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Faz-se uma análise dos aspectos penais da Lei nº 9.613/1998, bem
como de alguns pontos polêmicos do crime de lavagem de dinheiro,
mormente após a edição da Lei nº 12.683/12.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise dos aspectos
penais da Lei nº 9.613/1998, bem como das alterações surgidas após a
edição da Lei nº12.683, de 10 de julho de 2012, merecendo destaque
pontos polêmicos como por exemplo se o delito de lavagem de
dinheiro é de natureza instantânea ou permanente, o que reflete sob
pontos cardeais, como por exemplo, a possibilidade de retroatividade
de lei penal mais gravosa; início da prescrição da pretensão punitiva e
possibilidade de prisão em flagrante.
Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Lei penal. Crime permanente.
Crime instantâneo.
1. INTRODUÇÃO
Como cediço, a busca pelo enfraquecimento dos grupos criminosos é
uma realidade de quase todos os países, razão pela qual as nações
buscam diversas formas de acabar/reduzir o poder daqueles grupos,
sendo que, não raro, um dos principais instrumentos utilizados para
este desiderato é justamente a incriminação da conduta dos crimino-
sos em procurar dar legitimidade aos valores oriundos da prática cri-
Lei da Lavagem de Dinheiro: análise
das disposições penais e pontos
polêmicos após as alterações trazidas
pela Lei nº 12.683/2012
Adão Mendes Gomes
Jus.com.br 2015-01-25|
minosa, isto é, a conduta cujo objetivo é dar aparência de licitude ao
proveito/vantagem oriunda da prática de delitos.
Nesse passo, a conduta de procurar dar legitimidade aos bens, direi-
tos e valores advindos da prática de crimes é o que se convencionou
de denominar de “lavagem” de dinheiro. Ou seja, através da prática
da “lavagem” os bens (leia-se também direitos e valores) sujos
(decorrentes da prática de crimes) se tornam limpos, sendo que esta
limpeza decorre do processo de lavagem, isto é, da utilização de táti-
cas que procuram desvincular o dinheiro obtido ilicitamente da prá-
tica dos delitos, com o claro objetivo de que os proveitos dos crimes
possam ser utilizados tranquilamente por seus autores e participes.
Historicamente, tem-se atribuído aos Estados Unidos da América o
titulo de ser o primeiro país a criminalizar a prática da lavagem de
dinheiro, muito provavelmente em decorrência da vigência da cha-
mada Lei Seca[i], resultante do poder de segmentos mais conservado-
res daquele País (puritanismo religioso), época na qual foram
proibidas a fabricação, venda e o transporte de bebidas intoxicantes
(que contivessem mais de 0,5% de álcool).
Nos EUA, após a entrada em vigor da Lei Seca, na década de 1920, as
organizações criminosas ganharam grande poder, pois elas foram res-
ponsáveis pelo abastecimento do mercado consumidor de álcool, o
que exigiu que elas se transformassem em verdadeiras organizações
empresariais, o que se deu com a sofisticação de seu nível organizaci-
onal[ii].
Em decorrência da venda ilegal de bebidas alcoólicas, aumentou con-
sideravelmente o número de mortes de membros de organizações cri-
minosas rivais (por causa da disputa do monopólio da venda em
determinadas partes das cidades, tal como ocorre hoje nas disputas
por “bocas de fumo”, no que se refere ao tráfico de drogas e entorpe-
centes), bem como os casos de corrupção dos agentes públicos, tais
como policiais, juízes, promotores, etc.
No Brasil, a Lei nº 9.613/98 surgiu após nosso País se tornar signatá-
rio da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Subs-
tâncias Psicotrópicas[iii] (Convenção de Viena), de 20 de dezembro de
1988, a qual foi referendada pelo Brasil por força do Decreto Legisla-
tivo nº 162, de 14 de junho de 1991.
Como sabido, o objetivo da criminalização da lavagem de dinheiro
delimitada pela Convenção de Viena foi o de combater o aspecto
financeiro[iv] dos agentes que cometiam o delito de tráfico de drogas,
vez que este delito movimenta anualmente bilhões de dólares em todo
o mundo.
Neste contexto é que surgiu a Lei nº 9.613/98, na ânsia de dar concre-
tude às determinações contidas na aludida convenção internacional.
No que se refere às legislações dos países que dispunham sobre a
incriminação da lavagem, a doutrina as classifica em 3 (três) gera-
ções: 1ª geração – consoante as diretrizes da Convenção de Viena, a
lavagem caracteriza-se apenas se o crime antecedente fosse o de trá-
fico de drogas e entorpecentes, razão pela qual se observa a preocupa-
ção dos países com relação aos malefícios da traficância; 2ª geração –
a partir daqui, além do delito de tráfico, a lavagem também se dava
com relação a outros crimes, ou seja, aumentou-se o rol de crimes
antecedentes; 3ª geração – nesta geração, há a exclusão de um rol de
crimes antecedentes, podendo a lavagem de dinheiro se dar com rela-
ção a qualquer delito, desde que, por óbvio, gere um proveito econô-
mico passível de ser “lavado”, isto é, de ser legitimado.
Destarte, verifica-se que originalmente a Lei nº 9.613/98 era de natu-
reza mista[v], eis que continha características das normas de segunda
e terceira gerações, pois, apesar de possuir um rol de crimes antece-
dentes para que fosse configurada a lavagem de dinheiro, em seu
inciso VII do art.1º ressalvava a possibilidade da lavagem de bens,
direitos e valores oriundos de qualquer delito, desde que fosse prati-
cada por intermédio de organização criminosa.
Ocorre que, com as alterações promovidas pela Lei nº 12.683/2012, a
nossa Lei de Lavagem de dinheiro se tornou claramente uma norma
de terceira geração, pois a lavagem de dinheiro ocorrerá com relação
a qualquer infração penal, inclusive com relação às contravenções
penais, o que não ocorria na redação primitiva da Lei nº 9.613/1998.
2. BEM JURÍDICO NO DELITO DE LAVAGEM DE DINHEIRO
O bem jurídico[vi] é considerado o interesse penalmente relevante a
ser protegido pelas normas penais incriminadoras. Nesse sentido,
David Teixeira de Azevedo[vii] leciona que:
Enquanto o bem é tudo o que tem valor para o
homem ou para a sociedade, pois apto e útil a
satisfazer uma necessidade, o bem jurídico consti-
tui-se no objeto concreto de tutela que encarna
esse valor e coagula esse interesse no âmbito do
ordenamento jurídico.
[...] Welzel assinalava ser o bem jurídico um bem
vital individual que, devido ao significado social, é
juridicamente protegido.
Assim, por exemplo, no crime de homicídio o bem jurídico protegido é
a vida do ser humano, enquanto que nos delitos patrimoniais, v.g., o
furto ou roubo, o bem jurídico é o patrimônio (conjunto de bens apre-
ciáveis economicamente).
No crime de lavagem de dinheiro, a doutrina é bastante divergente
sobre qual seria o bem jurídico tutelado pela norma penal.
Rodolfo Tigre Maia (2007) defende que o bem jurídico predominante
no delito de lavagem é a administração da justiça e, em segundo
plano, a ordem econômica, embora reconheça que, em razão da nume-
ração taxativa dos crimes antecedentes previstos na referida lei, exis-
tem outros bens jurídicos também protegidos, como por exemplo: a
saúde pública (inciso I); a segurança nacional (incs. II e III), segunda
parte); a administração Pública (incs. III, primeira parte, e V); o Sis-
tema Financeiro Nacional (inc. VI); o patrimônio, a liberdade indivi-
dual, a integridade física e a vida (incs. IV) e, por fim, a paz pública
(inc. VII).
BALTAZAR JUNIOR (2009) considera que o delito de lavagem de
dinheiro deve ser considerado pluriofensivo, isto é, que possui diver-
sos bens jurídicos albergados pela proteção da normal penal incrimi-
nadora.
Já Pierpaolo Cruz Bottini (2013) leciona ser a administração da justiça
o único bem jurídico protegido pela norma penal, não obstante reco-
nheça que em grande parte dos casos há uma pluralidade de bens jurí-
dicos violados. Segundo o citado autor, a opção por apenas um bem
jurídico – administração da justiça -, garante a “construção de uma
metodologia de interpretação coerente[viii]”, tendo em vista que “A
proposta da pluriofensividade retira a força dogmática da determina-
ção do bem jurídico especificamente tutelado, importante para extrair
consequências hermenêuticas e limitar a atuação do interprete[ix]”.
Da análise dos posicionamentos supra, acreditamos que o que possui
menos falhas é o proposto por BOTTINI, isto é, o que apregoa que o
bem jurídico protegido pela lei antilavagem é a administração da jus-
tiça, a qual é lesada quando o agente procura desvincular o proveito
do crime da sua prática, ou seja, quando se vale do processo de lava-
gem de bens oriundos da prática delituosa, não obstante outros bens
jurídicos também possam ser lesados, por exemplo, a ordem econô-
mica.
Diante o exposto, consideramos que o bem jurídico protegido pela Lei
nº9.613/98 é a administração da justiça.
3. CONCEITO DE LAVAGEM DE DINHEIRO
Como dito alhures, a lavagem de bens, direitos e valores (sendo que a
lei fala em lavagem de dinheiro) é um processo complexo que tem
como objetivo a desvinculação da ilicitude de qualquer bem que foi
obtido em decorrência da prática de crimes, para que o agente crimi-
noso possa usufruir dos valores adquiridos com infração à lei penal.
Nesse sentido, com sua peculiar argúcia, José Paulo Baltazar Junior
ensina que:
A lavagem de dinheiro pode ser conceituada
como como (sic) atividade que consiste na des-
vinculação ou afastamento do dinheiro da sua
origem ilícita para que possa ser aproveitado. O
que fundamentou a criação desse tipo penal é que
o sujeito que comete esse tipo de crime, que se tra-
duz num proveito econômico, tem que disfarçar a
origem desse dinheiro, ou seja, desvincular o
dinheiro da sua origem criminosa e conferir-lhe
uma aparência lícita a fim de poder aproveitar os
ganhos ilícitos, considerado que o móvel de tais
crimes é justamente a acumulação material[x].
(negritei)
No mesmo sentido, o insigne penalista Rodolfo Tigre Maia aduz que:
A lavagem de dinheiro pode ser simplificada-
mente compreendida, sob uma perspectiva teleo-
lógica e metajurídica, como o conjunto complexo
de operações, integrado pelas etapas de conver-
são (placement), dissimulação (layering) e inte-
gração (integration) de bens, direitos valores,
que tem por finalidade tornar legítimos ativos
oriundos da prática de atos ilícitos penais, mas-
carando esta origem para que os responsáveis
possam escapar da ação repressiva da Justiça
[xi]. (negritei)
É preciso destacar, que para a caracterização da reciclagem de ativos
ilícitos, mister se faz que o agente realize a ocultação ou dissimulação
da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou pro-
priedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indireta-
mente, de infração penal.
O que equivale a dizer que para haver lavagem é imprescindível que
haja um processo de mascaramento (ocultação ou dissimulação) sobre
a natureza, origem, movimentação, etc. de bens decorrentes da prá-
tica de infração penal, seja crime ou contravenção penal.
Desta forma, caso o agente não realize algum ato de mascaramento
(ocultação ou dissimulação) sobre a origem de valores obtidos da prá-
tica de algum delito, mas, simplesmente, use o dinheiro obtido para
comprar uma imóvel em seu próprio nome, não haverá o ilícito em
comento, vez que o criminoso não usou de meios tendentes a dificul-
tar a informação sobre a origem de tais valores. Nesse sentido, Pier-
paolo Cruz Bottini esclarece que:
Imagine-se um roubo a banco – agora antecedente
possível da lavagem de dinheiro – em conseqüência
do qual seu autor adquira dinheiro suficiente para
comprar um barco. Caso ele o compre direta-
mente, em seu nome, não haverá lavagem de
dinheiro, mas mero exaurimento do crime. Por
outro lado, se o valor for depositado em conta de
terceiro, que efetua a compra em nome de empresa
laranja, existirá lavagem de dinheiro[xii]. (negri-
tei)
Desta forma, vê-se que somente haverá lavagem de dinheiro quando
houver o uso de algum tipo de artifício que procure desvincular a ori-
gem ilícita do bem para que o criminoso possa usufruir tranquila-
mente o seu proveito.
4. REDAÇÃO ORIGINÁRIA DA LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO (LEI
Nº 9.613/98
Como já destacado, a redação originária da Lei nº9.613/98 (Lei de
Lavagem de Dinheiro) era considerada uma norma antilavagem de 2ª
geração, pois somente acontecia a reciclagem de ativos ilícitos decor-
rentes dos crimes taxativamente previstos como antecedentes da
lavagem. Ou seja, se o proveito econômico adviesse de delito que não
estivesse no rol de crimes antecedentes, não se configurava a lavagem
de capitais.
A redação originária da Lei nº 9.613/98 elencava os seguintes delitos
como antecedentes necessários da lavagem de dinheiro, in verbis:
Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem,
localização, disposição, movimentação ou proprie-
dade de bens, direitos ou valores provenientes,
direta ou indiretamente, de crime:
I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes
ou drogas afins;
II – de terrorismo e seu financiamento;
III – de contrabando ou tráfico de armas, munições
ou material destinado à sua produção;
IV – de extorsão mediante seqüestro;
V – contra a Administração Pública, inclusive a
exigência, para si ou para outrem, direta ou indire-
tamente, de qualquer vantagem, como condição ou
preço para a prática ou omissão de atos adminis-
trativos;
VI – contra o sistema financeiro nacional;
VII – praticado por organização criminosa.
Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. (negri-
tei)
Da análise do dispositivo acima, observa-se que somente os proveitos
econômicos dos delitos elencados poderiam ser “lavados”, ou seja,
caso alguém angariasse proveito econômico da prática de algum
delito que não estivesse no referido rol de crimes, como por exemplo,
da prática de furto (art.155, CP), mesmo que ele dissimulasse a ori-
gem do referido proveito, não poderia ser enquadrado pela prática de
lavagem de dinheiro, por total atipicidade, vez que o delito de furto
não constava como antecedente (elemento típico).
Outro ponto que merece destaque, é que somente os proveitos econô-
micos decorrentes dos crimes elencados como antecedentes poderiam
caracterizar a lavagem, ou seja, não havia reciclagem de ativos ilícitos
decorrentes da prática de contravenção penal, tal como o jogo do
bicho[xiii], contravenção penal que rende o auferição de grande mon-
tante monetário a seus exploradores.
Desnecessário se faz a análise de cada delito elencado ao supracitado
rol, vez que são assaz conhecidos pelos operadores do direito, porém,
há que se fazer 3 (três) breves observações.
Primeiro, o inciso II relativo ao crime de terrorismo e seu financia-
mento não poderia ser imputado a nenhum acusado, pois nosso orde-
namento jurídico não tem a previsão de tal delito, sob pena de
violação ao princípio da reserva legal. Nessa senda, com sua clarivi-
dência, Rodolfo Tigre Maia[xiv] assenta que:
Considerando-se, de um lado, o princípio da
reserva legal (taxatividade e transparência) e, de
outro lado, a inexistência até o momento de um
tipo penal com este nomen juris, estamos em que o
presente inciso ainda não é funcional [...]. Diante
do princípio da reserva legal (inexistência do tipo
penal de terrorismo em nosso ordenamento) e da
estrutura típica adotada pelo legislador brasileiro
(em que para existir a “lavagem” é mister que
exista o crime primário), a resposta à indagação
somente poderá ser negativa: se o agente recicla
em território brasileiro bens originários da prática
em outro país de crime ali definido como terro-
rismo, tal conduta será atípica diante de nosso
Direito Penal, salvo se a definição legal de terro-
rismo no Direito alienígena corresponder – sob
outro nomen juris – a conduta considerada crimi-
nosa no Brasil e enquadrável nos crimes antece-
dentes da reciclagem (e.g., tráfico de armas).
BALTAZAR JUNIOR (2009), em sentido contrário, defende que o inciso
II seria aplicável, pois o art.20[xv] da Lei nº 7.170/89 (Lei da Segu-
rança Nacional) definiria o crime de terrorismo em nosso ordena-
mento jurídico.
Com a devida venia, a razão está inteiramente com Tigre Maia, pois
considerar o art.20 da LSN como a definição de delito de terrorismo, a
qual, frise-se, em apenas um momento usa o termo “atos de terro-
rismo”, porém, não define o que se deva entender por ele (terro-
rismo), violaria flagrantemente o princípio da reserva legal, sob o
espectro da transparência. Devido ao brilhantismo do pensamento,
mais uma vez nos valemos dos ensinamentos de Rodolfo Tigre Maia
[xvi]:
De ser ver que, embora a Lei de Segurança Nacio-
nal – LSN (Lei federal n. 7.170/83, nascida nos
estertores da ditadura militar) contenha a expres-
são “atos de terrorismo” em um de seus dispositi-
vos (art.20), não explicita um tipo penal com esta
denominação específica. De fato, neste disposi-
tivo, a expressão “atos de terrorismo” viola a
reserva legal, por ser insuscetível de delimita-
ção precisa. O que são “atos de terrorismo”?
Serão outras condutas similares às utilizadas
naquele tipo penal (devastar, saquear etc.)? Se
é assim, a dicção legal deveria ser “(...) ou
outros atos de terrorismo”. Estaria a expressão
vinculada ao termo imediatamente antecedente
(“praticar atentado pessoal”)? Se é assim, persiste
a imprecisão violadora da legalidade: o que é “pra-
ticar atos de terrorismo”? Estão incluídos delitos
de opinião? A injúria real? A lesão corporal leve? A
simples dissidência ao regime estabelecido? (negri-
tei)
Desta forma, temos que o inciso II da Lei de Lavagem de dinheiro não
é aplicável, pois inexiste o crime de terrorismo em nosso ordena-
mento jurídico, sob pena de violação ao princípio da legalidade.
Outrossim, o inciso V (“contra a Administração Pública, inclusive a
exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qual-
quer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de
atos administrativos”) possui diversas falhas. De acordo com Tigre
Maia[xvii]:
Esta primeira parte do inciso é lamentável do
ponto de vista da técnica jurídico-penal (a) por
ampla em demasia, envolvendo incontáveis tipos
penais, inclusive alguns de pequena lesividade,
enfraquecendo a função de garantia da norma
incriminadora; (b) por referir indistintamente
ilícitos que sequer propiciam diretamente a
aquisição de bens passíveis de “lavagem” de
dinheiro. Assim, e.g., os crimes de prevaricação,
condescendência criminosa, abandono de função,
resistência, desobediência, desacato, inutilização
de edital ou de sinal, reingresso de estrangeiro
expulso, exercício arbitrário das próprias razões,
arrebatamento de preso, motim de presos etc. A
segunda parte do dispositivo (“inclusive a exi-
gência, para si ou para outrem, direta ou indireta-
mente, de qualquer vantagem, como condição ou
preço para a prática ou omissão de atos adminis-
trativos”), resultante de emenda aditiva apro-
vada pelo Parlamento, consegue ser pior: (a) é
rebarbativa, eis que a hipótese enunciada esta-
ria subsumida ao objeto jurídico já enunciado
(contra a Administração Pública); (b) é incon-
sistente, eis que a conduta descrita não corres-
ponde com exatidão a qualquer dos tipos penais
vigentes em nosso ordenamento jurídico (apro-
xima-se um pouco da corrupção passiva e da
concussão). (negritei)
Embora reconheçamos a procedência das criticas feitas por Tigre
Maia, concordamos plenamente com BALTAZAR JUNIOR (2009),
quando afirma a importância deste inciso V, tendo em vista que diver-
sos delitos perpetrados contra a administração pública geram provei-
tos econômicos para funcionários públicos ou terceiros, passiveis de
ser objeto de reciclagem de ativos ilícitos.
A última observação se refere ao inciso VII (“praticado por organiza-
ção criminosa”). De acordo com a doutrina, este inciso abriria a possi-
bilidade de que os proveitos econômicos decorrentes de qualquer
[xviii] crime pudessem ser objeto da lavagem de dinheiro, desde que
fossem praticados por intermédio de organização criminosa. Ou seja,
este inciso não se referia a um crime antecedente, mas a forma como
eram praticados os delitos de onde provinham os proveitos econômi-
cos. Nesta senda, BALTAZAR JUNIOR[xix] ensina que:
O inciso abre o rol de crimes antecedentes ao
estabelecer que qualquer outro delito, ainda que
não previsto especificamente nos incisos, possa
ser considerado antecedente da lavagem de
dinheiro, quando praticado por organização cri-
minosa, cuidando-se não de um crime antecedente,
mas da forma como o crime é cometido, de modo
que não compromete a aplicação do inciso o fato
da inexistência de um tipo específico de organiza-
ção criminosa na lei brasileira (TRF5, HC
20080500006652-8/PE, Joana Pereira, 1ª T., u.,
28.2.08). (negrito)
5. LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO APÓS AS ALTERAÇÕES TRAZI-
DAS PELA LEI Nº 12.683/12
Como já assinalado, com a edição da Lei nº 12.683, de 10 de julho de
2012, a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) teve importan-
tes alterações em suas disposições penais.
Inicialmente, cumpre destacar, que nossa legislação deixou de ser de
2ª geração para ser de 3ª geração, pois, a partir de agora, a lavagem
pode decorrer da prática de qualquer delito, inclusive, frise-se, da
prática de contravenção penal, v.g., a contravenção do jogo do bicho
(art.58, Decreto-Lei nº 3.688/41). Isto porque, a nova lei substituiu a
expressão “de crime” por “infração penal” (gênero), o que alberga
tanto os crimes como as contravenções penais (espécies de infração
penal).
Após a entrada em vigor do novo diploma legal, assim passou a dispor
o art.1º da Lei de Lavagem de Dinheiro, in verbis:
Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, ori-
gem, localização, disposição, movimentação ou
propriedade de bens, direitos ou valores proveni-
entes, direta ou indiretamente, de infração
penal. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)
(negritei)
Diante o exposto, desde a entrada em vigor das alterações trazidas
pela Lei nº12.683/12, os proveitos econômicos provenientes de qual-
quer infração penal podem ser objeto de reciclagem de ativos ilícitos.
Do mesmo modo, tendo em vista a clareza dos tipos penais previstos
nos §§1º e 2º do art.1º da Lei nº 9.613/98, despiciendo também se faz
a análise de suas hipóteses. Assim dispõem os referidos parágrafos, in
verbis:
§ 1o Incorre na mesma pena quem, para ocultar
ou dissimular a utilização de bens, direitos ou
valores provenientes de infração penal: (Redação
dada pela Lei nº 12.683, de 2012)
I - os converte em ativos lícitos;
II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe
em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta
ou transfere;
III - importa ou exporta bens com valores não cor-
respondentes aos verdadeiros.
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira,
bens, direitos ou valores provenientes de infração
penal; (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)
II - participa de grupo, associação ou escritório
tendo conhecimento de que sua atividade principal
ou secundária é dirigida à prática de crimes pre-
vistos nesta Lei.
Desta forma, vê-se que uma das principais inovações do diploma legal
em comento é a transformação da Lei de Lavagem de Capitais brasi-
leira em norma de 3ª geração, ou seja, a partir de agora, a prática de
qualquer infração penal - inclusive a de contravenção do "jogo do
bicho" - é apta a caracterizar a reciclagem de capitais e a consequente
criminalização dos possíveis infratores. Da mesma forma, o delito de
sonegação (v.g., arts.1º e 2º, Lei nº8.137/90) - antes excluído da lista
de crimes antecedentes da lavagem, o que impossibilitava a criminali-
zação de lavagem dos agentes que praticassem referido crime, isto é,
de sonegação -, ou melhor, os ativos ilícitos oriundos de tal delito
quando passarem por alguma das formas de reciclagem de capitais
poderá caracterizar a lavagem.
Diante o exposto, a principal inovação trazida pela Lei nº 12.683 foi a
possibilidade da lavagem se dar na prática de qualquer infração
penal, seja crime ou contravenção.
6. NATUREZA INTANTÂNEA OU PERMANENTE DO DELITO DE
LAVAGEM
A doutrina e a jurisprudência também divergem se o crime de lava-
gem de capitais é de natureza instantânea ou permanente, questão
esta, contudo, que é de suma importância por causa das suas conse-
quências na órbita penal.
MAIA (2007) defende que a reciclagem de capitais tem natureza per-
manente - assim como ocorre com a “ocultar” no crime de receptação
(art.180, CP) -, tendo em vista a própria dinâmica que envolve a lava-
gem, onde umas etapas antecedem outras, o que pode fazer que
durante a permanência uma conduta passe a subsumir a outros tipos
derivados.
Por outro lado, Pierpaolo Cruz Bottini (2013), defende a natureza de
delito instantâneo[xx] com efeitos permanentes da lavagem de capi-
tais, mormente com fulcro numa interpretação teleológica à luz do
bem jurídico protegido. Todavia, por discordar que a natureza do
delito esteja ligada à possibilidade do autor do crime interromper ou
não a prática delituosa – o que faria que até o crime de furto fosse
considerado como permanente, o qual, todavia, é tranquilamente con-
siderado instantâneo -, sob o prisma da política criminal, o melhor é
considerar a reciclagem como delito instantâneo, sendo que o delito
de consuma com a ocultação ou dissimulação, sendo que a permanên-
cia da ocultação é mero exaurimento. Se assim não fosse, a entrada
em vigor de lei que ampliasse o rol de antecedentes incidiria imedia-
tamente sobre as ocultações em andamento, o que prejudicaria sobre-
maneira a segurança jurídica do cidadão, notadamente seu status
libertatis.
Desta forma, temos que o melhor posicionamento é o proposto por
BOTTINI, o qual garante a segurança jurídica dos cidadãos, estando
em sintonia com a proteção do status libertatis garantida por nossa
Constituição-cidadã de 1988. Assim, não será possível a aplicação
retroativa da novatio legis in pejus, não sendo aplicável a Súmula
nº711 do STF[xxi], a menos que após a entrada em vigor da nova lei, o
agente pratique novos atos de ocultação ou dissimulação, o que con-
sumará novamente o crime de lavagem a cada nova conduta de mas-
caramento do proveito econômico do bem.
BOTTINI (2013), apesar de sustentar a natureza instantânea da lava-
gem, ele concorda que se praticadas novas condutas tendentes a apro-
fundar a ocultação ou dissimulação, estes novos atos serão típicos,
pois cada nova movimentação agride o bem jurídico administração da
justiça.
Desta forma, ante seu caráter instantâneo, o prazo prescricional
começa a correr da data da sua consumação, isto é, da ocultação ou
dissimulação, bem como não é possível a prisão em flagrante a qual-
quer tempo.
Todavia, cabe destacar que o STF[xxii] ainda não tem um entendi-
mento consolidado sobre o tema, tendo vincado que paira dúvida se
trata de crime permanente ou instantâneo, conforme se observa do
resultado do julgamento do Inquérito nº2471/SP.
7. CONCLUSÕES
Diante o exposto, com a edição da Lei nº12.683/12, verifica-se que a
legislação brasileira de lavagem de capitais – Lei nº9.613/98 – se tor-
nou uma norma de 3ª geração, isto é, a partir da supracitada altera-
ção, é possível agora haver a reciclagem de ativos ilícitos decorrentes
da prática de qualquer infração penal (englobando crimes e contra-
venções penais, v.g., a lucrativa prática de “jogo do bicho” (art.58,
Decreto-Lei nº 3.688/41).
Por fim, percebe-se que a tese do delito de lavagem de capitais pos-
suir natureza jurídica de delito instantâneo (com efeitos permanen-
tes) é a que melhor se harmoniza com a atual ordem constitucional,
isto, é, de clara feição garantista, pois impossibilita a criminalização
de várias condutas antes consideradas atípicas, tal como a lavagem de
capitais oriunda da sonegação fiscal e da prática da contraven-
ção do “jogo do bicho”.
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Análise da Lei de Lavagem de Dinheiro e pontos polêmicos após alterações da Lei 12.683/2012

  • 1. Faz-se uma análise dos aspectos penais da Lei nº 9.613/1998, bem como de alguns pontos polêmicos do crime de lavagem de dinheiro, mormente após a edição da Lei nº 12.683/12. RESUMO O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise dos aspectos penais da Lei nº 9.613/1998, bem como das alterações surgidas após a edição da Lei nº12.683, de 10 de julho de 2012, merecendo destaque pontos polêmicos como por exemplo se o delito de lavagem de dinheiro é de natureza instantânea ou permanente, o que reflete sob pontos cardeais, como por exemplo, a possibilidade de retroatividade de lei penal mais gravosa; início da prescrição da pretensão punitiva e possibilidade de prisão em flagrante. Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Lei penal. Crime permanente. Crime instantâneo. 1. INTRODUÇÃO Como cediço, a busca pelo enfraquecimento dos grupos criminosos é uma realidade de quase todos os países, razão pela qual as nações buscam diversas formas de acabar/reduzir o poder daqueles grupos, sendo que, não raro, um dos principais instrumentos utilizados para este desiderato é justamente a incriminação da conduta dos crimino- sos em procurar dar legitimidade aos valores oriundos da prática cri- Lei da Lavagem de Dinheiro: análise das disposições penais e pontos polêmicos após as alterações trazidas pela Lei nº 12.683/2012 Adão Mendes Gomes Jus.com.br 2015-01-25|
  • 2. minosa, isto é, a conduta cujo objetivo é dar aparência de licitude ao proveito/vantagem oriunda da prática de delitos. Nesse passo, a conduta de procurar dar legitimidade aos bens, direi- tos e valores advindos da prática de crimes é o que se convencionou de denominar de “lavagem” de dinheiro. Ou seja, através da prática da “lavagem” os bens (leia-se também direitos e valores) sujos (decorrentes da prática de crimes) se tornam limpos, sendo que esta limpeza decorre do processo de lavagem, isto é, da utilização de táti- cas que procuram desvincular o dinheiro obtido ilicitamente da prá- tica dos delitos, com o claro objetivo de que os proveitos dos crimes possam ser utilizados tranquilamente por seus autores e participes. Historicamente, tem-se atribuído aos Estados Unidos da América o titulo de ser o primeiro país a criminalizar a prática da lavagem de dinheiro, muito provavelmente em decorrência da vigência da cha- mada Lei Seca[i], resultante do poder de segmentos mais conservado- res daquele País (puritanismo religioso), época na qual foram proibidas a fabricação, venda e o transporte de bebidas intoxicantes (que contivessem mais de 0,5% de álcool). Nos EUA, após a entrada em vigor da Lei Seca, na década de 1920, as organizações criminosas ganharam grande poder, pois elas foram res- ponsáveis pelo abastecimento do mercado consumidor de álcool, o que exigiu que elas se transformassem em verdadeiras organizações empresariais, o que se deu com a sofisticação de seu nível organizaci- onal[ii]. Em decorrência da venda ilegal de bebidas alcoólicas, aumentou con- sideravelmente o número de mortes de membros de organizações cri- minosas rivais (por causa da disputa do monopólio da venda em determinadas partes das cidades, tal como ocorre hoje nas disputas por “bocas de fumo”, no que se refere ao tráfico de drogas e entorpe- centes), bem como os casos de corrupção dos agentes públicos, tais como policiais, juízes, promotores, etc. No Brasil, a Lei nº 9.613/98 surgiu após nosso País se tornar signatá- rio da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Subs- tâncias Psicotrópicas[iii] (Convenção de Viena), de 20 de dezembro de
  • 3. 1988, a qual foi referendada pelo Brasil por força do Decreto Legisla- tivo nº 162, de 14 de junho de 1991. Como sabido, o objetivo da criminalização da lavagem de dinheiro delimitada pela Convenção de Viena foi o de combater o aspecto financeiro[iv] dos agentes que cometiam o delito de tráfico de drogas, vez que este delito movimenta anualmente bilhões de dólares em todo o mundo. Neste contexto é que surgiu a Lei nº 9.613/98, na ânsia de dar concre- tude às determinações contidas na aludida convenção internacional. No que se refere às legislações dos países que dispunham sobre a incriminação da lavagem, a doutrina as classifica em 3 (três) gera- ções: 1ª geração – consoante as diretrizes da Convenção de Viena, a lavagem caracteriza-se apenas se o crime antecedente fosse o de trá- fico de drogas e entorpecentes, razão pela qual se observa a preocupa- ção dos países com relação aos malefícios da traficância; 2ª geração – a partir daqui, além do delito de tráfico, a lavagem também se dava com relação a outros crimes, ou seja, aumentou-se o rol de crimes antecedentes; 3ª geração – nesta geração, há a exclusão de um rol de crimes antecedentes, podendo a lavagem de dinheiro se dar com rela- ção a qualquer delito, desde que, por óbvio, gere um proveito econô- mico passível de ser “lavado”, isto é, de ser legitimado. Destarte, verifica-se que originalmente a Lei nº 9.613/98 era de natu- reza mista[v], eis que continha características das normas de segunda e terceira gerações, pois, apesar de possuir um rol de crimes antece- dentes para que fosse configurada a lavagem de dinheiro, em seu inciso VII do art.1º ressalvava a possibilidade da lavagem de bens, direitos e valores oriundos de qualquer delito, desde que fosse prati- cada por intermédio de organização criminosa. Ocorre que, com as alterações promovidas pela Lei nº 12.683/2012, a nossa Lei de Lavagem de dinheiro se tornou claramente uma norma de terceira geração, pois a lavagem de dinheiro ocorrerá com relação a qualquer infração penal, inclusive com relação às contravenções penais, o que não ocorria na redação primitiva da Lei nº 9.613/1998. 2. BEM JURÍDICO NO DELITO DE LAVAGEM DE DINHEIRO
  • 4. O bem jurídico[vi] é considerado o interesse penalmente relevante a ser protegido pelas normas penais incriminadoras. Nesse sentido, David Teixeira de Azevedo[vii] leciona que: Enquanto o bem é tudo o que tem valor para o homem ou para a sociedade, pois apto e útil a satisfazer uma necessidade, o bem jurídico consti- tui-se no objeto concreto de tutela que encarna esse valor e coagula esse interesse no âmbito do ordenamento jurídico. [...] Welzel assinalava ser o bem jurídico um bem vital individual que, devido ao significado social, é juridicamente protegido. Assim, por exemplo, no crime de homicídio o bem jurídico protegido é a vida do ser humano, enquanto que nos delitos patrimoniais, v.g., o furto ou roubo, o bem jurídico é o patrimônio (conjunto de bens apre- ciáveis economicamente). No crime de lavagem de dinheiro, a doutrina é bastante divergente sobre qual seria o bem jurídico tutelado pela norma penal. Rodolfo Tigre Maia (2007) defende que o bem jurídico predominante no delito de lavagem é a administração da justiça e, em segundo plano, a ordem econômica, embora reconheça que, em razão da nume- ração taxativa dos crimes antecedentes previstos na referida lei, exis- tem outros bens jurídicos também protegidos, como por exemplo: a saúde pública (inciso I); a segurança nacional (incs. II e III), segunda parte); a administração Pública (incs. III, primeira parte, e V); o Sis- tema Financeiro Nacional (inc. VI); o patrimônio, a liberdade indivi- dual, a integridade física e a vida (incs. IV) e, por fim, a paz pública (inc. VII). BALTAZAR JUNIOR (2009) considera que o delito de lavagem de dinheiro deve ser considerado pluriofensivo, isto é, que possui diver- sos bens jurídicos albergados pela proteção da normal penal incrimi- nadora. Já Pierpaolo Cruz Bottini (2013) leciona ser a administração da justiça o único bem jurídico protegido pela norma penal, não obstante reco-
  • 5. nheça que em grande parte dos casos há uma pluralidade de bens jurí- dicos violados. Segundo o citado autor, a opção por apenas um bem jurídico – administração da justiça -, garante a “construção de uma metodologia de interpretação coerente[viii]”, tendo em vista que “A proposta da pluriofensividade retira a força dogmática da determina- ção do bem jurídico especificamente tutelado, importante para extrair consequências hermenêuticas e limitar a atuação do interprete[ix]”. Da análise dos posicionamentos supra, acreditamos que o que possui menos falhas é o proposto por BOTTINI, isto é, o que apregoa que o bem jurídico protegido pela lei antilavagem é a administração da jus- tiça, a qual é lesada quando o agente procura desvincular o proveito do crime da sua prática, ou seja, quando se vale do processo de lava- gem de bens oriundos da prática delituosa, não obstante outros bens jurídicos também possam ser lesados, por exemplo, a ordem econô- mica. Diante o exposto, consideramos que o bem jurídico protegido pela Lei nº9.613/98 é a administração da justiça. 3. CONCEITO DE LAVAGEM DE DINHEIRO Como dito alhures, a lavagem de bens, direitos e valores (sendo que a lei fala em lavagem de dinheiro) é um processo complexo que tem como objetivo a desvinculação da ilicitude de qualquer bem que foi obtido em decorrência da prática de crimes, para que o agente crimi- noso possa usufruir dos valores adquiridos com infração à lei penal. Nesse sentido, com sua peculiar argúcia, José Paulo Baltazar Junior ensina que: A lavagem de dinheiro pode ser conceituada como como (sic) atividade que consiste na des- vinculação ou afastamento do dinheiro da sua origem ilícita para que possa ser aproveitado. O que fundamentou a criação desse tipo penal é que o sujeito que comete esse tipo de crime, que se tra- duz num proveito econômico, tem que disfarçar a origem desse dinheiro, ou seja, desvincular o dinheiro da sua origem criminosa e conferir-lhe uma aparência lícita a fim de poder aproveitar os
  • 6. ganhos ilícitos, considerado que o móvel de tais crimes é justamente a acumulação material[x]. (negritei) No mesmo sentido, o insigne penalista Rodolfo Tigre Maia aduz que: A lavagem de dinheiro pode ser simplificada- mente compreendida, sob uma perspectiva teleo- lógica e metajurídica, como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conver- são (placement), dissimulação (layering) e inte- gração (integration) de bens, direitos valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mas- carando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da Justiça [xi]. (negritei) É preciso destacar, que para a caracterização da reciclagem de ativos ilícitos, mister se faz que o agente realize a ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou pro- priedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indireta- mente, de infração penal. O que equivale a dizer que para haver lavagem é imprescindível que haja um processo de mascaramento (ocultação ou dissimulação) sobre a natureza, origem, movimentação, etc. de bens decorrentes da prá- tica de infração penal, seja crime ou contravenção penal. Desta forma, caso o agente não realize algum ato de mascaramento (ocultação ou dissimulação) sobre a origem de valores obtidos da prá- tica de algum delito, mas, simplesmente, use o dinheiro obtido para comprar uma imóvel em seu próprio nome, não haverá o ilícito em comento, vez que o criminoso não usou de meios tendentes a dificul- tar a informação sobre a origem de tais valores. Nesse sentido, Pier- paolo Cruz Bottini esclarece que: Imagine-se um roubo a banco – agora antecedente possível da lavagem de dinheiro – em conseqüência do qual seu autor adquira dinheiro suficiente para
  • 7. comprar um barco. Caso ele o compre direta- mente, em seu nome, não haverá lavagem de dinheiro, mas mero exaurimento do crime. Por outro lado, se o valor for depositado em conta de terceiro, que efetua a compra em nome de empresa laranja, existirá lavagem de dinheiro[xii]. (negri- tei) Desta forma, vê-se que somente haverá lavagem de dinheiro quando houver o uso de algum tipo de artifício que procure desvincular a ori- gem ilícita do bem para que o criminoso possa usufruir tranquila- mente o seu proveito. 4. REDAÇÃO ORIGINÁRIA DA LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO (LEI Nº 9.613/98 Como já destacado, a redação originária da Lei nº9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro) era considerada uma norma antilavagem de 2ª geração, pois somente acontecia a reciclagem de ativos ilícitos decor- rentes dos crimes taxativamente previstos como antecedentes da lavagem. Ou seja, se o proveito econômico adviesse de delito que não estivesse no rol de crimes antecedentes, não se configurava a lavagem de capitais. A redação originária da Lei nº 9.613/98 elencava os seguintes delitos como antecedentes necessários da lavagem de dinheiro, in verbis: Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou proprie- dade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo e seu financiamento; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro;
  • 8. V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indire- tamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos adminis- trativos; VI – contra o sistema financeiro nacional; VII – praticado por organização criminosa. Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. (negri- tei) Da análise do dispositivo acima, observa-se que somente os proveitos econômicos dos delitos elencados poderiam ser “lavados”, ou seja, caso alguém angariasse proveito econômico da prática de algum delito que não estivesse no referido rol de crimes, como por exemplo, da prática de furto (art.155, CP), mesmo que ele dissimulasse a ori- gem do referido proveito, não poderia ser enquadrado pela prática de lavagem de dinheiro, por total atipicidade, vez que o delito de furto não constava como antecedente (elemento típico). Outro ponto que merece destaque, é que somente os proveitos econô- micos decorrentes dos crimes elencados como antecedentes poderiam caracterizar a lavagem, ou seja, não havia reciclagem de ativos ilícitos decorrentes da prática de contravenção penal, tal como o jogo do bicho[xiii], contravenção penal que rende o auferição de grande mon- tante monetário a seus exploradores. Desnecessário se faz a análise de cada delito elencado ao supracitado rol, vez que são assaz conhecidos pelos operadores do direito, porém, há que se fazer 3 (três) breves observações. Primeiro, o inciso II relativo ao crime de terrorismo e seu financia- mento não poderia ser imputado a nenhum acusado, pois nosso orde- namento jurídico não tem a previsão de tal delito, sob pena de violação ao princípio da reserva legal. Nessa senda, com sua clarivi- dência, Rodolfo Tigre Maia[xiv] assenta que: Considerando-se, de um lado, o princípio da reserva legal (taxatividade e transparência) e, de
  • 9. outro lado, a inexistência até o momento de um tipo penal com este nomen juris, estamos em que o presente inciso ainda não é funcional [...]. Diante do princípio da reserva legal (inexistência do tipo penal de terrorismo em nosso ordenamento) e da estrutura típica adotada pelo legislador brasileiro (em que para existir a “lavagem” é mister que exista o crime primário), a resposta à indagação somente poderá ser negativa: se o agente recicla em território brasileiro bens originários da prática em outro país de crime ali definido como terro- rismo, tal conduta será atípica diante de nosso Direito Penal, salvo se a definição legal de terro- rismo no Direito alienígena corresponder – sob outro nomen juris – a conduta considerada crimi- nosa no Brasil e enquadrável nos crimes antece- dentes da reciclagem (e.g., tráfico de armas). BALTAZAR JUNIOR (2009), em sentido contrário, defende que o inciso II seria aplicável, pois o art.20[xv] da Lei nº 7.170/89 (Lei da Segu- rança Nacional) definiria o crime de terrorismo em nosso ordena- mento jurídico. Com a devida venia, a razão está inteiramente com Tigre Maia, pois considerar o art.20 da LSN como a definição de delito de terrorismo, a qual, frise-se, em apenas um momento usa o termo “atos de terro- rismo”, porém, não define o que se deva entender por ele (terro- rismo), violaria flagrantemente o princípio da reserva legal, sob o espectro da transparência. Devido ao brilhantismo do pensamento, mais uma vez nos valemos dos ensinamentos de Rodolfo Tigre Maia [xvi]: De ser ver que, embora a Lei de Segurança Nacio- nal – LSN (Lei federal n. 7.170/83, nascida nos estertores da ditadura militar) contenha a expres- são “atos de terrorismo” em um de seus dispositi- vos (art.20), não explicita um tipo penal com esta denominação específica. De fato, neste disposi- tivo, a expressão “atos de terrorismo” viola a
  • 10. reserva legal, por ser insuscetível de delimita- ção precisa. O que são “atos de terrorismo”? Serão outras condutas similares às utilizadas naquele tipo penal (devastar, saquear etc.)? Se é assim, a dicção legal deveria ser “(...) ou outros atos de terrorismo”. Estaria a expressão vinculada ao termo imediatamente antecedente (“praticar atentado pessoal”)? Se é assim, persiste a imprecisão violadora da legalidade: o que é “pra- ticar atos de terrorismo”? Estão incluídos delitos de opinião? A injúria real? A lesão corporal leve? A simples dissidência ao regime estabelecido? (negri- tei) Desta forma, temos que o inciso II da Lei de Lavagem de dinheiro não é aplicável, pois inexiste o crime de terrorismo em nosso ordena- mento jurídico, sob pena de violação ao princípio da legalidade. Outrossim, o inciso V (“contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qual- quer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos”) possui diversas falhas. De acordo com Tigre Maia[xvii]: Esta primeira parte do inciso é lamentável do ponto de vista da técnica jurídico-penal (a) por ampla em demasia, envolvendo incontáveis tipos penais, inclusive alguns de pequena lesividade, enfraquecendo a função de garantia da norma incriminadora; (b) por referir indistintamente ilícitos que sequer propiciam diretamente a aquisição de bens passíveis de “lavagem” de dinheiro. Assim, e.g., os crimes de prevaricação, condescendência criminosa, abandono de função, resistência, desobediência, desacato, inutilização de edital ou de sinal, reingresso de estrangeiro expulso, exercício arbitrário das próprias razões, arrebatamento de preso, motim de presos etc. A segunda parte do dispositivo (“inclusive a exi-
  • 11. gência, para si ou para outrem, direta ou indireta- mente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos adminis- trativos”), resultante de emenda aditiva apro- vada pelo Parlamento, consegue ser pior: (a) é rebarbativa, eis que a hipótese enunciada esta- ria subsumida ao objeto jurídico já enunciado (contra a Administração Pública); (b) é incon- sistente, eis que a conduta descrita não corres- ponde com exatidão a qualquer dos tipos penais vigentes em nosso ordenamento jurídico (apro- xima-se um pouco da corrupção passiva e da concussão). (negritei) Embora reconheçamos a procedência das criticas feitas por Tigre Maia, concordamos plenamente com BALTAZAR JUNIOR (2009), quando afirma a importância deste inciso V, tendo em vista que diver- sos delitos perpetrados contra a administração pública geram provei- tos econômicos para funcionários públicos ou terceiros, passiveis de ser objeto de reciclagem de ativos ilícitos. A última observação se refere ao inciso VII (“praticado por organiza- ção criminosa”). De acordo com a doutrina, este inciso abriria a possi- bilidade de que os proveitos econômicos decorrentes de qualquer [xviii] crime pudessem ser objeto da lavagem de dinheiro, desde que fossem praticados por intermédio de organização criminosa. Ou seja, este inciso não se referia a um crime antecedente, mas a forma como eram praticados os delitos de onde provinham os proveitos econômi- cos. Nesta senda, BALTAZAR JUNIOR[xix] ensina que: O inciso abre o rol de crimes antecedentes ao estabelecer que qualquer outro delito, ainda que não previsto especificamente nos incisos, possa ser considerado antecedente da lavagem de dinheiro, quando praticado por organização cri- minosa, cuidando-se não de um crime antecedente, mas da forma como o crime é cometido, de modo que não compromete a aplicação do inciso o fato da inexistência de um tipo específico de organiza-
  • 12. ção criminosa na lei brasileira (TRF5, HC 20080500006652-8/PE, Joana Pereira, 1ª T., u., 28.2.08). (negrito) 5. LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO APÓS AS ALTERAÇÕES TRAZI- DAS PELA LEI Nº 12.683/12 Como já assinalado, com a edição da Lei nº 12.683, de 10 de julho de 2012, a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) teve importan- tes alterações em suas disposições penais. Inicialmente, cumpre destacar, que nossa legislação deixou de ser de 2ª geração para ser de 3ª geração, pois, a partir de agora, a lavagem pode decorrer da prática de qualquer delito, inclusive, frise-se, da prática de contravenção penal, v.g., a contravenção do jogo do bicho (art.58, Decreto-Lei nº 3.688/41). Isto porque, a nova lei substituiu a expressão “de crime” por “infração penal” (gênero), o que alberga tanto os crimes como as contravenções penais (espécies de infração penal). Após a entrada em vigor do novo diploma legal, assim passou a dispor o art.1º da Lei de Lavagem de Dinheiro, in verbis: Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, ori- gem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores proveni- entes, direta ou indiretamente, de infração penal. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) (negritei) Diante o exposto, desde a entrada em vigor das alterações trazidas pela Lei nº12.683/12, os proveitos econômicos provenientes de qual- quer infração penal podem ser objeto de reciclagem de ativos ilícitos. Do mesmo modo, tendo em vista a clareza dos tipos penais previstos nos §§1º e 2º do art.1º da Lei nº 9.613/98, despiciendo também se faz a análise de suas hipóteses. Assim dispõem os referidos parágrafos, in verbis: § 1o Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou
  • 13. valores provenientes de infração penal: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) I - os converte em ativos lícitos; II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III - importa ou exporta bens com valores não cor- respondentes aos verdadeiros. I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal; (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes pre- vistos nesta Lei. Desta forma, vê-se que uma das principais inovações do diploma legal em comento é a transformação da Lei de Lavagem de Capitais brasi- leira em norma de 3ª geração, ou seja, a partir de agora, a prática de qualquer infração penal - inclusive a de contravenção do "jogo do bicho" - é apta a caracterizar a reciclagem de capitais e a consequente criminalização dos possíveis infratores. Da mesma forma, o delito de sonegação (v.g., arts.1º e 2º, Lei nº8.137/90) - antes excluído da lista de crimes antecedentes da lavagem, o que impossibilitava a criminali- zação de lavagem dos agentes que praticassem referido crime, isto é, de sonegação -, ou melhor, os ativos ilícitos oriundos de tal delito quando passarem por alguma das formas de reciclagem de capitais poderá caracterizar a lavagem. Diante o exposto, a principal inovação trazida pela Lei nº 12.683 foi a possibilidade da lavagem se dar na prática de qualquer infração penal, seja crime ou contravenção. 6. NATUREZA INTANTÂNEA OU PERMANENTE DO DELITO DE LAVAGEM
  • 14. A doutrina e a jurisprudência também divergem se o crime de lava- gem de capitais é de natureza instantânea ou permanente, questão esta, contudo, que é de suma importância por causa das suas conse- quências na órbita penal. MAIA (2007) defende que a reciclagem de capitais tem natureza per- manente - assim como ocorre com a “ocultar” no crime de receptação (art.180, CP) -, tendo em vista a própria dinâmica que envolve a lava- gem, onde umas etapas antecedem outras, o que pode fazer que durante a permanência uma conduta passe a subsumir a outros tipos derivados. Por outro lado, Pierpaolo Cruz Bottini (2013), defende a natureza de delito instantâneo[xx] com efeitos permanentes da lavagem de capi- tais, mormente com fulcro numa interpretação teleológica à luz do bem jurídico protegido. Todavia, por discordar que a natureza do delito esteja ligada à possibilidade do autor do crime interromper ou não a prática delituosa – o que faria que até o crime de furto fosse considerado como permanente, o qual, todavia, é tranquilamente con- siderado instantâneo -, sob o prisma da política criminal, o melhor é considerar a reciclagem como delito instantâneo, sendo que o delito de consuma com a ocultação ou dissimulação, sendo que a permanên- cia da ocultação é mero exaurimento. Se assim não fosse, a entrada em vigor de lei que ampliasse o rol de antecedentes incidiria imedia- tamente sobre as ocultações em andamento, o que prejudicaria sobre- maneira a segurança jurídica do cidadão, notadamente seu status libertatis. Desta forma, temos que o melhor posicionamento é o proposto por BOTTINI, o qual garante a segurança jurídica dos cidadãos, estando em sintonia com a proteção do status libertatis garantida por nossa Constituição-cidadã de 1988. Assim, não será possível a aplicação retroativa da novatio legis in pejus, não sendo aplicável a Súmula nº711 do STF[xxi], a menos que após a entrada em vigor da nova lei, o agente pratique novos atos de ocultação ou dissimulação, o que con- sumará novamente o crime de lavagem a cada nova conduta de mas- caramento do proveito econômico do bem. BOTTINI (2013), apesar de sustentar a natureza instantânea da lava- gem, ele concorda que se praticadas novas condutas tendentes a apro-
  • 15. fundar a ocultação ou dissimulação, estes novos atos serão típicos, pois cada nova movimentação agride o bem jurídico administração da justiça. Desta forma, ante seu caráter instantâneo, o prazo prescricional começa a correr da data da sua consumação, isto é, da ocultação ou dissimulação, bem como não é possível a prisão em flagrante a qual- quer tempo. Todavia, cabe destacar que o STF[xxii] ainda não tem um entendi- mento consolidado sobre o tema, tendo vincado que paira dúvida se trata de crime permanente ou instantâneo, conforme se observa do resultado do julgamento do Inquérito nº2471/SP. 7. CONCLUSÕES Diante o exposto, com a edição da Lei nº12.683/12, verifica-se que a legislação brasileira de lavagem de capitais – Lei nº9.613/98 – se tor- nou uma norma de 3ª geração, isto é, a partir da supracitada altera- ção, é possível agora haver a reciclagem de ativos ilícitos decorrentes da prática de qualquer infração penal (englobando crimes e contra- venções penais, v.g., a lucrativa prática de “jogo do bicho” (art.58, Decreto-Lei nº 3.688/41). Por fim, percebe-se que a tese do delito de lavagem de capitais pos- suir natureza jurídica de delito instantâneo (com efeitos permanen- tes) é a que melhor se harmoniza com a atual ordem constitucional, isto, é, de clara feição garantista, pois impossibilita a criminalização de várias condutas antes consideradas atípicas, tal como a lavagem de capitais oriunda da sonegação fiscal e da prática da contraven- ção do “jogo do bicho”. NOTAS