ção da sociedade civil. Em todas as ocasiões, que podemos arriscar a dizer é que acredita- instrumentos de monitoramento sobre as em comissões e em plenário, o deputado tem mos que a SEDH tenha papel central de arti- ações do Poder Judiciário, essenciais para a adotado uma postura que busca inviabilizar o culação do PNDH dentro do governo federal, efetivação de direitos no País. andamento e a consequente aprovação do PL em outros poderes, estados e municípios. Acreditamos também que o futuro Con- que cria o Conselho. Para além de executar ações vincu- selho Nacional de Direitos Humanos seja ladas ao PNDH nas áreas da criança e do o lócus privilegiado de monitoramento articulação institucional da adolescente, da pessoa com deficiência, da do PNDH. Cabe dizer que o Projeto de Lei implementação do PndH população LGBT, dos defensores de Direi- nº. 4.715/1994, que transforma o Conselho dentro do estado tos Humanos, etc., a SEDH deve manter um de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana Um tema que necessita entrar na agenda sistema de indicadores nacionais de Direitos (CDDPH) em Conselho de Direitos Humanos de debates diz respeito ao papel da Secretaria Humanos, além de atuar de forma transversal está pronto para ser votado no plenário da Câ- com outros ministérios e poderes, trabalhan- mara e isso só não ocorre pela intransigência do em conjunto para elaborar e monitorar os do deputado José Carlos Aleluia-DEM/BA, diversos programas e as diversas ações que contribuirão para a realização das diretrizes e metas do PNDH. 12 Revista Direitos Humanos
  • 13. impactos da crise econômica mundial sobre o exercício dos direitos Humanos PAul singer – nasceu em Viena (Áustria), em 1932, e vive no Brasil desde 1940. Professor titular na Universidade de São Paulo (USP), foi membro fundador e econo- mista sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) (1969-1988) e atualmente desempenha a função de secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. É autor de várias obras, entre elas Desenvol- vimento e crise (1968) e O capitalismo – sua evolução, sua lógica e sua dinâmica (1987). a crise econômica mundial se ma- A presente crise mundial foi causada nifesta sob a forma de uma para- pela suspensão, pelas famílias menos lisia das atividades econômicas, aquinhoadas, do serviço de suas dívidas sufocadas por forte queda da oferta de hipotecárias. Essas dívidas haviam sido crédito. O capitalismo contemporâneo é, adquiridas, sob a forma de títulos, pelos simplesmente, incapaz de funcionar sem maiores bancos não apenas dos EUA, ampla e flexível disponibilidade de finan- mas também da Europa e do Japão. Sua ciamento, tanto da acumulação de capital súbita desvalorização fez que sofressem como de consumo. A maioria dos consu- perdas imensas. Essa crise foi precipita- midores não tem dinheiro para adquirir, à da em 2007, nos EUA, pelo estouro de vista, os bens e serviços que usualmente uma bolha imobiliária que já durava seis consome. Nos EUA, as famílias ficam cro- anos. Os preços dos imóveis passaram a nicamente endividadas para ostentar um cair bruscamente, atingindo, sobretudo, padrão de vida considerado essencial para os devedores de hipotecas de segunda merecer o respeito e a confiança dos vi- classe – subprime, de baixa renda, que 13 zinhos, amigos, colegas e demais conhe- viam o valor de seus imóveis cair abai- Revista Direitos Humanos cidos. Ultimamente, antes que estourasse xo da dívida a ser amortizada. Tornou-se a crise mundial, a poupança do domicílio vantajoso para eles suspender o paga- estadunidense era negativa, ou seja, seus mento das prestações, mesmo correndo gastos com compras e pagamento de ju- o risco de perder a moradia. A completa ros superavam seu rendimento normal. desvalorização de uma massa de títulos,
  • 14. artigo Impactos da crise econômica mundial sobre o exercício dos Direitos Humanos no valor de trilhões de dólares, levou à ban- ser geral, o mesmo se aplicando aos demais As maiores vítimas da crise são aqueles carrota os maiores intermediários financeiros países capitalistas. Em todos, a desigualdade que já eram pobres antes que estourasse. do mundo. e a injustiça social afetam parcelas variáveis Grande parte das pessoas que se encontravam Com a retração não só do crédito imobi- de suas populações. No capitalismo, em sua nessa situação pertence a grupos estigmati- liário, mas de todas as espécies de crédito, atual fase neoliberal, o pleno emprego está zados, que são muitas vezes objetos de dis- provocada pela crise financeira, a demanda longe de ser normal. Em parte das famílias, criminação por gênero, por etnia, por idade, por bens e serviços em geral passa a cair, nenhum dos membros possui renda regular, por comportamentos considerados desvian- ocasionando a retração de quase todas as ati- proveniente de um trabalho assalariado, por tes – loucos, homossexuais, mães solteiras, vidades produtivas. Surge um círculo vicioso: conta própria ou de alguma aposentadoria, dependentes de tóxicos, etc. –, sem falar dos a queda da produção obriga as empresas a pensão ou outro tipo de beneficio continuado. portadores de deficiência física, dos egressos demitir empregados, esses imediatamente Sua renda é ganha pelo exercício de ativida- de prisões e de manicômios, dos moradores reduzem seus gastos ao mínimo, o que ace- des eventuais: serviços variados, os chama- de rua ou de lixões e tantos outros. lera a queda da demanda e, em consequên- dos “bicos”, mendicância, prostituição, ou Se as pessoas desprovidas de capital pró- cia, o aumento do desemprego; a cada volta prática de delitos. E há, ainda, famílias que prio já têm escassas oportunidades de escapar desse círculo infernal, mais famílias perdem praticamente não têm qualquer tipo de renda, da pobreza, as que somam à carência de recur- suas moradias, mais trabalhadores ficam sem vivendo da caridade pública ou de vizinhos. sos alguma característica que lhes gera alguma trabalho e sem renda e as cotações nas bolsas Como hoje a quase totalidade das famílias forma de discriminação têm, obviamente, muito de valores desabam, aniquilando, também, desamparadas faz jus, no Brasil, à Bolsa Fa- menos oportunidades ainda. A crise econômica os proventos de milhões de aposentados. mília, sabemos de sua dimensão: são cerca mundial faz que aumente o número de pesso- A crise econômica impacta o exercício dos de treze milhões de famílias, cinquenta mi- as que perdem o trabalho que lhes permitia Direitos Humanos, principalmente dos direitos lhões de pessoas, por volta de um quarto da escapar da pobreza, ao mesmo tempo que faz sociais, que procuram garantir a todos os ci- população do País. diminuir a quantidade total de postos de traba- dadãos o atendimento de suas necessidades Os impactos da crise econômica atingem lho disponíveis. O resultado, naturalmente, é o básicas: de comida e bebida, abrigo, vestuário, a maioria da população em cada país, mas encolhimento dramático do número de pessoas educação, saúde, transporte, cultura e recre- de forma extremamente desigual. As classes que podem exercer seus Direitos Humanos. ação. A Constituição brasileira, por exemplo, possuidoras de capital sofrem perdas que, A esses impactos quantitativos é preci- declara que o acesso à educação e à assistên- medidas em moeda, atingem valores muito so somar os qualitativos. As cia à saúde são direitos do cidadão e deveres elevados, mas apenas uma parcela pequena pessoas que perdem o em- do Estado. Estabelece, também, o direito de delas se arruína. A grande maioria dos inte- prego, no Brasil, têm direito todos os brasileiros ao trabalho e a um salário grantes dessas classes possui propriedades ao seguro-desemprego por mínimo suficiente para o sustento do trabalha- e tesouros acumulados nas formas de títulos alguns meses. Esse prazo dor e de seus dependentes. financeiros, imóveis, joias, obras de arte e é calculado como o neces- É verdade que, mesmo antes da atual cri- similares. A crise os torna menos ricos, mas sário para que as pessoas se econômica mundial, o usufruto dos direi- são provavelmente poucos os que perdem possam encontrar outro em- tos sociais pelos brasileiros estava longe de tudo e se tornam verdadeiramente pobres. prego. Em tempos de crise, encontrar outro emprego As maiores vítimas da crise são aqueles que torna-se quase impossível. O seguro-desemprego, jun- 14 já eram pobres antes que estourasse. Grande tamente com o Fundo de parte das pessoas que se encontravam nessa Garantia por Tempo de Ser- Revista Direitos Humanos viço, quase sempre serve situação pertence a grupos estigmatizados, apenas para moderar a que- da na pobreza e para retardar que são muitas vezes objetos de discriminação o mergulho na miséria.
  • 15. sistência do exercício dos Direitos Humanos A conquista dos Direitos Humanos é parte depende, vitalmente, de que uma outra Eco- nomia, uma Economia imune à ocorrência essencial de uma conquista maior, a da de crises gerais como a atual, que flagela o democracia, não só como regime político, mundo, possa tomar o lugar hoje ocupado pelo capitalismo. mas como modo de convivência social. Esta crise econômica, à medida que multiplica o número de suas vítimas, de- monstra que o capitalismo é incompatível As famílias atingidas pelo desemprego humana, torna-se inevitável que parte delas com o exercício dos Direitos Humanos por do chefe começam por perder a moradia, opte pelo crime como forma de sobrevivên- todos. Direitos que só podem ser exercidos porque não conseguem mais pagar a pres- cia e também de “socialização das perdas” por alguns não podem ser considerados tação da hipoteca ou o aluguel. Quando que sofreram. Uma das lições da crise eco- humanos. É possível que a solução desse podem, passam a morar com parentes ou nômica é que a possibilidade de satisfazer dilema esteja na luta das classes sociais, amigos; quando não podem, as alternativas regularmente as necessidades básicas é não cuja humanidade a crise inadvertidamen- costumam ser a favela, o cortiço, o lixão ou a só um direito humano, mas também con- te nega. Essa luta assume, hoje em dia, rua. A perda do teto frequentemente ocasiona dição essencial para que os outros Direitos novas dimensões, que são econômicas e a dissolução da família, cada membro procu- Humanos – as liberdades de ir e vir, de ma- políticas ao mesmo tempo. As classes tra- rando se virar para arranjar algum abrigo. A nifestação do pensamento, de eleger e de ser balhadoras, para escapar do risco de ser dissolução também se dá pela perda da afei- eleito, etc. – possam ser exercidos. Alguém privadas de seus Direitos Humanos, ou ção ou do autorrespeito do chefe da família que não tem onde morar, que não dispõe de seja, de seus direitos como membros da que, impossibilitado de cumprir seus deveres endereço fixo em que possa ser encontrado, humanidade, adotam, como objetivo pri- de pai e de marido, se entrega ao desespero que pode ser enxotado de qualquer espaço mordial, se tornar proprietárias dos meios na forma de alcoolismo, loucura, enfermida- público que porventura ocupe, ainda que seja de produção, que utilizam para satisfazer de psicossomática ou suicídio. Há estudos por algumas horas para descansar, é alguém suas necessidades, não apenas as básicas. feitos em diferentes lugares e em diferentes que perdeu o reconhecimento de sua condi- E para não reproduzir a desigualdade que épocas, mostrando forte ção humana. resulta da apropriação privada dos meios correlação entre a varia- A conquista dos Direitos Humanos é de produção, as novas formas de apropria- ção do desemprego e do parte essencial de uma conquista maior, a ção dos meios de produção tendem a ser gasto com saúde pública. da democracia, não só como regime polí- associativas, ou coletivas. A tragédia do aban- tico, mas como modo de convivência so- Inúmeras experiências de organização dono de crianças, que cial. A base da democracia, nesta acepção, econômica baseadas na cooperação e na auto- sobrevivem em bandos, é o reconhecimento da igualdade de todos gestão estão-se espalhando pelos bolsões de em condições desu- os seres humanos que formam uma dada pobreza que as frequentes crises econômicas manas, torna-se muito sociedade. A conquista da democracia po- deixam atrás de si, no mundo inteiro. Dessa maior, por causa dos im- lítica, a partir das grandes revoluções dos maneira, as vítimas das crises se defendem pactos da crise sobre as séculos XVIII, XIX e XX, criou, aos poucos, da desapropriação de seus Direitos Humanos classes desfavorecidas. as condições de possibilidade para que a e constroem vias de reconquistá-los. Como já É nesse meio que o cri- democracia pudesse extravasar o terreno dizia saudoso filósofo alemão, a humanidade, 15 me organizado, em suas da política e penetrar na economia, na vida quando coloca um problema, já tem a seu al- Revista Direitos Humanos múltiplas formas, recruta familiar, em síntese, na própria cultura. O cance os meios de solucioná-lo. As grandes seus asseclas. Se a cri- surgimento dos novos movimentos sociais crises econômicas do terceiro milênio podem, se despoja milhões de e sua intensa luta para que esse extravasa- quem sabe, motivar suas vítimas a procurar pessoas de sua condição mento possa se dar é prova de que a per- vias de superá-las definitivamente.
  • 16. artigo Memória, Verdade e Justiça: a experiência argentina eduArdo luis duHAlde é advogado, historiador e Memória, jornalista argentino. É secretário de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos da Argentina. Foi consultor de Direitos Humanos das Nações Unidas Verdade e é professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires. Tem longa trajetória como defensor de presos políticos e atua há várias décadas no movimento de Direitos Humanos. e Justiça: Foi também professor titular de Direito, História e Política em diversas universidades argentinas e estrangeiras, e membro de instituições acadêmicas no seu país, na América Latina e na Europa, bem como de organismos de Direitos Humanos da Argentina e de outros países. a experiência Em 1976, no início da ditadura militar na Argentina, teve os direitos civis e políticos cassados. No fim deste mesmo ano foi exilado na Espanha. Foi um dos organizadores da denúncia internacional contra o argentina terrorismo de Estado na Argentina. É autor de 24 livros, entre eles “O Estado terrorista argentino” (“El Estado terrorista argentino”). Foi responsável pela publicação Militância Peronista pela Liberação, ao lado de Ortega Peña, morto em um atentado em 1974. o estado terrorIsta e suas conseQuÊncIas É impossível compreender o processo de Memória, Verdade e Justiça que se leva adiante na Argentina, talvez por sua profundidade quase incomparável na re- alidade internacional atual, sem a prévia ca- racterização do que temos denominado como Estado Terrorista Argentino. A dimensão da tragédia ocorrida em meu país, por sua abrangência, só pode se com- parar, na América Latina do século XX, com a sofrida pelo povo guatemalteco ao longo de mais de cinquenta anos, a partir da derrocada de Jacobo Arbenz, em 1954. 16 Diferentemente daquele, o processo re- pressivo ilegal argentino teve um período de Revista Direitos Humanos implementação muitíssimo mais concen- trado e, ao mesmo tempo, de elaboração e de planejamento sistemáticos, que adquiriu formas específicas e singulares dentro do estado de exceção na América Latina, que
  • 17. jogou por terra os regimes institucionais de “mortos civis”, sem acesso a empregos O poder político foi sensível a essas democráticos. públicos ou privados por ter sido considera- pressões, ditando as chamadas leis de O regime militar instaurado a partir de 24 dos vinculados à “delinquência subversiva”, Obediência Devida e Ponto Final, comple- de março de 1976, com sua prolixa e siste- em decorrência de sua militância política, mentadas com indultos concedidos pelo mática preparação e a crescente ação repres- social, ou de sua atividade intelectual, quali- presidente Menem aos comandantes con- siva ilegal, se baseou em uma elaborada te- ficada como dissidente, ou incompatível com denados. A partir daí, abriu-se uma etapa oria, que configurou o Estado terrorista e sua o processo militar em curso. de mais de quinze anos de luta de amplos face clandestina permanente. Mas o regime militar também gerou um setores da sociedade civil, encabeçada pe- Produzido no decorrer de uma crise po- processo civil de resistência, encabeçado por las Mães, as Avós e os demais organismos lítica catastrófica e fundado na necessidade um emergente Movimento de Direitos Huma- de Direitos Humanos, contra a impunidade. de ajustes permanentes no modo de acumu- nos liderado, como expressão pública, pelas Essa impunidade começou a chegar ao lação de capital para a manutenção de uma Mães da Praça de Maio, que simbolizaram os fim quando Nestor Kirchner assumiu a Pre- ordem social injusta, trouxe, em si, mudança fatores éticos e políticos violados e a vontade sidência da República, colocando como eixo substancial de formas: configurou-se como de um povo oprimido, mas não vencido. Esse das políticas públicas de seu governo os Estado terrorista, partindo de pressupostos processo de resistência se intensificou depois princípios de Memória, Verdade e Justiça. que se esgrimiram como permanentes e que da derrota da ditadura em uma guerra irres- Tratava-se não somente de cumprir com as contradiziam as bases fundamentais do Esta- ponsável pela recuperação das Ilhas Malvinas, responsabilidades do Estado pela reparação, do democrático. que finalmente levou os militares ao abando- previstas nos instrumentos internacionais Afirmou-se sobre o princípio de que no do governo, em dezembro de 1983. subscritos pela Argentina – e que gozam sujeição à lei, à publicidade dos atos e a A recuperada democracia constitucional, de status constitucional – como também de seu controle judicial incapacitaria definitiva- presidida por Raúl Alfonsín, criou logo em recuperar os fundamentos éticos do Estado mente o Estado para a defesa dos interesses seguida, a pedido das organizações de Di- democrático, inseparáveis da vigência dos da sociedade. Em consequência, apareceu, reitos Humanos, a Comissão Nacional sobre Direitos Humanos. como substrato de tal concepção, a neces- o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), O reconhecimento da nulidade das cha- sidade de estruturação – quase com tanta primeira constatação oficial da dimensão do madas leis de perdão, pelo Parlamento, e sua força como a do Estado público – do Estado extermínio coletivo levado adiante pelos mili- declaração de inconstitucionalidade por parte clandestino e, como instrumento deste, o tares usurpadores do poder. da Corte Suprema de Justiça, colocaram os três terror como método. Assim, o Estado terro- Depois disso, era inevitável o julgamento poderes do Estado no caminho de pôr fim à im- rista é a culminação degenerativa do Estado das três juntas militares que se haviam reve- punidade. A reabertura dos julgamentos por cri- militar “eficiente”. zado no poder. Em um processo histórico e mes contra a humanidade, imprescritíveis, foi o O trágico resultado registra, aproximada- sem precedentes no mundo, um tribunal ju- passo seguinte. Hoje, a Memória, a Verdade e a mente, trinta mil detidos desaparecidos, as- dicial condenava os chefes de uma ditadura Justiça constituem o corpo doutrinário efetivado sassinados, de todas as idades e condições militar sangrenta a penas de prisão perpétua, em políticas estampadas e irreversíveis. sociais, a maior parte deles arremessada com como no caso de Videla e Massera, seus Façamos uma breve revisão. vida ao mar, depois de inenarráveis proces- principais responsáveis. sos de torturas física e mental, ou fuzilados O governo civil se deu por satisfeito com a memórIa e enterrados clandestinamente; outros dez esse enorme gesto e com sua ressonância Uma peça nodal dessas políticas, que mil detidos prisioneiros, a maioria deles sem simbólica. As vítimas sobreviventes, os fa- não é asséptica nem neutra, é o combate pela processos jurídicos, apenas “à disposição do miliares dos presos desaparecidos e assas- Memória. 17 Poder Executivo”, nos presídios da Repúbli- sinados, o movimento de direitos humanos Os atores do privilégio e da exclusão, Revista Direitos Humanos ca; mais de duzentos mil cidadãos exilados e amplos setores da sociedade civil, não. E bem como da consequente atividade anti- e um número superior de demitidos de seus passaram a promover a continuidade dos jul- democrática e repressiva ao longo do século trabalhos, públicos e privados; professores e gamentos dos genocidas, até que se fizeram XX e até agora, tentaram, juntamente com o estudantes expulsos das escolas, homens e ouvir as demandas militares clamando por assalto às instituições de 1976, fazer uma lei- mulheres que aumentaram “as listas negras” impunidade. tura da história legitimadora de seu agir.
  • 18. artigo Memória, Verdade e Justiça: a experiência argentina A partir dessa perspectiva, buscaram vo, com capacidade de atuar sobre a vida so- tos, outros meios, mas o combate continua. fazer toda sua violência sistemática parecer cial, sustentando o reconhecimento coletivo O desafio que hoje enfrentamos na Ar- mera resposta de defesa da nação contra a da identidade e as projeções futuras. gentina é construir um legado do nunca mais, irracional violência militante e social, à qual A memória é a vida, sempre levada por um discurso narrativo nem cristalizado nem não hesitam em qualificar como gerada pela grupos vivos e, por isso, em evolução per- estático, do qual possam reapropriar-se as subversão apátrida. Como eixo dessa pos- manente, aberta à dialética da lembrança e do novas gerações, com o olhar do presente que tura, aparece a defesa desavergonhada do esquecimento: é um fenômeno sempre atual, queiram viver e que lhes garanta, assim, o terrorismo de Estado. A partir disso, preten- alimenta-se de lembranças indefinidas, glo- direito de conhecer sua própria História e de deram impor a organização do esquecimen- bais ou flutuantes, particulares ou simbólicas. receber a memória coletiva, sob os princípios to, apagando tudo o que se faça aparecer É sensível a todos os modos de transferência, de Memória, Verdade e Justiça e da vigência nu em seu modelo genocida de repressão censura ou projeção. A memória instala a lem- irrestrita dos Direitos Humanos. e exclusão. brança no sagrado, como apontou Pierre Nora. A designação, como tais, das Bases e Diante dessa manipulação da História e A memória também está ligada à cons- Quartéis onde funcionaram Centros Clan- das tentativas de construção de uma falsa trução da sociedade que queremos. Quando destinos de Detenção e Extermínio, mediante memória coletiva, é dever da democracia falamos de terrorismo de Estado, estamos placas e pilares, a conversão dos grandes social e dos governos republicanos opor, fazendo referência também à metodologia centros clandestinos emblemáticos em Es- a essa visão contrabandeada dos fatos, um impulsionada por setores políticos e econô- paços da Memória, como a Escola de Me- forte resgate da memória histórica, assentado micos concentrados, que, por meio das For- cânica da Armada (ESMA), em Buenos Aires na irrefutável verdade do ocorrido, trazendo ças Armadas, impuseram, criminal e maciça- e La Perla, em Córdoba, é parte da obra que à luz e convertendo em lembranças perma- mente, um modelo de sociedade ferozmente realiza a Secretaria de Direitos Humanos, por nentes aquilo que os sujeitos populares, as excludente e totalmente dependente. meio do Arquivo Nacional da Memória. vítimas levam como bandeira reivindicativa e E, hoje, apesar de essa experiência ge- Esse arquivo é a custódia pública de toda reparatória, ao longo de décadas de luta pela nocida, que forma parte do nosso passado a documentação recuperada sobre a repres- verdade e pela justiça. lacerante, estar sendo condenada por meio são ilegal, seus autores e suas vítimas. Mais Não há receita para a construção de uma de processos que a Justiça leva a cabo, não de dez milhões de folhas constituem seu memória histórica fora do esforço por esti- alcançou esses fatores político-econômicos acervo documental, fonte de investigação e, mulá-la, resgatar suas marcas, muitas vezes que impulsionaram o golpe de Estado e que ao mesmo tempo, prova documental de todos cobertas pelo esquecimento, relembrando estão entre nós. Hoje usam outros instrumen- os processos judiciais. o passado e pondo à luz a continuidade do acontecer histórico e seus pontos essenciais, que não devem deixar de ser parte de nosso Não há receita para a construção de uma presente, como passado vivo. Claro está que essa tarefa tem um rigor, memória histórica fora do esforço por em sua elaboração, que não é simples es- estimulá-la, resgatar suas marcas, mui- pontaneidade da lembrança. Narração e sim- bolização na ressignificação do horror não é tas vezes cobertas pelo esquecimento, a mera lembrança de fatos do passado. Sua iluminação significante implica muito mais: relembrando o passado e pondo à luz a 18 analisar, segundo as Ciências Sociais, a sis- continuidade do acontecer histórico e tematicidade de sua prática ilegal e de sua seus pontos essenciais, que não devem Revista Direitos Humanos persistência no tempo, pelos olhares cruza- dos dos atores sociais vítimas. deixar de ser parte de nosso presente, A Memória não busca “coisificar” a His- tória em forma gélida e estática, mas sim como passado vivo convertê-la em elemento dinâmico e operati-
  • 19. Assim, a memória tem um sentido coletivo Em consonância com tal interpretação, dade que tem toda pessoa, independentemente de recuperação da História a partir do presente, afirmou-se também que de sua condição econômica, social ou de qual- de ensino e de caminho em direção ao futuro. “Existe uma expectativa não-individual do quer outra natureza, de recorrer aos tribunais É, ao mesmo tempo, autodefesa de nossa prá- direito à verdade, que se assenta no direito para formular pretensões ou para defender-se, tica diária e assentamento das bases de uma de a comunidade conhecer seu passado... e de obter o pronunciamento, o cumprimento e sociedade futura sobre os pilares do aprofun- É o direito da sociedade de conhecer suas a execução de uma sentença desses tribunais. damento democrático, da vigência plena dos instituições, seus atores, os fatos acon- A Justiça como tal foi negada às vítimas Direitos Humanos e dos princípios da tolerân- tecidos, para poder saber, por meio do do terror estatal, ao amparo das leis de Obe- cia, da solidariedade e do respeito ao outro. conhecimento de seus acertos ou de suas diência Devida e do Ponto Final, assim como falhas, qual é o caminho a seguir para con- dos indultos. Os processos judiciais foram o dIreIto à verdade solidar a democracia”. arquivados e os responsáveis não foram jul- Essa ideia se expressa também na con- Tais conceitos foram recepcionados tam- gados, por falta de provas. sagração do Direito à Verdade. O direito ao bém pela Comissão Interamericana de Direitos O caminho de reconstrução do direito à conhecimento da verdade acerca do come- Humanos, ao assinalar que o direito de saber Justiça levou à substituição da vergonhosa timento de crimes aberrantes vale tanto para a verdade sobre os fatos, assim como a identi- Corte Suprema de Justiça do menemismo, me- o nefasto capítulo do passado quanto como dade de quem deles participou, constitui obri- diante uma avaliação política da composição de obrigação diante do presente e do futuro. Para gação do Estado para com os familiares das ví- seus membros e sua substituição por prestigio- isso tem-se de manter em vigília as consci- timas e a sociedade, como consequência das sos juristas independentes. O segundo passo ências ética e moral e sua sanção jurídica. obrigações e dos deveres por ele assumidos foi a ratificação da Convenção sobre impres- A respeito disso, cabe recordar que, no como Estado-Parte da Convenção. critibilidade dos delitos de lesa-humanidade. O campo do direito internacional dos Direitos Tanto o Conselho de Direitos Humanos terceiro passo foi a declaração de inconstitucio- Humanos, há muito tempo começou a de- das Nações Unidas (proposta da Argentina nalidade das leis de Obediência Devida e Ponto senvolver-se o chamado apoiada por 54 países) como a Assembleia Final, assim como dos Indultos. “Direito à Verdade”, para o qual foi da OEA reconheceram em resoluções impor- A seu lado, o governo nacional começou a marco importante o pronunciamento da tantes a relevância de respeitar e garantir o apresentar-se como polo ativo nas ações judi- Corte Interamericana de Direitos Huma- direito à verdade para o fim da impunidade, ciais, impulsionando a reabertura dos proces- nos em um caso de desaparição força- promover e proteger os Direitos Humanos. sos, sempre observando todas as garantias do da de pessoas. Naquele caso, a Corte Foi bem recebida a criação, em vários devido processo legal. Hoje o resultado está à sustentou que “O dever de investigar Estados, de mecanismos judiciais específi- vista: cinquenta e seis responsáveis importantes fatos desse gênero subsiste enquanto cos, assim como outros, extrajudiciais ou ad pela prática de crimes de lesa-humanidade já se mantenha a incerteza sobre o destino hoc, que complementam o sistema judicial foram condenados, contando-se desde o pro- final da pessoa desaparecida. Na hipó- de investigação das violações dos Direitos cesso das juntas militares; 182 estão sendo tese de que circunstâncias legítimas da Humanos e do direito internacional humani- processados e outros 130 o serão nos próximos ordem jurídica interna não tenham per- tário e servem de base para a preparação dos anos. Há 289 causas abertas contra repressores, mitido a aplicação das sanções corres- informes e das decisões desses órgãos. nas quais 556 pessoas são processadas, em pondentes a quem seja individualmente Os militares responsáveis pela aplicação todo o país, por violações aos Direitos Huma- responsável pelos delitos dessa natu- do terrorismo de Estado seguem negando- nos cometidas durante a última ditadura militar. reza, o direito dos familiares da vítima se a revelar a verdade: persistem ocultando O mais importante, entretanto, não é essa de reconhecer qual foi seu destino e a lista de pessoas assassinadas, o destino estatística, mas esse processo inédito, no qual 19 onde se encontram seus restos mortais das crianças apropriadas, os responsáveis de a Justiça de um país, em nome dos direitos Revista Direitos Humanos representa justa expectativa, que o Esta- cada crime e o destino dos corpos. fundamentais e dos princípios democráticos, do deve satisfazer com os meios ao seu julga e condena os responsáveis de uma épo- alcance” (Corte Interamericana de Di- JustIça ca marcada pelo horror sistemático, sem que, reitos Humanos, caso Velásquez Rodrí- De maneira geral, pode-se sustentar que o ao fazê-lo, coloque em perigo as instituições guez, sentença de 29 de julho de 1988). direito de acesso à Justiça consiste na possibili- da República, mas, pelo contrário, as fortaleça.
  • 20. artigo Interseccionalidade de direitos como fundamento do antirracismo diferencialista Interseccionalidade de Direitos como fundamento do antirracismo diferencialista vAlter roBerto silvÉrio é professor associado do Departa- 20 mento e Programa de Sociologia da Revista Direitos Humanos Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade.