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FACULDADE DE DIREITO
UNIVERSIDADE AGOSTINHO NETO
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Relatório de Final de Curso
“Kingilas e o Branqueamento de Capitias”
Rui Guerreiro Passos
Luanda 2012
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
RESUMO
O presente trabalho foi realizado no âmbito do 1º Curso de Pós Graduação em
“Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais” ministrado pela Faculdade de
Direito da Universidade Agostinho Neto e que mereceu o Alto Patrocínio da UIF –
Unidade de Informação Financeira.
O curso foi criado com o objectivo de dotar os seus destinatários com as competências
necessárias para identificar e tratar de questões relativas ao incumprimento das regras
das instituições financeiras em matéria de combate ao branqueamento de capitais e
financiamento ao terrorismo.
Além disso, o curso visa proporcionar aos destinatários o domínio das ferramentas
jurídicas necessárias analisar e compreender as operações suspeitas que advêm tanto do
sistema financeiro, como do sistema não financeiro.
O trabalho que se apresenta tem como finalidade questionar a existência do risco de
branqueamento de capitais decorrentes da actividade de comércio de câmbios que é
realizado à margem do sistema financeiro, por Kingilas, para que a partir daí se possa
questionar a eficácia do sistema angolano no combate ao branqueamento de capitais.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
INTRODUÇÃO
O objecto do presente trabalho é a análise da relação que existe ou pode existir entre a
actividade do comércio informal de câmbio, realizado pelas vulgar e sobejamente
denominadas Kingilas1
e o Branqueamento de Capitais em Angola.
A escolha deste tema é justificada pela escassez, senão mesmo inexistência, de
informação pública em torno do comércio de câmbios que é realizado à margem do
sistema financeiro angolano.
Como tal, pretende-se com a presente explanação, e por meio de algum trabalho
investigativo, trazer à luz um pouco da realidade do comércio ilegal de câmbios
realizado em Angola, particularmente em Luanda, e a sua possível relação com o
branqueamento de capitais.
Embora seja verdade que a actividade de comércio de câmbios realizado pelas Kingilas
é uma actividade proibida, a verdade é que esta mesma actividade contribui,
aparentemente, para o funcionamento da engrenagem da economia angolana.
É este “contributo” que nos propomos analisar, já que nele podem estar subjacentes
actividades tendentes a branquear capitais.
Para que nos possamos focar no tema proposto e daí retirarmos quaisquer ilações é
importante que tenhamos previamente percebido o fenómeno do branqueamento de
capitais, os seus efeitos e as soluções legais consagradas no ordenamento jurídico
angolano com vista a sua prevenção e repressão.
1
Kingila, em quimbundo, significa “esperar”. A expressão passou a designar a actividade de quem se
dedica ao comércio ilegal de câmbios, já que na maior parte do tempo os homens e mulheres que se
dedicam a esta actividade esperam, na rua, pelos seus clientes. Na grafia “aportuguesada” escreve-se
“Quinguila”
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Veremos por isso o fenómeno do branqueamento de capitais face ao ordenamento
jurídico angolano.
Assim, espera-se que com o presente trabalho seja também possível conhecer - ainda
que modestamente - a eficácia do sistema angolano de prevenção e repressão do
branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo.
Embora a construção da tese aqui proposta tenha as suas fundações enraizadas em
premissas essencialmente teóricas, o trabalho apresentado recolhe a experiência directa
de quem, no seu quotidiano, se dedica ao comércio ilegal de câmbios: as Kingilas!
1. O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
A terminologia adoptada para a descrição do facto punível não é a matéria que mais
importa efeitos do presente trabalho, pelo que não entraremos na discussão do referido
tema.
Contudo, não deixa de ser importante, e até curioso, aflorar esta temática, já que daí
poderemos mais facilmente apreender ou até explicar o conteúdo do “branqueamento de
capitais”.
Segundo alguns estudiosos2
, a expressão “branqueamento de capitais”advém da
expressão inglesa money laundering que se traduz numa outra expressão equivalente e
utilizada, por exemplo no Brasil, “ Lavagem de Dinheiro”.
A expressão terá primeiramente utilizada nos anos 1920 e 1930, nos Estados Unidos da
América, para identificar o modo como a Máfia usava redes de lavandarias para
2
Benja Satula, “Branqueamento de Capitais”, Universidade Católica Editora, 2010, p. 15
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
disfarçar e/ ou ocultar os proveitos das suas actividades criminosas, procurando
confundir esses proveitos com os de uma actividade lícita… as lavandarias.
A primeira ilação que daqui se pode retirar é que o fenómeno do branqueamento de
capitias não é um fenómeno novo, embora tenha registado, a partir da década de 70, um
aumento exponencial do volume de dinheiro que movimenta.
1.1 Noção
Não é apenas a terminologia “branqueamento de capitais” que é inequívoca, a própria
definição da actividade é em si mesmo um assunto algo controverso.
Como tal, maior parte dos países utiliza a definição contida na Convenção das Nações
Unidas contra o tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substancias Psicotrópicas,
(Convenção de Viena de 1988) e pela Convenção das Nações Unidas contra a
Criminalidade Organizada Transnacional (Convenção de Palermo de 2000).
A Convenção de Viena tem como finalidade promover a cooperação internacional em
matéria combate ao tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.
Os Estados Partes assumem, na Convenção de Viena, a obrigação de adoptar todas as
medidas necessárias, incluindo as de natureza legislativa e administrativa, para a
transposição para os respectivos ordenamentos jurídicos das disposições nela
plasmadas.
No âmbito da Convenção de Viena3
, constituem infracções penais:
3
Ver Convenção de Viena, artigo 3º, (b) e (c – i)
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
i) A conversão ou a transferência de bens, com o conhecimento de que os mesmos
provêm de qualquer das infracções estabelecidas de acordo com a alínea a) do
n.º 14
deste artigo, ou da participação nessa ou nessas infracções, com o
objectivo de ocultar ou dissimular a origem ilícita desses bens ou de auxiliar a
pessoa implicada na prática dessa ou dessas infracções a eximir-se às
consequências jurídicas dos seus actos;
ii) A ocultação ou a dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização,
disposição, movimentação, propriedade ou outros direitos respeitantes aos
bens, com o conhecimento de que eles provêm de uma das infracções
estabelecidas de acordo com a alínea a) do n.º 1 deste artigo ou de actos de
participação nessa ou nessas infracções;
c) Sob reserva dos princípios constitucionais e dos conceitos fundamentais dos
respectivos sistemas jurídicos:
i) A aquisição, detenção ou uso de bens, com o conhecimento, no momento da sua
recepção, de que provêm de qualquer das infracções estabelecidas de
acordo com a alínea a) do n.º 1 deste artigo ou da participação nessa ou
nessas infracções.
4
- Artigo 3º Convenção de Viena As Partes adoptam as medidas necessárias para tipificar como
infracções penais no respectivo direito interno, quando cometidas intencionalmente:
a):
i) A produção, o fabrico, a extracção, a preparação, a oferta, a comercialização, a distribuição, a venda,
a entrega em quaisquer condições, a corretagem, a expedição, a expedição em trânsito, o transporte, a
importação ou a exportação de quaisquer estupefacientes e substâncias psicotrópicas em violação das
disposições da Convenção de 1961, da Convenção de 1961 alterada ou da Convenção de 1971;
ii) A cultura de dormideiras, de arbustos de coca ou da planta de cannabis para fins de produção de
estupefacientes em violação das disposições da Convenção de 1961 e da Convenção de 1961 modificada;
iii) A detenção ou a aquisição de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas para qualquer das
actividades enumeradas na alínea i);
iv) O fabrico, o transporte ou a distribuição de equipamentos, materiais ou substâncias das Tabelas I e II,
com o conhecimento de que os mesmos vão ser utilizados no ou para o cultivo, produção ou fabrico
ilícitos de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
O Grupo de Acção Financeira sobre Branqueamento de Capitais (GAFI), tida como a
organização internacional por excelência de combate ao fenómeno do branqueamento
de capitais, define o fenómeno como a “utilização e transformação de…produtos do
crime para dissimular a sua origem ilícita” com o objectivo de “legitimar” os
proventos resultantes da actividade criminosa.5
Acontece pois que a infracção subjacente ao branqueamento de capitais é a actividade
criminosa que lhe está associada, que gera as vantagens, que quando branqueados
constitui crime de branqueamento de capitais.
O que se verifica é que a Convenção de Viena restringe às infracções subjacentes ao
tráfico de drogas, fim aliás com que foi elaborada a Convenção de Viena.
Logo, não podendo esta limitação ser aceite, porque exclui outros crimes, quiçá mais
grave, como os de sangue, foi necessário formular uma previsão legal que alargasse o
leque de crimes subjacentes.
Foi então que em 2000, na Cidade de Palermo, a Comunidade Internacional, subscreveu
uma Convenção – a Convenção de Palermo – cuja finalidade é o de estabelecer a
cooperação internacional na prevenção e combate ao crime organizado transnacional.
A Convenção de Palermo6
veio então obrigar aos Estados Partes a criminalizar o
branqueamento de capitais, por meio de adopção de medidas legislativas e outras
consideradas necessárias para a caracterização como infracção penal:
5
Guia de Referência Anti-Branqueamento de Capitais e de Combate ao Financiamento do Terrorismo,
Segunda Edição e Suplemento sobre a Recomendação Especial IX, Paul Allan Schott
6
Convenção de Palermo, artigo 6º
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
(i) A conversão ou transferência de bens, quando quem o faz tem conhecimento de
que esses bens são produto do crime, com o propósito de ocultar ou
dissimular a origem ilícita dos bens ou ajudar qualquer pessoa envolvida na
prática da infracção principal a furtar-se às consequências jurídicas dos
seus actos;
(ii) A ocultação ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização,
disposição, movimentação ou propriedade de bens ou direitos a eles
relativos, sabendo o seu autor que os ditos bens são produto do crime;
b) e, sob reserva dos conceitos fundamentais do seu ordenamento jurídico:
i) A aquisição, posse ou utilização de bens, sabendo aquele que os adquire, possui
ou utiliza, no momento da recepção, que são produto do crime;
ii) A participação na prática de uma das infracções enunciadas no presente Artigo,
assim como qualquer forma de associação, acordo, tentativa ou cumplicidade,
pela prestação de assistência, ajuda ou aconselhamento no sentido da sua
prática.
2. Para efeitos da aplicação do parágrafo 1 do presente Artigo:
a) Cada Estado Parte procurará aplicar o parágrafo 1 do presente Artigo à mais
ampla gama possível de infracções principais;
Na verdade, o conceito de branqueamento de capitais em si é menos propenso a gerar
controvérsia do que a sua definição, já que o branqueamento de capitais não é definido
em termos descritivos mas sim de modo teleológico.7
7
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais – Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra 2011
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
O “Branqueamento” consiste, segundo alguns autores8
, “na realização de operações
financeiras com vista a ocultar a origem ilícita dos bens ou produtos.”
Ou seja, o branqueamento de capitais é o processo pelo qual os produtos de uma
actividade criminosa são dissimulados para ocultar a sua origem ilícita.
Em suma, ele envolve os produtos derivados de bens obtidos de forma criminosa e não
propriamente esses bens.9
1.2 Fases
Tradicionalmente o branqueamento de capitais é tido como um crime “trifásico”10
,ou
seja é um crime cuja execução pode ser repartido em três fases distintas.
Contudo a força desta ideia começa a ceder perante a celeridade dos mecanismos
automatizados de que tem socorrido os sistemas financeiros modernos, já que as
plataformas tecnológicas dos sistemas financeiros actuais permitem que num único
momento a operação de branqueamento de capitais seja realizada.
Segundo o autor Benja Satula, “o cerco dos sistemas de prevenção e repressão exigem
cada vez mais destreza e subtiliza, o que torna claro que quanto mais rápida e discreta
for a dissimulação menos perigosa é”.11
A verdade é que diferentes autores têm criado diferentes modelos, com o propósito de
sistematizar as várias fases ou possíveis operações de branqueamento de capitais.12
8
Henrique Eiras e Guilhermina Fortes, dicionário de direito Penal e Processo Penal, 2ª edição ( revista e
actualizada), Quid Juris Sociedades Editora, Lisboa, 2006.
9
Guia de Referência Anti-Branqueamento de Capitais e de Combate ao Financiamento ao Terrorismo,
Segunda Edição e suplemento sobre a Recomendação Espacial IX, Paul Allan Schott.
10
Benja Satula, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010
11
Benja Satula, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010
12
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, “do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra 2011
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Não obstante as diferentes construções doutrinárias, a formulação mais comum, por isso
mesmo a que foi adoptada pelo GAFI, é a “trifásica”, em que se distinguem três fases ou
etapas de branqueamento de capitais.
Esta tripartição compreende as seguintes fases comummente conhecidas como
placement, (colocação) layering (dissimulação) e integration (integração).
a) Colocação
A fase da colocação consiste, como o próprio nome indica, na colocação dos capitais no
sistema financeiro, seja por intermédio de instituições financeiras tradicionais, quer seja
por intermédio de outras instituições.
Uma forma possível de executar esta fase através de depósito em conta, de pequenas
quantias em dinheiro, ao longo do tempo, em diversas dependências de uma única
instituição ou em várias instituições financeiras.13
Nesta forma particular de colocação os branqueadores podem proceder ao câmbio da
moeda noutra ou a conversão de notas pequenas em notas de maior denominação.
O autor Paul Allan Schott considera que os fundos ilícitos podem ser convertidos em
instrumentos financeiros, tais como ordens de pagamentos ou cheques, e posteriormente
combinados com fundos legítimos de modo a não causar suspeitas.
Um outro método possível de colocação é através da compra de valores mobiliários ou
de contratos de seguros com recurso a numerário.
13
Guia de Referência Anti-Branquemento de Capitais e de Combate ao Financiamento do Terrorismo,
Segunda Edição, e Suplemento sobre a Recomendação Especial IX, Paul Allan Schott.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
b) Dissimulação
A fase da dissimulação consiste na realização de operações de diversas naturezas de
modo a criarem-se “camadas” (layers) entre os fundos ilícitos e a sua origem criminosa.
A ideia a reter aqui é que com a realização de sucessivas, diferentes e complexas
transacções, a investigação da origem dos fundos fica tão intricada quanto possível, de
modo a que não se consiga chegar à verdadeira origem dos fundos.
Na dissimulação o agente branqueador procura interromper o “rasto” documental, com
recurso, por exemplo, a transferências para contas anónimas situadas em jurisdições que
de alguma forma facilitem as operações de branqueamento de capitais.
É comum os agentes branqueadores recorrerem a jurisdições onde o sigilo bancário
torna praticamente impossível seguir o rasto documental do dinheiro.
É ainda comum que os fundos sejam aplicados em instrumentos de investimento
mobiliário que se consigam transferir ou negociar com facilidade.
c) Integração
Nesta derradeira fase, os agentes branqueadores procuram “integrar” os seus ganhos
ilícitos na economia formal.
O que interessa agora é conferir a aparência de licitude dos seus proveitos e para o
efeito é comum que recorram às mesmas instituições e instrumentos que foram usados
na fase anterior.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
É aqui que nasce a “justificação” dos seus ganhos aparentemente legítimos e a
“permissão” para que os mesmos sejam livremente utilizados na economia aberta e
legítima.
O que importa nesta fase já não é a dissimulação mas sim o reaparecer dos proveitos
ilícitos com uma roupagem nova - de licitude.
Uma das formas de o realizar a integração é por meio de aquisição de imóveis ou jóias e
metais preciosos.
Porém este pode não ser o único destino desses proveitos. O financiamento do
empreendimento criminoso é outro destino possível para estes proveitos ilícitos.
2. O BEM JURÍDICO PROTEGIDO
O “bem jurídico” 14
é o objecto jurídico do crime. Com a prática do crime o bem
jurídico é, ou pode ser, colocado em perigo – como acontece nos crimes de perigo -, ou
destruído, o que se verifica nos crimes de danos.
O bem ou interesse jurídico é o valor de ordem social protegido pela norma penal.
Trata-se de um conceito do plano normativo que de um dado sistema jurídico que
quando negados por um comportamento humano, caracterizam este comportamento
como criminoso.
No que toca ao branqueamento de capitais, há autores15
que afirmam que a identificação
do bem jurídico é uma conclusão que só em definitivo se pode retirar com a análise
detalhada do tipo do crime.
14
Henrique Eiras e Guilhermina Fortes, Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 2ª Edição (revista e
actualizada), QuidJuris Sociedade Editora, Lisboa, 2006
15
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra - 2001
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Daí que na sua obra o referido autor, subscrevendo a chamada de atenção de COSTA
ANDRADE, defende que “a propósito dos crimes contra a economia, (…) na
determinação do bem jurídico ser necessário tomar em devida consideração a letra da
lei.”16
Alias, é por esse motivo que o referido autor refere que as teses apresentadas sobre a
definição do bem jurídico protegido no âmbito do branqueamento de capitais são em
certo sentido provisórias enquanto não forem posteriormente confirmadas pela análise
do tipo do crime.
O tipo de crime que consubstancia branqueamento de capitais é, segundo Jorge A. F.
Godinho, “ complexo e pouco claro, a que acresce a sua novidade”.17
Como tal, a identificação do bem jurídico protegido não é de todo uma tarefa fácil, oque
se pode comprovar pelo estudo comparativo das diferentes legislações internacionais
que apresentam soluções distintas e geram em consequência uma forte controvérsia
doutrinal.
2.1 As teses sobre o bem jurídico protegido pelo branqueamento de capitais
Entre as diferentes posições doutrinárias sobre a identificação do bem jurídico
protegido, existem quatro que têm merecido um destaque especial na discussão da
matéria.
16
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 pp. 121 - 122
17
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 123
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
a) O bem jurídico protegido pelo crime precedente
No ordenamento jurídico português o crime de branqueamento de capitais começou por
se referir apenas os produtos obtidos pelo tráfico de drogas.
Esta posição é, segundo Jorge A. F. Godinho “insustentável dada a sua
incompatibilidade com o direito vigente que criminaliza o branqueamento de capitais
ara além dos proveitos do tráfico de droga.”18
O referido autor defende ainda - posição que subscrevemos,- que nesta tese está
implícita a protecção, pelo crime de branqueamento de capitais, do mesmo bem jurídico
que o crime precedente, ou seja, teríamos dois tipos de crimes cujo interesse é tutelar a
prevenção e o consumo de droga.
Daí que este autor defenda que o bem jurídico protegido pelo crime de branqueamento
de capitais deve estar em conexão com as condutas que consubstancias branqueamento
de capitais e não com as realidades anteriores.19
b) Ordem sócio-económica
Em relação aos autores que sustentam que o bem jurídico protegido é de ordem sócio-
económica, a sua tese assenta, grosso modo, na ideia que o crime de branqueamento de
capitais subverte “… todas as regras do mercado, da formação dos preços ao regime de
concorrência, das transacções de bolsa ao exercício do crédito e da formação da
poupança e da prosperidade”20
18
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 127
19
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 130
20
AZZALI, “Diritto penale dell’offesa e riciclagio”, p. 433 apud Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do
Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 130 – 132
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Na opinião de Jorge A. F. Godinho, estas teses defendem que o bem jurídico protegido
é colectivo e, por isso, argumentam os seus autores que a questão deve ser tratada no
âmbito do direito penal económico.
O autor defende ainda que o eventual dano que possa ocorrer para a ordem socio-
económica não pressupõe o branqueamento de capitais, pelo que a tónica não deve ser
aqui aposta.
No entanto, analisando o preâmbulo da LCBCFT, parece que o legislador angolano vem
acolher esta tese, na medida em que diz a que o Estado angolano ao ratificar um
conjunto de Convenções Internacionais, visa “garantir a segurança territorial e o normal
funcionamento do sistema financeiro”.
c) Administração da Justiça
Esta é, na opinião de Jorge A. F. Godinho, a posição doutrinária que merece
acolhimento embora deva ser precisada dado que a “administração ou realização da
justiça” não é em si um bem jurídico mas sim uma categoria de infracções.21
O autor defende que a criminalização do branqueamento de capitais é um novo meio de
atingir o fim que é o confisco dos lucros do crime, ou seja, o bem jurídico tutelado é a
ideia de que o crime não deve compensar, sendo para tal ilícita a dissimulação ou
ocultação dos proveitos das acções criminosas.
O autor avança mesmo a ideia de que em bom rigor o crime de branqueamento de
capitais não tutela qualquer realidade nova e que a questão de fundo do branqueamento
de capitas é conseguir-se eficácia no combate a certo tipo de criminalidade.
21
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 140
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
3. O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS EM ANGOLA
Angola tornou-se Membro Observador do ESAAMLG (órgão regional do GAFI, que é
composto pelos países da África do Leste e Sul).22
A experiência angolana no combate ao branqueamento de capitais é recente e cingiu-se
quase que exclusivamente na preparação do seu quadro normativo do que no combate
ao crime propriamente dito.
Consequentemente, não se pode conhecer e avaliar com rigor o estado do combate ao
crime de branqueamento de capitais em Angola.
Contudo, analisaremos o quadro normativo de modo a conhecermos as lacunas e
omissões que potenciam o risco de branqueamento de capitais.
3.1 A tipificação do crime
A análise do tipo que aqui se fará não pretende ser exaustiva. Procuraremos apenas
apreender o tipo incriminador, conforme descrito na norma, para que daí possamos
avançar para o tipo subjectivo de forma a apreendermos o conteúdo essencial do crime
de branqueamento de capitais.
a) O Tipo Objectivo
Embora denominado “ LEI DO COMBATE AO BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
E DO FINANCIAMENTO AO TERRORISMO”, o diploma legal cuja finalidade é a
prevenção e repressão do combate ao branqueamento de capitais e do financiamento ao
22
http://www.esaamlg.org/current_information/view_news_item.php?id=222&intVariationID=1&szTitle
=Current
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
terrorismo estabelece as medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao
branqueamento de vantagens de proveniência ilícita. (crf. Artigo 1º da LCBCFT).
Aliás, note-se que é apenas nas disposições finais da LCBCFT que o legislador
angolano avança com a noção de branqueamento de capitais. (cfr. Artigo 60º da
LCBCFT).
O branqueamento de capitais é descrito na lei angolana como a acção de “converter,
transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de
vantagens obtidas por si ou por terceiro, com o fim de dissimular a sua origem ilícita
ou de evitar que o autor ou participante da infracção seja criminalmente perseguido ou
submetido a uma reacção criminal” 23
A lei incrimina também a acção de ocultar ou dissimular “ a verdadeira natureza,
origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade de bens ou dos direitos
relativos a esses bens, tendo conhecimento que esses bens ou direitos são provenientes
da prática, sob qualquer forma de comparticipação 24
de infracções subjacentes ao
crime de branqueamento de capitais.25
Conclui-se então que o crime de branqueamento de capitais é um crime de resultados
que pode ser consumado por meio das mais diversificadas e complexas técnicas e
processos.
b) O Tipo Subjectivo
O crime de branqueamento de capitais tipificado na LCBCFT exige que o agente tenha
intenção de “dissimular a origem ilícita ou de evitar que o autor ou participante da
infracção seja criminalmente perseguido…”
23
Crf. Artigo 60º, nº 1, da LCBCFT
24
Crf. Artigo 60º, nº 3, da LCBCFT
25
Crf. Artigo 60º, nº 2, da LCBCFT
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
A formulação legal do tipo incriminador requer que o agente conheça os elementos
objectivos do tipo e aja com o propósito de obter os resultados descritos no tipo
objectivo, o que equivale dizer que o agente age com dolo.26
Note-se no entanto que o tipo subjectivo não requer que o agente que executa a acção
tipificada tenha conhecimento da proveniência ilícita dos bens…
Ora, não sendo este conhecimento exigível não se nunca afirmar a ilicitude da acção já
que esta exigência constitui um pressuposto básico da ilicitude.27
“O conteúdo da ilicitude do branqueamento de capitais, porque se trata de um «pós
delito», tem de ser entendido em estreita ligação com os crimes precedentes (…) o
conhecimento da origem ilícita é juridicamente o elemento que, veiculado a ligação à
ilicitude penal do crime precedente, dá sentido à ilicitude das condutas de
branqueamento de capitais.”28
4. O COMÉRCIO DE CÂMBIOS
4.1 O Regime do Comércio de Câmbios em Angola
O regime jurídico das operações cambiais é definido pela LC, publicada no Diário da
República Iª Séria, nº 31, de 27 de Junho de 1997, com Rectificação publicada em
Diário da República Iª Série, nº 48, de 26 de Novembro de 1999, alterado pelo Decreto
21/11, publicado no Diário da República Iª Série, nº 16, de 16 de Abril de 2011 – Lei
26
Dolo - vontade livre e consciente de praticar uma determinada conduta, com o fim de atingir um certo
resultado, conduta e resultado proibidos por lei. Henrique Eiras e Guilhermina Fortes, Dicionário de
Direito Penal e Processo Penal, 2ª Edição (revista e actualizada), Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa,
2006
27
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 207
28
Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 207
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Cambial (doravante simplesmente designado por LC) tendo o legislador querido
“disciplinar as operações cambiais, bem como estabelecer um quadro jurídico-legal
básico, e uma regulamentação do comércio de câmbios que tenha em conta os legítimos
interesses do Estado, e das demais entidades económicas.”29
O exercício de comércio de câmbios, é legalmente definido como “a realização
habitual, por conta própria ou alheia, de operações cambiais.”30
Para efeitos do presente diploma legal, são operações cambiais;
a) aquisição ou alienação de ouro amoedado, em barra ou em qualquer forma não
trabalhada;
b) A aquisição ou alienação de moeda estrangeira;
c) A abertura e a movimentação no País, por residentes ou por não residentes, de
contas em moeda estrangeira;
d) A abertura e a movimentação no País, por não residentes, de contas em moeda
nacional;
e) A liquidação de quaisquer transacções de mercadorias, de invisíveis correntes ou de
capitais.31
O artigo 7º do supra invocado diploma legal estabelece que “as operações cambiais só
podem ser realizadas por intermédio de uma instituição financeira autorizada a exercer
o comércio de câmbios.”
29
Preambulo da LC
30
Crf. Artigo 10º, nº1, da LC
31
Crf, artigo 5º da LC
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Além disso, “ o exercício do comércio de câmbios depende de autorização especial do
Banco Nacional de Angola nos termos da legislação aplicável.”32
A autorização a que se refere o preceito legal acima referido vem estabelecida na Lei
13/05, de 30 de Setembro de 2005, publicada no Diário da República, Iª Série, nº 117,
de 30 de Setembro de 2005 – Lei das Instituições Financeiras (doravante simplesmente
LdIF)33
Angola, à semelhança de outros países como o Brasil, conhece uma realidade diferente
no que respeita ao comércio de câmbio. Esta actividade é desenvolvida à margem da lei,
por pessoas singulares.
4.1.1 O regime sancionatório à luz da LC
Nos termos da LC34
, constitui transgressão punível, “o exercício do comércio de
câmbios, em contravenção com o artigo 10º da presente lei”, ou seja, a realização de
operações cambiais sem a autorização especial do Banco Nacional de Angola.
Por outro lado, constitui também transgressão punível a realização de operações em
contravenção do disposto nos artigos 7º a 9º da presente lei”, ou seja, a realização do
comércio de câmbios sem o intermédio de uma instituição financeira autorizada a
exercer a actividade.
Na redacção dada pelo Decreto 21/01 de Abril de 2001, a LC passou a punir, com multa
correspondente a 1200 UCF a 120 000 UCF, o exercício do comércio de câmbios sem a
autorização especial do BNA.
32
Crf. Artigo 10º, nº2 da LC
33
Crf. Artigo 16º ss da LdIF
34
Crf. Artigo 19º da LC
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Além disso, a LC pune com multa correspondente a 2400 UCF a 240 000 UCF, o
exercício do comércio de câmbios realizado sem o intermédio de uma instituição
financeira.
Pelo facto do legislador não ter consagrado, na LC, disposições penais relativas ao
comércio de câmbios realizado à margem do sistema financeiro, isso não significa que o
legislador tenha querido afastar a punição pela responsabilidade penal.
4.1.2 O regime sancionatório à luz da lei penal
Na LdICE de 3 de Setembro de 1999, publicada em Diário da República Iª Série, nº 36,
de 3 de Setembro de 1999 Lei das Infracções Contra a Economia (doravante
simplesmente LdICE), derrogada pela Lei 13/03 de 10 de Junho de 2003, publicada no
Diário da República Iª Série, nº 45, de 10 de Junho de 2003 – Derrogatória da Lei 6/99,
(doravante simplesmente Lei Derrogatória) o legislador definiu como infracções contra
a economia “ as acções ou omissões previstas na presente lei, que causem prejuízo
financeiro ou económico à República de Angola ou que contrariem os interesses
fundamentais que regem a sua economia.”
O diploma legal acima, estabelecia, no artigo 26º, que “comete a infracção de exercício
ilegal de actividades económicas, punível com pena de multa, aquele que exercer
qualquer actividade de produção, importação, exportação ou comercialização de bens
ou prestação de serviços sem estar habilitado com a competente licença…”
Além disso o referido diploma legal estabelecia ainda que a reincidência era punível
com pena de prisão até 6 meses e multa.
Daqui se concluí que embora comércio de câmbios à margem do sistema financeiros
não fosse “per si” criminalmente punível, a actividade das Kingilas subsumia-se ao tipo
penal previsto no artigo 26º da LdICE «o exercício ilegal de actividade económica».
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
No entanto, o legislador entendeu mais tarde que a LdICE não tutelava de modo eficaz a
protecção dos “valores relativos ao funcionamento da economia”35
e optou por
revogar parcialmente aquele diploma legal e remeter a tutela dos bens jurídicos
protegidos para alguns tipos penais constantes no Código Penal.36
Acontece que com esta decisão o “exercício ilegal de actividade económica” deixou de
figurar no catálogo de infracções contra a economia, já que a revogação do artigo 1º da
Lei Derrogatória ao remeter para o Código Penal o regime de certos tipos penais,
excluiu o tipo legal “exercício ilegal de actividade económica”.
4.2 As Kingilas
O comércio ilegal de câmbios em Angola não é, segundo alguns entrevistados, uma
actividade recente. Em 1975, havendo proibição legal expressa, havia nos então
arredores de Luanda quem já se dedicasse ao comércio de câmbios à margem da lei.
Terá sido a partir de meados da década de 1980 que começaram a ver-se as primeiras
Kingilas na Cidade de Luanda, sendo que nesta altura muitas foram detidas pela prática
do comércio ilícito de câmbios.
Nos dias de hoje, a presença de Kíngilas nas ruas de Luanda é um facto que não carece
de provas, já que visivelmente estes “profissionais” sequer se coíbem de “publicitar” a
actividade que descrevem como “informal”, esfregando o dedo indicador ao polegar,
enquanto soltam um chamativo silvar…
35
Crf. Preambulo da Lei Derrogatória
36
Crf. Lei Derrogatória
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Esta actividade, praticada sob o olhar atento, porém passivo, das autoridades angolanas
é uma actividade altamente lucrativa que conta com o “apoio” de alguns actores
institucionais.
A rotina “profissional” diária de uma Kingilia começa normalmente com a obtenção do
dinheiro “para trabalhar” que, segundo algumas entrevistadas é normalmente o seu
próprio dinheiro.
Este dinheiro é normalmente obtido mediante um levantamento bancário, da sua própria
conta; mediante o “levantamento” do dinheiro de pessoas singulares que recebem esses
depósitos mediante remuneração37
ou com recurso a uma operação cambial realizada
com empresas que actuam no sector comercial.
De acordo com algumas Kingilas que foram entrevistadas, é muito frequente uma única
Kingila dispor de uma quantia correspondente até USD 30.000,00 (trinta mil Dólares
dos Estados Unidos da América), por dia, para câmbio.
E, quando o dinheiro não é todo “trabalhado” no próprio dia, ele tem destino seguro:
depósito em conta junto dos seus bancos, em quantias por vezes superiores a USD
15.000,00 (quinze mil Dólares dos Estados Unidos da América) sem que lhes sejam
feitas quaisquer perguntas; ou entregue a pessoas singulares que o guarda em casa,
mediante retribuição.
Sobre o comércio ilícito de câmbios o autor Benja Satula questiona38
: “Quem está a
alimentar este comércio informal? Porque persiste e prospera, à margem do legalmente
estabelecido?”
37
O nº 1 do artigo 130º da LdIF estabelece que “aquele que exercer actividade que consista em receber
do público, por conta própria ou alheia, depósitos ou outros fundos reembolsáveis, sem que para tal
exista a necessária autorização é punido com pena de prisão até 5 anos.”
38
Benja Satula, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, p. 122
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Uma das entrevistadas em particular revelou que a sua actividade é assegurada por
empresas regularmente estabelecidas no mercado angolano cujos recebimentos são em
Kwanzas mas cujas compras são feitas, no exterior do país, em moeda estrangeira, no
caso o Dólar dos Estados Unidos da América.
Estas sociedades recorrem ao “serviço” das Kingilas porque a taxa de câmbios praticada
é mais favorável do que aquela que as instituições financeiras autorizadas a exercer o
comércio de câmbios alguma vez praticariam.
Desta forma, estas sociedades obtêm um ganho, que é o resultado do excedente pago
pelo mercado informal, que não será eventualmente contabilizado e não será
consequentemente tributado.
Uma outra “fonte de alimentação” do mercado informal de câmbios são os cidadãos que
buscam alternativas à política monetária e cambial vigente: as restrições de venda de
divisas impostas pelos bancos comerciais e a morosidade e burocracia na concessão de
financiamentos bancários acabam por levar o comum dos cidadãos a buscar alternativas
no mercado “informal”.
Contam as entrevistadas que além do comércio de câmbios, as Kingilas de “nível mais
elevado” celebram contratos de mútuo oneroso, em que a taxa de juros é o
correspondente a 100% do valor mutuado.
Comparativamente a outras actividades “informais”, as Kingilas têm as melhores
margens de lucro e gozam de maior prestígio.
Emboras as expressões “branqueamento de capitas” e “lavagem de dinheiro” sejam do
conhecimento das Kingilas, elas demonstrara m não saber exactamente em que
consistem as sobreditas figuras.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Depois de dada uma breve explicação sobre o que é o branqueamento de capitais,
perguntou-se se elas soubessem que o dinheiro que “trabalham” provêm ou pode provir
de alguma actividade ilícita ou ainda vai ou pode ir para o (re) financiamento de uma
actividade ilícita continuariam a exercer a sua actividade.
As Kingilas demonstraram ter perfeito conhecimento de que a actividade que
desenvolvem é contrária à lei mas que é graças a ela com conseguem manter as suas
famílias.
Algumas revelaram inclusivamente que se lhes fossem assegurados o mesmo
rendimento numa actividade lícita não hesitariam em abandonar o comércio ilícito de
câmbios, já que a actividade também tem os seus riscos.
Contudo, a falta de oportunidades no mercado de trabalho “formal” leva-as a
procurarem meios alternativos de sobrevivência, como revelou uma Kingila que
frequenta o 2º ano do curso de Economia, numa Universidade privada angolana.
Esta mesma Kingila conta que ela não se sente responsável pelos actos de terceiros e
que se o dinheiro que usa para “trabalhar” advém de ou será usada em actividades
criminosas, a responsabilidade por esses actos criminosos é exclusiva de quem os
pratica, já que ela apenas faz o que tem de fazer para sobreviver e sustentar a sua
família.
5. O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS E AS KINGILAS
Consideremos a seguinte hipótese:
“ António é vendedor grossista de alimentos enlatados e tem o seu armazém em
Luanda. Todos os pagamentos que António recebe da sua actividade são feitos por
meio de transferência bancária, para a conta da sua empresa.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
No entanto, António é também traficante de droga e usa a parte traseira do seu
armazém para praticar esta actividade. Todos os pagamentos desta actividade são
realizados em Kwanzas e a receita mensal de António, proveniente do tráfico de
droga é de KZ 600.000,00 (seiscentos mil Kwanzas).
António sabe que para usufruir dos ganhos do tráfico de droga terá de dissimular a
origem ilícita desses ganhos, o que numa primeira fase significa movimentar o
dinheiro.
Sabendo de antemão que ao contactar uma instituição financeira autorizada a
exercer o comércio de câmbios corre o risco de não conseguir realizar a operação
cambial dadas as obrigações de identificação, diligência e comunicação a que
estão sujeitas as entidades sujeitas, por força da LCBCFT, a solução mais viável
será o recurso as Kingilas.
Com recurso ao comércio ilícito de câmbios, o traficante consegue diminuir o
volume de dinheiro e transporta-lo, em duas ou três viagens por mês, para o
Ghana onde detém uma conta offshore.”
Vimos na análise do tipo subjectivo que a formulação legal do tipo incriminador requer
que o agente conheça os elementos objectivos do tipo e aja com o propósito de obter os
resultados descritos no tipo objectivo.
A isto equivale dizer que: tendo a Kingila perfeito conhecimento que o dinheiro que
“trabalha” é resultante do tráfico de drogas e que está a ser convertida noutra moeda
com o propósito de facilitar a operação de dissimular a sua origem ilícita, então não há
dúvidas que esta Kingila responde penalmente pelo crime de branqueamento de capitais,
nos termos do artigo 60º da LCBCFT.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Contudo, imagine-se que as Kingilas não têm particularmente conhecimento de que a
operação cambial que realizam é destinada a dissimular a origem ilícita do dinheiro,
pode haver lugar a responsabilidade penal pelo crime de branqueamento de capitais?
Como se viu na análise do tipo objectivo, a incriminação requer que o agente aja com a
intenção de atingir um determinado resultado, ou seja, se a Kingila não tiver
conhecimento que com a sua conduta está a auxiliar outrem a dissimular a origem ilícita
do seu dinheiro não pode ser penalmente responsabilizada pelo crime de branqueamento
de capitais.
O raciocínio acima obriga à formulação da seguinte questão: como provar que a Kingila
sabia que com a sua conduta estava a auxiliar outrem a atingir o resultado do crime
previsto no artigo 60º da LCBCFT?
Embora pareça simples, a verdade é que esta prova pode ser de difícil produção já que,
como se viu acima, as Kingilas trabalham com o seu próprio dinheiro e fazem-no,
segundo justificaram, por necessidade de subsistência.
Isto equivale dizer que nas relações que as Kingilas estabelecem com os seus “clientes”
não existe, por regra, nada além das operações cambiais que realizam. Ou seja: elas não
procuram aprofundar o seu conhecimento sobre a actividade dos “clientes”; a origem e
destino do dinheiro.
Esta realidade, relatada pelas entrevistadas, obriga-nos a pensar na dimensão do
mercado “informal” de comércio de câmbios nos seguintes termos: existirão entre nós
Kingilas que “trabalham” com valores muito mais avultados? Havendo, trabalharão
isoladamente com o fim de providenciarem sustento para as suas famílias?
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Retomando a questão atrás formulada sobre a existência de Kingilas que trabalham com
valores milionários, admitiremos para efeitos meramente académicos, a possibilidade do
facto ocorrer em território angolano.
O cenário acima descrito força-nos a reflectir na forma como esta prática afecta ou pode
afectar o “normal funcionamento do sistema financeiro” que o Estado angolano
pretende salvaguardar com a LCBCFT.
6. CONCLUSÕES
Apesar do fenómeno de branqueamento de capitais ser uma realidade cuja existência
antecede a própria definição, a sua prevenção e repressão em Angola é recente.
No entanto, segundo o Relatório de Avaliação do ESAAMLG, o esforço realizado para
estabelecer as fundações de um regime de combate ao branqueamento de capitias e
financiamento ao terrorismo é significativo.
Embora as componentes chaves do combate ao branqueamento de capitais estejam
previstos no ordenamento jurídico, o ESAAMLG considera que o sistema de combate
ao branqueamento de capitais não cumpre ainda o seu propósito.
A verdade é que o sistema angolano de prevenção e combate ao branqueamento de
capitais não inclui no rol de infracções subjacentes o comércio ilícito de câmbios visto
que a actividade não constitui um ilícito penal nem sequer é subsumível a qualquer
outro tipo de ilícito penal, porquanto o ilícito penal de “exercício ilegal de actividade
económica” foi simplesmente revogado.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
Deste modo, não parece que a LCBCFT esteja a cumprir o seu propósito de modo
eficaz, dado que continua a ser permeável, permitindo que os branqueadores de capitais
continuem a dispor de meios simples mas eficazes de realizarem as suas operações.
Em Angola, o comércio ilícito de câmbios é uma actividade que conhece a luz do dia e,
segundo os relatos colhidos, conta com a aceitação diária dos próprios operadores
económicos.
Em nossa opinião, o Estado angolano deve considerar tipificar o ilícito cambial como
ilícito penal, punível com pena de prisão mínima de 6 (seis) meses, dado que assim se
retirará o acesso a um mecanismo que facilita o branqueamento de capitais, disponível
livremente nas ruas do nosso país.
Pese embora se admita que a tipificação penal deste ilícito acabe por causar a fuga para
uma clandestinidade mais profunda dos maiores Kingilas, a verdade é que a tolerância
deste ilícito fere os princípios fundamentais nos quais assenta a organização económica,
financeira e fiscal do Estado angolano.39
39
Constituição da República de Angola, publicada no Diário da República, Iª Série – nº 23º, de 5 de
Fevereiro de 2010.
Pós Graduação em Compliance e Combate ao
Branqueamento de Capitais
Kingilas e o Branqueamento de Capitais
BIBLIOGRAFIA
AZZALI, “Diritto penale dell’offesa e riciclagio”, p. 433 apud Jorge Alexandre
Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e
Tipicidade, Almedina, Coimbra ,
EIRAS, Henriques e FORTES Guilhermina, Dicionário de Direito Penal e Processo
Penal, 2ª Edição revista e actualizada, Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2006,
GODINHO, Jorge Alexandre Fernandes, “Do «Branqueamento» de Capitais –
Introdução e Tipicidade,
SATULA, Benja, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, Lisboa,
2010
SCHOTT, Paula Alan, “Guia de Referência Anti-Branqueamento de Capitais e de
Financiamento ao Terrorismo”, Segunda Edição e Suplemento sobre a Recomendação
Espacial IX.

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  • 1. FACULDADE DE DIREITO UNIVERSIDADE AGOSTINHO NETO Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Relatório de Final de Curso “Kingilas e o Branqueamento de Capitias” Rui Guerreiro Passos Luanda 2012
  • 2. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais RESUMO O presente trabalho foi realizado no âmbito do 1º Curso de Pós Graduação em “Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais” ministrado pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto e que mereceu o Alto Patrocínio da UIF – Unidade de Informação Financeira. O curso foi criado com o objectivo de dotar os seus destinatários com as competências necessárias para identificar e tratar de questões relativas ao incumprimento das regras das instituições financeiras em matéria de combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo. Além disso, o curso visa proporcionar aos destinatários o domínio das ferramentas jurídicas necessárias analisar e compreender as operações suspeitas que advêm tanto do sistema financeiro, como do sistema não financeiro. O trabalho que se apresenta tem como finalidade questionar a existência do risco de branqueamento de capitais decorrentes da actividade de comércio de câmbios que é realizado à margem do sistema financeiro, por Kingilas, para que a partir daí se possa questionar a eficácia do sistema angolano no combate ao branqueamento de capitais.
  • 3. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais INTRODUÇÃO O objecto do presente trabalho é a análise da relação que existe ou pode existir entre a actividade do comércio informal de câmbio, realizado pelas vulgar e sobejamente denominadas Kingilas1 e o Branqueamento de Capitais em Angola. A escolha deste tema é justificada pela escassez, senão mesmo inexistência, de informação pública em torno do comércio de câmbios que é realizado à margem do sistema financeiro angolano. Como tal, pretende-se com a presente explanação, e por meio de algum trabalho investigativo, trazer à luz um pouco da realidade do comércio ilegal de câmbios realizado em Angola, particularmente em Luanda, e a sua possível relação com o branqueamento de capitais. Embora seja verdade que a actividade de comércio de câmbios realizado pelas Kingilas é uma actividade proibida, a verdade é que esta mesma actividade contribui, aparentemente, para o funcionamento da engrenagem da economia angolana. É este “contributo” que nos propomos analisar, já que nele podem estar subjacentes actividades tendentes a branquear capitais. Para que nos possamos focar no tema proposto e daí retirarmos quaisquer ilações é importante que tenhamos previamente percebido o fenómeno do branqueamento de capitais, os seus efeitos e as soluções legais consagradas no ordenamento jurídico angolano com vista a sua prevenção e repressão. 1 Kingila, em quimbundo, significa “esperar”. A expressão passou a designar a actividade de quem se dedica ao comércio ilegal de câmbios, já que na maior parte do tempo os homens e mulheres que se dedicam a esta actividade esperam, na rua, pelos seus clientes. Na grafia “aportuguesada” escreve-se “Quinguila”
  • 4. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Veremos por isso o fenómeno do branqueamento de capitais face ao ordenamento jurídico angolano. Assim, espera-se que com o presente trabalho seja também possível conhecer - ainda que modestamente - a eficácia do sistema angolano de prevenção e repressão do branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo. Embora a construção da tese aqui proposta tenha as suas fundações enraizadas em premissas essencialmente teóricas, o trabalho apresentado recolhe a experiência directa de quem, no seu quotidiano, se dedica ao comércio ilegal de câmbios: as Kingilas! 1. O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS A terminologia adoptada para a descrição do facto punível não é a matéria que mais importa efeitos do presente trabalho, pelo que não entraremos na discussão do referido tema. Contudo, não deixa de ser importante, e até curioso, aflorar esta temática, já que daí poderemos mais facilmente apreender ou até explicar o conteúdo do “branqueamento de capitais”. Segundo alguns estudiosos2 , a expressão “branqueamento de capitais”advém da expressão inglesa money laundering que se traduz numa outra expressão equivalente e utilizada, por exemplo no Brasil, “ Lavagem de Dinheiro”. A expressão terá primeiramente utilizada nos anos 1920 e 1930, nos Estados Unidos da América, para identificar o modo como a Máfia usava redes de lavandarias para 2 Benja Satula, “Branqueamento de Capitais”, Universidade Católica Editora, 2010, p. 15
  • 5. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais disfarçar e/ ou ocultar os proveitos das suas actividades criminosas, procurando confundir esses proveitos com os de uma actividade lícita… as lavandarias. A primeira ilação que daqui se pode retirar é que o fenómeno do branqueamento de capitias não é um fenómeno novo, embora tenha registado, a partir da década de 70, um aumento exponencial do volume de dinheiro que movimenta. 1.1 Noção Não é apenas a terminologia “branqueamento de capitais” que é inequívoca, a própria definição da actividade é em si mesmo um assunto algo controverso. Como tal, maior parte dos países utiliza a definição contida na Convenção das Nações Unidas contra o tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substancias Psicotrópicas, (Convenção de Viena de 1988) e pela Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (Convenção de Palermo de 2000). A Convenção de Viena tem como finalidade promover a cooperação internacional em matéria combate ao tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas. Os Estados Partes assumem, na Convenção de Viena, a obrigação de adoptar todas as medidas necessárias, incluindo as de natureza legislativa e administrativa, para a transposição para os respectivos ordenamentos jurídicos das disposições nela plasmadas. No âmbito da Convenção de Viena3 , constituem infracções penais: 3 Ver Convenção de Viena, artigo 3º, (b) e (c – i)
  • 6. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais i) A conversão ou a transferência de bens, com o conhecimento de que os mesmos provêm de qualquer das infracções estabelecidas de acordo com a alínea a) do n.º 14 deste artigo, ou da participação nessa ou nessas infracções, com o objectivo de ocultar ou dissimular a origem ilícita desses bens ou de auxiliar a pessoa implicada na prática dessa ou dessas infracções a eximir-se às consequências jurídicas dos seus actos; ii) A ocultação ou a dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação, propriedade ou outros direitos respeitantes aos bens, com o conhecimento de que eles provêm de uma das infracções estabelecidas de acordo com a alínea a) do n.º 1 deste artigo ou de actos de participação nessa ou nessas infracções; c) Sob reserva dos princípios constitucionais e dos conceitos fundamentais dos respectivos sistemas jurídicos: i) A aquisição, detenção ou uso de bens, com o conhecimento, no momento da sua recepção, de que provêm de qualquer das infracções estabelecidas de acordo com a alínea a) do n.º 1 deste artigo ou da participação nessa ou nessas infracções. 4 - Artigo 3º Convenção de Viena As Partes adoptam as medidas necessárias para tipificar como infracções penais no respectivo direito interno, quando cometidas intencionalmente: a): i) A produção, o fabrico, a extracção, a preparação, a oferta, a comercialização, a distribuição, a venda, a entrega em quaisquer condições, a corretagem, a expedição, a expedição em trânsito, o transporte, a importação ou a exportação de quaisquer estupefacientes e substâncias psicotrópicas em violação das disposições da Convenção de 1961, da Convenção de 1961 alterada ou da Convenção de 1971; ii) A cultura de dormideiras, de arbustos de coca ou da planta de cannabis para fins de produção de estupefacientes em violação das disposições da Convenção de 1961 e da Convenção de 1961 modificada; iii) A detenção ou a aquisição de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas para qualquer das actividades enumeradas na alínea i); iv) O fabrico, o transporte ou a distribuição de equipamentos, materiais ou substâncias das Tabelas I e II, com o conhecimento de que os mesmos vão ser utilizados no ou para o cultivo, produção ou fabrico ilícitos de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
  • 7. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais O Grupo de Acção Financeira sobre Branqueamento de Capitais (GAFI), tida como a organização internacional por excelência de combate ao fenómeno do branqueamento de capitais, define o fenómeno como a “utilização e transformação de…produtos do crime para dissimular a sua origem ilícita” com o objectivo de “legitimar” os proventos resultantes da actividade criminosa.5 Acontece pois que a infracção subjacente ao branqueamento de capitais é a actividade criminosa que lhe está associada, que gera as vantagens, que quando branqueados constitui crime de branqueamento de capitais. O que se verifica é que a Convenção de Viena restringe às infracções subjacentes ao tráfico de drogas, fim aliás com que foi elaborada a Convenção de Viena. Logo, não podendo esta limitação ser aceite, porque exclui outros crimes, quiçá mais grave, como os de sangue, foi necessário formular uma previsão legal que alargasse o leque de crimes subjacentes. Foi então que em 2000, na Cidade de Palermo, a Comunidade Internacional, subscreveu uma Convenção – a Convenção de Palermo – cuja finalidade é o de estabelecer a cooperação internacional na prevenção e combate ao crime organizado transnacional. A Convenção de Palermo6 veio então obrigar aos Estados Partes a criminalizar o branqueamento de capitais, por meio de adopção de medidas legislativas e outras consideradas necessárias para a caracterização como infracção penal: 5 Guia de Referência Anti-Branqueamento de Capitais e de Combate ao Financiamento do Terrorismo, Segunda Edição e Suplemento sobre a Recomendação Especial IX, Paul Allan Schott 6 Convenção de Palermo, artigo 6º
  • 8. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais (i) A conversão ou transferência de bens, quando quem o faz tem conhecimento de que esses bens são produto do crime, com o propósito de ocultar ou dissimular a origem ilícita dos bens ou ajudar qualquer pessoa envolvida na prática da infracção principal a furtar-se às consequências jurídicas dos seus actos; (ii) A ocultação ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens ou direitos a eles relativos, sabendo o seu autor que os ditos bens são produto do crime; b) e, sob reserva dos conceitos fundamentais do seu ordenamento jurídico: i) A aquisição, posse ou utilização de bens, sabendo aquele que os adquire, possui ou utiliza, no momento da recepção, que são produto do crime; ii) A participação na prática de uma das infracções enunciadas no presente Artigo, assim como qualquer forma de associação, acordo, tentativa ou cumplicidade, pela prestação de assistência, ajuda ou aconselhamento no sentido da sua prática. 2. Para efeitos da aplicação do parágrafo 1 do presente Artigo: a) Cada Estado Parte procurará aplicar o parágrafo 1 do presente Artigo à mais ampla gama possível de infracções principais; Na verdade, o conceito de branqueamento de capitais em si é menos propenso a gerar controvérsia do que a sua definição, já que o branqueamento de capitais não é definido em termos descritivos mas sim de modo teleológico.7 7 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais – Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra 2011
  • 9. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais O “Branqueamento” consiste, segundo alguns autores8 , “na realização de operações financeiras com vista a ocultar a origem ilícita dos bens ou produtos.” Ou seja, o branqueamento de capitais é o processo pelo qual os produtos de uma actividade criminosa são dissimulados para ocultar a sua origem ilícita. Em suma, ele envolve os produtos derivados de bens obtidos de forma criminosa e não propriamente esses bens.9 1.2 Fases Tradicionalmente o branqueamento de capitais é tido como um crime “trifásico”10 ,ou seja é um crime cuja execução pode ser repartido em três fases distintas. Contudo a força desta ideia começa a ceder perante a celeridade dos mecanismos automatizados de que tem socorrido os sistemas financeiros modernos, já que as plataformas tecnológicas dos sistemas financeiros actuais permitem que num único momento a operação de branqueamento de capitais seja realizada. Segundo o autor Benja Satula, “o cerco dos sistemas de prevenção e repressão exigem cada vez mais destreza e subtiliza, o que torna claro que quanto mais rápida e discreta for a dissimulação menos perigosa é”.11 A verdade é que diferentes autores têm criado diferentes modelos, com o propósito de sistematizar as várias fases ou possíveis operações de branqueamento de capitais.12 8 Henrique Eiras e Guilhermina Fortes, dicionário de direito Penal e Processo Penal, 2ª edição ( revista e actualizada), Quid Juris Sociedades Editora, Lisboa, 2006. 9 Guia de Referência Anti-Branqueamento de Capitais e de Combate ao Financiamento ao Terrorismo, Segunda Edição e suplemento sobre a Recomendação Espacial IX, Paul Allan Schott. 10 Benja Satula, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010 11 Benja Satula, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010 12 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, “do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra 2011
  • 10. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Não obstante as diferentes construções doutrinárias, a formulação mais comum, por isso mesmo a que foi adoptada pelo GAFI, é a “trifásica”, em que se distinguem três fases ou etapas de branqueamento de capitais. Esta tripartição compreende as seguintes fases comummente conhecidas como placement, (colocação) layering (dissimulação) e integration (integração). a) Colocação A fase da colocação consiste, como o próprio nome indica, na colocação dos capitais no sistema financeiro, seja por intermédio de instituições financeiras tradicionais, quer seja por intermédio de outras instituições. Uma forma possível de executar esta fase através de depósito em conta, de pequenas quantias em dinheiro, ao longo do tempo, em diversas dependências de uma única instituição ou em várias instituições financeiras.13 Nesta forma particular de colocação os branqueadores podem proceder ao câmbio da moeda noutra ou a conversão de notas pequenas em notas de maior denominação. O autor Paul Allan Schott considera que os fundos ilícitos podem ser convertidos em instrumentos financeiros, tais como ordens de pagamentos ou cheques, e posteriormente combinados com fundos legítimos de modo a não causar suspeitas. Um outro método possível de colocação é através da compra de valores mobiliários ou de contratos de seguros com recurso a numerário. 13 Guia de Referência Anti-Branquemento de Capitais e de Combate ao Financiamento do Terrorismo, Segunda Edição, e Suplemento sobre a Recomendação Especial IX, Paul Allan Schott.
  • 11. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais b) Dissimulação A fase da dissimulação consiste na realização de operações de diversas naturezas de modo a criarem-se “camadas” (layers) entre os fundos ilícitos e a sua origem criminosa. A ideia a reter aqui é que com a realização de sucessivas, diferentes e complexas transacções, a investigação da origem dos fundos fica tão intricada quanto possível, de modo a que não se consiga chegar à verdadeira origem dos fundos. Na dissimulação o agente branqueador procura interromper o “rasto” documental, com recurso, por exemplo, a transferências para contas anónimas situadas em jurisdições que de alguma forma facilitem as operações de branqueamento de capitais. É comum os agentes branqueadores recorrerem a jurisdições onde o sigilo bancário torna praticamente impossível seguir o rasto documental do dinheiro. É ainda comum que os fundos sejam aplicados em instrumentos de investimento mobiliário que se consigam transferir ou negociar com facilidade. c) Integração Nesta derradeira fase, os agentes branqueadores procuram “integrar” os seus ganhos ilícitos na economia formal. O que interessa agora é conferir a aparência de licitude dos seus proveitos e para o efeito é comum que recorram às mesmas instituições e instrumentos que foram usados na fase anterior.
  • 12. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais É aqui que nasce a “justificação” dos seus ganhos aparentemente legítimos e a “permissão” para que os mesmos sejam livremente utilizados na economia aberta e legítima. O que importa nesta fase já não é a dissimulação mas sim o reaparecer dos proveitos ilícitos com uma roupagem nova - de licitude. Uma das formas de o realizar a integração é por meio de aquisição de imóveis ou jóias e metais preciosos. Porém este pode não ser o único destino desses proveitos. O financiamento do empreendimento criminoso é outro destino possível para estes proveitos ilícitos. 2. O BEM JURÍDICO PROTEGIDO O “bem jurídico” 14 é o objecto jurídico do crime. Com a prática do crime o bem jurídico é, ou pode ser, colocado em perigo – como acontece nos crimes de perigo -, ou destruído, o que se verifica nos crimes de danos. O bem ou interesse jurídico é o valor de ordem social protegido pela norma penal. Trata-se de um conceito do plano normativo que de um dado sistema jurídico que quando negados por um comportamento humano, caracterizam este comportamento como criminoso. No que toca ao branqueamento de capitais, há autores15 que afirmam que a identificação do bem jurídico é uma conclusão que só em definitivo se pode retirar com a análise detalhada do tipo do crime. 14 Henrique Eiras e Guilhermina Fortes, Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 2ª Edição (revista e actualizada), QuidJuris Sociedade Editora, Lisboa, 2006 15 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra - 2001
  • 13. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Daí que na sua obra o referido autor, subscrevendo a chamada de atenção de COSTA ANDRADE, defende que “a propósito dos crimes contra a economia, (…) na determinação do bem jurídico ser necessário tomar em devida consideração a letra da lei.”16 Alias, é por esse motivo que o referido autor refere que as teses apresentadas sobre a definição do bem jurídico protegido no âmbito do branqueamento de capitais são em certo sentido provisórias enquanto não forem posteriormente confirmadas pela análise do tipo do crime. O tipo de crime que consubstancia branqueamento de capitais é, segundo Jorge A. F. Godinho, “ complexo e pouco claro, a que acresce a sua novidade”.17 Como tal, a identificação do bem jurídico protegido não é de todo uma tarefa fácil, oque se pode comprovar pelo estudo comparativo das diferentes legislações internacionais que apresentam soluções distintas e geram em consequência uma forte controvérsia doutrinal. 2.1 As teses sobre o bem jurídico protegido pelo branqueamento de capitais Entre as diferentes posições doutrinárias sobre a identificação do bem jurídico protegido, existem quatro que têm merecido um destaque especial na discussão da matéria. 16 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 pp. 121 - 122 17 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 123
  • 14. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais a) O bem jurídico protegido pelo crime precedente No ordenamento jurídico português o crime de branqueamento de capitais começou por se referir apenas os produtos obtidos pelo tráfico de drogas. Esta posição é, segundo Jorge A. F. Godinho “insustentável dada a sua incompatibilidade com o direito vigente que criminaliza o branqueamento de capitais ara além dos proveitos do tráfico de droga.”18 O referido autor defende ainda - posição que subscrevemos,- que nesta tese está implícita a protecção, pelo crime de branqueamento de capitais, do mesmo bem jurídico que o crime precedente, ou seja, teríamos dois tipos de crimes cujo interesse é tutelar a prevenção e o consumo de droga. Daí que este autor defenda que o bem jurídico protegido pelo crime de branqueamento de capitais deve estar em conexão com as condutas que consubstancias branqueamento de capitais e não com as realidades anteriores.19 b) Ordem sócio-económica Em relação aos autores que sustentam que o bem jurídico protegido é de ordem sócio- económica, a sua tese assenta, grosso modo, na ideia que o crime de branqueamento de capitais subverte “… todas as regras do mercado, da formação dos preços ao regime de concorrência, das transacções de bolsa ao exercício do crédito e da formação da poupança e da prosperidade”20 18 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 127 19 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 130 20 AZZALI, “Diritto penale dell’offesa e riciclagio”, p. 433 apud Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 130 – 132
  • 15. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Na opinião de Jorge A. F. Godinho, estas teses defendem que o bem jurídico protegido é colectivo e, por isso, argumentam os seus autores que a questão deve ser tratada no âmbito do direito penal económico. O autor defende ainda que o eventual dano que possa ocorrer para a ordem socio- económica não pressupõe o branqueamento de capitais, pelo que a tónica não deve ser aqui aposta. No entanto, analisando o preâmbulo da LCBCFT, parece que o legislador angolano vem acolher esta tese, na medida em que diz a que o Estado angolano ao ratificar um conjunto de Convenções Internacionais, visa “garantir a segurança territorial e o normal funcionamento do sistema financeiro”. c) Administração da Justiça Esta é, na opinião de Jorge A. F. Godinho, a posição doutrinária que merece acolhimento embora deva ser precisada dado que a “administração ou realização da justiça” não é em si um bem jurídico mas sim uma categoria de infracções.21 O autor defende que a criminalização do branqueamento de capitais é um novo meio de atingir o fim que é o confisco dos lucros do crime, ou seja, o bem jurídico tutelado é a ideia de que o crime não deve compensar, sendo para tal ilícita a dissimulação ou ocultação dos proveitos das acções criminosas. O autor avança mesmo a ideia de que em bom rigor o crime de branqueamento de capitais não tutela qualquer realidade nova e que a questão de fundo do branqueamento de capitas é conseguir-se eficácia no combate a certo tipo de criminalidade. 21 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 140
  • 16. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais 3. O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS EM ANGOLA Angola tornou-se Membro Observador do ESAAMLG (órgão regional do GAFI, que é composto pelos países da África do Leste e Sul).22 A experiência angolana no combate ao branqueamento de capitais é recente e cingiu-se quase que exclusivamente na preparação do seu quadro normativo do que no combate ao crime propriamente dito. Consequentemente, não se pode conhecer e avaliar com rigor o estado do combate ao crime de branqueamento de capitais em Angola. Contudo, analisaremos o quadro normativo de modo a conhecermos as lacunas e omissões que potenciam o risco de branqueamento de capitais. 3.1 A tipificação do crime A análise do tipo que aqui se fará não pretende ser exaustiva. Procuraremos apenas apreender o tipo incriminador, conforme descrito na norma, para que daí possamos avançar para o tipo subjectivo de forma a apreendermos o conteúdo essencial do crime de branqueamento de capitais. a) O Tipo Objectivo Embora denominado “ LEI DO COMBATE AO BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS E DO FINANCIAMENTO AO TERRORISMO”, o diploma legal cuja finalidade é a prevenção e repressão do combate ao branqueamento de capitais e do financiamento ao 22 http://www.esaamlg.org/current_information/view_news_item.php?id=222&intVariationID=1&szTitle =Current
  • 17. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais terrorismo estabelece as medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita. (crf. Artigo 1º da LCBCFT). Aliás, note-se que é apenas nas disposições finais da LCBCFT que o legislador angolano avança com a noção de branqueamento de capitais. (cfr. Artigo 60º da LCBCFT). O branqueamento de capitais é descrito na lei angolana como a acção de “converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens obtidas por si ou por terceiro, com o fim de dissimular a sua origem ilícita ou de evitar que o autor ou participante da infracção seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal” 23 A lei incrimina também a acção de ocultar ou dissimular “ a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade de bens ou dos direitos relativos a esses bens, tendo conhecimento que esses bens ou direitos são provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação 24 de infracções subjacentes ao crime de branqueamento de capitais.25 Conclui-se então que o crime de branqueamento de capitais é um crime de resultados que pode ser consumado por meio das mais diversificadas e complexas técnicas e processos. b) O Tipo Subjectivo O crime de branqueamento de capitais tipificado na LCBCFT exige que o agente tenha intenção de “dissimular a origem ilícita ou de evitar que o autor ou participante da infracção seja criminalmente perseguido…” 23 Crf. Artigo 60º, nº 1, da LCBCFT 24 Crf. Artigo 60º, nº 3, da LCBCFT 25 Crf. Artigo 60º, nº 2, da LCBCFT
  • 18. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais A formulação legal do tipo incriminador requer que o agente conheça os elementos objectivos do tipo e aja com o propósito de obter os resultados descritos no tipo objectivo, o que equivale dizer que o agente age com dolo.26 Note-se no entanto que o tipo subjectivo não requer que o agente que executa a acção tipificada tenha conhecimento da proveniência ilícita dos bens… Ora, não sendo este conhecimento exigível não se nunca afirmar a ilicitude da acção já que esta exigência constitui um pressuposto básico da ilicitude.27 “O conteúdo da ilicitude do branqueamento de capitais, porque se trata de um «pós delito», tem de ser entendido em estreita ligação com os crimes precedentes (…) o conhecimento da origem ilícita é juridicamente o elemento que, veiculado a ligação à ilicitude penal do crime precedente, dá sentido à ilicitude das condutas de branqueamento de capitais.”28 4. O COMÉRCIO DE CÂMBIOS 4.1 O Regime do Comércio de Câmbios em Angola O regime jurídico das operações cambiais é definido pela LC, publicada no Diário da República Iª Séria, nº 31, de 27 de Junho de 1997, com Rectificação publicada em Diário da República Iª Série, nº 48, de 26 de Novembro de 1999, alterado pelo Decreto 21/11, publicado no Diário da República Iª Série, nº 16, de 16 de Abril de 2011 – Lei 26 Dolo - vontade livre e consciente de praticar uma determinada conduta, com o fim de atingir um certo resultado, conduta e resultado proibidos por lei. Henrique Eiras e Guilhermina Fortes, Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 2ª Edição (revista e actualizada), Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2006 27 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 207 28 Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra – 2001 p. 207
  • 19. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Cambial (doravante simplesmente designado por LC) tendo o legislador querido “disciplinar as operações cambiais, bem como estabelecer um quadro jurídico-legal básico, e uma regulamentação do comércio de câmbios que tenha em conta os legítimos interesses do Estado, e das demais entidades económicas.”29 O exercício de comércio de câmbios, é legalmente definido como “a realização habitual, por conta própria ou alheia, de operações cambiais.”30 Para efeitos do presente diploma legal, são operações cambiais; a) aquisição ou alienação de ouro amoedado, em barra ou em qualquer forma não trabalhada; b) A aquisição ou alienação de moeda estrangeira; c) A abertura e a movimentação no País, por residentes ou por não residentes, de contas em moeda estrangeira; d) A abertura e a movimentação no País, por não residentes, de contas em moeda nacional; e) A liquidação de quaisquer transacções de mercadorias, de invisíveis correntes ou de capitais.31 O artigo 7º do supra invocado diploma legal estabelece que “as operações cambiais só podem ser realizadas por intermédio de uma instituição financeira autorizada a exercer o comércio de câmbios.” 29 Preambulo da LC 30 Crf. Artigo 10º, nº1, da LC 31 Crf, artigo 5º da LC
  • 20. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Além disso, “ o exercício do comércio de câmbios depende de autorização especial do Banco Nacional de Angola nos termos da legislação aplicável.”32 A autorização a que se refere o preceito legal acima referido vem estabelecida na Lei 13/05, de 30 de Setembro de 2005, publicada no Diário da República, Iª Série, nº 117, de 30 de Setembro de 2005 – Lei das Instituições Financeiras (doravante simplesmente LdIF)33 Angola, à semelhança de outros países como o Brasil, conhece uma realidade diferente no que respeita ao comércio de câmbio. Esta actividade é desenvolvida à margem da lei, por pessoas singulares. 4.1.1 O regime sancionatório à luz da LC Nos termos da LC34 , constitui transgressão punível, “o exercício do comércio de câmbios, em contravenção com o artigo 10º da presente lei”, ou seja, a realização de operações cambiais sem a autorização especial do Banco Nacional de Angola. Por outro lado, constitui também transgressão punível a realização de operações em contravenção do disposto nos artigos 7º a 9º da presente lei”, ou seja, a realização do comércio de câmbios sem o intermédio de uma instituição financeira autorizada a exercer a actividade. Na redacção dada pelo Decreto 21/01 de Abril de 2001, a LC passou a punir, com multa correspondente a 1200 UCF a 120 000 UCF, o exercício do comércio de câmbios sem a autorização especial do BNA. 32 Crf. Artigo 10º, nº2 da LC 33 Crf. Artigo 16º ss da LdIF 34 Crf. Artigo 19º da LC
  • 21. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Além disso, a LC pune com multa correspondente a 2400 UCF a 240 000 UCF, o exercício do comércio de câmbios realizado sem o intermédio de uma instituição financeira. Pelo facto do legislador não ter consagrado, na LC, disposições penais relativas ao comércio de câmbios realizado à margem do sistema financeiro, isso não significa que o legislador tenha querido afastar a punição pela responsabilidade penal. 4.1.2 O regime sancionatório à luz da lei penal Na LdICE de 3 de Setembro de 1999, publicada em Diário da República Iª Série, nº 36, de 3 de Setembro de 1999 Lei das Infracções Contra a Economia (doravante simplesmente LdICE), derrogada pela Lei 13/03 de 10 de Junho de 2003, publicada no Diário da República Iª Série, nº 45, de 10 de Junho de 2003 – Derrogatória da Lei 6/99, (doravante simplesmente Lei Derrogatória) o legislador definiu como infracções contra a economia “ as acções ou omissões previstas na presente lei, que causem prejuízo financeiro ou económico à República de Angola ou que contrariem os interesses fundamentais que regem a sua economia.” O diploma legal acima, estabelecia, no artigo 26º, que “comete a infracção de exercício ilegal de actividades económicas, punível com pena de multa, aquele que exercer qualquer actividade de produção, importação, exportação ou comercialização de bens ou prestação de serviços sem estar habilitado com a competente licença…” Além disso o referido diploma legal estabelecia ainda que a reincidência era punível com pena de prisão até 6 meses e multa. Daqui se concluí que embora comércio de câmbios à margem do sistema financeiros não fosse “per si” criminalmente punível, a actividade das Kingilas subsumia-se ao tipo penal previsto no artigo 26º da LdICE «o exercício ilegal de actividade económica».
  • 22. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais No entanto, o legislador entendeu mais tarde que a LdICE não tutelava de modo eficaz a protecção dos “valores relativos ao funcionamento da economia”35 e optou por revogar parcialmente aquele diploma legal e remeter a tutela dos bens jurídicos protegidos para alguns tipos penais constantes no Código Penal.36 Acontece que com esta decisão o “exercício ilegal de actividade económica” deixou de figurar no catálogo de infracções contra a economia, já que a revogação do artigo 1º da Lei Derrogatória ao remeter para o Código Penal o regime de certos tipos penais, excluiu o tipo legal “exercício ilegal de actividade económica”. 4.2 As Kingilas O comércio ilegal de câmbios em Angola não é, segundo alguns entrevistados, uma actividade recente. Em 1975, havendo proibição legal expressa, havia nos então arredores de Luanda quem já se dedicasse ao comércio de câmbios à margem da lei. Terá sido a partir de meados da década de 1980 que começaram a ver-se as primeiras Kingilas na Cidade de Luanda, sendo que nesta altura muitas foram detidas pela prática do comércio ilícito de câmbios. Nos dias de hoje, a presença de Kíngilas nas ruas de Luanda é um facto que não carece de provas, já que visivelmente estes “profissionais” sequer se coíbem de “publicitar” a actividade que descrevem como “informal”, esfregando o dedo indicador ao polegar, enquanto soltam um chamativo silvar… 35 Crf. Preambulo da Lei Derrogatória 36 Crf. Lei Derrogatória
  • 23. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Esta actividade, praticada sob o olhar atento, porém passivo, das autoridades angolanas é uma actividade altamente lucrativa que conta com o “apoio” de alguns actores institucionais. A rotina “profissional” diária de uma Kingilia começa normalmente com a obtenção do dinheiro “para trabalhar” que, segundo algumas entrevistadas é normalmente o seu próprio dinheiro. Este dinheiro é normalmente obtido mediante um levantamento bancário, da sua própria conta; mediante o “levantamento” do dinheiro de pessoas singulares que recebem esses depósitos mediante remuneração37 ou com recurso a uma operação cambial realizada com empresas que actuam no sector comercial. De acordo com algumas Kingilas que foram entrevistadas, é muito frequente uma única Kingila dispor de uma quantia correspondente até USD 30.000,00 (trinta mil Dólares dos Estados Unidos da América), por dia, para câmbio. E, quando o dinheiro não é todo “trabalhado” no próprio dia, ele tem destino seguro: depósito em conta junto dos seus bancos, em quantias por vezes superiores a USD 15.000,00 (quinze mil Dólares dos Estados Unidos da América) sem que lhes sejam feitas quaisquer perguntas; ou entregue a pessoas singulares que o guarda em casa, mediante retribuição. Sobre o comércio ilícito de câmbios o autor Benja Satula questiona38 : “Quem está a alimentar este comércio informal? Porque persiste e prospera, à margem do legalmente estabelecido?” 37 O nº 1 do artigo 130º da LdIF estabelece que “aquele que exercer actividade que consista em receber do público, por conta própria ou alheia, depósitos ou outros fundos reembolsáveis, sem que para tal exista a necessária autorização é punido com pena de prisão até 5 anos.” 38 Benja Satula, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, p. 122
  • 24. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Uma das entrevistadas em particular revelou que a sua actividade é assegurada por empresas regularmente estabelecidas no mercado angolano cujos recebimentos são em Kwanzas mas cujas compras são feitas, no exterior do país, em moeda estrangeira, no caso o Dólar dos Estados Unidos da América. Estas sociedades recorrem ao “serviço” das Kingilas porque a taxa de câmbios praticada é mais favorável do que aquela que as instituições financeiras autorizadas a exercer o comércio de câmbios alguma vez praticariam. Desta forma, estas sociedades obtêm um ganho, que é o resultado do excedente pago pelo mercado informal, que não será eventualmente contabilizado e não será consequentemente tributado. Uma outra “fonte de alimentação” do mercado informal de câmbios são os cidadãos que buscam alternativas à política monetária e cambial vigente: as restrições de venda de divisas impostas pelos bancos comerciais e a morosidade e burocracia na concessão de financiamentos bancários acabam por levar o comum dos cidadãos a buscar alternativas no mercado “informal”. Contam as entrevistadas que além do comércio de câmbios, as Kingilas de “nível mais elevado” celebram contratos de mútuo oneroso, em que a taxa de juros é o correspondente a 100% do valor mutuado. Comparativamente a outras actividades “informais”, as Kingilas têm as melhores margens de lucro e gozam de maior prestígio. Emboras as expressões “branqueamento de capitas” e “lavagem de dinheiro” sejam do conhecimento das Kingilas, elas demonstrara m não saber exactamente em que consistem as sobreditas figuras.
  • 25. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Depois de dada uma breve explicação sobre o que é o branqueamento de capitais, perguntou-se se elas soubessem que o dinheiro que “trabalham” provêm ou pode provir de alguma actividade ilícita ou ainda vai ou pode ir para o (re) financiamento de uma actividade ilícita continuariam a exercer a sua actividade. As Kingilas demonstraram ter perfeito conhecimento de que a actividade que desenvolvem é contrária à lei mas que é graças a ela com conseguem manter as suas famílias. Algumas revelaram inclusivamente que se lhes fossem assegurados o mesmo rendimento numa actividade lícita não hesitariam em abandonar o comércio ilícito de câmbios, já que a actividade também tem os seus riscos. Contudo, a falta de oportunidades no mercado de trabalho “formal” leva-as a procurarem meios alternativos de sobrevivência, como revelou uma Kingila que frequenta o 2º ano do curso de Economia, numa Universidade privada angolana. Esta mesma Kingila conta que ela não se sente responsável pelos actos de terceiros e que se o dinheiro que usa para “trabalhar” advém de ou será usada em actividades criminosas, a responsabilidade por esses actos criminosos é exclusiva de quem os pratica, já que ela apenas faz o que tem de fazer para sobreviver e sustentar a sua família. 5. O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS E AS KINGILAS Consideremos a seguinte hipótese: “ António é vendedor grossista de alimentos enlatados e tem o seu armazém em Luanda. Todos os pagamentos que António recebe da sua actividade são feitos por meio de transferência bancária, para a conta da sua empresa.
  • 26. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais No entanto, António é também traficante de droga e usa a parte traseira do seu armazém para praticar esta actividade. Todos os pagamentos desta actividade são realizados em Kwanzas e a receita mensal de António, proveniente do tráfico de droga é de KZ 600.000,00 (seiscentos mil Kwanzas). António sabe que para usufruir dos ganhos do tráfico de droga terá de dissimular a origem ilícita desses ganhos, o que numa primeira fase significa movimentar o dinheiro. Sabendo de antemão que ao contactar uma instituição financeira autorizada a exercer o comércio de câmbios corre o risco de não conseguir realizar a operação cambial dadas as obrigações de identificação, diligência e comunicação a que estão sujeitas as entidades sujeitas, por força da LCBCFT, a solução mais viável será o recurso as Kingilas. Com recurso ao comércio ilícito de câmbios, o traficante consegue diminuir o volume de dinheiro e transporta-lo, em duas ou três viagens por mês, para o Ghana onde detém uma conta offshore.” Vimos na análise do tipo subjectivo que a formulação legal do tipo incriminador requer que o agente conheça os elementos objectivos do tipo e aja com o propósito de obter os resultados descritos no tipo objectivo. A isto equivale dizer que: tendo a Kingila perfeito conhecimento que o dinheiro que “trabalha” é resultante do tráfico de drogas e que está a ser convertida noutra moeda com o propósito de facilitar a operação de dissimular a sua origem ilícita, então não há dúvidas que esta Kingila responde penalmente pelo crime de branqueamento de capitais, nos termos do artigo 60º da LCBCFT.
  • 27. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Contudo, imagine-se que as Kingilas não têm particularmente conhecimento de que a operação cambial que realizam é destinada a dissimular a origem ilícita do dinheiro, pode haver lugar a responsabilidade penal pelo crime de branqueamento de capitais? Como se viu na análise do tipo objectivo, a incriminação requer que o agente aja com a intenção de atingir um determinado resultado, ou seja, se a Kingila não tiver conhecimento que com a sua conduta está a auxiliar outrem a dissimular a origem ilícita do seu dinheiro não pode ser penalmente responsabilizada pelo crime de branqueamento de capitais. O raciocínio acima obriga à formulação da seguinte questão: como provar que a Kingila sabia que com a sua conduta estava a auxiliar outrem a atingir o resultado do crime previsto no artigo 60º da LCBCFT? Embora pareça simples, a verdade é que esta prova pode ser de difícil produção já que, como se viu acima, as Kingilas trabalham com o seu próprio dinheiro e fazem-no, segundo justificaram, por necessidade de subsistência. Isto equivale dizer que nas relações que as Kingilas estabelecem com os seus “clientes” não existe, por regra, nada além das operações cambiais que realizam. Ou seja: elas não procuram aprofundar o seu conhecimento sobre a actividade dos “clientes”; a origem e destino do dinheiro. Esta realidade, relatada pelas entrevistadas, obriga-nos a pensar na dimensão do mercado “informal” de comércio de câmbios nos seguintes termos: existirão entre nós Kingilas que “trabalham” com valores muito mais avultados? Havendo, trabalharão isoladamente com o fim de providenciarem sustento para as suas famílias?
  • 28. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Retomando a questão atrás formulada sobre a existência de Kingilas que trabalham com valores milionários, admitiremos para efeitos meramente académicos, a possibilidade do facto ocorrer em território angolano. O cenário acima descrito força-nos a reflectir na forma como esta prática afecta ou pode afectar o “normal funcionamento do sistema financeiro” que o Estado angolano pretende salvaguardar com a LCBCFT. 6. CONCLUSÕES Apesar do fenómeno de branqueamento de capitais ser uma realidade cuja existência antecede a própria definição, a sua prevenção e repressão em Angola é recente. No entanto, segundo o Relatório de Avaliação do ESAAMLG, o esforço realizado para estabelecer as fundações de um regime de combate ao branqueamento de capitias e financiamento ao terrorismo é significativo. Embora as componentes chaves do combate ao branqueamento de capitais estejam previstos no ordenamento jurídico, o ESAAMLG considera que o sistema de combate ao branqueamento de capitais não cumpre ainda o seu propósito. A verdade é que o sistema angolano de prevenção e combate ao branqueamento de capitais não inclui no rol de infracções subjacentes o comércio ilícito de câmbios visto que a actividade não constitui um ilícito penal nem sequer é subsumível a qualquer outro tipo de ilícito penal, porquanto o ilícito penal de “exercício ilegal de actividade económica” foi simplesmente revogado.
  • 29. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais Deste modo, não parece que a LCBCFT esteja a cumprir o seu propósito de modo eficaz, dado que continua a ser permeável, permitindo que os branqueadores de capitais continuem a dispor de meios simples mas eficazes de realizarem as suas operações. Em Angola, o comércio ilícito de câmbios é uma actividade que conhece a luz do dia e, segundo os relatos colhidos, conta com a aceitação diária dos próprios operadores económicos. Em nossa opinião, o Estado angolano deve considerar tipificar o ilícito cambial como ilícito penal, punível com pena de prisão mínima de 6 (seis) meses, dado que assim se retirará o acesso a um mecanismo que facilita o branqueamento de capitais, disponível livremente nas ruas do nosso país. Pese embora se admita que a tipificação penal deste ilícito acabe por causar a fuga para uma clandestinidade mais profunda dos maiores Kingilas, a verdade é que a tolerância deste ilícito fere os princípios fundamentais nos quais assenta a organização económica, financeira e fiscal do Estado angolano.39 39 Constituição da República de Angola, publicada no Diário da República, Iª Série – nº 23º, de 5 de Fevereiro de 2010.
  • 30. Pós Graduação em Compliance e Combate ao Branqueamento de Capitais Kingilas e o Branqueamento de Capitais BIBLIOGRAFIA AZZALI, “Diritto penale dell’offesa e riciclagio”, p. 433 apud Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Do Crime de “Branqueamento” de Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra , EIRAS, Henriques e FORTES Guilhermina, Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 2ª Edição revista e actualizada, Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2006, GODINHO, Jorge Alexandre Fernandes, “Do «Branqueamento» de Capitais – Introdução e Tipicidade, SATULA, Benja, Branqueamento de Capitais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010 SCHOTT, Paula Alan, “Guia de Referência Anti-Branqueamento de Capitais e de Financiamento ao Terrorismo”, Segunda Edição e Suplemento sobre a Recomendação Espacial IX.