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Índice
5	INTRODUÇÃO
15 	 UNIDOS PARA SEMPRE
30 	 O INCESTO; CEGA OBSESSÃO
39 	 NA SERENA MANHÃ DE DOMINGO
48 	 UM DIA DE CÃO
61 	 DEPOIS DO CHOQUE, A CONSULTA
75 	 PAIXÕES E DESENCANTOS
84 	 NA ESQUINA DA CIDADE BAIXA
104 	 ENCONTRANDO SEFIRA
116 	 MANICÔMIO: LOUCURAS DE UMA PAIXÃO
135 	 ADEUS ÀS ILUSÕES
146 	 A COMÉDIA HUMANA
160 	 JOGO DE PALAVRAS
173 	 ROMPENDO O SILÊNCIO
190 	 IRMÃOS ENTRE QUATRO PAREDES
212 	 CTI – A UM PASSO DO FIM
226 	 CONSULTA LIBERTADORA
244 	 DORES DO ENVELHECIMENTO
255 	 DIAS AMARGOS
266 	 DEIXEM-ME VIVER
271 	 O DESESPERO
287 	 O RETORNO: SOMBRAS DO PASSADO
306	EPÍLOGO
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Trajano e Dulce, produtores do meu genoma;
às minhas filhas, Jussara e Juliana, produtos desse genoma; aos irmãos,
que compartilham de genoma semelhantes; aos amigos, parentes e
clientes; aos inimigos que desafiaram-me e agrediram-me. Em resumo,
a todos aqueles que, de um modo ou de outro, excitaram-me, provocar-
am-me, promovendo assim a expressão dos genes recebidos durante a
concepção. Através desses encontros e desencon-tros, das relações dos
milhares de genes com os trilhões de estímulos externos, nasceu essa
construção milagrosa e esquisita que sou eu; a única pessoa que conheço
mais ou menos por dentro.
Sem a ajuda de cada um desses diferentes agentes, que ativaram o
necessário no momento certo, eu seria outro homem, um desconhecido
para meu eu atual e para vocês. Como seria caso fosse construído de
outro modo? A resposta final eu deixo para vocês, pois sem vocês eu
seria ninguém.
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Introdução
A notícia funesta, lida no jornal da manhã, me transportou ao passado.
Maquinalmente, pensativo e triste, dirigi-me ao arquivo de fichas médi-
cas.
Abri a gaveta e comecei a examinar cada ficha, uma a uma, à procura
da de Lúcio. Passei os olhos num e noutro nome. Fatos da vida dos
pacientes nasciam, despertando dramas adormecidos pelo tempo.
Começavam a desfilar em minha mente cansada e envelhecida, seres an-
gustiados e sem esperança. Todos perdidos, sem rumo, barcos em noite
de tempestade, sem comando, procurando um porto para atracar.
Parei numa ficha. Depois, noutra: “esse aqui só veio uma vez; um caso
diferente; queria, a todo custo, transformar-se em mulher. Onde estará?
Essa separou-se do marido, poucos dias após ter-se casado: ele quase a
matou de tanto a agredir. Terá casado de novo? Como era bonita essa
moça! Tentou o suicídio várias vezes. E agora? Conseguiu o que que-
ria? Esse, canceroso, não quis tratar-se; morreu como desejava. Como
bebia o Alberto! Sofreu muito com a cirrose. Gostava das idéias do Dr.
Bernardo; era um homem inteligente; sempre tinha algo diferente para
dizer”.
Distraía-me sem querer...Diante de cada nome, histórias eram recon-
struídas... sucediam-se fisionomias tensas, lembranças quase perdidas de
vidas carregadas de paixões, algumas alegres, a maioria cheia de amargas
emoções. Todos tentavam ser alguém, alcançar o imaginado, cumprir o
seu papel, custe o que custar. Uns buscavam resgatar a felicidade pas-
sada, sem saber bem como tinha sido; outros procuravam a estabilidade
e a segurança; alguns, o amor-próprio perdido. A maioria não mais
suportava os desencontros freqüentes; entretanto, quase todos acredita-
vam que, um dia, alcançariam suas utopias. Todos vieram em busca de
transformações...na maneira de pensar, de agir, de viver...sonhavam com
uma liberdade inexistente.
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Ali sepultadas, descansavam muitas vidas...agora transformadas em
anotações e jargões médicos, codificados em símbolos neutros, muitos,
ilegíveis. Quantas lutas insanas jazem, aqui aprisionadas e imóveis, em
fichas empoeiradas; quantos dramas, esforços sobre-humanos, na luta
para atingir o imaginado.
Relia aquelas histórias contadas com extrema dificuldade, retiradas dos
porões de almas carregadas de medo.
Com o passar dos anos, percebia que, também, me transformava,
fundindo-me com seus sofrimentos. Tornara-me, pouco a pouco, um
homem mais amadurecido; às vezes, amargo e desiludido, deixando,
para trás, o simples, alegre e curioso recém-formado de antes.
À minha frente, surgiam mais nomes; esses tiveram sucesso, aqueles,
fracassaram. Homens, mulheres, muitos já mortos, alguns decidiram,
antes da hora, não mais viver.
Finalmente, alcancei, aflito, as anotações; a razão da minha procura.
Detenho-me. Tenso, no silêncio da manhã, solitário. Retiro a ficha
amarelada pelo tempo. A letra usada, tombada para a esquerda, com um
traço grosso e forte, não mais me pertence; não sou mais aquele.
Naquela época, ainda jovem, confiante, cheio de ilusões, a maioria delas
desaparecidas, via em tudo um desafio a vencer.
Evito ler todas as anotações de uma só vez; torno a olhar seu nome no
alto da ficha; precisava me certificar: Lúcio M. L.; data da consulta: 23
de abril de 1970. Minha mente penetra, lentamente, com saudade, na
penumbra da primeira consulta, nosso encontro inicial. Gostei do seu
jeito. Era um caso difícil; o que sempre me excitou.
Vejo-o, entrando apressado, pela pequena porta do consultório, mal me
cumprimentando. Sempre olhando para o chão, como alguém que ima-
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gina estar sendo repreendido. Deixou o corpo comprido, leve e flexível,
cair sobre a grande poltrona; afundando-se nela, como se desejasse
desaparecer.
Era simpático, apesar da cara fechada e séria. Vestia uma camisa verde-
amarela da seleção brasileira, bastante justa, que permitia ver os ossos
das costelas estufados; dando a impressão de ser mais magro do que
realmente era. Em contraste, vestia uma calça branca, que parecia escor-
regar para baixo do abdome, presa à cintura por um cinto roto, amar-
rotada, mole, larga demais para cobrir suas pernas finas. O vinco desa-
parecera completamente e, em seu lugar, na altura dos joelhos, formava
um ovo saliente.
Tinha a pele clara, de um branco leitoso, a face, alargada na parte su-
perior, exibia uma testa grande, enrugada horizontal e verticalmente e
afilava-se no queixo, coberto de pêlos ralos, de uma barba por fazer. Os
cabelos pretos, partidos irregularmente do lado esquerdo, cortados mui-
to curtos, deixavam ver, dos dois lados, o couro cabeludo esbranquiçado.
Usava óculos de aros escuros e grossos, manchados de pintas brancas;
um modelo antigo, que cavalgava o nariz bem feito e cobria quase todo o
rosto ossudo. Lentes cinzas escondiam os olhos claros e brilhantes, sem-
pre atentos. A boca rasgada, de lábios finos, levemente arroxeados. Os
maxilares contraídos, indicavam determinação ou teimosia. Escondida
por trás de seus gestos controlados, na maioria da vezes lentos, existia
uma mente agitada, crítica e inquiridora, a beira do desespero.
Ele chegou desengonçado; caminhava como se estivesse bêbado. Atra-
sou-se um pouco. Culpou o trânsito difícil. Estas explicações foram
repetidas, posteriormente. Era seu temperamento; culpar sempre al-
guém ou alguma coisa.
Ao entrar no consultório e assentar-se, sem ser convidado, começou a
falar. Não fez rodeios. Comentou os problemas, com voz rouca, pulando
de um assunto a outro, o que tornava difícil entendê-lo. Interrompia
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uma frase antes de terminá-la; esperava um pouco e recomeçava a falar.
Suas queixas eram feitas, às vezes, num tom áspero; outras, num mur-
murar lamentoso.
Veio pedir uma ajuda para se encontrar, descobrir-se, conhecer a si
mesmo... esse era o sonho de todos.
Era mais uma tentativa para solucionar o problema de sempre: alcançar
o auto-conhecimento. Esperava por esse milagre: transformar-se numa
pessoa consciente, saber o que o levava a se comportar de um modo ou
de outro; conhecer as causas dos seus sofrimentos.
Sua história, apesar de complexa, e, embora fosse preciso, algumas vezes,
adivinhá-la, foi contada através de rico vocabulário, de palavras bem
colocadas, indicando que ele tinha boa informação geral. Entretanto, já
na primeira consulta, percebi que não tinha consciência clara dos princí-
pios que usava para erguer e sustentar seu raciocínio. Muitas vezes, asso-
ciava fatos não interligados, tirando conclusões, inadequadas. Sua lógica
era defeituosa; além disso, ele ignorava sua ignorância.
Pelas anotações contidas na ficha, mas, principalmente, das lembranças
despertadas ao lê-las, ia reconstruindo a vida tumultuada de : Lúcio M.
L., ou melhor, de Lucinho, como ele era carinhosamente chamado.
Do meu ponto de vista, ele não era possuidor de nenhum transtorno
psiquiátrico grave. Era, podemos dizer, um paciente parecido com vários
outros seres humanos que encontramos andando pelas ruas da cidade,
que estudam, trabalham, namoram, casam, têm filhos e os criam. Fazia
parte dos que reagem ao meio, mostrando as pequenas alegrias e tris-
tezas da vida, comuns ao homem.
Indivíduos, como Lucinho, vêm ao psiquiatra, inicialmente, para rece-
berem uma pequena ajuda: é um namoro desfeito que os faz sofrer, uma
rusga com a esposa ou uma desarmonia no emprego. Entretanto, com o
passar dos dias, eles querem ir mais longe; mostram-se curiosos acerca
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do autor dos seus atos.
Lucinho, nas suas constantes idas aos terapeutas, aos poucos, se pertur-
bou, enterrou-se nas crateras cavadas por ele com a ajuda dos psicól-
ogos. Aprisionado nos dogmas das terapias, Lúcio não mais conseguiu
se encontrar; perdeu seu referencial, distanciou-se, cada vez mais, das
soluções que imaginava para si. Acreditando piamente nas interpre-
tações fornecidas pelos terapeutas, ele passou a buscar as supostas metas
ditadas pelos credos; ao dedicar-se às elucubrações fantasiosas dos que
imaginavam ajudá-lo, ele jogou fora sua individualidade, abandonou seu
próprio caminho. Assim, passou a canalizar energias, exclusivamente,
para se desvencilhar ou compreender, como ele imaginava, essa rede de
conceitos abstratos, que foram usados para salvá-lo.
As diversas teorias psicológicas o imobilizaram e o ofuscaram, pouco a
pouco, impedindo-o de enxergar a sua própria realidade. É provável que
seu sofrimento tenha ocorrido, muito mais, em virtude da busca inces-
sante das “causas” dos seus sofrimentos, da tentativa para compreender
as interpretações fictícias usadas pelos profissionais para explicar os
acontecimentos de sua vida e não do confronto com os próprios acon-
tecimentos.
Nos momentos de maior desespero e de irracionalidade, foi em busca
da ajuda, mais mágica ainda, de profissionais não ortodoxos: curandei-
ros, cartomantes, sensitivos e pais-de-santo. Implorou a todos a mesma
ajuda. Sonhou conseguir, através de outras pessoas, o pleno conheci-
mento de si através de uma teoria milagrosa, mágica. Não sabia que isso
é impossível.
Lucinho lia com obstinação. Fez diversos cursos. Releu, continuada-
mente, os clássicos. Estudava e aprendia o que desejava. Fez vestibular
para Medicina. Ficou na escola por dois anos. Largou a Faculdade por
ter detestado as cadeiras básicas. Decidiu fazer Arquitetura. Não foi
difícil entrar nos primeiros lugares. Não tolerou o primeiro ano. Fez
vestibular para Direito. O resultado foi o mesmo: passou e desistiu três
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anos depois.
De Agostinho, seu irmão mais velho e professor de Filosofia, incorporou
noções filosóficas importantes, que lhe permitiram, ás vezes, perceber e
criticar a sociedade, a cultura, as instituições e a família desestruturada
na qual viveu. Seu conhecimento lhe permitia, nos momentos de luci-
dez, avaliar, com precisão, sua vida confusa, as contradições humanas e,
mesmo, a ingenuidade de alguns dos profissionais consultados.
Quando o encontrei pela primeira vez, não mais cursava a Universidade.
Trabalhava, desordenadamente, na firma de construção do pai, sem
jamais ter gostado do que fazia. Continuava sendo um devorador de
livros, principalmente, os de psicologia, sociologia e filosofia.
Lúcio terminou seus dias preso em um manicômio judiciário de Bar-
bacena. Lá, abandonado, como muitos pacientes mentais, teve um fim
trágico.
Sua história teria sido perdida e não poderia ser contada, caso não
tivesse sido anotada, em grande parte, por ele próprio. Ele não fez um
diário clássico, como muitos jovens o fazem; escrevia suas observações e
pensamentos acerca do que lia, ouvia ou vivenciava.
Outros dados acerca de Lucinho foram obtidos de registros de psicól-
ogos e psiquiatras que o examinaram. Recolhi outras informações de
familiares, de amigos, de ex-namoradas, de colegas e vizinhos. Fatos
importantes foram-me passados através de um inteligente e curioso “far-
macêutico”, seu amigo na juventude. Não tive meios de visitar todos os
profissionais da mente que o assistiram. Não procurei, apesar de ter sido
meu desejo, as cartomantes, os pais-de-santo e outros do mesmo gênero.
Quase todos os entrevistados, gentilmente, cederam-me anotações e,
principalmente, o armazenado na memória. Assim, consegui reconstruir
esse relato. Durante as entrevistas, detectei um aspecto que me chamou
a atenção: cada um dos seus amigos e profissionais perceberam-no
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como possuidor de uma personalidade e caráter diferente. Seriam vários
Lucinhos? Cada narrador me contou uma história ao perceber certos
aspectos, e não outros, de sua personalidade. Foi elogiado por muitos;
criticado por outros. Para uns, era inteligente; para outros, um homem
comum, sensível, obtuso, diligente ou preguiçoso. Foi tachado de esquis-
ito, até de louco, por uma minoria.
Tive algumas dificuldades em conseguir os dados. Alguns relutaram
em cedê-los, temerosos de possíveis processos movidos pela família ou
imaginando proibições dos órgãos superiores, como do Conselho de
Medicina. Outros imaginaram poder, um dia, escrever sua vida e, assim,
esconderam o que sabiam.
Mas, alguns profissionais ficaram entusiasmados com meu projeto e,
constantemente, perguntavam-me acerca dele. Muitos, após me passar-
em suas recordações e anotações, procuraram-me novamente, fornecen-
do novas informações, só posteriormente descobertas ou lembradas e
que julgaram importantes para uma melhor compreensão de sua vida.
Percebi, também, que uns poucos, ao me transmitirem as informações,
tentaram deturpar os fatos para que eu tivesse uma idéia errônea dele.
Não descobri os motivos dessa conduta. A coleta de dados foi trabal-
hosa; mas tive um enorme prazer em desvendar uma parte da “verdade”
desse indivíduo comum, ao mesmo tempo, singular, apesar dele, jamais,
ter-se esforçado para parecer diferente dos outros.
Lucinho iniciou sua vida, como todos nós, tentando preservar suas
crenças mais profundas, evitando se perder no meio de tantas opiniões
diferentes. Foi um qualquer, gente como a gente. Seu nome não era con-
hecido, as roupas que usava jamais foram copiadas como modelos, nem
seu modo de andar, falar, pentear-se ou pensar; foi um anti-herói. Lutou
contra caminhos conflitantes. Tentou, obstinadamente, encontrar uma
saída digna no labirinto onde foi encarcerado. Seu sonho era converter-
se nele próprio, não desaparecer na mesmice, não se dissolver em certos
padrões sociais impostos, que impedem o crescimento individual; lutava
para construir seu próprio caminho. Infelizmente, apesar dessa luta em
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busca do encontro consigo mesmo, Lucinho não alcançou a meta pre-
tendida. Ao tentar escapar da prisão social e religiosa, encarcerou-se no
pseudo-cientificismo; ao fugir de um grupo, derreteu-se no outro, como
gelo no fogo. Tentou seguir o princípio básico da ética humanista: bus-
car ser ele próprio, mas falhou: mais uma vez desapareceu, como o sal na
água, dissolveu-se nas idéias dos técnicos que, hipocritamente, diziam
ampará-lo.
Lucinho não fugiu à regra da maioria dos pacientes psiquiátricos. Re-
cebeu diversos diagnósticos: Esquizofrenia paranóide; Esquizofrenia
Aguda Indiferenciada; Transtorno da Personalidade: “Borderline”, Narci-
sista, Dependente, Histérica, Passivo-Agressivo, e mesmo, Personalidade
Normal. Mais tarde, foi categorizado pelo professor, como possuidor de
“Delirius Mater”.
A ética profissional proíbe ao médico fornecer ao público leigo fatos ob-
servados, descritos ou inferidos de seus pacientes. No caso do paciente
psiquiátrico, devido à sua estigmatização por quase todos, essa proibição
é ainda mais rígida. Há razões para isso. De fato, os dados colhidos
desses pacientes angustiados, durante suas crises agudas, são confissões
extremamente íntimas, guardadas a sete chaves, nas profundezas de sua
alma. Esses segredos, geralmente, não são revelados nem mesmo para os
amigos mais chegados e familiares.
Como os fatos recolhidos e resumidos me atraíram e me excitaram gran-
demente, decidi romper com essas proibições estabelecidas pela minha
classe profissional.
Nasceu um impulso mais forte dentro de mim, visando a revelar uma
vida carregada de dúvidas. Sei que há, entre os médicos, um acordo para
manter os segredos do cliente a qualquer preço. Esse é um dos princípios
de nossa profissão. Mas existem outros objetivos tão altos como esse e
que não são explicitados. Há o dever de esclarecer e, se possível, edu-
car a população através da divulgação de acontecimentos das ciências.
Pergunto-me: a quais normas ou éticas devo servir?
São esses “pacientes” - alguns deles mais sadios do que muitos de nós -
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os transitoriamente denominados “não-pacientes”, que nos ensinaram
a estreiteza ou a leveza entre o “normal” e o “anormal”, entre o “doente”
e o “são”. Creio que é nosso dever transmitir essas descobertas. O que é
ser “doente”? Seria estar mais adaptado à sociedade e à família e des-
adaptado com respeito a si mesmo? Ou devemos denominar “doente” a
pessoa bem adaptada à sua personalidade - valores, desejos, modo de se
comportar - e em luta com a sociedade e família? Eu ainda não sei!
Decidi, comovido, escrever esse relato, após a notícia do último acontec-
imento trágico de sua vida. Precisava desabafar, de alguma forma, o que
já sabia dele. Não estava apenas interessado em prestar uma homenagem
a esse paciente que se tornou, como outros, parte de minha vida. No
relato, como não podia ser diferente, mantive o respeito que sempre tive
por ele e por todos pacientes; era um amigo que me confiou, durante um
certo período, problemas íntimos. Juntos, sofremos e tentamos soluções.
Recordações secretas, arrancadas do fundo do poço, transformaram-se
em sons, choros, soluços, gestos e agressões. Após penetrar em minha
mente, essas condutas se tornaram conceitos frios e marcas aprisionadas
para sempre. Tentei transformar esses sinais neutros em ações dinâmi-
cas.
Ao descrever sua personalidade, não mencionarei as anomalias, mas
sua história, seus problemas e tentativas para resolvê-los. Não escrevi
um manual de Psiquiatria. Também, não contei a vida de um homem
excepcional.
Os fatos recolhidos são, às vezes, trágicos, mas, paradoxalmente, uni-
versais. Possivelmente, a maioria dos leitores identificar-se-á com cer-
tos eventos vividos por ele. Alguns sentir-se-ão estupefatos com certas
cenas, imaginando como pode um ser humano chegar a tanto. O leigo
desconhece muitos fatos secretos ocorridos nas profundezas da mente.
Talvez a vida de todos nós, como a de Lucinho, pudesse dar origem a
belas, tristes e trágicas histórias, caso tivessem sido anotadas ou memo-
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rizadas e, posteriormente, escritas, como esta.
Quando me procurou pela primeira vez, ele era jovem. Contou-me que
começou a freqüentar o pré-escolar muito cedo. Seus pais, Dr. Ad-
amastor e Rosária, desejosos de melhorar seu relacionaento com outras
crianças - ele era muito arredio e calado, pediram conselhos ao pediatra,
Dr. Lunardi, homem de princípios conservadores, que os aconselhou
a colocá-lo numa escola religiosa, onde havia, além do ensino de boa
qualidade, uma disciplina tradicional e rígida.
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Unidos para Sempre
Naquela manhã, após se levantar cansado e quase sem ter dormido, Dr.
Adamastor caminhou, passo a passo, à procura da velha cadeira austrí-
aca, colocada bem em frente à janela da sala. A casa estava silenciosa;
todos dormiam ou fingiam dormir. Recostou-se na cadeira com dificul-
dade, com um resto de dignidade ainda existente, e começou a recordar.
A ausência de sons, comuns às manhãs de domingo, propiciava lem-
branças, todas contaminadas pela incômoda e perversa realidade atual.
Nostalgicamente, pensava..., ”nunca tive medo de obstáculos. Eles che-
gavam a me excitar... Não fui o melhor aluno porque o tempo era pouco;
quando decidia estudar, tirava as melhores notas e era elogiado pelos
professores. Hoje, nada leio; não estudo... folheio o jornal para ver os
necrológios, saber a idade do morto, compará-la com a minha, saber se
é conhecido e onde nasceu. Não sou percebido como possuidor de valor
algum...sou um espectador, não mais um ator.”
Durante a juventude - ainda não tinha completado 19 anos - Dr. Ada-
mastor foi chamado, às pressas, à cidade de Capão do Pinhal, onde mo-
rava sua família, para assistir ao funeral do pai, morto por um infarto.
Era quem administrava os bens e o dinheiro da família.
A partir da morte do pai, o dinheiro faltou e Adamastor, estudante de
engenharia, passou a ter que trabalhar duramente para se sustentar,
pagar a faculdade e a péssima república onde morava. Ali dormia e, às
vezes, fazia suas refeições noturnas, sempre as mesmas: café com leite e
pão com margarina. Ocasionalmente, nos dias de festas, ele comprava
mussarela, mortadela e ovos. Esses ingredientes, reunidos, formavam o
delicioso e cheiroso omelete. Enquanto preparava sua refeição, distraia-
-se ouvindo músicas sertanejas na Inconfidência, num rádio desossado,
pois a madeira externa tinha sido comida pelos cupins. Pronto o omele-
te, com a casca bem tostada, se assentava na única mesa da república e
o comia, com todo o requinte. Cheirava-o, deglutia-o, imaginando estar
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no melhor restaurante da cidade.
Dr. Adamastor, hoje, com sua mulher, Rosária, e seus três filhos: Agosti-
nho, Roberta e Lucinho, tem iguarias melhores do que o omelete. Pode
comer camarões ou lombo, mas não tem mais apetite, papilas gustati-
vas aguçadas e nem sensação para perceber odores - tudo aquilo que é
necessário para diferenciar a boa da má comida. Não mais sente o gosto
nem o delicioso cheiro de antes; não mais se alegra ao ver a clara mole e
feia se transformando na névoa bela, fofa e branca, e uma vez misturada
com a gema amarela, originando a casca cocrante do omelete.
Apesar das dificuldades, ele se formou em Engenharia. Após terminar
o curso, conseguiu emprego numa empresa de construção de estradas.
Não ganhava muito, apenas o suficiente para lhe permitir condição de
vida melhor do que a antiga. Mais animado com o emprego e as eco-
nomias, começou a pensar em buscar uma companhia permanente;
afastar-se das prostitutas, que lhe tinham causado doenças e aborreci-
mentos.
Não foi fácil arrumar a mulher dos seus sonhos. Vivia isolado no can-
teiro de obras da companhia, o que dificultava a aproximação com as
possíveis candidatas a um casamento. Aconselhado pela família, pro-
curou a pretendente ideal entre as conhecidas e parentes de sua terra.
Mas a maioria das boas moças de Capão do Pinhal estava casada. Lá,
elas se casavam cedo. As que escaparam do primeiro cerco estavam
comprometidas com os conhecidos da cidade; todos, geralmente, pri-
mos das namoradas. Poucas haviam sobrado dessa peneirada; algumas
solteironas empedernidas e eternas, mais velhas do que ele, freqüenta-
doras diárias das igrejas e as outras, não classificadas nessas categorias,
eram jovens mal vistas, rebeldes, independentes demais, com as quais os
rapazes evitavam um namoro para casar. Mas Dr. Adamastor sabia que,
apesar dos falatórios difamadores, eram elas as mais cobiçadas. Diante
das dificuldades em encontrar, em sua cidade natal, a “moça dos seus
sonhos”, decidiu procurá-la em Belo Horizonte. Estava ciente dos riscos
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que corria: amar uma desconhecida, cheia de vícios, perigosa, algumas
nem mesmo acreditavam em Deus...
Foi nessa época que Dr. Adamastor conheceu Rosária, durante as folias
de Momo. Ele freqüentava os bailes de carnaval do Diretório Central dos
Estudantes - DCE - mas evitava dançar, pois sua timidez não permitia
tal excesso. Ia aos bailes para paquerar uma ou outra moça, escolhendo
geralmente as mais tristes e desamparadas. Bêbado tornava-se corajoso,
sendo capaz até de tirar uma jovem para dançar. Na verdade, não dança-
va: marchava pelo salão, com seu corpo duro, dando a impressão de ter
engolido uma alavanca.
Impreterivelmente, nos bailes carnavalescos, ele se fazia acompanhar
de um inebriante. Carregava dentro de um vidro achatado, cuidado-
samente colocado no bolso de trás da calça, uma cachaça de péssima
qualidade. No bar, ele comprava uma garrafa de Coca-cola para misturar
com a pinga. Entretanto, se o dinheiro estivesse faltando mais ainda,
Dr. Adamastor usava os restos de refrigerante e gelo deixados nos copos
abandonados em cima do balcão ou das mesas. Quando nada encontra-
va, ele implorava gelo ao “barman”, com uma voz chorosa, em falsete,
sempre olhando para o chão.
Conseguido o desejado, já mostrando a outra face, tirava do bolso a gar-
rafinha com a cachaça e despejava-a no copo, com parcimônia, para que
ela pudesse durar. Após tampar o vidro guardava-o no bolso da calça
larga e cinza, apropriada para suportar os embates do carnaval.
Terminando esse ritual, começava a saborear seu rabo de galo, com
calma. Antes de engolir a droga quase insípida, ele, primeiramente,
a cheirava; depois, bebia, espalhando-a, várias vezes, pela boca, para
melhor sentir seu sabor. O prazer da bebida não derivava do seu gosto
quase insuportável, mas muito mais, do ambiente cheio de luzes, baru-
lhento, do feriado prolongado e do esmero com que ela havia sido feita.
O rabo de galo tinha o poder de fazê-lo imaginar estar vivendo num
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mundo maravilhoso, cheio de esperança, principalmente, de mulheres à
sua volta.
Após esgotar o conteúdo da bebida mágica, Dr. Adamastor guardava o
vidro com cuidado, levava-o para casa, para, no dia seguinte, enchê-lo e
poder embriagar-se mais uma vez. Tinha um carinho especial pela gar-
rafinha simpática: esverdeada e fina, que cabia harmoniosamente no
bolso da calça; guardava a quantidade certa de bebida para uma noite e,
sobretudo, jamais se quebrara, após anos de uso nos carnavais passados,
todos no DCE. Não havia outra igual. Para se embriagar, não precisava
de muita bebida: uma garrafa de cachaça era o bastante para embebedá-
-lo durante as quatro noites.
Nessa manhã de domingo, silenciosa, enquanto pensava no baile do
Diretório, Dr. Adamastor lembrou, com nostalgia e lágrimas nos olhos,
que ele não mais sabia onde estava guardada a garrafa achatada. “Rosá-
ria tê-la-ia jogado fora?”...Perguntava-se apreensivo, sentindo-se culpado
por tê-la abandonado e esquecido. Mas continuava suas recordações...
Na segunda-feira de carnaval, ele havia completado vinte e cinco anos.
Nessa noite, sem querer, bebeu, junto com a pinga, o restante da bebida
encontrada em cima do balcão. Acontece que, na pressa de tirar o gelo,
despejou-a no copo. Quando ele estava mais tonto do que de costume,
incapaz de refletir e discernir sobre o que deveria ou não ser feito, co-
nheceu Rosária, por ela se apaixonou e com ela acabou se casando.
Tudo ocorreu num lance de acaso. Em parte, devido à embriaguez; pos-
sivelmente, dos dois. Ainda estava prostrado diante do balcão, de onde
surripiou a bebida, quando avistou Rosária. Ela gingava e cantarolava
uma marchinha. Ao se aproximar, deu-lhe um sorriso, revelando gran-
des e belos dentes.
Sentiu-se diminuído diante de tanta beleza. Sempre se julgava inferior
diante de mulheres esbeltas. Ela o olhou nos olhos, de cima para baixo...
Era um pouco mais alta do que ele.
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Dr. Adamastor voltou os olhos para o chão, envergonhado, tentando se
esconder. A presença de Rosária, dançando à sua frente e, principalmen-
te, seu sorriso continuado, deixaram-no perturbado. Acontece que ela,
ao olhar as pessoas, mantinha os olhos semicerrados, contraía a testa e
a face, acima do nariz. Desse modo, os cantos da boca eram puxados,
dando a impressão, à primeira vista, que ela estava, constantemente,
sorrindo.
Diante desse falso sorriso, ele suspeitou, como era seu hábito, que ela es-
tivesse debochando dele. “Será que ela notou que eu estava filando o gelo
e o resto da bebida? Ou será porque sou baixinho? Além disso, não sou
uma pessoa bonita como ela; só meu nariz agrada às mulheres...Acho
que não vai dar prá mim”.
Dr. Adamastor se sentia derrotado antes de começar o jogo do amor.
Nessa noite, inexplicavelmente, agiu diferente; decidiu tentar conquistar
Rosária, certo de que não iria dar certo. Levantou os olhos e a fitou, com
cara de bêbado apaixonado.
A iluminação feérica do salão acentuava mais ainda a pele clara de Ro-
sária. Não havia quase pintura no rosto: um leve toque de batom, sua-
vemente, percorria e acentuava o vermelho dos lábios grossos, contor-
nando sua boca enérgica, que mal escondia os dentes salientes e fortes.
Pontos róseos, parecendo confetes vermelhos, espalhavam-se sobre a
pele lisa e sedosa.
Adamastor pôde sentir o perfume adocicado e o calor úmido que des-
prendiam do corpo quente e jovem de Rosária. Gotas cristalinas e belas,
preguiçosamente, escorriam de sua face avermelhada e desciam, fazendo
curvas, para, finalmente, caírem no colo branco, quase nu.
Ela, ao perceber o olhar de Dr. Adamastor, parou, por momentos, de
pular.
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No salão barulhento, ouviam-se o zum-zum das conversas, os gritos
histéricos, o arrastar cansado de bêbados cambaleantes e as vozes pro-
duzindo sons desafinados. A música, mal tocada pela orquestra do clube
decadente, se desorganizava e se desfazia no ar empoeirado.
A possibilidade de ter que dançar com ela, a princípio, o amedrontou:
“eu não sei dançar; meu corpo é duro...Vou arrumar uma desculpa. Pre-
ciso buscar uma saída, fazer outra coisa, caso ela decida ficar comigo”.
Entretanto estava encantado com seu belo porte, com sua desinibição.
Mas, ao mesmo tempo, tinha medo. Atacar ou fugir? Maldita dúvida!
Deu um passo para o lado, tentando se esconder inutilmente. Fugia da
luz que incidia, quase verticalmente, sobre ele, fugia do compromisso.
Em seu canto, amedrontado, pôde apreciar melhor o rosto de Rosária.
Ficou seduzido pelos seus olhos azuis. Ao fitá-los, enxergou, alucinado,
águas-marinhas, balançando no ar.
Ela, exuberante, vestia um “short” listrado de amarelo e preto, muito
curto e justo, que prendia as volumosas nádegas provocando movimen-
tos ritmados e engraçados: comprimido no “short” apertado; o bumbum
se agitava quando ela caminhava, dançava e pulava, de um lado para o
outro, como se quisesse escapar das listras. O peito de Rosária, quase
nu, estava coberto por um “topper” vermelho-sangue, da mesma cor dos
pontos coloridos, espalhados por sua face. Seu bojo tentava, sem resulta-
do, esconder os seios grandes e firmes. Os ombros largos e fortes, apesar
da juventude, já mostravam os primeiros e leves sinais de envelhecimen-
to.
Ele, nesse momento, iniciava, ao lado do balcão do bar, uma dança de-
sajeitada, sinalizando conquista. Para ele, era ela a moça mais linda que
encontrara. Seus longos cabelos castanho-claros, quase louros, mesmo
amassados de um lado, davam-lhe uma aparência de santa francesa.
Para a mente apaixonada e bêbada de Adamastor, tudo nela o atraía...ela
o encantava.
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Além dos olhos azuis, o que mais chamou a atenção de Adamastor
foram suas coxas grossas, roliças, perfumadas, brilhantes de suor e cre-
me. Uma fascinação súbita e violenta irrompeu em Adamastor, diante
daquela beleza quase divina. Ajudado pelo álcool, que liberou seus
impulsos e pensamentos mais íntimos, ele, que até aquele instante estava
indeciso acerca da moça ideal para se casar, agora passou a ter certe-
za: era aquela! Tinha certeza! Arrebatado, transformado e esbanjando
energia, ele renunciou à costumeira inibição e ao temor da intimidade.
Animado, despojando-se das amarras internas, investiu, vorazmente, em
direção à caça. O perfume de Rosária o transformou: passou, como num
passe de mágica, de apático a desinibido, de triste a alegre, de observa-
dor a folião engajado. Consumido pelo forte desejo, pulou bem à frente
dela. Fingia estar mais bêbado do que estava. Solto, começou a cantar a
marchinha que imaginava estar ouvindo, mas não conseguiu, apesar do
esforço, tornar-se entoado.
Naquele momento de êxtase, ele jamais poderia profetizar que aquele
corpo tão sedutor, aquela formosura e perfeição, um dia iria se transfor-
mar no que é agora: uma massa de carne mal-acondicionada em peles
caídas e cheias de dobras.
O carnaval não tem regras; tudo vale. O rapaz que dançava com ela
carregando, em uma das mãos, um copo de bebida amarelada e insípida,
largou a parceira, como fazendo parte do jogo. Era um jovem magro
e inibido, com uma passividade que contrastava com Rosária, muito
disposta e despertada pelo novo pretendente. Diante dos olhos bêbados,
semi-abertos do “pierrot” apaixonado, ela, automaticamente, olhou para
ele, curiosa e cantarolou a melodia tocada. Sem nada dizer ao rapaz
comprido e triste, largou-o, rebolando em direção ao novo folião.
Se ela não tivesse, naquele momento, tomado a iniciativa de ir atrás de
Dr. Adamastor, talvez, jamais, eles tivessem se encontrado pois, de sua
parte, o que tinha feito, já era um recorde: havia ultrapassado seus limi-
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tes.
Assentado na cadeira, tentando balançar para frente, mas quase caindo
para trás, ele recordava, emocionado, aquela cena.
No DCE, Dr. Adamastor, entusiasmado com a receptividade, imaginou
poder ir mais longe. Cauteloso por instinto, costume e mineirice, con-
tinuou, por certo tempo, olhando para o chão. Aos poucos, foi ficando
hipnotizado pelos grandes olhos azuis - naquela noite, mais azuis e
brilhantes ainda, olhos sensuais, de gazela espantada, no cio. Bêbado,
irrefletidamente, ele partiu para a aproximação. Ela olhava-o com suas
duas jóias incrustadas nas órbitas enormes, redondas... Ao balançar o
bumbum, em gingados lascivos, suas carnes tenras e exuberantes atraí-
am o desejo de todos os admiradores de mulheres cheias.
Despedaçado pela paixão alucinante, ele aproximou-se da moça, como
a frágil e pequena limalha é atraída e presa por um poderoso ímã. Ele,
como sapo hipnotizado, caminhou, sem perceber, para a boca da cobra
que iria assimilá-lo totalmente. Ele e ela, entrelaçados, a partir daquele
encontro, que podia não ter ocorrido, misturaram-se, formaram um só
e estranho nó. Ambos, a partir daquele momento, foram perdendo a
individualidade, começaram a enterrar a sonhada liberdade, que cada
um buscava.
A fuzarca do carnaval continuava barulhenta. Dr. Adamastor colocou,
com cuidado, suas mãos desajeitadas e pesadas na cintura de Rosária,
segurando-a, inicialmente, com delicadeza. À medida que o medo de
dançar diminuía, ele passou a pular pelo salão, enroscado à presa, agora
de cabeça erguida. Sorria sozinho, orgulhoso da conquista ou por ter
sido conquistado. De tempos em tempos, tirava do bolso um velho lenço
marrom, amarrotado e esgarçado, naquele momento, bastante umedeci-
do de suor. Passava-o na nuca, depois no pescoço, testa e cabeça; retirava
o líquido espesso que emergia dos poros de sua face. Após se enxugar e,
sem notar, passava sua grande língua nos lábios molhados do suor que
escorria e, em seguida, gentilmente, oferecia o lenço imundo a ela, que
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recusava a oferta. Sentia náuseas ao ver o lenço sujo, depois sendo guar-
dado, com cuidado, no bolso da camisa.
Enquanto segurava a cintura de Rosária, ele se lembrou por segundos,
da última namorada, arrumada, ali mesmo, no Diretório dos Estudantes,
por coincidência também num baile de carnaval. Rápido como os fins de
férias, esse namoro terminou melancolicamente.
Enquanto pulava no salão, ele continuava a pensar: “Agora, com essa,
tudo vai ser diferente...Ela parece ser tão inteligente, carinhosa, calma,
compreensiva e bondosa! Ainda mais com esses olhos!... Ela tem tudo
que desejo...”, concluía, entusiasmado com sua própria crença...”que sorte
a minha, encontrar uma pessoa tão encantadora”, imaginava.
A marchinha conhecida silenciou. Um samba desconhecido começou
a ser tocado e ele aproveitou a oportunidade para convidá-la a parar. O
que o preocupava era aonde iriam conversar: “Não posso oferecer-lhe a
pinga que trago no bolso...Não posso comprar nada, senão, ficarei sem
dinheiro para os outros compromissos. O que fazer?”
Enquanto Adamastor pensava o que fazer, ela o convidou para se assen-
tarem onde seus pais estavam. Ele se espantou: ”Assentar à mesa... beber
e comer... meu estômago já está pedindo alguma comida. Seria ótimo!
Mas, depois... quem irá pagar?”
Quase sem perceber, ele foi transportado à mesa onde estava a família
dela e pôde observar, atraído, a fartura ali existente: cerveja, uísque,
refrigerantes, empadinhas, coxinhas e pastéis, ainda fumegantes, tão
cheirosos como os omeletes feitos na república. Assentados, sorrindo,
lá estavam o bonachão e obeso pai, ladeado por um senhora cheia de
badulaques, maquiada exageradamente, pronta para posar para o retrato
de casamento. Ficou encantado com a visão da família, principalmente
com o cheiro da manteiga queimada com cebola dos pastéis de quei-
jo; um perfume que trescalava pelo salão. Os pastéis estavam ali, bem
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próximos dele, espalhados nos pratos, sedutores, que foram engolidos
mentalmente, antes dele ser apresentado aos pais de Rosária. Passou
novamente o lenço sujo no rosto, agora mais molhado, tornou a oferecê-
-lo, como de hábito, a ela. Com a mão gotejando suor, alisou os escassos
cabelos, ajeitou as calças que caíam e colocou a fralda da camisa para
dentro. Diante dos pais, naquele dia muito gentis, Adamastor pensou: “é
numa família dessa que gostaria de entrar. Gente boa. Que sorte! Ganhei
novos pais”
Receoso de ter que contribuir para as despesas finais, ele, evitou se
assentar. Para escapar do compromisso, afirmou que, como estava muito
quente no centro do salão, achava preferível ir para a varanda do clu-
be, para tomar um pouco de ar. Com as conversas de apresentação, os
pais de Rosária, por mais que ele olhasse para a mesa, com olhos de cão
faminto, não perceberam sua fome e esqueceram de lhe oferecer o que
mais o seduzia: os pastéis quentes. Esfomeado, antes de sair, ele não
resistiu à tentação.
- Exatamente...Ouviu? Certo? Não estou suportando ver essas coxinhas,
esses bolinhos, Adamastor custou a falar. Fazia rodeio para chegar ao
assunto principal, ao que mais o atraía. Evitava mostrar sua atração, a
gula e fraqueza diante dos pastéis; imaginava que isso não ficaria bem a
um engenheiro educado. Depois de um pequeno silêncio, retornou:
- Estes pastéis...Ouviu? Compreendeu?...Parecem estar deliciosos. Senti
o cheiro de longe... evidentemente. Permitam-me tirar um...
Ele gostava de pronunciar certas palavras, mesmo que nada tivessem a
ver com o que ele queria dizer, principalmente quando estava nervoso.
- Claro que sim...esqueci de te oferecer - respondeu o pai de Rosária,
educadamente, com voz de barítono embriagado. - Pode levar alguns
para vocês comerem... Pegue, neste guardanapo...
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- Você não sabe arrumar... Eu arrumo pra eles, disse num tom alto,
como dando uma ordem a ser obedecida, D. Gertrudes, a mãe de Ro-
sária, prosseguindo firmemente: - Os homens são muito desajeitados…
não sabem fazer nada!
Ele engoliu, ali mesmo, o primeiro pastel, que desceu pela garganta,
queimando-a. Farelos do salgado, bem como um fiapo de queijo ficaram
presos no seu bigode preto. Isso a levou a limpá-lo com rapidez, com
um guardanapo retirado da mesa, antes que ele usasse o lenço marrom
para retirar os resíduos que permaneceram em torno da boca. Engolido
o primeiro deles, o apetite de Adamastor aumentou ainda mais. Após ele
ter se afastado da mesa e atravessado o salão, segurava, radiante de ale-
gria, com uma das mãos, outro pastel quente, examinando-o com avidez
e atentamente o recheio, antes de cada bocada. Em seguida, oferecia o
pastel, já pela metade, a Ela.
Ele estava embriagado; devido à cachaça ingerida, em virtude do baru-
lho ensurdecedor vindo do salão, mas principalmente, pela paixão que
o corroía. Tudo isso somado impedia Dr. Adamastor de pensar com
clareza. Foi nesse ambiente confuso que se iniciou, na segunda-feira de
carnaval, o namoro, que durou para sempre, possivelmente com o arre-
pendimento de ambos.
As brigas foram a tônica da relação e só não aconteceram nos primeiros
dias de namoro. Com o tempo, logo após o casamento, elas foram au-
mentando em freqüência e intensidade, passando a constituir o padrão
normal da vida do casal.
Ainda no namoro, devido à grande atração, aumentou a intimidade
física dos namorados. O esperado aconteceu: Rosária ficou grávida.
Quando ela anunciou o fato, Adamastor ficou alegre e satisfeito, pois isso
apressaria o casamento. Era o que ele mais queria. A princípio, ficaram
em dúvida: contar ou não, apressar ou não a união definitiva?
Nem uma coisa, nem outra. Quem decidiu tudo, como era a norma,
foi D. Gertrudes. Envergonhada, ela elaborou um plano para resolver,
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o mais depressa e escondido possível, o fato nefasto. Não admitia casar
uma filha grávida. Isso seria uma afronta à Igreja e aos valores familia-
res. Além do mais, o tempo era pouco para preparar a cerimônia, con-
vites, bebidas e tudo o mais. A solução ordenada por D. Gertrudes foi
cumprida à risca. Clarimundo afirmou, diante de todo o drama:
- Em coisas de mulher eu não entro... Gertrudes sabe bem o que faz...
Conhece essas coisas mais do que eu...Não entendo disso. É ela quem
resolve.
Na casa de Rosária, quem dava ordens era a velha Gertrudes, alagoana,
convicta de sua macheza e que jamais levava desaforo para casa. Den-
tro de casa ou na rua, decidia suas desavenças aos berros, com ameaças
e, não muito raro, com pesadas agressões, que ela narrava depois para
todos, dando risadas e com grande orgulho:
- Mostrei, hoje, prá um barraqueiro o que é uma mulher-macho. Veio
me passar a perna: vender novecentos gramas de aipim, como se fos-
sem um quilo. Pesei noutra barraca; voltei lá e exigi o restante. Ele fingiu
não me ouvir. Joguei tudo na cara dele; xinguei e peguei meu dinheiro
de volta, com a ajuda de policiais. Pensa que sou boba? Ah! Ah!... 
A decisão de D. Gertrudes foi respeitada, sem ser discutida. Rosária foi
encarcerada durante sete meses, num convento em Maceió, onde sua tia
Genara, irmã de D. Gertrudes, era diretora. Lá, ficou até o nascimento
do filho, sem o conhecimento de amigos e familiares mais afastados.
Para todos, ela estava nos Estados Unidos, fazendo um curso de inglês,
morando com uma família americana. Os endereços não foram dados,
ou eram inventados, caso alguém perguntasse, querendo lhe escrever ou
telefonar.
Após o nascimento da criança, um menino, o médico, Dr. Paulo César,
obstetra de Maceió e amigo da família - o mesmo que fizera todos os
partos de D. Gertrudes - de comum acordo com ela, arrumou um casal
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sem filhos, parentes dele, em Maceió, para adotarem o filho de Rosária.
O bebê nem chegou a ser batizado, devido à pressa em resolver esse
terrível problema. Ninguém ficou sabendo a quem o recém-nascido foi
entregue. O que se soube foi que se tratava de uma boa família, de pos-
ses, na qual o menino, certamente, seria bem criado e educado. Recebi-
do como filho, o casal ficou felicíssimo e agradecido a Deus, por receber
essa dádiva vinda, certamente, do céu.
Dr. Adamastor, ameaçado por D. Gertrudes de terminar o namoro, foi
afastado das negociações a respeito da adoção e proibido de ver o filho
que nasceu. Essa proibição foi o castigo imposto por ela, pelo mal que
ele fizera à sua filha, moça recatada e de família. Ela, por sua vez, por
ter sucumbido à sedução do namorado, fora proibida de receber visitas,
exceção feita apenas para sua mãe.
Ele aceitou tudo resignado. No início, imaginou não resistir à ausên-
cia de sua amada. Pensou em visitá-la, mas desistiu. Entretanto, alguns
meses depois, a falta de Rosária e a diminuição da intimidade com seus
pais lhe permitiram perceber que a vida sem ela não era tão ruim como
pensara. Ficou sem seus carinhos, é certo; sem seus olhos azuis; sem
sua voz melodiosa. Em compensação, ficou livre dos seus insultos, seus
gritos estridentes, exigências infantis e ameaças de suicídio constantes
caso rompesse o namoro. Nos sete meses de afastamento, imaginou e fez
planos para acabar com tudo de vez. Entretanto, quando assim pensava,
percebia que não seria nada fácil cortar a relação, cheia de emoções, da
qual passara a sentir falta, inclusive, das brigas.
O namoro, que fora interrompido durante a gravidez, recomeçou após
o retorno de Rosária. Ela, ao voltar, estava mais gorda, mas, ainda muito
bonita. Sua pele, agora, apresentava uma tonalidade mais clara, que a
tornava um pouco diferente. A prisão parecia não ter feito bem a ela.
Após o primeiro encontro com Adamastor, com abraços e beijos demo-
rados, acompanhados de lágrimas e risos, os dois brigaram. Ela ficou
enciumada, ao notar que ele havia deixado o bigode crescer novamente.
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Anteriormente, ela o obrigara a raspá-lo. Bastou isso para ela imaginar
que ele havia mudado o visual, a pedido de alguma namorada, arranjada
durante seu confinamento.
Pouco antes de se casarem, os desencontros se tornaram mais freqüen-
tes. Esses fatos não foram suficientes para que eles desistissem de for-
mar uma família. Aprisionados, um ao outro, foram se acostumando às
discussões exaltadas, aos palavrões trocados, às agressões físicas recí-
procas e, assim, formaram uma estrutura de convivência, em que havia
muito mais desacordos que acordos, mais disputas que harmonia e mais
sofrimentos que prazeres.
Filho de peixe, peixinho é, diz o ditado, e assim aconteceu com Rosária.
A filha seguiu a mãe: decidia os problemas, desde o início do namoro,
na base do grito. Adamastor, aos poucos, adorando sua beleza santa, foi
envergando-se à sua braveza. A princípio, para evitar uma disputa maior
e com receio de perdê-la, depois, acostumado e sem forças, a seguia,
deixando o barco descer, desgovernado, a cachoeira desconhecida. Ele
não conseguia imaginar que, ele próprio pudesse ter mais discernimento
e dirigir sua embarcação para outro porto, menos perigoso.
Muitas vezes, eles se perguntavam o que foi buscado naquela união de-
vastadora. Sem respostas, em nome do amor, foram se adaptando às bri-
gas e ao sofrimento que um causava ao outro. Quando, ocasionalmente,
surgia um período de calmaria, por motivos inexplicáveis, alheios à von-
tade dos dois, um deles, prontamente, desafiava e agredia o outro e, no-
vamente, reiniciavam as desavenças. Com o retorno à estrutura-padrão,
brigas continuadas, conhecida de ambos - que eles compreendiam e com
as quais tinham aprendido a viver - eles navegavam satisfatoriamente.
Dr. Adamastor, antes de se casar, para ficar mais próximo de Rosária,
começou a trabalhar com o sogro, inicialmente, no depósito de material
de construções e depois, na edificação de pequenos prédios. Apesar das
desavenças constantes e continuadas, o casamento foi realizado, com
muita pompa, orquestra, garçons, presença de políticos e comerciantes.
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Clarimundo, sendo empresário na área de material de construção, con-
vidou todos os fregueses e amigos. Por outro lado, D. Gertrudes tinha
uma parentela enorme no Nordeste. Todos vieram para a grande festa.
Lucinho foi o último filho de Dr. Adamastor e Rosária, uma família que
teve um início de vida tumultuado, numa casa onde a desordem e o
sofrimento imperavam. Segundo consta, quando ela esperava Lucinho,
ele andou paquerando uma estagiária da firma de construção de Cla-
rimundo. Os boatos alcançaram os ouvidos de Rosária, que foi tomar
satisfação, no escritório do marido, com Silbene, que desmentiu tudo,
a princípio, com veemência; aos poucos, pressionada pelo tom de voz
e palavrões cada vez mais pesados de Rosária, cedeu e, praticamente,
confessou o crime. Há notícias de que ela teria tido um filho dele. A
partir dessa data, Silbene foi dispensada, vigiada, impedida de jamais se
aproximar de Adamastor.
Rosária, para punir seu marido, decidiu ficar sem ter relações sexuais
com ele, por uma temporada. De fato, usou a briga como pretexto para
ficar livre do que não gostava; nunca fora uma mulher entusiasmada por
contato sexual com homem algum. Tinha aversão pelo corpo masculino
e, mais ainda, pelos órgãos sexuais masculinos. Com respeito aos ho-
mens, ela seguiu a mãe, que não escondia o desencanto com eles, fossem
de qualquer espécie.
- Não tolero nem cheiro de homem. Homem tem cheiro de queijo ardi-
do, falava D. Gertrudes, dando boas gargalhadas, diante de Clarimundo
que, nesses momentos, abaixava a cabeça e ria sem graça.
Clarimundo, acostumado com a mulher, manhoso, já desistira de dis-
cutir com Gertrudes, há muito. Continuava a vida sexual, sem chamar
atenção de ninguém, com uma ou outra mulher que encontrasse, que
aceitasse suas cantadas melosas e demoradas. Geralmente, procurava as
mulheres pobres, incultas, sem ideais e planos. “Estas são fáceis”, assim
ele dizia, “não dão trabalho; não preciso gastar muito e nem de muita
conversa, que, de fato, não tenho”.
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O Incesto: Cega Obsessão
De tempos em tempos, Rosária adoecia mentalmente. Nessas ocasiões
seu humor oscilava, ora ficava desanimada e triste e ora alegre e anima-
da. Suas crises não só se tornavam mais freqüentes, como também, mais
graves. Numa fase ela se julgava bela, saudável e inteligente e, na outra,
imaginava-se feia, “burra”, envelhecida e próxima do fim.
Durante uma de suas crises de euforia ela comprou, de uma só vez,
dúzias de calcinhas, todas iguais; dezenas de livros de culinária e, ainda,
anéis e relógios variados, sem quaisquer objetivos. Bastava alguém
lhe oferecer - podia ser qualquer objeto - para que ela comprasse, sem
pensar. Emitia cheques, sem refletir, de sua conta conjunta com Dr.
Adamastor. Suas energias aumentavam espantosamente; ficava horas
conversando e, ao discutir um assunto, antes de terminar a idéia inicia-
da, passava a outra. Isso tornava sua fala, muitas vezes, impossível de ser
compreendida. Deitava-se tarde, levantava-se antes do dia amanhecer.
Ao sair da cama, ainda de madrugada, acendia as luzes da casa, lavava,
furiosamente, a cozinha, o banheiro e as roupas da casa, mesmo não
estando sujas. Arredava mesas e cadeiras, abria e batia portas e, com a
voz esganiçada, cantava alto Beijinho Doce, Chuá-Chuá, Paloma Triste;
suas canções preferidas. Ao pronunciar as palavras dos versos mais
românticos, usava um tom de voz meloso. Assim, ao cantar: “que beijin-
ho doce que ela tem, um abraço apertado, suspiro dobrado...”, na palavra
“suspiro”, suspirava demoradamente; em “beijinho”, contraía os lábios,
imitando o beijo dado. Esses trejeitos irritavam ainda mais os ouvintes
insones. Na área sexual, ela se transformava, de inibida e tímida, numa
mulher livre e promíscua. Olhava sedutoramente para os homens que
encontrava, exibia seus seios, antes escondidos, vestia roupas vermelhas,
pretas e amarelas; tudo que pudesse despertar a sexualidade. Quando
os impulsos aumentavam, ela agia como um animal, era guiada apenas
pelos instintos.
Dr. Adamastor, que tinha assistido a várias crises, acostumou-se com
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essas mudanças e com os hábitos extravagantes. Num mês de fevereiro,
uma nova crise de excitação, iniciada em meados de dezembro, alcançou
o cume.
Numa noite, após Dr. Adamastor chegar do trabalho, ele convidou-a
para assistir ao jornal, que ela era encarregada de gravar para ele.
- É...Certo...Ouviu?...Compreendeu?... Vamos ver o jornal.
- Ah... meu bem, esqueci...falou agitada e rindo, passando, as mãos nos
cabelos desarrumados.
- Como? Esqueceu? Ouviu? Naturalmente... Não é seu trabalho... Você
não faz nada, realmente; passa o dia falando. Parece que, hoje, você,
desde cedo, está com o falador aberto.
- Também, para quê? Uma chatura... Esse jornal não tem nada. São as
mesmas notícias... Você já conhece todas: desastres de pessoas descon-
hecidas; nunca é um nosso parente ou amigo, só uma vez aconteceu
isso; reuniões inúteis na Câmara; reclamações ao Procon e mais um
seqüestro...ela não parava de falar...
- Eu gosto...Ouviu? Exatamente...É o que você faz... Cada dia, você se
torna mais incapaz...
As alterações entre os dois foram aumentando, com xingamentos e pala-
vrões recíprocos. Como sempre acontecia nas brigas, ele foi expulso do
quarto do casal.
Uma forte tempestade caiu naquela noite, acompanhada de relâmpagos
e trovoadas - dos quais ela tinha pavor, principalmente, do barulho.
Durante as crises, o medo aumentava, ela só se acalmava junto a uma
companhia, qualquer que fosse, até mesmo um pequeno cão, servia para
protegê-la. Frustrado por não assistir ao noticiário da noite, irado com
Rosária, Dr. Adamastor, resmungando, pegou o pijama e foi dormir no
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quarto de hóspede. Nessa noite, no auge da agitação, ela arrebanhou
Lucinho, que tinha em torno de cinco anos, para lhe fazer companhia.
Lucinho dormiu logo após se deitar na cama do casal. Entretanto, foi
despertado pelo barulho da porta do quarto que se abrira, bem como
pelos passos duros e pesados da mãe. Ele abriu, preguiçosamente, os
olhos, examinando-a no escuro. Ela se aproximou e o fitou com ternura.
Passou as mãos brancas e lisas, nervosamente, sobre os cabelos do filho e
começou a observá-lo. Hesitava; não decidira o fazer. Caminhou, inqui-
eta, até o armário de medicamentos, procurando um comprimido para
dormir. Engoliu-o, com o auxílio de um pouco d’água que trouxera para
o quarto. Enquanto esperava o sono, começou a tirar as roupas, sem se
preocupar com o filho. Automaticamente calçou seus sapatos de salto
alto e caminhou nua, de um canto ao outro do quarto. Nesse instante
Lucinho abriu os olhos espantados, diante da cena inesperada. Rosária,
agitada, incapaz de se criticar, vestiu uma calcinha vermelha e, em
seguida, através de gestos cadenciados e libidinosos, colocou um sutiã
da mesma cor e estilo. Dirigiu-se até o criado-mudo e ligou o rádio de
cabeceira. Sons calmos de uma antiga canção italiana, “Cuore Ingrato”,
invadiram o quarto sinistro.
Ele, imóvel e espantado, observava o ritual ali iniciado. Criticado, con-
stantemente, por praticar más ações, sentia-se culpado de observar o que
via: sua mãe, de calcinha e sutiã, caminhando pelo quarto, sem objetivo
aparente. Era um espetáculo impossível de ser entendido.
Uma vez terminada a canção italiana, ouviram-se os sons belos e singe-
los de “Plaisir D’Amour”, uma suave canção de amor francesa, na qual
os prazeres do amor são descritos como efêmeros e as dores, eternas.
Encantada, envolvida pela melodia, fitou Lucinho com olhos acesos
e brilhantes; com inusitada volúpia. Ela se agitava. Dominada pelos
instintos, descontrolada ou, possivelmente, possuída pelo demônio,
maquinalmente, retirou, a calcinha vermelha, deixando o corpo coberto
apenas pelo sutiã vermelho, que protegia os grandes e já frouxos seios.
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Na penumbra do quarto, Rosária parecia dançar, como fazem as profis-
sionais de “striptease”, diante da platéia atenta. Examinou novamente o
filho: era uma presa fácil demais para ser devorada.
Uma fresta de luz medrosa e fria penetrava, com dificuldade, pela porta
semi-aberta do quarto, permitindo ver a cena desoladora e tétrica que
começava a ser representada naquela noite de tempestade. Lembrava
os espetáculos teatrais pobres das pequenas cidades do interior. Ela se
virou, na penumbra, pôs-se a examinar seu próprio corpo; olhava-o,
tocava-o, todo ele, na solidão da noite. A respiração foi se acelerando.
Com extremo cuidado e delicadeza, ela, após untar as mãos num creme
perfumado, deslizou as pontas dos dedos por todo o corpo, massagean-
do-se através de toques macios, lentos mas firmes.
Ele, assistia a tudo. Gelado e imóvel, fingia-se de morto. Não compreen-
dia o que se passava diante dos seus olhos amedrontados.
Rosária, mais uma vez, caminhou, afoita, até ao armário e de lá retirou
um vidro com um líquido leitoso e morno. Com seus olhos de felino,
parecia, observar o momento oportuno para avançar sobre a presa
distraída. De suas narinas saía um sopro quente. Assentou-se na cama e
untou novamente o corpo. Seus dedos agitados aumentavam a força e o
ritmo das massagens. Seu corpo aquecia, queimava. Inebriada, ela não
mais avaliava as conseqüências de suas ações libertinas, atos que, fora da
crise de euforia, ela seria a primeira a criticar com veemência e asco.
Encantada consigo, observando cada pequeno órgão - sinal ou vestígio
de sexualidade - com curiosidade e interesse, ia se friccionando, a cada
momento, com mais vigor.
De tempos em tempos, virava o rosto excitado em direção ao filho,
inerte e desarmado. Lucinho, cada vez mais cheio de culpa, segurava,
como podia, a respiração, ao participar, estupefato, sem o desejar, do
desatino da mãe.
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Após alguns minutos, a respiração barulhenta de Rosária tornou-se
mais profunda, sincronizada com os movimentos das mãos e dedos;
seus músculos enrijeceram. Dominada pela loucura, sem controlar
suas ações, girou o corpo em direção ao filho. Possessa, deitou-se, com
seu corpo grosseiro e imenso, sobre o delicado organismo do filho e o
abraçou fortemente.
Seus grandes seios, umedecidos pelo líquido leitoso e pelo suor que
nascia de seus poros, saíram do pequeno sutiã vermelho, espalharam-
se sobre o rosto do garoto, quase impedindo-o de respirar, deixando-o,
ainda, mais assustado e paralisado. Sufocado, ele escutava a respiração
ofegante de sua mãe, os gemidos retidos e profundos, os sons vindos
do seu agitado coração. Após alguns instantes, participou da convulsão
muscular que irrompeu em todo o corpo de Rosária.
Lucinho, perplexo, teve vontade de chorar, entretanto, ao mesmo tempo,
imaginou poder estar recebendo um carinho desconhecido, diferente
dos usuais; um abraço jamais experimentado. Lembrava que sua mãe, só
raramente, transmitia-lhe afetos. Imobilizado, ficou em dúvida se deve-
ria ou não corresponder àquela afeição ou, no mínimo, aceitá-la, mesmo
sendo um sinal de amor incompreensível. Assim raciocinando ele
resistiu ao impulso de gritar e continuou paralisado, como um animal
pequeno e fraco, diante do inimigo grande e poderoso, da ameaça im-
possível de escapar.
Esmagado sob ela, refletia acerca daquela conduta, estranhamente afetu-
osa, naquela hora da noite. “Por que tudo aquilo: a nudez, o creme, a
música, o vestir e despir da calcinha, os movimentos de mãos que ele ja-
mais presenciara? O que isso significaria? O que teria feito para merecer,
naquele dia, tanto empenho de sua mãe, sem receber xingamentos, nem
nada ser exigido?”
Até então, as relações com sua mãe tinham sido admoestações, maltra-
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tos; jamais afagos.
Os espasmos corporais se extinguiram; a respiração se normalizou e o
coração passou a bater mais ritmado. Por fim, a razão retornou. Ao olhar
para o filho, pôde observar que ele tinha os olhos abertos e espantados.
Desorientada, afastou-se rapidamente de seu corpo e, pigarreando,
quase sem voz, perguntou-lhe, aflita:
- Acordou, filhinho?
Ele tornou a fechar os olhos, mas logo os abriu. Observou sua mãe,
certo de que iria receber um castigo. Imaginou ter cometido algum erro
grave, não sabia qual. Ela, assustada, afastou-se ainda mais. Mais serena
e racional, culpada e envergonhada, começou a soluçar. Ao se levantar,
caminhou pelo quarto escuro e abafado, vigiada pelos olhos aflitos do
filho e, só minutos depois, lembrou-se de que estava nua. Procurou,
apressada e desajeitadamente, suas roupas, custando a encontrá-las, uma
vez que, por instantes, desapareceram no quarto desmazelado.
Vestiu, na pressa, a calcinha pelo avesso, ajeitou, de qualquer modo, o
sutiã; colocou, por cima de tudo, o “pegnoir” de veludo vermelho lam-
buzado de cremes e, chorando, deitou-se, com cuidado, ao lado do filho.
Minutos depois, começou a abraçá-lo, num misto de atração e aversão.
Chorando e excitada, beijou-lhe o rosto, passando as mãos, ainda un-
tadas, sobre seus pequenos olhos. Tentava, automática e inutilmente,
fechá-los, pois era intolerável fitá-los. Sabia que estava sendo examinada
por aquela mente indagadora: “Estaria sendo criticada? O que ele estaria
pensando naquele instante? Compreendia aquela ação vil, executada
num momento de desespero?” Ela, angustiada, se perguntava...
A tempestade, aos poucos, foi cessando, um vento fresco soprou.
Rosária imaginou se enforcar; sair daquela casa, para sempre; desa-
parecer. Gemendo e orando, ela permaneceu enrolada no corpo do filho,
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mesmo após Lucinho ter adormecido profundamente. Nas suas orações,
pedia perdão a ele e a Deus, implorava uma solução divina para seu
pecado. Julgava-se perdida.
Na manhã seguinte, ele acordou, com a mãe desperta a seu lado. Ela,
com os olhos empapuçados, continuava a lhe pedir, insistentemente,
desculpas, por tê-lo assustado, na noite anterior. Rogo-lhe, ainda, que,
aquele momento vivido por ambos, fosse um segredo entre eles.
Mas esses encontros, ao contrário do imaginado, desejado e prometido,
não terminariam naquela noite. Durante outros períodos de loucura, as
mesmas cenas se repetiram, com o esquecimento completo das promes-
sas e boas intenções do passado. Preparado o ambiente, agora mais
racional, ela já não se preocupava com o espanto do filho. Tudo já era
conhecido.
O hábito sempre fez as pessoas suportarem e até apoiarem os costumes
mais abomináveis e indignos.
A partir da primeira experiência, Lucinho foi se acostumando com os
abraços e os carinhos da madrugada. Às vezes, quando os intervalos
entre os encontros cresciam e sua mãe, calada e triste, passava semanas
sem chamá-lo para o quarto, ele perguntava-lhe quando iria dormir no
seu quarto. Ela disfarçava, pigarreava, fingia não o ouvir. Sua pele branca
tornava-se cheia de pontos avermelhados e lágrimas envergonhadas
umedeciam seus olhos azuis.
Com o passar do tempo, o prazer da novidade foi diminuindo. Ela
chegava sorridente e agitada; Lucinho esperava o início do conhecido
espetáculo. Deitado, sem se mexer, ele permanecia estendido, como um
defunto à espera de urna funerária e da hora de ser enterrado.
Numa tarde, durante suas crises de euforia, ele, ao sair com sua mãe
para fazer compras, foi obrigado a esperá-la numa lanchonete, ao lado
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do edifício onde entrara. Para diminuir sua angústia, ela lhe ofereceu um
sorvete de creme, recheado com morangos.
O acompanhante de sua mãe, naquele dia, era o pintor de paredes, o
mesmo que minutos antes, esteve trabalhando em sua casa.
A espera foi longa e cansativa. Por mais de uma hora, Lucinho ficou sem
o que fazer. Na saída, sua mãe ordenou-lhe, como sempre, nada dizer
acerca do passeio. Devia contar, caso seu pai perguntasse, que estavam
fazendo compras. Agora mais crescido, pôde notar que sua mãe, junto
ao pintor, ficava diferente do que era em casa: o semblante, o tom de voz
se transformava. Ela se tornava gentil e risonha. Ao se despedir do pin-
tor, ela o abraçou carinhosamente. Ele lhe deu um tapinha no traseiro.
Ela, em lugar de brigar, deu boas gargalhadas.
Aborrecido com o que viu, mas ainda sem decifrar seu significado, ele
resolveu não mais sair com sua mãe e também, não mais dormir no
quarto dela.
Os tempos passaram. Rosária se transformou mais uma vez. Agora
ficou triste e calada. Passava a maior parte do dia deitada no quarto
fechado, não tirava a velha camisola branca e nem tomava banho,
respondia somente ao que lhe era perguntado e queixava-se de tudo,
principalmente, de doenças. Com voz fraca, quase inaudível, murmu-
rava: “É preferível morrer a viver assim; não tenho vontade, nem prazer
com nada. Para mim, o fim seria um descanso, uma bênção do céu”. Os
familiares, acostumados às mudanças, não estranhavam quando uma
ou outra personagem da mesma atriz, entrava em cena. Como eram
diferentes! Os amantes da fase de euforia, não tão próximos dela, não
entendiam a metamorfose, o afastamento repentino e “sem motivos”. O
pintor acostumado a sair com ela, ao voltar a pintar a casa, aproximou-
se, seguro de sua concordância e tentou marcar um encontro, entretanto,
foi duramente afastado por ela:
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- Como? Eu? Você está louco. Não quero saber de homem; já basta o
que tenho. Detesto fazer sexo. Quer saber? Detesto você. Tenho nojo de
tudo, não sei onde estava com a cabeça ao ir com você, naquele lugar.
Nunca mais me fale nisso...Suma; saia da minha frente, depravado!
O que nunca mudava era seu gênio irascível. Numa ou noutra crise,
alegre ou triste, calada ou falante, ela sempre estava nervosa com tudo.
Bastava acontecer alguma coisa que a desagradasse, algo que ela não
desejasse.
Mas Rosária tinha seus momentos positivos. Nos momentos de lucidez,
preocupava-se com a casa, com Dr. Adamastor e com sua conduta em
relação a Lucinho e com o mal que causara ao filho. Para compensar o
sentimento de culpa, ela se dedicou mais a ele, deu-lhe mais carinhos e
presentes. Entretanto, essa estratégia pouco funcionou. Ele estava, cada
vez mais convencido, que sua mãe fazia algo errado, que não podia ser
comentado.
Ele demorou a entender o espetáculo do qual participara e que se iniciou
naquela noite escura de fevereiro. Mais crescido, ao conversar com os
companheiros, concluiu que o acontecido, não tinha ocorrido com eles.
Quando decifrou com clareza o significado do evento, desesperou-se.
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Na Serena Manhã de Domingo
Numa manhã quente e abafada de novembro, pouco depois do sol mos-
trar os primeiros clarões avermelhados, por cima das montanhas azula-
das que contornam Belo Horizonte, Rosária, acompanhada dos filhos,
foi à casa de sua mãe, cumprir uma obrigação familiar: as enfadonhas
visitas domingueiras.
D. Gertrudes e o marido Clarimundo moravam numa casa do bairro
dos Funcionários, na zona sul da cidade. Um imenso portão de ferro
ficava logo na entrada da casa. Era nele que as crianças menores subiam
para girá-lo, abrindo e fechando, até que um adulto viesse acabar com
o divertimento proibido. A casa, comprada por Clarimundo quando
suas rendas aumentaram, situava-se no bairro chique da cidade. Era ali
onde moravam as famílias de maior poder aquisitivo ou possuidoras de
“status” profissional mais elevado.
Para entrar na porta principal da casa era preciso descer uma escada
de três degraus, forrada pelos mesmos ladrilhos encardidos, imitando
âncoras pretas, existentes no chão do alpendre. Duas cadeiras e um sofá
simples, de ferro batido, com assento e almofadas de veludo marrom,
adornavam o comprido alpendre cercado por grades, formando desen-
hos sinuosos. Em cima das grades de ferro, assentava-se uma peça de
madeira roliça escura, já gasta.
Uma porta de madeira larga e alta, talhada com figuras geométricas,
separava o alpendre da sala de visitas. Dentro da casa quase não entrava
a luz do sol. A sala era iluminada por oito pequenas lâmpadas que saíam
horizontalmente dos bocais de um velho lustre empoeirado de vidro
amarelo, pendurado no centro do teto. O brilho fosco das lâmpadas era
refletido no forro branco de madeira pintada a óleo.
Um cheiro de cera exalava-se do assoalho brilhante de peroba vermelho-
escura. No centro da sala uma mesa redonda, coberta por uma toalha de
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linho branco engomada, rodeada por seis cadeiras altas, tudo em jaca-
randá.
O silêncio da casa, seu mobiliário, a quantidade de madeira e ferro,
transmitia ao visitante, uma sensação de estar entrando num museu
ou numa igreja; num local apropriado para se fazer preces e escapar do
mundo barulhento e confuso.
Contrastando com a apatia e a velhice do interior da casa, lá fora, o que
se via era a vida florescendo. Do lado direito: roseiras vermelhas, orgul-
hosas de sua vitalidade e beleza, um pouco adiante rosas brancas e am-
arelas, indiferentes às agressões das margaridas atrevidas, violetas tristes
tentavam se espichar para alcançar as roseiras, crisântemos exalando
perfume completavam o jardim. Insetos, dourados pelo sol, começavam
seu aquecimento e busca do alimento.
No fundo do terreno, erguiam-se pés de mamão. Ao lado, jabuticabei-
ras deixavam cair, no solo, milhares de jabuticabas que ali apodreciam.
Goiabeiras ainda novas começavam a mostrar as flores brancas. No ar
exalava-se um perfume adocicado que era disputado pelas abelhas e
beija-flores em busca do néctar daquele paraíso. Isolada e desapontada,
uma tamareira estagnava. Plantada pelo antigo dono, jamais dera um
fruto, apesar dos desejos e cuidados dos proprietários, todos encantados
com sua imponência.
Num canto, cercadas por telas de arame, galinhas, barulhentas e agita-
das, ciscavam à procura de algum resto de canjiquinha ou, caso tivessem
mais sorte, de abocanhar uma desvalida minhoca, que ousasse atraves-
sar aquele lugar proibido. Através de uma pequena porta de tela, todos
os dias D. Gertrudes ali entrava para colher ovos frescos. As galinhas se
bicavam, sob os olhares severos de um único galo, com grandes cristas e
barbelas vermelhas, orgulhoso do papel desempenhado.
Ao lado do galinheiro, nos canteiros estreitos, acima do nível do solo,
cobertos por terra escura e úmida, pés de alface verdes e viçosos, couve,
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cebolinha, salsa e taioba. Uma mangueira enorme, situada na divisa do
quintal, mostrava as frutas ainda pequenas e verdes, prometendo, para o
fim do ano, milhares de mangas grandes, cheirosas e avermelhadas, infe-
lizmente, não tão saborosas quanto sua beleza e perfume. Embaixo dessa
frondosa árvore, um banco de madeira pintado de cinzento, ao seu lado
uma rede com listras pretas e vermelhas, entre a mangueira e o muro,
esperava algum corpo cansado.
Era nesse recanto que a família de D. Gertrudes se reunia todos os do-
mingos em torno, principalmente, dela.
Os irmãos foram chamados para dentro de casa, para participar de um
jogo de dados, comprado para distrair os netos. Lucinho, cansado do
jogo, saiu para o terreiro, com a prima Isaura, de sua idade, que havia
dormido, aquela noite, com a avó. Os dois, após ter visitado o galinheiro,
balançavam-se no portão de entrada, quando ninguém os via.
No fundo da casa, ao lado do galinheiro, algumas pedras haviam sido
abandonadas desde o tempo em que a casa fora construída. Esse era o
lugar preferido pelas crianças que ali brincavam. Bastava levantar uma
das achatadas e esbranquiçadas pedras, principalmente, nos meses
de outubro e novembro, para que de lá saíssem escorpiões, grandes e
pequenos, todos andando apressados, com os ferrões levantados e pron-
tos para dar a terrível picada.
Lucinho e a prima, divertiam-se com os perigosos e atraentes bichinhos.
Naquele domingo preguiçoso, debaixo da mangueira, D. Gertrudes,
assentada no banco cinzento e Rosária, deitada na rede, esperavam a
chegada do resto da família. Possuidoras de temperamentos semelhan-
tes, procuravam inquietas e inutilmente, por um assunto que não vinha:
- A vida hoje em dia tá muito difícil, falou Rosária, sem grande entu-
siasmo, tentando iniciar a conversa, mesmo sabendo que este papo não
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lhe interessava e, nem mesmo, à mãe.
- Você tem razão minha filha, hoje tá tudo mudado, o mundo não é mais
o mesmo... resmungou D. Gertrudes, bocejando. Ninguém quer nada
com o serviço... com a dureza... Antigamente, as empregadas trabal-
havam até doze horas por dia. Levantavam ainda antes do sol nascer...
Eram dedicadas à patroa, gostavam da gente e, no entanto, ganhavam
menos do que agora e, além disso, quase não roubavam... Olhe a sujeira
no quintal. Elas não ligam prá nada... Deixam tudo por nossa conta...
Nesse instante, D. Gertrudes se vira e aponta para algumas folhas caídas,
contraindo a face enrugada e empurrando os lábios para frente, para
indicar seu asco e desprezo pelas subalternas.
- É mesmo... a senhora tem razão, balbuciou cansada Rosária, sem pre-
star muita atenção ao que foi dito nem às expressões de sua mãe. Esse
ano essa jabuticabeira deu tão pouco... Antes dava muito mais. Eram
mais doces, saborosas, maiores...
- Não foi tão pouco, um pouco menos do que no ano passado...Você
não veio aqui...deu até muita...Também, o tempo...Choveu menos esse
ano, no mês de setembro, quando elas florescem...Mas, olhe o chão...Está
cheio de jabuticabas que caíram. Dá uma pena, tudo apodrecido. Falam
que é porque as árvores estão sendo cortadas. É o progresso, chove
menos... Não sei para onde estamos caminhando. Tenho saudades de
antigamente, de Maceió, do tempo de criança.
- É, suspirou...ando exausta... resmungou Rosária, olhando para o chão,
junto ao pé de jabuticabas. Não sei por que já acordo assim, cheia de
dores. Hoje mesmo, levantei com uma dor aqui na perna!...Não sei o que
é... Acho que são varizes. Tenho muito medo delas... Dizem que podem
dar derrame. Não queria ter filhos; engordei tanto... minha barriga au-
mentou, está cheia de estrias. Coisa ruim é velhice...
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- Por quê?
D. Gertrudes muda o tom de voz baixo e aborrecido, elevando-o, para
fingir interesse e simpatia pelo que foi dito: - Você é tão nova...Como
está sua vida com Adamastor?
- A gente vai vivendo, ele não é mau, trabalha muito, ganha bem, mas...
- Todo casamento é igual, as mulheres sofrem muito nas mãos dos
homens... Isso eu sei... resmungou D. Gertrudes; - Minha mãe já falava
o mesmo, ela também nunca viveu bem com meu pai... Você assistiu
ao programa... Como é mesmo o nome?... Aquele de debates...Eu gosto
muito dele... À tarde, quando não tenho o que fazer - e agora é quase
todos os dias - eu assisto...
- Eu também não perco... A gente fica tão bem informada...Tem muita
gente boa que vai lá. Outro dia, foi um psiquiatra, o Dr. Marcondes, eu
acho... comentou Rosária.
- Eu assisti. Falou sobre “sexo e casamento”, não foi? Exclamou mais
animada Gertrudes.
- Acho que sim. Não guardei bem o que falou; mas ele fala muito bem,
todo mundo sabe disso, além do mais, é um bonitão, alegre e falante,
com um homem assim é que eu gostaria de ter me casado. Já assisti out-
ros programas em que ele apareceu...
- Fala mesmo, mas tem umas idéias esquisitas... Não concordo com
elas... Não gosto dessas novidades de sexo...Fechou a cara D. Gertrudes
enquanto falava.
- Seria bom se ele morasse em Belo Horizonte, iria consultar-me com
ele.
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- Vá a São Paulo...Consulte lá...Os melhores médicos vão para São Paulo.
Mas, consultar pra quê? Perguntou assustada D. Gertrudes.
- Uns problemas que tenho, nada sério... Rosária evitou falar.
- Todos nós temos problemas. Que problema é pior do que ter que
mexer com essa gentinha, cada uma pior e mais safada do que a outra?
E mais ainda: ter que abraçar um homem quando a gente quer é dormir.
Que saudade de minha mãe, suspira D. Gertrudes...Para que consultar
com psiquiatra?
- Certas coisas... É... com relação a Lucinho. Coisa à toa... bobagens,
bobagens...Depois, eu te conto, continuou Rosária, evitando se expor e
desinteressada.
- Eu também tenho problemas com respeito ao seu pai. Minhas preocu-
pações não são apenas com as empregadas. Cuidar da casa dá trabalho:
verificar se a comida está bem feita, se a roupa foi bem lavada e pas-
sada. O pior é vigiar. Temos que vigiar sempre. Outro dia, uma camisa
nova de Clarimundo, ele tinha vestido poucas vezes, foi queimada, ficou
imprestável. Dá uma pena! E o ruim, você nem imagina... ela nada falou.
Eta gente à-toa. Ela colocou a camisa na gaveta, como se estivesse boa
para vestir. Ele é um bocó. Vestiu a camisa furada e nem notou. Imag-
ine só... ir trabalhar assim! Por pouco, saía com ela. Que vergonha! Não
gosto nem de pensar... Seu pai já não é mais o mesmo homem... nunca
foi lá grandes coisas, agora está um caco. Não serve pra nada. Você com-
preende o que quero dizer, não é? De certo modo até gosto.
- É sempre assim... Também, não sei em que um psiquiatra poderia
ajudar... continuou a falar sem prestar atenção nos comentários de sua
mãe...
- Aqui em Belo Horizonte tem médicos bons. Por que não procura um
deles? Muitos têm aparelhos para examinar as pessoas, alguns desses
vêem ou descobrem...não sei bem... me falaram... até o que nós pensa-
mos. Por meio de uns risquinhos no papel, os médicos descobrem como
está dentro da nossa cabeça. Deus me livre disso. Nunca irei fazer esses
exames... Completou assustada D. Gertrudes.
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- É... já me falaram acerca de um deles... um que só trata dessas coisas...
- Que coisas? Perguntou mais espantada e atenta, D. Gertrudes.
- Nada. Nada. Coisas que passam pela minha cabeça.
- Fale com sua mãe, eu saberei ajudá-la...quem sabe? Sua mãe sempre foi
sua amiga. Mãe só deseja o bem; quem mais pode ajudar um filho?
- Concordo, toda mãe gosta do filho...Depois... uma hora eu te conto...
hoje não! Não é um bom dia para isso, é uma conversa longa...comentou
Rosária.
- Tá bem, lamentou D. Gertrudes, desinteressada mas, ao mesmo tempo,
satisfeita em não ter que ouvir uma possível e longa história. - Que pas-
sarinho bonito, aquele azulado!... todas as manhãs fico horas ouvindo
seu canto... Olhe lá em cima da mangueira, no alto... Ele gosta de ficar
escondido nos galhos mais altos. Bom para ele...
- Qual? Não estou vendo. Estou vendo um beija-flor.
- Não... ali, na mangueira. Ah! Agora foi para a goiabeira. Acho que ele
tem um ninho por aqui.
- Você se lembra daquele canarinho amarelo que papai me deu? pergun-
tou Rosária. E lamentou, sem esperar pela resposta: - Era tão bonito!...
- Lembro. Até para dormir, você o levava para o quarto, para lhe fazer
companhia.
- O que foi feito dele? Não me lembro...
- Fugiu, um dia. O arame da gaiola era largo demais para seu tamanho.
Ainda ficou por uns dias, no quintal...
- Não! Lembrei-me. Ele foi dado para Alfredo. Eu até chorei muito.
Agora me lembro... resmungou Rosária.
- Você está enganada. Falou firme D. Gertrudes. - Para o Alfredo foi
dado o poodle, que você tinha e que sujava tudo.
- É... Não sei... Hoje está tão quente...Não é? Mudou de assunto Rosária.
- Ninguém chegou ainda!...comentou D. Gertrudes, - Sua irmã sempre
foi preguiçosa, levanta tarde...
- Que horas são? Estou sem relógio. Não gosto da pulseira me apertando
o braço, dá uma impressão de prisão. Gosto de ficar livre... disse Rosária
bocejando.
- Eu também estou sem o meu. Deve ser umas onze horas.
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- Isso tudo? Por isso mesmo é que já estou começando a ficar com fome.
- Quer comer alguma coisa? Há leite e frutas na geladeira, convidou D.
Gertrudes.
A conversa se prolongou por mais de uma hora nesse tom. Mudavam,
ora para um assunto, ora para outro, sempre se arrastando com dificul-
dade e nunca chegando a lugar algum. As duas tinham consciência
de que não havia entre elas, como nunca houve, uma intimidade, que
diziam existir; por certo, nunca mesmo, a tenham desejado. Mãe e filha
falavam por falar, pela vergonha de estarem, frente à frente, sem terem
nada que dizer. Buscavam assuntos mas eles se esvaziavam rapidamente.
- Por falar em comida, continuou Rosária, você leu ontem o jornal?
- Não. Não leio o jornal todos os dias. Pego e olho apenas os filmes que
vão passar na televisão. Sabe, uma coisa que me atrai são os classificados.
Gosto de ver as ofertas, tem muita coisa boa e barata...
- Também vejo, outro dia comprei esse sapato que estou usando, baratís-
simo. Mas tem também muita porcaria nas liquidações... contou Rosária.
- Se tem!
- A gente precisa ficar bem informada. Gosto muito da página policial.
Nesse instante Rosária se levanta da rede e pega o jornal de domingo
que está em cima do banco...
- Olhe aqui, algumas notícias de que gosto de ler, pois me divertem:
“Mulher mata marido a machadadas”.
- Eu, às vezes, leio também essas notícias. A gente pensa: “Ainda bem
que não foi comigo”. Elas nos distraem. O que mais a gente quer nessa
idade? gemeu D. Gertrudes dando um sorriso dúbio.
- Mas existem notícias que eu gostaria que acontecessem comigo: “Gan-
hou sozinho o prêmio da Loteria Esportiva”. É o que mais sonho. Assim
poderia comprar tudo o que desejasse sem ter que pedir dinheiro àquele
pão-duro.
- Ele te dá o que você deseja! completou D. Gertrudes.
- Sim. Mas tenho que fazer várias coisas para agradá-lo e não gosto...
A conversa continuava, às vezes quase parava, como um velho camin-
hão, soltando vapor pelo radiador, pesado e cansado, subindo uma
ladeira devagar, falhando freqüentemente. A todo o momento, surgiam
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perguntas acerca das horas.
- Deve ser onze e meia, ou mais. Marilda até agora não chegou. Gosto
muito de conversar com ela, não com o Artur, ele é um “chato”!
- Quando vocês eram mocinhas..., Oh! Que tormento era para ela sair da
cama para ir ao colégio. Você também era preguiçosa. Hoje, um pouco
menos...
- Eu não sou boba. Para que ficar trabalhando o dia todo? Para depois
morrer? “Do mundo nada se leva”. Quero ter uma vida boa.
De repente, Isaura chegou aos berros, até à avó.
- Ele me mordeu! Ele me mordeu!
- O que foi minha filha? perguntou a avó, preocupada.
Mas D. Gertrudes, bem como Rosária, apesar de apreensivas com os
gritos da menina, não deixaram de ficar satisfeitas. A partir da mordida
e do pedido de socorro, elas seriam forçadas a tomar uma decisão, a
agir: deixariam de lado a conversa aborrecida, que já estava se tornando
insuportável. Antes, sem direção, agora, a partir do grito, sabiam o que
deveriam fazer.
Rosária olhou para a sobrinha e constatou que o braço dela estava
realmente marcado por ferimentos de dentes. Lucinho, que a acompan-
hava, sabia que seria repreendido. Quase sem falar, como era seu hábito,
diante da mãe e da avó, balançou a cabeça, sinalizando que não fora ele
o causador da lesão. Mas não havia dúvida. Ele era o agressor. O garoto
foi duramente xingado por sua mãe, diante da avó, para alegria das duas.
Desse modo elas aliviaram suas tensões. Ele encarnou, como era co-
mum, a culpa do mal-estar crônico.
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Um Dia de Cão
Ele, na escola, foi transferido de uma sala a outra, a procura de uma pro-
fessora ideal para o ajudar a combater a distração e desmotivação. Saiu
da sala de D. Edina e foi para a de D. Maria de Lourdes, desta foi para
a sala de D. Francisca. Ele era inteligente e estudioso nas matérias de
que gostava; mas revoltava-se sempre, contra a rígida disciplina escolar,
principalmente após ter sido transferido para essa nova professora.
D. Francisca era gorda como um barril, baixa, morena de cabelos muito
pretos. Tinha os olhos escuros, miúdos, rodeados por olheiras roxas.
No centro da face, nascia um nariz fino e pequeno para seu rosto arre-
dondado e grande. Lembrava os desenhos infantis, representando a lua
cheia. A pele do rosto era vermelha-escura, como a dos índios. Durante
as aulas, caminhava de um lado a outro da sala, falando alto. Parecia
estar repreendendo alguém, mesmo quando explicava um texto poético,
ou fazia pilhérias...Nunca sorria.
Os alunos, aos pares, nas estreitas carteiras, encolhiam-se espantados
diante de sua figura autoritária. Apesar da baixa estatura, D. Francisca
era percebida, aos olhinhos amedrontados dos alunos, como um gigante
perigoso, pronto para feri-los. Era para ela que os maus alunos, bagun-
ceiros, agressivos e desatentos eram enviados, como punição. Cabia a
ela transformá-los em cordeiros bem comportados. Jamais um aluno
enfrentou essa professora temida. Ele, como a maioria, ali estava para ser
domesticado, por não se adaptar a certos companheiros e por não acatar
ordens, para ele injustas.
Naquele início de tarde de segunda-feira, quando os alunos parecem
estar cansados desde o começo da aula, D. Francisca ordenou a Lucinho,
asperamente como sempre, que recitasse o “Pai-Nosso”. A oração tinha
por finalidade agradecer a Deus pela semana que passou, sem desgraças
e pedir para que o pior dia da semana corresse em paz.
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Ele, após relutar por instantes, caminhou amedrontado para a frente
da turma. Apesar do nervosismo, começou a rezar até bem. Num certo
momento atrapalhou-se e interrompeu por segundos a oração. Fez-se
um silêncio, só quebrado quando ele recomeçou. Um calor invadiu o seu
corpo. Diante dos olhares fixos e apreensivos dos colegas, ele se pertur-
bou mais ainda. A partir desse instante não conseguiu prestar atenção
à oração declamada. Em lugar de dizer, “ vosso nome”, falou “nosso
nome”. Bastou essa pequena falha para que a professora começasse a
gritar, quase encostando a boca no rosto de Lucinho, permitindo-lhe
sentir o hálito quente e nauseabundo que saía de sua garganta junto com
perdigotos amargos. Cada vez mais abafado, Lucinho começou a ficar
tonto. Enquanto ele encolhia, D. Francisca parecia crescer.
- Mais depressa, molenga! Mais depressa! Fale corretamente. Comece de
novo...Comece de novo! Mais depressa! Você não termina nunca! Ainda
erra! Ande! Depressa! Preciso começar a aula.
O modo de ela falar imitava o som dos discos estragados e rachados,
que têm a agulha agarrada num lugar, repetindo a mesma letra e melo-
dia. Ela parava por instantes e retornava com os gritos, nos ouvidos de
Lucinho:
- Parece um bicho-preguiça! Molenga!
O pavor continuava entre os alunos que mantinham a tensão reprimida.
Os sons foram ficando distantes, Lucinho, antes vermelho, tornou-se
pálido; não mais conseguia raciocinar. Parou por instantes. Tomou novo
impulso e prosseguiu, balbuciando perdido: - “Pai-Nosso...Pai-Nosso...”
Não foi além disso. Os colegas gargalharam, liberando a ansiedade. D.
Francisca o olhava agressiva, desanimada. Ele não se concentrava em
nada. A ira dela aumentou.
- Você rezando assim, vai para o inferno! Não sabe nada! Palerma! Fica
só no “Pai nosso, Pai nosso”... Parece um idiota.
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A face de Lucinho, cada vez mais pálida, estampava uma mistura de
medo e ódio. Pensou em avançar no pescoço curto da professora, que
sustentava sua horrorosa cabeça redonda. Faltaram-lhe força e cor-
agem para tanto. Em dúvida, diante da idéia de atacar ou fugir, prestes a
desmaiar, quase vomitando, amoleceu quando foi amparado por dois co-
legas e levado até à pequena enfermaria da escola. Ali, foi prontamente
atendido por uma simpática e bondosa enfermeira, que lhe passou as
mãos macias e sedosas sobre o rosto esverdeado. Em seguida, ela lhe deu
um copo d’água com açúcar, pedindo-lhe, com a voz mais doce do que o
açúcar ingerido, para que ele se recostasse num divã e descansasse, por
uns minutos. Em pouco tempo ele ficou calmo e menos tonto, sua pele
readquiriu o tom róseo natural, estava curado.
Depois de recuperado, foi mandado para casa mais cedo, por ter “adoe-
cido”.
Em casa, como era o costume, foi repreendido pela mãe que não acredi-
tou na história contada e, depois, mesmo esforçando-se para aceitá-la,
colocou-lhe a culpa, xingando-o duramente, pois não podia tolerar uma
ignorância tão grande; um filho seu que não soubesse, uma reza tão
fácil.
Sem entender as críticas, Lucinho decidiu, sem outra coisa a fazer no
inesperado horário vago, bem como para escapar do ambiente tenso de
casa, ir até à casa da avó.
Lá chegando contou o episódio para D. Gertrudes, que, inicialmente,
também o repreendeu. Depois, ela criticou, com ódio, a maldade da
professora. As críticas violentas da avó à professora, deram a ele alívio e
força para enfrentar, no dia seguinte, D. Francisca. A avó, para agradá-
lo, ofereceu-lhe ovos frescos para se fortificar. Era assim que recebia os
netos.
Enquanto esperava a avó colher os ovos no galinheiro, ele permaneceu,
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solitário e pensativo, na casa escura. Ouviam-se apenas os batimentos
de seu coração assustado e o tic-tac do grande relógio de pêndulo da
parede da copa. Uma pequena borboleta preta entrou na sala; dançou de
um lado a outro e pousou na parede branca. Lucinho a invejava.
Ele caminhou até à cozinha, tudo limpo, no lugar...ninguém. Inspe-
cionou o banheiro, a despensa fechada, voltou à sala. Olhou para um e
outro objeto, como se procurasse alguma coisa importante. Ele mesmo
não sabia o que era. Nada.
Abriu a porta do quarto de casal, a cama estava arrumada, a penteadeira
fechada. Uma abelha zunindo, passou perto de seus ouvidos fazendo
cócegas. Virou-se para trás; não havia ninguém, o silêncio continuava.
Entrou no quarto da avó. Abriu curioso o armário, olhou para um terno,
pôs um pouco do perfume na mão e o cheirou, pegou o aparelho de
barba do avô e o passou no rosto. Ofegante, voltou até à porta do quarto,
olhou: nenhum barulho.
Lá fora, D. Gertrudes cantava: “Neste mundo eu choro a dor/ Por uma
paixão sem fim/ Ninguém conhece a razão/ Por que choro no mundo
assim...”
Puxou com cuidado e nervosamente a porta semi-aberta do criado-mu-
do e abriu-a completamente. Assustou-se por instantes. Estava parali-
sado diante do que via. Sua respiração acelerou-se. Ali estava; poderoso,
belo, quieto, entretanto, ameaçador, o objeto de sedução, a força externa
procurada e temida. Fixou os olhos na peça brilhante, pequena, leve e
atraente. Com o cuidado de quem não quer ferir objeto tão importante
e delicado, gentilmente, apanha o antigo e possante Smith-Wesson, um
revólver guardado e mostrado constantemente, com orgulho, pelo avô.
Ele estava agora, nas suas mãos, preso, sem reclamar, a relíquia adorada.
D. Gertrudes continuava sua cantoria: ”Lá no céu/ junto a Deus/ Em
silêncio minh’alma descansa/ e na terra, todos cantam/ eu lamento
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minha desventura/ nesta grande dor.”
Ele, fechada a porta do criado, embrulhou o revólver com extremo
cuidado no jornal jogado em cima da mesa. A borboleta voou espantada
com o vento provocado pelo movimento das folhas do jornal.
D. Gertrudes continuava sua procura. O galo cantou desarmônico,
enquanto o sol fraco e pálido desaparecia no horizonte ensangüentado.
Ele correu para fora do quarto com o revólver. Rapidamente, desceu as
escadas, antes que a avó voltasse. Escondeu, com cuidado, a arma de-
baixo das “Coroas de Cristo”, perto do portão, por onde teria que passar
para sair. Desejava ir logo, afastar-se dali, não podia ser descoberto. Um
sinal de vida percorria seu organismo de menino.
A avó entrou na sala, carregava os ovos e cantava os últimos versos: “
Ninguém me diz/ que sofreu tanto assim/ esta dor que me consome/ não
posso viver/ quero morrer/ vou partir para bem longe daqui/ Já que a
sorte não quis/ me fazer feliz.”
Nervoso, ele queria sair rápido, antes que ela entrasse no quarto e desse
falta do revólver. Recusou firmemente o convite feito por ela para jantar,
alegando estar tarde. Não desejava que a avó o acompanhasse até o
portão. Entretanto, ela decidiu carregar um pouco mais os ovos, com
receio de que ele os quebrasse ao subir a escada para alcançar o passeio.
Esse fato o obrigou a deixar o embrulho escondido por mais algum tem-
po. Despediu-se e andou pelas ruas da vizinhança, sempre olhando para
trás, disfarçadamente, para ver se a avó já tinha entrado em casa. Depois
de caminhar não mais de cem metros, ele retornou, ofegante, como se
fosse realizar um perigoso roubo. Não havia ninguém no portão, nem na
varanda ou janelas da casa. Precisava completar o que iniciara. Pisando
nas pontas dos pés, levantando exageradamente cada perna antes de
abaixá-la, entrou no terreiro da casa e retirou, aliviado, o embrulho
debaixo dos espinhos.
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Saiu revigorado. Transformado em adulto, agora possuía poderes espe-
ciais, era capaz de enfrentar pessoas perigosas; até “gangs”. Não precisava
mais ter medo de ninguém. Atravessou, corajosamente, as ruas cheias de
carros e da multidão dos fins de tarde. Empanturrado de energia e dis-
posto a gastá-la, caminhou um pouco mais do que o necessário, dando
voltas pelo centro da cidade. Andava espichando seu pescoço fino, que
saía do tronco encurvado; levantava os ombros para parecer maior do
que era. Olhava destemido, ora para um lado, ora para outro. Examinava
e desafiava os passantes distraídos, sempre segurando seu embrulho de
jornal. Procurava o marginal perigoso, algum valente disposto a manter
com ele um duelo de bravos. Imaginava, se preciso fosse, matar o ousado
desafiador. Recordava, animado, os filmes de faroeste, imitava, vicari-
antemente, o andar compassado e firme dos mocinhos. Para isso, man-
tinha os braços finos e sem músculos, afastados do tronco e balançava as
grandes mãos soltas e dependuradas que saíam dos compridos braços.
Parecia estar pronto para a luta. Contava, segundo a segundo, o momen-
to de começar a atirar contra o maldito fora-da-lei. Era chegada a hora
da decisão. Ele mostraria para todos quem era o gatilho mais rápido de
Belo Horizonte.
Para sorte dos apressados trabalhadores que regressavam exaustos do
serviço naquela segunda-feira, ninguém o desafiou. Ninguém nem mes-
mo o notou. Desse modo, ele chegou em casa com o revólver intacto e
com as cinco balas no tambor. Uma das balas, a mais próxima da agulha
do cão, sistematicamente, era retirada pelo avô, para prevenir acidentes,
segundo este dizia.
O Smith-Wesson foi cuidadosamente guardado dentro de um sapato,
quase sem uso, calçado apenas nos casamentos e grandes aniversários. A
caixa foi fechada e escondida dentro da gaveta do guarda-roupas. Antes
de dormir, com o quarto bem trancado, tornou a adorar a arma. Passou
as mãos com carinho sobre seu cano curto, alisou-o, sentiu e deliciou-
se com sua textura dura, lisa e fria, com o polimento que refletia a luz.
Tudo nele era belo, tudo indicava poder e simplicidade, virtudes que ele
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jamais possuíra, que sempre invejara. Antes de escondê-la entre folhas
de papel almaço, rodou o tambor, colocando uma bala pronta para ser
disparada. O novo embrulho foi guardado, com cuidado, na pasta esco-
lar. Esperava com ansiedade a chegada do dia seguinte.
Cantarolando a melodia “High Noon”, Lucinho caminhou sereno e
seguro, corpo solto, ao meio-dia daquela tarde, até chegar à sala de aula.
Sentia-se protegido pelo simbolismo da arma; imaginava ser respeitado
pelos colegas e professoras, caso descobrissem sua força escondida, seu
grande poder. Entrou na sala de cabeça erguida, como há muito não ac-
ontecia. Seus pequenos olhos brilhantes e sua boca fechada e contraída,
davam-lhe a aparência de forte e destemido. Ele mostrava um ar arro-
gante, um olhar desafiador, a disposição para a grande batalha.
Mas, sua grande e poderosa inimiga, distraída, ocupada com outros
afazeres, verificava quais alunos não haviam respondido à chamada, a
troca irregular de lugares sem sua ordem, a discussão entre Alfredo e
Mário, por causa do empate do Cruzeiro e Atlético. D. Francisca mal o
olhou, não percebeu sua presença, desconsiderou sua valentia. Tratou-
o como fazia todos os dias, nem mesmo se lembrou do episódio do dia
anterior. E, assim, a professora iniciou a aula. Deu algumas explicações
iniciais, dissertou sobre a proclamação da República, que seria comemo-
rada na próxima semana.
A sala estava como quase sempre, quente e abafada. Recebia em cheio o
sol da tarde. Ela falava, falava, cansada, monótona. Alguns alunos dor-
mitavam, outros conversavam e, poucos, ou nenhum a ouviam.
Ele estava atento, esperava o momento propício para o início da luta.
Quase mostrou a arma ao colega do lado, quando a professora foi ao
quadro negro.
Quando ia mostrar o troféu guardado, a professora pediu silêncio, aos
gritos. Prosseguiu, pedindo a um aluno para vir à frente comentar o que
ela havia explicado antes. Lucinho, apressado, levantou-se, queria ser
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  • 1. 1Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br
  • 2. 2Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br REFLEXOS NO ESPELHO PARTIDO GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA www.galenoalvarenga.com.br/contatos Tags: Livros Online Grátis, Livros Psicologia, Livros Psiquiatria Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que pode ser adquirida através do site do autor. Visite www.galenoalvarenga.com.br e saiba mais sobre: Publicações do Autor Transtornos Mentais Testes Psicológicos Medicamentos Galeria de Pinturas de Pacientes Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga
  • 3. 3Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Índice 5 INTRODUÇÃO 15 UNIDOS PARA SEMPRE 30 O INCESTO; CEGA OBSESSÃO 39 NA SERENA MANHÃ DE DOMINGO 48 UM DIA DE CÃO 61 DEPOIS DO CHOQUE, A CONSULTA 75 PAIXÕES E DESENCANTOS 84 NA ESQUINA DA CIDADE BAIXA 104 ENCONTRANDO SEFIRA 116 MANICÔMIO: LOUCURAS DE UMA PAIXÃO 135 ADEUS ÀS ILUSÕES 146 A COMÉDIA HUMANA 160 JOGO DE PALAVRAS 173 ROMPENDO O SILÊNCIO 190 IRMÃOS ENTRE QUATRO PAREDES 212 CTI – A UM PASSO DO FIM 226 CONSULTA LIBERTADORA 244 DORES DO ENVELHECIMENTO 255 DIAS AMARGOS 266 DEIXEM-ME VIVER 271 O DESESPERO 287 O RETORNO: SOMBRAS DO PASSADO 306 EPÍLOGO
  • 4. 4Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais, Trajano e Dulce, produtores do meu genoma; às minhas filhas, Jussara e Juliana, produtos desse genoma; aos irmãos, que compartilham de genoma semelhantes; aos amigos, parentes e clientes; aos inimigos que desafiaram-me e agrediram-me. Em resumo, a todos aqueles que, de um modo ou de outro, excitaram-me, provocar- am-me, promovendo assim a expressão dos genes recebidos durante a concepção. Através desses encontros e desencon-tros, das relações dos milhares de genes com os trilhões de estímulos externos, nasceu essa construção milagrosa e esquisita que sou eu; a única pessoa que conheço mais ou menos por dentro. Sem a ajuda de cada um desses diferentes agentes, que ativaram o necessário no momento certo, eu seria outro homem, um desconhecido para meu eu atual e para vocês. Como seria caso fosse construído de outro modo? A resposta final eu deixo para vocês, pois sem vocês eu seria ninguém.
  • 5. 5Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Introdução A notícia funesta, lida no jornal da manhã, me transportou ao passado. Maquinalmente, pensativo e triste, dirigi-me ao arquivo de fichas médi- cas. Abri a gaveta e comecei a examinar cada ficha, uma a uma, à procura da de Lúcio. Passei os olhos num e noutro nome. Fatos da vida dos pacientes nasciam, despertando dramas adormecidos pelo tempo. Começavam a desfilar em minha mente cansada e envelhecida, seres an- gustiados e sem esperança. Todos perdidos, sem rumo, barcos em noite de tempestade, sem comando, procurando um porto para atracar. Parei numa ficha. Depois, noutra: “esse aqui só veio uma vez; um caso diferente; queria, a todo custo, transformar-se em mulher. Onde estará? Essa separou-se do marido, poucos dias após ter-se casado: ele quase a matou de tanto a agredir. Terá casado de novo? Como era bonita essa moça! Tentou o suicídio várias vezes. E agora? Conseguiu o que que- ria? Esse, canceroso, não quis tratar-se; morreu como desejava. Como bebia o Alberto! Sofreu muito com a cirrose. Gostava das idéias do Dr. Bernardo; era um homem inteligente; sempre tinha algo diferente para dizer”. Distraía-me sem querer...Diante de cada nome, histórias eram recon- struídas... sucediam-se fisionomias tensas, lembranças quase perdidas de vidas carregadas de paixões, algumas alegres, a maioria cheia de amargas emoções. Todos tentavam ser alguém, alcançar o imaginado, cumprir o seu papel, custe o que custar. Uns buscavam resgatar a felicidade pas- sada, sem saber bem como tinha sido; outros procuravam a estabilidade e a segurança; alguns, o amor-próprio perdido. A maioria não mais suportava os desencontros freqüentes; entretanto, quase todos acredita- vam que, um dia, alcançariam suas utopias. Todos vieram em busca de transformações...na maneira de pensar, de agir, de viver...sonhavam com uma liberdade inexistente.
  • 6. 6Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Ali sepultadas, descansavam muitas vidas...agora transformadas em anotações e jargões médicos, codificados em símbolos neutros, muitos, ilegíveis. Quantas lutas insanas jazem, aqui aprisionadas e imóveis, em fichas empoeiradas; quantos dramas, esforços sobre-humanos, na luta para atingir o imaginado. Relia aquelas histórias contadas com extrema dificuldade, retiradas dos porões de almas carregadas de medo. Com o passar dos anos, percebia que, também, me transformava, fundindo-me com seus sofrimentos. Tornara-me, pouco a pouco, um homem mais amadurecido; às vezes, amargo e desiludido, deixando, para trás, o simples, alegre e curioso recém-formado de antes. À minha frente, surgiam mais nomes; esses tiveram sucesso, aqueles, fracassaram. Homens, mulheres, muitos já mortos, alguns decidiram, antes da hora, não mais viver. Finalmente, alcancei, aflito, as anotações; a razão da minha procura. Detenho-me. Tenso, no silêncio da manhã, solitário. Retiro a ficha amarelada pelo tempo. A letra usada, tombada para a esquerda, com um traço grosso e forte, não mais me pertence; não sou mais aquele. Naquela época, ainda jovem, confiante, cheio de ilusões, a maioria delas desaparecidas, via em tudo um desafio a vencer. Evito ler todas as anotações de uma só vez; torno a olhar seu nome no alto da ficha; precisava me certificar: Lúcio M. L.; data da consulta: 23 de abril de 1970. Minha mente penetra, lentamente, com saudade, na penumbra da primeira consulta, nosso encontro inicial. Gostei do seu jeito. Era um caso difícil; o que sempre me excitou. Vejo-o, entrando apressado, pela pequena porta do consultório, mal me cumprimentando. Sempre olhando para o chão, como alguém que ima-
  • 7. 7Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br gina estar sendo repreendido. Deixou o corpo comprido, leve e flexível, cair sobre a grande poltrona; afundando-se nela, como se desejasse desaparecer. Era simpático, apesar da cara fechada e séria. Vestia uma camisa verde- amarela da seleção brasileira, bastante justa, que permitia ver os ossos das costelas estufados; dando a impressão de ser mais magro do que realmente era. Em contraste, vestia uma calça branca, que parecia escor- regar para baixo do abdome, presa à cintura por um cinto roto, amar- rotada, mole, larga demais para cobrir suas pernas finas. O vinco desa- parecera completamente e, em seu lugar, na altura dos joelhos, formava um ovo saliente. Tinha a pele clara, de um branco leitoso, a face, alargada na parte su- perior, exibia uma testa grande, enrugada horizontal e verticalmente e afilava-se no queixo, coberto de pêlos ralos, de uma barba por fazer. Os cabelos pretos, partidos irregularmente do lado esquerdo, cortados mui- to curtos, deixavam ver, dos dois lados, o couro cabeludo esbranquiçado. Usava óculos de aros escuros e grossos, manchados de pintas brancas; um modelo antigo, que cavalgava o nariz bem feito e cobria quase todo o rosto ossudo. Lentes cinzas escondiam os olhos claros e brilhantes, sem- pre atentos. A boca rasgada, de lábios finos, levemente arroxeados. Os maxilares contraídos, indicavam determinação ou teimosia. Escondida por trás de seus gestos controlados, na maioria da vezes lentos, existia uma mente agitada, crítica e inquiridora, a beira do desespero. Ele chegou desengonçado; caminhava como se estivesse bêbado. Atra- sou-se um pouco. Culpou o trânsito difícil. Estas explicações foram repetidas, posteriormente. Era seu temperamento; culpar sempre al- guém ou alguma coisa. Ao entrar no consultório e assentar-se, sem ser convidado, começou a falar. Não fez rodeios. Comentou os problemas, com voz rouca, pulando de um assunto a outro, o que tornava difícil entendê-lo. Interrompia
  • 8. 8Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br uma frase antes de terminá-la; esperava um pouco e recomeçava a falar. Suas queixas eram feitas, às vezes, num tom áspero; outras, num mur- murar lamentoso. Veio pedir uma ajuda para se encontrar, descobrir-se, conhecer a si mesmo... esse era o sonho de todos. Era mais uma tentativa para solucionar o problema de sempre: alcançar o auto-conhecimento. Esperava por esse milagre: transformar-se numa pessoa consciente, saber o que o levava a se comportar de um modo ou de outro; conhecer as causas dos seus sofrimentos. Sua história, apesar de complexa, e, embora fosse preciso, algumas vezes, adivinhá-la, foi contada através de rico vocabulário, de palavras bem colocadas, indicando que ele tinha boa informação geral. Entretanto, já na primeira consulta, percebi que não tinha consciência clara dos princí- pios que usava para erguer e sustentar seu raciocínio. Muitas vezes, asso- ciava fatos não interligados, tirando conclusões, inadequadas. Sua lógica era defeituosa; além disso, ele ignorava sua ignorância. Pelas anotações contidas na ficha, mas, principalmente, das lembranças despertadas ao lê-las, ia reconstruindo a vida tumultuada de : Lúcio M. L., ou melhor, de Lucinho, como ele era carinhosamente chamado. Do meu ponto de vista, ele não era possuidor de nenhum transtorno psiquiátrico grave. Era, podemos dizer, um paciente parecido com vários outros seres humanos que encontramos andando pelas ruas da cidade, que estudam, trabalham, namoram, casam, têm filhos e os criam. Fazia parte dos que reagem ao meio, mostrando as pequenas alegrias e tris- tezas da vida, comuns ao homem. Indivíduos, como Lucinho, vêm ao psiquiatra, inicialmente, para rece- berem uma pequena ajuda: é um namoro desfeito que os faz sofrer, uma rusga com a esposa ou uma desarmonia no emprego. Entretanto, com o passar dos dias, eles querem ir mais longe; mostram-se curiosos acerca
  • 9. 9Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br do autor dos seus atos. Lucinho, nas suas constantes idas aos terapeutas, aos poucos, se pertur- bou, enterrou-se nas crateras cavadas por ele com a ajuda dos psicól- ogos. Aprisionado nos dogmas das terapias, Lúcio não mais conseguiu se encontrar; perdeu seu referencial, distanciou-se, cada vez mais, das soluções que imaginava para si. Acreditando piamente nas interpre- tações fornecidas pelos terapeutas, ele passou a buscar as supostas metas ditadas pelos credos; ao dedicar-se às elucubrações fantasiosas dos que imaginavam ajudá-lo, ele jogou fora sua individualidade, abandonou seu próprio caminho. Assim, passou a canalizar energias, exclusivamente, para se desvencilhar ou compreender, como ele imaginava, essa rede de conceitos abstratos, que foram usados para salvá-lo. As diversas teorias psicológicas o imobilizaram e o ofuscaram, pouco a pouco, impedindo-o de enxergar a sua própria realidade. É provável que seu sofrimento tenha ocorrido, muito mais, em virtude da busca inces- sante das “causas” dos seus sofrimentos, da tentativa para compreender as interpretações fictícias usadas pelos profissionais para explicar os acontecimentos de sua vida e não do confronto com os próprios acon- tecimentos. Nos momentos de maior desespero e de irracionalidade, foi em busca da ajuda, mais mágica ainda, de profissionais não ortodoxos: curandei- ros, cartomantes, sensitivos e pais-de-santo. Implorou a todos a mesma ajuda. Sonhou conseguir, através de outras pessoas, o pleno conheci- mento de si através de uma teoria milagrosa, mágica. Não sabia que isso é impossível. Lucinho lia com obstinação. Fez diversos cursos. Releu, continuada- mente, os clássicos. Estudava e aprendia o que desejava. Fez vestibular para Medicina. Ficou na escola por dois anos. Largou a Faculdade por ter detestado as cadeiras básicas. Decidiu fazer Arquitetura. Não foi difícil entrar nos primeiros lugares. Não tolerou o primeiro ano. Fez vestibular para Direito. O resultado foi o mesmo: passou e desistiu três
  • 10. 10Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br anos depois. De Agostinho, seu irmão mais velho e professor de Filosofia, incorporou noções filosóficas importantes, que lhe permitiram, ás vezes, perceber e criticar a sociedade, a cultura, as instituições e a família desestruturada na qual viveu. Seu conhecimento lhe permitia, nos momentos de luci- dez, avaliar, com precisão, sua vida confusa, as contradições humanas e, mesmo, a ingenuidade de alguns dos profissionais consultados. Quando o encontrei pela primeira vez, não mais cursava a Universidade. Trabalhava, desordenadamente, na firma de construção do pai, sem jamais ter gostado do que fazia. Continuava sendo um devorador de livros, principalmente, os de psicologia, sociologia e filosofia. Lúcio terminou seus dias preso em um manicômio judiciário de Bar- bacena. Lá, abandonado, como muitos pacientes mentais, teve um fim trágico. Sua história teria sido perdida e não poderia ser contada, caso não tivesse sido anotada, em grande parte, por ele próprio. Ele não fez um diário clássico, como muitos jovens o fazem; escrevia suas observações e pensamentos acerca do que lia, ouvia ou vivenciava. Outros dados acerca de Lucinho foram obtidos de registros de psicól- ogos e psiquiatras que o examinaram. Recolhi outras informações de familiares, de amigos, de ex-namoradas, de colegas e vizinhos. Fatos importantes foram-me passados através de um inteligente e curioso “far- macêutico”, seu amigo na juventude. Não tive meios de visitar todos os profissionais da mente que o assistiram. Não procurei, apesar de ter sido meu desejo, as cartomantes, os pais-de-santo e outros do mesmo gênero. Quase todos os entrevistados, gentilmente, cederam-me anotações e, principalmente, o armazenado na memória. Assim, consegui reconstruir esse relato. Durante as entrevistas, detectei um aspecto que me chamou a atenção: cada um dos seus amigos e profissionais perceberam-no
  • 11. 11Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br como possuidor de uma personalidade e caráter diferente. Seriam vários Lucinhos? Cada narrador me contou uma história ao perceber certos aspectos, e não outros, de sua personalidade. Foi elogiado por muitos; criticado por outros. Para uns, era inteligente; para outros, um homem comum, sensível, obtuso, diligente ou preguiçoso. Foi tachado de esquis- ito, até de louco, por uma minoria. Tive algumas dificuldades em conseguir os dados. Alguns relutaram em cedê-los, temerosos de possíveis processos movidos pela família ou imaginando proibições dos órgãos superiores, como do Conselho de Medicina. Outros imaginaram poder, um dia, escrever sua vida e, assim, esconderam o que sabiam. Mas, alguns profissionais ficaram entusiasmados com meu projeto e, constantemente, perguntavam-me acerca dele. Muitos, após me passar- em suas recordações e anotações, procuraram-me novamente, fornecen- do novas informações, só posteriormente descobertas ou lembradas e que julgaram importantes para uma melhor compreensão de sua vida. Percebi, também, que uns poucos, ao me transmitirem as informações, tentaram deturpar os fatos para que eu tivesse uma idéia errônea dele. Não descobri os motivos dessa conduta. A coleta de dados foi trabal- hosa; mas tive um enorme prazer em desvendar uma parte da “verdade” desse indivíduo comum, ao mesmo tempo, singular, apesar dele, jamais, ter-se esforçado para parecer diferente dos outros. Lucinho iniciou sua vida, como todos nós, tentando preservar suas crenças mais profundas, evitando se perder no meio de tantas opiniões diferentes. Foi um qualquer, gente como a gente. Seu nome não era con- hecido, as roupas que usava jamais foram copiadas como modelos, nem seu modo de andar, falar, pentear-se ou pensar; foi um anti-herói. Lutou contra caminhos conflitantes. Tentou, obstinadamente, encontrar uma saída digna no labirinto onde foi encarcerado. Seu sonho era converter- se nele próprio, não desaparecer na mesmice, não se dissolver em certos padrões sociais impostos, que impedem o crescimento individual; lutava para construir seu próprio caminho. Infelizmente, apesar dessa luta em
  • 12. 12Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br busca do encontro consigo mesmo, Lucinho não alcançou a meta pre- tendida. Ao tentar escapar da prisão social e religiosa, encarcerou-se no pseudo-cientificismo; ao fugir de um grupo, derreteu-se no outro, como gelo no fogo. Tentou seguir o princípio básico da ética humanista: bus- car ser ele próprio, mas falhou: mais uma vez desapareceu, como o sal na água, dissolveu-se nas idéias dos técnicos que, hipocritamente, diziam ampará-lo. Lucinho não fugiu à regra da maioria dos pacientes psiquiátricos. Re- cebeu diversos diagnósticos: Esquizofrenia paranóide; Esquizofrenia Aguda Indiferenciada; Transtorno da Personalidade: “Borderline”, Narci- sista, Dependente, Histérica, Passivo-Agressivo, e mesmo, Personalidade Normal. Mais tarde, foi categorizado pelo professor, como possuidor de “Delirius Mater”. A ética profissional proíbe ao médico fornecer ao público leigo fatos ob- servados, descritos ou inferidos de seus pacientes. No caso do paciente psiquiátrico, devido à sua estigmatização por quase todos, essa proibição é ainda mais rígida. Há razões para isso. De fato, os dados colhidos desses pacientes angustiados, durante suas crises agudas, são confissões extremamente íntimas, guardadas a sete chaves, nas profundezas de sua alma. Esses segredos, geralmente, não são revelados nem mesmo para os amigos mais chegados e familiares. Como os fatos recolhidos e resumidos me atraíram e me excitaram gran- demente, decidi romper com essas proibições estabelecidas pela minha classe profissional. Nasceu um impulso mais forte dentro de mim, visando a revelar uma vida carregada de dúvidas. Sei que há, entre os médicos, um acordo para manter os segredos do cliente a qualquer preço. Esse é um dos princípios de nossa profissão. Mas existem outros objetivos tão altos como esse e que não são explicitados. Há o dever de esclarecer e, se possível, edu- car a população através da divulgação de acontecimentos das ciências. Pergunto-me: a quais normas ou éticas devo servir? São esses “pacientes” - alguns deles mais sadios do que muitos de nós -
  • 13. 13Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br os transitoriamente denominados “não-pacientes”, que nos ensinaram a estreiteza ou a leveza entre o “normal” e o “anormal”, entre o “doente” e o “são”. Creio que é nosso dever transmitir essas descobertas. O que é ser “doente”? Seria estar mais adaptado à sociedade e à família e des- adaptado com respeito a si mesmo? Ou devemos denominar “doente” a pessoa bem adaptada à sua personalidade - valores, desejos, modo de se comportar - e em luta com a sociedade e família? Eu ainda não sei! Decidi, comovido, escrever esse relato, após a notícia do último acontec- imento trágico de sua vida. Precisava desabafar, de alguma forma, o que já sabia dele. Não estava apenas interessado em prestar uma homenagem a esse paciente que se tornou, como outros, parte de minha vida. No relato, como não podia ser diferente, mantive o respeito que sempre tive por ele e por todos pacientes; era um amigo que me confiou, durante um certo período, problemas íntimos. Juntos, sofremos e tentamos soluções. Recordações secretas, arrancadas do fundo do poço, transformaram-se em sons, choros, soluços, gestos e agressões. Após penetrar em minha mente, essas condutas se tornaram conceitos frios e marcas aprisionadas para sempre. Tentei transformar esses sinais neutros em ações dinâmi- cas. Ao descrever sua personalidade, não mencionarei as anomalias, mas sua história, seus problemas e tentativas para resolvê-los. Não escrevi um manual de Psiquiatria. Também, não contei a vida de um homem excepcional. Os fatos recolhidos são, às vezes, trágicos, mas, paradoxalmente, uni- versais. Possivelmente, a maioria dos leitores identificar-se-á com cer- tos eventos vividos por ele. Alguns sentir-se-ão estupefatos com certas cenas, imaginando como pode um ser humano chegar a tanto. O leigo desconhece muitos fatos secretos ocorridos nas profundezas da mente. Talvez a vida de todos nós, como a de Lucinho, pudesse dar origem a belas, tristes e trágicas histórias, caso tivessem sido anotadas ou memo-
  • 14. 14Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br rizadas e, posteriormente, escritas, como esta. Quando me procurou pela primeira vez, ele era jovem. Contou-me que começou a freqüentar o pré-escolar muito cedo. Seus pais, Dr. Ad- amastor e Rosária, desejosos de melhorar seu relacionaento com outras crianças - ele era muito arredio e calado, pediram conselhos ao pediatra, Dr. Lunardi, homem de princípios conservadores, que os aconselhou a colocá-lo numa escola religiosa, onde havia, além do ensino de boa qualidade, uma disciplina tradicional e rígida.
  • 15. 15Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Unidos para Sempre Naquela manhã, após se levantar cansado e quase sem ter dormido, Dr. Adamastor caminhou, passo a passo, à procura da velha cadeira austrí- aca, colocada bem em frente à janela da sala. A casa estava silenciosa; todos dormiam ou fingiam dormir. Recostou-se na cadeira com dificul- dade, com um resto de dignidade ainda existente, e começou a recordar. A ausência de sons, comuns às manhãs de domingo, propiciava lem- branças, todas contaminadas pela incômoda e perversa realidade atual. Nostalgicamente, pensava..., ”nunca tive medo de obstáculos. Eles che- gavam a me excitar... Não fui o melhor aluno porque o tempo era pouco; quando decidia estudar, tirava as melhores notas e era elogiado pelos professores. Hoje, nada leio; não estudo... folheio o jornal para ver os necrológios, saber a idade do morto, compará-la com a minha, saber se é conhecido e onde nasceu. Não sou percebido como possuidor de valor algum...sou um espectador, não mais um ator.” Durante a juventude - ainda não tinha completado 19 anos - Dr. Ada- mastor foi chamado, às pressas, à cidade de Capão do Pinhal, onde mo- rava sua família, para assistir ao funeral do pai, morto por um infarto. Era quem administrava os bens e o dinheiro da família. A partir da morte do pai, o dinheiro faltou e Adamastor, estudante de engenharia, passou a ter que trabalhar duramente para se sustentar, pagar a faculdade e a péssima república onde morava. Ali dormia e, às vezes, fazia suas refeições noturnas, sempre as mesmas: café com leite e pão com margarina. Ocasionalmente, nos dias de festas, ele comprava mussarela, mortadela e ovos. Esses ingredientes, reunidos, formavam o delicioso e cheiroso omelete. Enquanto preparava sua refeição, distraia- -se ouvindo músicas sertanejas na Inconfidência, num rádio desossado, pois a madeira externa tinha sido comida pelos cupins. Pronto o omele- te, com a casca bem tostada, se assentava na única mesa da república e o comia, com todo o requinte. Cheirava-o, deglutia-o, imaginando estar
  • 16. 16Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br no melhor restaurante da cidade. Dr. Adamastor, hoje, com sua mulher, Rosária, e seus três filhos: Agosti- nho, Roberta e Lucinho, tem iguarias melhores do que o omelete. Pode comer camarões ou lombo, mas não tem mais apetite, papilas gustati- vas aguçadas e nem sensação para perceber odores - tudo aquilo que é necessário para diferenciar a boa da má comida. Não mais sente o gosto nem o delicioso cheiro de antes; não mais se alegra ao ver a clara mole e feia se transformando na névoa bela, fofa e branca, e uma vez misturada com a gema amarela, originando a casca cocrante do omelete. Apesar das dificuldades, ele se formou em Engenharia. Após terminar o curso, conseguiu emprego numa empresa de construção de estradas. Não ganhava muito, apenas o suficiente para lhe permitir condição de vida melhor do que a antiga. Mais animado com o emprego e as eco- nomias, começou a pensar em buscar uma companhia permanente; afastar-se das prostitutas, que lhe tinham causado doenças e aborreci- mentos. Não foi fácil arrumar a mulher dos seus sonhos. Vivia isolado no can- teiro de obras da companhia, o que dificultava a aproximação com as possíveis candidatas a um casamento. Aconselhado pela família, pro- curou a pretendente ideal entre as conhecidas e parentes de sua terra. Mas a maioria das boas moças de Capão do Pinhal estava casada. Lá, elas se casavam cedo. As que escaparam do primeiro cerco estavam comprometidas com os conhecidos da cidade; todos, geralmente, pri- mos das namoradas. Poucas haviam sobrado dessa peneirada; algumas solteironas empedernidas e eternas, mais velhas do que ele, freqüenta- doras diárias das igrejas e as outras, não classificadas nessas categorias, eram jovens mal vistas, rebeldes, independentes demais, com as quais os rapazes evitavam um namoro para casar. Mas Dr. Adamastor sabia que, apesar dos falatórios difamadores, eram elas as mais cobiçadas. Diante das dificuldades em encontrar, em sua cidade natal, a “moça dos seus sonhos”, decidiu procurá-la em Belo Horizonte. Estava ciente dos riscos
  • 17. 17Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br que corria: amar uma desconhecida, cheia de vícios, perigosa, algumas nem mesmo acreditavam em Deus... Foi nessa época que Dr. Adamastor conheceu Rosária, durante as folias de Momo. Ele freqüentava os bailes de carnaval do Diretório Central dos Estudantes - DCE - mas evitava dançar, pois sua timidez não permitia tal excesso. Ia aos bailes para paquerar uma ou outra moça, escolhendo geralmente as mais tristes e desamparadas. Bêbado tornava-se corajoso, sendo capaz até de tirar uma jovem para dançar. Na verdade, não dança- va: marchava pelo salão, com seu corpo duro, dando a impressão de ter engolido uma alavanca. Impreterivelmente, nos bailes carnavalescos, ele se fazia acompanhar de um inebriante. Carregava dentro de um vidro achatado, cuidado- samente colocado no bolso de trás da calça, uma cachaça de péssima qualidade. No bar, ele comprava uma garrafa de Coca-cola para misturar com a pinga. Entretanto, se o dinheiro estivesse faltando mais ainda, Dr. Adamastor usava os restos de refrigerante e gelo deixados nos copos abandonados em cima do balcão ou das mesas. Quando nada encontra- va, ele implorava gelo ao “barman”, com uma voz chorosa, em falsete, sempre olhando para o chão. Conseguido o desejado, já mostrando a outra face, tirava do bolso a gar- rafinha com a cachaça e despejava-a no copo, com parcimônia, para que ela pudesse durar. Após tampar o vidro guardava-o no bolso da calça larga e cinza, apropriada para suportar os embates do carnaval. Terminando esse ritual, começava a saborear seu rabo de galo, com calma. Antes de engolir a droga quase insípida, ele, primeiramente, a cheirava; depois, bebia, espalhando-a, várias vezes, pela boca, para melhor sentir seu sabor. O prazer da bebida não derivava do seu gosto quase insuportável, mas muito mais, do ambiente cheio de luzes, baru- lhento, do feriado prolongado e do esmero com que ela havia sido feita. O rabo de galo tinha o poder de fazê-lo imaginar estar vivendo num
  • 18. 18Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br mundo maravilhoso, cheio de esperança, principalmente, de mulheres à sua volta. Após esgotar o conteúdo da bebida mágica, Dr. Adamastor guardava o vidro com cuidado, levava-o para casa, para, no dia seguinte, enchê-lo e poder embriagar-se mais uma vez. Tinha um carinho especial pela gar- rafinha simpática: esverdeada e fina, que cabia harmoniosamente no bolso da calça; guardava a quantidade certa de bebida para uma noite e, sobretudo, jamais se quebrara, após anos de uso nos carnavais passados, todos no DCE. Não havia outra igual. Para se embriagar, não precisava de muita bebida: uma garrafa de cachaça era o bastante para embebedá- -lo durante as quatro noites. Nessa manhã de domingo, silenciosa, enquanto pensava no baile do Diretório, Dr. Adamastor lembrou, com nostalgia e lágrimas nos olhos, que ele não mais sabia onde estava guardada a garrafa achatada. “Rosá- ria tê-la-ia jogado fora?”...Perguntava-se apreensivo, sentindo-se culpado por tê-la abandonado e esquecido. Mas continuava suas recordações... Na segunda-feira de carnaval, ele havia completado vinte e cinco anos. Nessa noite, sem querer, bebeu, junto com a pinga, o restante da bebida encontrada em cima do balcão. Acontece que, na pressa de tirar o gelo, despejou-a no copo. Quando ele estava mais tonto do que de costume, incapaz de refletir e discernir sobre o que deveria ou não ser feito, co- nheceu Rosária, por ela se apaixonou e com ela acabou se casando. Tudo ocorreu num lance de acaso. Em parte, devido à embriaguez; pos- sivelmente, dos dois. Ainda estava prostrado diante do balcão, de onde surripiou a bebida, quando avistou Rosária. Ela gingava e cantarolava uma marchinha. Ao se aproximar, deu-lhe um sorriso, revelando gran- des e belos dentes. Sentiu-se diminuído diante de tanta beleza. Sempre se julgava inferior diante de mulheres esbeltas. Ela o olhou nos olhos, de cima para baixo... Era um pouco mais alta do que ele.
  • 19. 19Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Dr. Adamastor voltou os olhos para o chão, envergonhado, tentando se esconder. A presença de Rosária, dançando à sua frente e, principalmen- te, seu sorriso continuado, deixaram-no perturbado. Acontece que ela, ao olhar as pessoas, mantinha os olhos semicerrados, contraía a testa e a face, acima do nariz. Desse modo, os cantos da boca eram puxados, dando a impressão, à primeira vista, que ela estava, constantemente, sorrindo. Diante desse falso sorriso, ele suspeitou, como era seu hábito, que ela es- tivesse debochando dele. “Será que ela notou que eu estava filando o gelo e o resto da bebida? Ou será porque sou baixinho? Além disso, não sou uma pessoa bonita como ela; só meu nariz agrada às mulheres...Acho que não vai dar prá mim”. Dr. Adamastor se sentia derrotado antes de começar o jogo do amor. Nessa noite, inexplicavelmente, agiu diferente; decidiu tentar conquistar Rosária, certo de que não iria dar certo. Levantou os olhos e a fitou, com cara de bêbado apaixonado. A iluminação feérica do salão acentuava mais ainda a pele clara de Ro- sária. Não havia quase pintura no rosto: um leve toque de batom, sua- vemente, percorria e acentuava o vermelho dos lábios grossos, contor- nando sua boca enérgica, que mal escondia os dentes salientes e fortes. Pontos róseos, parecendo confetes vermelhos, espalhavam-se sobre a pele lisa e sedosa. Adamastor pôde sentir o perfume adocicado e o calor úmido que des- prendiam do corpo quente e jovem de Rosária. Gotas cristalinas e belas, preguiçosamente, escorriam de sua face avermelhada e desciam, fazendo curvas, para, finalmente, caírem no colo branco, quase nu. Ela, ao perceber o olhar de Dr. Adamastor, parou, por momentos, de pular.
  • 20. 20Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br No salão barulhento, ouviam-se o zum-zum das conversas, os gritos histéricos, o arrastar cansado de bêbados cambaleantes e as vozes pro- duzindo sons desafinados. A música, mal tocada pela orquestra do clube decadente, se desorganizava e se desfazia no ar empoeirado. A possibilidade de ter que dançar com ela, a princípio, o amedrontou: “eu não sei dançar; meu corpo é duro...Vou arrumar uma desculpa. Pre- ciso buscar uma saída, fazer outra coisa, caso ela decida ficar comigo”. Entretanto estava encantado com seu belo porte, com sua desinibição. Mas, ao mesmo tempo, tinha medo. Atacar ou fugir? Maldita dúvida! Deu um passo para o lado, tentando se esconder inutilmente. Fugia da luz que incidia, quase verticalmente, sobre ele, fugia do compromisso. Em seu canto, amedrontado, pôde apreciar melhor o rosto de Rosária. Ficou seduzido pelos seus olhos azuis. Ao fitá-los, enxergou, alucinado, águas-marinhas, balançando no ar. Ela, exuberante, vestia um “short” listrado de amarelo e preto, muito curto e justo, que prendia as volumosas nádegas provocando movimen- tos ritmados e engraçados: comprimido no “short” apertado; o bumbum se agitava quando ela caminhava, dançava e pulava, de um lado para o outro, como se quisesse escapar das listras. O peito de Rosária, quase nu, estava coberto por um “topper” vermelho-sangue, da mesma cor dos pontos coloridos, espalhados por sua face. Seu bojo tentava, sem resulta- do, esconder os seios grandes e firmes. Os ombros largos e fortes, apesar da juventude, já mostravam os primeiros e leves sinais de envelhecimen- to. Ele, nesse momento, iniciava, ao lado do balcão do bar, uma dança de- sajeitada, sinalizando conquista. Para ele, era ela a moça mais linda que encontrara. Seus longos cabelos castanho-claros, quase louros, mesmo amassados de um lado, davam-lhe uma aparência de santa francesa. Para a mente apaixonada e bêbada de Adamastor, tudo nela o atraía...ela o encantava.
  • 21. 21Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Além dos olhos azuis, o que mais chamou a atenção de Adamastor foram suas coxas grossas, roliças, perfumadas, brilhantes de suor e cre- me. Uma fascinação súbita e violenta irrompeu em Adamastor, diante daquela beleza quase divina. Ajudado pelo álcool, que liberou seus impulsos e pensamentos mais íntimos, ele, que até aquele instante estava indeciso acerca da moça ideal para se casar, agora passou a ter certe- za: era aquela! Tinha certeza! Arrebatado, transformado e esbanjando energia, ele renunciou à costumeira inibição e ao temor da intimidade. Animado, despojando-se das amarras internas, investiu, vorazmente, em direção à caça. O perfume de Rosária o transformou: passou, como num passe de mágica, de apático a desinibido, de triste a alegre, de observa- dor a folião engajado. Consumido pelo forte desejo, pulou bem à frente dela. Fingia estar mais bêbado do que estava. Solto, começou a cantar a marchinha que imaginava estar ouvindo, mas não conseguiu, apesar do esforço, tornar-se entoado. Naquele momento de êxtase, ele jamais poderia profetizar que aquele corpo tão sedutor, aquela formosura e perfeição, um dia iria se transfor- mar no que é agora: uma massa de carne mal-acondicionada em peles caídas e cheias de dobras. O carnaval não tem regras; tudo vale. O rapaz que dançava com ela carregando, em uma das mãos, um copo de bebida amarelada e insípida, largou a parceira, como fazendo parte do jogo. Era um jovem magro e inibido, com uma passividade que contrastava com Rosária, muito disposta e despertada pelo novo pretendente. Diante dos olhos bêbados, semi-abertos do “pierrot” apaixonado, ela, automaticamente, olhou para ele, curiosa e cantarolou a melodia tocada. Sem nada dizer ao rapaz comprido e triste, largou-o, rebolando em direção ao novo folião. Se ela não tivesse, naquele momento, tomado a iniciativa de ir atrás de Dr. Adamastor, talvez, jamais, eles tivessem se encontrado pois, de sua parte, o que tinha feito, já era um recorde: havia ultrapassado seus limi-
  • 22. 22Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br tes. Assentado na cadeira, tentando balançar para frente, mas quase caindo para trás, ele recordava, emocionado, aquela cena. No DCE, Dr. Adamastor, entusiasmado com a receptividade, imaginou poder ir mais longe. Cauteloso por instinto, costume e mineirice, con- tinuou, por certo tempo, olhando para o chão. Aos poucos, foi ficando hipnotizado pelos grandes olhos azuis - naquela noite, mais azuis e brilhantes ainda, olhos sensuais, de gazela espantada, no cio. Bêbado, irrefletidamente, ele partiu para a aproximação. Ela olhava-o com suas duas jóias incrustadas nas órbitas enormes, redondas... Ao balançar o bumbum, em gingados lascivos, suas carnes tenras e exuberantes atraí- am o desejo de todos os admiradores de mulheres cheias. Despedaçado pela paixão alucinante, ele aproximou-se da moça, como a frágil e pequena limalha é atraída e presa por um poderoso ímã. Ele, como sapo hipnotizado, caminhou, sem perceber, para a boca da cobra que iria assimilá-lo totalmente. Ele e ela, entrelaçados, a partir daquele encontro, que podia não ter ocorrido, misturaram-se, formaram um só e estranho nó. Ambos, a partir daquele momento, foram perdendo a individualidade, começaram a enterrar a sonhada liberdade, que cada um buscava. A fuzarca do carnaval continuava barulhenta. Dr. Adamastor colocou, com cuidado, suas mãos desajeitadas e pesadas na cintura de Rosária, segurando-a, inicialmente, com delicadeza. À medida que o medo de dançar diminuía, ele passou a pular pelo salão, enroscado à presa, agora de cabeça erguida. Sorria sozinho, orgulhoso da conquista ou por ter sido conquistado. De tempos em tempos, tirava do bolso um velho lenço marrom, amarrotado e esgarçado, naquele momento, bastante umedeci- do de suor. Passava-o na nuca, depois no pescoço, testa e cabeça; retirava o líquido espesso que emergia dos poros de sua face. Após se enxugar e, sem notar, passava sua grande língua nos lábios molhados do suor que escorria e, em seguida, gentilmente, oferecia o lenço imundo a ela, que
  • 23. 23Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br recusava a oferta. Sentia náuseas ao ver o lenço sujo, depois sendo guar- dado, com cuidado, no bolso da camisa. Enquanto segurava a cintura de Rosária, ele se lembrou por segundos, da última namorada, arrumada, ali mesmo, no Diretório dos Estudantes, por coincidência também num baile de carnaval. Rápido como os fins de férias, esse namoro terminou melancolicamente. Enquanto pulava no salão, ele continuava a pensar: “Agora, com essa, tudo vai ser diferente...Ela parece ser tão inteligente, carinhosa, calma, compreensiva e bondosa! Ainda mais com esses olhos!... Ela tem tudo que desejo...”, concluía, entusiasmado com sua própria crença...”que sorte a minha, encontrar uma pessoa tão encantadora”, imaginava. A marchinha conhecida silenciou. Um samba desconhecido começou a ser tocado e ele aproveitou a oportunidade para convidá-la a parar. O que o preocupava era aonde iriam conversar: “Não posso oferecer-lhe a pinga que trago no bolso...Não posso comprar nada, senão, ficarei sem dinheiro para os outros compromissos. O que fazer?” Enquanto Adamastor pensava o que fazer, ela o convidou para se assen- tarem onde seus pais estavam. Ele se espantou: ”Assentar à mesa... beber e comer... meu estômago já está pedindo alguma comida. Seria ótimo! Mas, depois... quem irá pagar?” Quase sem perceber, ele foi transportado à mesa onde estava a família dela e pôde observar, atraído, a fartura ali existente: cerveja, uísque, refrigerantes, empadinhas, coxinhas e pastéis, ainda fumegantes, tão cheirosos como os omeletes feitos na república. Assentados, sorrindo, lá estavam o bonachão e obeso pai, ladeado por um senhora cheia de badulaques, maquiada exageradamente, pronta para posar para o retrato de casamento. Ficou encantado com a visão da família, principalmente com o cheiro da manteiga queimada com cebola dos pastéis de quei- jo; um perfume que trescalava pelo salão. Os pastéis estavam ali, bem
  • 24. 24Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br próximos dele, espalhados nos pratos, sedutores, que foram engolidos mentalmente, antes dele ser apresentado aos pais de Rosária. Passou novamente o lenço sujo no rosto, agora mais molhado, tornou a oferecê- -lo, como de hábito, a ela. Com a mão gotejando suor, alisou os escassos cabelos, ajeitou as calças que caíam e colocou a fralda da camisa para dentro. Diante dos pais, naquele dia muito gentis, Adamastor pensou: “é numa família dessa que gostaria de entrar. Gente boa. Que sorte! Ganhei novos pais” Receoso de ter que contribuir para as despesas finais, ele, evitou se assentar. Para escapar do compromisso, afirmou que, como estava muito quente no centro do salão, achava preferível ir para a varanda do clu- be, para tomar um pouco de ar. Com as conversas de apresentação, os pais de Rosária, por mais que ele olhasse para a mesa, com olhos de cão faminto, não perceberam sua fome e esqueceram de lhe oferecer o que mais o seduzia: os pastéis quentes. Esfomeado, antes de sair, ele não resistiu à tentação. - Exatamente...Ouviu? Certo? Não estou suportando ver essas coxinhas, esses bolinhos, Adamastor custou a falar. Fazia rodeio para chegar ao assunto principal, ao que mais o atraía. Evitava mostrar sua atração, a gula e fraqueza diante dos pastéis; imaginava que isso não ficaria bem a um engenheiro educado. Depois de um pequeno silêncio, retornou: - Estes pastéis...Ouviu? Compreendeu?...Parecem estar deliciosos. Senti o cheiro de longe... evidentemente. Permitam-me tirar um... Ele gostava de pronunciar certas palavras, mesmo que nada tivessem a ver com o que ele queria dizer, principalmente quando estava nervoso. - Claro que sim...esqueci de te oferecer - respondeu o pai de Rosária, educadamente, com voz de barítono embriagado. - Pode levar alguns para vocês comerem... Pegue, neste guardanapo...
  • 25. 25Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br - Você não sabe arrumar... Eu arrumo pra eles, disse num tom alto, como dando uma ordem a ser obedecida, D. Gertrudes, a mãe de Ro- sária, prosseguindo firmemente: - Os homens são muito desajeitados… não sabem fazer nada! Ele engoliu, ali mesmo, o primeiro pastel, que desceu pela garganta, queimando-a. Farelos do salgado, bem como um fiapo de queijo ficaram presos no seu bigode preto. Isso a levou a limpá-lo com rapidez, com um guardanapo retirado da mesa, antes que ele usasse o lenço marrom para retirar os resíduos que permaneceram em torno da boca. Engolido o primeiro deles, o apetite de Adamastor aumentou ainda mais. Após ele ter se afastado da mesa e atravessado o salão, segurava, radiante de ale- gria, com uma das mãos, outro pastel quente, examinando-o com avidez e atentamente o recheio, antes de cada bocada. Em seguida, oferecia o pastel, já pela metade, a Ela. Ele estava embriagado; devido à cachaça ingerida, em virtude do baru- lho ensurdecedor vindo do salão, mas principalmente, pela paixão que o corroía. Tudo isso somado impedia Dr. Adamastor de pensar com clareza. Foi nesse ambiente confuso que se iniciou, na segunda-feira de carnaval, o namoro, que durou para sempre, possivelmente com o arre- pendimento de ambos. As brigas foram a tônica da relação e só não aconteceram nos primeiros dias de namoro. Com o tempo, logo após o casamento, elas foram au- mentando em freqüência e intensidade, passando a constituir o padrão normal da vida do casal. Ainda no namoro, devido à grande atração, aumentou a intimidade física dos namorados. O esperado aconteceu: Rosária ficou grávida. Quando ela anunciou o fato, Adamastor ficou alegre e satisfeito, pois isso apressaria o casamento. Era o que ele mais queria. A princípio, ficaram em dúvida: contar ou não, apressar ou não a união definitiva? Nem uma coisa, nem outra. Quem decidiu tudo, como era a norma, foi D. Gertrudes. Envergonhada, ela elaborou um plano para resolver,
  • 26. 26Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br o mais depressa e escondido possível, o fato nefasto. Não admitia casar uma filha grávida. Isso seria uma afronta à Igreja e aos valores familia- res. Além do mais, o tempo era pouco para preparar a cerimônia, con- vites, bebidas e tudo o mais. A solução ordenada por D. Gertrudes foi cumprida à risca. Clarimundo afirmou, diante de todo o drama: - Em coisas de mulher eu não entro... Gertrudes sabe bem o que faz... Conhece essas coisas mais do que eu...Não entendo disso. É ela quem resolve. Na casa de Rosária, quem dava ordens era a velha Gertrudes, alagoana, convicta de sua macheza e que jamais levava desaforo para casa. Den- tro de casa ou na rua, decidia suas desavenças aos berros, com ameaças e, não muito raro, com pesadas agressões, que ela narrava depois para todos, dando risadas e com grande orgulho: - Mostrei, hoje, prá um barraqueiro o que é uma mulher-macho. Veio me passar a perna: vender novecentos gramas de aipim, como se fos- sem um quilo. Pesei noutra barraca; voltei lá e exigi o restante. Ele fingiu não me ouvir. Joguei tudo na cara dele; xinguei e peguei meu dinheiro de volta, com a ajuda de policiais. Pensa que sou boba? Ah! Ah!...  A decisão de D. Gertrudes foi respeitada, sem ser discutida. Rosária foi encarcerada durante sete meses, num convento em Maceió, onde sua tia Genara, irmã de D. Gertrudes, era diretora. Lá, ficou até o nascimento do filho, sem o conhecimento de amigos e familiares mais afastados. Para todos, ela estava nos Estados Unidos, fazendo um curso de inglês, morando com uma família americana. Os endereços não foram dados, ou eram inventados, caso alguém perguntasse, querendo lhe escrever ou telefonar. Após o nascimento da criança, um menino, o médico, Dr. Paulo César, obstetra de Maceió e amigo da família - o mesmo que fizera todos os partos de D. Gertrudes - de comum acordo com ela, arrumou um casal
  • 27. 27Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br sem filhos, parentes dele, em Maceió, para adotarem o filho de Rosária. O bebê nem chegou a ser batizado, devido à pressa em resolver esse terrível problema. Ninguém ficou sabendo a quem o recém-nascido foi entregue. O que se soube foi que se tratava de uma boa família, de pos- ses, na qual o menino, certamente, seria bem criado e educado. Recebi- do como filho, o casal ficou felicíssimo e agradecido a Deus, por receber essa dádiva vinda, certamente, do céu. Dr. Adamastor, ameaçado por D. Gertrudes de terminar o namoro, foi afastado das negociações a respeito da adoção e proibido de ver o filho que nasceu. Essa proibição foi o castigo imposto por ela, pelo mal que ele fizera à sua filha, moça recatada e de família. Ela, por sua vez, por ter sucumbido à sedução do namorado, fora proibida de receber visitas, exceção feita apenas para sua mãe. Ele aceitou tudo resignado. No início, imaginou não resistir à ausên- cia de sua amada. Pensou em visitá-la, mas desistiu. Entretanto, alguns meses depois, a falta de Rosária e a diminuição da intimidade com seus pais lhe permitiram perceber que a vida sem ela não era tão ruim como pensara. Ficou sem seus carinhos, é certo; sem seus olhos azuis; sem sua voz melodiosa. Em compensação, ficou livre dos seus insultos, seus gritos estridentes, exigências infantis e ameaças de suicídio constantes caso rompesse o namoro. Nos sete meses de afastamento, imaginou e fez planos para acabar com tudo de vez. Entretanto, quando assim pensava, percebia que não seria nada fácil cortar a relação, cheia de emoções, da qual passara a sentir falta, inclusive, das brigas. O namoro, que fora interrompido durante a gravidez, recomeçou após o retorno de Rosária. Ela, ao voltar, estava mais gorda, mas, ainda muito bonita. Sua pele, agora, apresentava uma tonalidade mais clara, que a tornava um pouco diferente. A prisão parecia não ter feito bem a ela. Após o primeiro encontro com Adamastor, com abraços e beijos demo- rados, acompanhados de lágrimas e risos, os dois brigaram. Ela ficou enciumada, ao notar que ele havia deixado o bigode crescer novamente.
  • 28. 28Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Anteriormente, ela o obrigara a raspá-lo. Bastou isso para ela imaginar que ele havia mudado o visual, a pedido de alguma namorada, arranjada durante seu confinamento. Pouco antes de se casarem, os desencontros se tornaram mais freqüen- tes. Esses fatos não foram suficientes para que eles desistissem de for- mar uma família. Aprisionados, um ao outro, foram se acostumando às discussões exaltadas, aos palavrões trocados, às agressões físicas recí- procas e, assim, formaram uma estrutura de convivência, em que havia muito mais desacordos que acordos, mais disputas que harmonia e mais sofrimentos que prazeres. Filho de peixe, peixinho é, diz o ditado, e assim aconteceu com Rosária. A filha seguiu a mãe: decidia os problemas, desde o início do namoro, na base do grito. Adamastor, aos poucos, adorando sua beleza santa, foi envergando-se à sua braveza. A princípio, para evitar uma disputa maior e com receio de perdê-la, depois, acostumado e sem forças, a seguia, deixando o barco descer, desgovernado, a cachoeira desconhecida. Ele não conseguia imaginar que, ele próprio pudesse ter mais discernimento e dirigir sua embarcação para outro porto, menos perigoso. Muitas vezes, eles se perguntavam o que foi buscado naquela união de- vastadora. Sem respostas, em nome do amor, foram se adaptando às bri- gas e ao sofrimento que um causava ao outro. Quando, ocasionalmente, surgia um período de calmaria, por motivos inexplicáveis, alheios à von- tade dos dois, um deles, prontamente, desafiava e agredia o outro e, no- vamente, reiniciavam as desavenças. Com o retorno à estrutura-padrão, brigas continuadas, conhecida de ambos - que eles compreendiam e com as quais tinham aprendido a viver - eles navegavam satisfatoriamente. Dr. Adamastor, antes de se casar, para ficar mais próximo de Rosária, começou a trabalhar com o sogro, inicialmente, no depósito de material de construções e depois, na edificação de pequenos prédios. Apesar das desavenças constantes e continuadas, o casamento foi realizado, com muita pompa, orquestra, garçons, presença de políticos e comerciantes.
  • 29. 29Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Clarimundo, sendo empresário na área de material de construção, con- vidou todos os fregueses e amigos. Por outro lado, D. Gertrudes tinha uma parentela enorme no Nordeste. Todos vieram para a grande festa. Lucinho foi o último filho de Dr. Adamastor e Rosária, uma família que teve um início de vida tumultuado, numa casa onde a desordem e o sofrimento imperavam. Segundo consta, quando ela esperava Lucinho, ele andou paquerando uma estagiária da firma de construção de Cla- rimundo. Os boatos alcançaram os ouvidos de Rosária, que foi tomar satisfação, no escritório do marido, com Silbene, que desmentiu tudo, a princípio, com veemência; aos poucos, pressionada pelo tom de voz e palavrões cada vez mais pesados de Rosária, cedeu e, praticamente, confessou o crime. Há notícias de que ela teria tido um filho dele. A partir dessa data, Silbene foi dispensada, vigiada, impedida de jamais se aproximar de Adamastor. Rosária, para punir seu marido, decidiu ficar sem ter relações sexuais com ele, por uma temporada. De fato, usou a briga como pretexto para ficar livre do que não gostava; nunca fora uma mulher entusiasmada por contato sexual com homem algum. Tinha aversão pelo corpo masculino e, mais ainda, pelos órgãos sexuais masculinos. Com respeito aos ho- mens, ela seguiu a mãe, que não escondia o desencanto com eles, fossem de qualquer espécie. - Não tolero nem cheiro de homem. Homem tem cheiro de queijo ardi- do, falava D. Gertrudes, dando boas gargalhadas, diante de Clarimundo que, nesses momentos, abaixava a cabeça e ria sem graça. Clarimundo, acostumado com a mulher, manhoso, já desistira de dis- cutir com Gertrudes, há muito. Continuava a vida sexual, sem chamar atenção de ninguém, com uma ou outra mulher que encontrasse, que aceitasse suas cantadas melosas e demoradas. Geralmente, procurava as mulheres pobres, incultas, sem ideais e planos. “Estas são fáceis”, assim ele dizia, “não dão trabalho; não preciso gastar muito e nem de muita conversa, que, de fato, não tenho”.
  • 30. 30Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br O Incesto: Cega Obsessão De tempos em tempos, Rosária adoecia mentalmente. Nessas ocasiões seu humor oscilava, ora ficava desanimada e triste e ora alegre e anima- da. Suas crises não só se tornavam mais freqüentes, como também, mais graves. Numa fase ela se julgava bela, saudável e inteligente e, na outra, imaginava-se feia, “burra”, envelhecida e próxima do fim. Durante uma de suas crises de euforia ela comprou, de uma só vez, dúzias de calcinhas, todas iguais; dezenas de livros de culinária e, ainda, anéis e relógios variados, sem quaisquer objetivos. Bastava alguém lhe oferecer - podia ser qualquer objeto - para que ela comprasse, sem pensar. Emitia cheques, sem refletir, de sua conta conjunta com Dr. Adamastor. Suas energias aumentavam espantosamente; ficava horas conversando e, ao discutir um assunto, antes de terminar a idéia inicia- da, passava a outra. Isso tornava sua fala, muitas vezes, impossível de ser compreendida. Deitava-se tarde, levantava-se antes do dia amanhecer. Ao sair da cama, ainda de madrugada, acendia as luzes da casa, lavava, furiosamente, a cozinha, o banheiro e as roupas da casa, mesmo não estando sujas. Arredava mesas e cadeiras, abria e batia portas e, com a voz esganiçada, cantava alto Beijinho Doce, Chuá-Chuá, Paloma Triste; suas canções preferidas. Ao pronunciar as palavras dos versos mais românticos, usava um tom de voz meloso. Assim, ao cantar: “que beijin- ho doce que ela tem, um abraço apertado, suspiro dobrado...”, na palavra “suspiro”, suspirava demoradamente; em “beijinho”, contraía os lábios, imitando o beijo dado. Esses trejeitos irritavam ainda mais os ouvintes insones. Na área sexual, ela se transformava, de inibida e tímida, numa mulher livre e promíscua. Olhava sedutoramente para os homens que encontrava, exibia seus seios, antes escondidos, vestia roupas vermelhas, pretas e amarelas; tudo que pudesse despertar a sexualidade. Quando os impulsos aumentavam, ela agia como um animal, era guiada apenas pelos instintos. Dr. Adamastor, que tinha assistido a várias crises, acostumou-se com
  • 31. 31Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br essas mudanças e com os hábitos extravagantes. Num mês de fevereiro, uma nova crise de excitação, iniciada em meados de dezembro, alcançou o cume. Numa noite, após Dr. Adamastor chegar do trabalho, ele convidou-a para assistir ao jornal, que ela era encarregada de gravar para ele. - É...Certo...Ouviu?...Compreendeu?... Vamos ver o jornal. - Ah... meu bem, esqueci...falou agitada e rindo, passando, as mãos nos cabelos desarrumados. - Como? Esqueceu? Ouviu? Naturalmente... Não é seu trabalho... Você não faz nada, realmente; passa o dia falando. Parece que, hoje, você, desde cedo, está com o falador aberto. - Também, para quê? Uma chatura... Esse jornal não tem nada. São as mesmas notícias... Você já conhece todas: desastres de pessoas descon- hecidas; nunca é um nosso parente ou amigo, só uma vez aconteceu isso; reuniões inúteis na Câmara; reclamações ao Procon e mais um seqüestro...ela não parava de falar... - Eu gosto...Ouviu? Exatamente...É o que você faz... Cada dia, você se torna mais incapaz... As alterações entre os dois foram aumentando, com xingamentos e pala- vrões recíprocos. Como sempre acontecia nas brigas, ele foi expulso do quarto do casal. Uma forte tempestade caiu naquela noite, acompanhada de relâmpagos e trovoadas - dos quais ela tinha pavor, principalmente, do barulho. Durante as crises, o medo aumentava, ela só se acalmava junto a uma companhia, qualquer que fosse, até mesmo um pequeno cão, servia para protegê-la. Frustrado por não assistir ao noticiário da noite, irado com Rosária, Dr. Adamastor, resmungando, pegou o pijama e foi dormir no
  • 32. 32Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br quarto de hóspede. Nessa noite, no auge da agitação, ela arrebanhou Lucinho, que tinha em torno de cinco anos, para lhe fazer companhia. Lucinho dormiu logo após se deitar na cama do casal. Entretanto, foi despertado pelo barulho da porta do quarto que se abrira, bem como pelos passos duros e pesados da mãe. Ele abriu, preguiçosamente, os olhos, examinando-a no escuro. Ela se aproximou e o fitou com ternura. Passou as mãos brancas e lisas, nervosamente, sobre os cabelos do filho e começou a observá-lo. Hesitava; não decidira o fazer. Caminhou, inqui- eta, até o armário de medicamentos, procurando um comprimido para dormir. Engoliu-o, com o auxílio de um pouco d’água que trouxera para o quarto. Enquanto esperava o sono, começou a tirar as roupas, sem se preocupar com o filho. Automaticamente calçou seus sapatos de salto alto e caminhou nua, de um canto ao outro do quarto. Nesse instante Lucinho abriu os olhos espantados, diante da cena inesperada. Rosária, agitada, incapaz de se criticar, vestiu uma calcinha vermelha e, em seguida, através de gestos cadenciados e libidinosos, colocou um sutiã da mesma cor e estilo. Dirigiu-se até o criado-mudo e ligou o rádio de cabeceira. Sons calmos de uma antiga canção italiana, “Cuore Ingrato”, invadiram o quarto sinistro. Ele, imóvel e espantado, observava o ritual ali iniciado. Criticado, con- stantemente, por praticar más ações, sentia-se culpado de observar o que via: sua mãe, de calcinha e sutiã, caminhando pelo quarto, sem objetivo aparente. Era um espetáculo impossível de ser entendido. Uma vez terminada a canção italiana, ouviram-se os sons belos e singe- los de “Plaisir D’Amour”, uma suave canção de amor francesa, na qual os prazeres do amor são descritos como efêmeros e as dores, eternas. Encantada, envolvida pela melodia, fitou Lucinho com olhos acesos e brilhantes; com inusitada volúpia. Ela se agitava. Dominada pelos instintos, descontrolada ou, possivelmente, possuída pelo demônio, maquinalmente, retirou, a calcinha vermelha, deixando o corpo coberto apenas pelo sutiã vermelho, que protegia os grandes e já frouxos seios.
  • 33. 33Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Na penumbra do quarto, Rosária parecia dançar, como fazem as profis- sionais de “striptease”, diante da platéia atenta. Examinou novamente o filho: era uma presa fácil demais para ser devorada. Uma fresta de luz medrosa e fria penetrava, com dificuldade, pela porta semi-aberta do quarto, permitindo ver a cena desoladora e tétrica que começava a ser representada naquela noite de tempestade. Lembrava os espetáculos teatrais pobres das pequenas cidades do interior. Ela se virou, na penumbra, pôs-se a examinar seu próprio corpo; olhava-o, tocava-o, todo ele, na solidão da noite. A respiração foi se acelerando. Com extremo cuidado e delicadeza, ela, após untar as mãos num creme perfumado, deslizou as pontas dos dedos por todo o corpo, massagean- do-se através de toques macios, lentos mas firmes. Ele, assistia a tudo. Gelado e imóvel, fingia-se de morto. Não compreen- dia o que se passava diante dos seus olhos amedrontados. Rosária, mais uma vez, caminhou, afoita, até ao armário e de lá retirou um vidro com um líquido leitoso e morno. Com seus olhos de felino, parecia, observar o momento oportuno para avançar sobre a presa distraída. De suas narinas saía um sopro quente. Assentou-se na cama e untou novamente o corpo. Seus dedos agitados aumentavam a força e o ritmo das massagens. Seu corpo aquecia, queimava. Inebriada, ela não mais avaliava as conseqüências de suas ações libertinas, atos que, fora da crise de euforia, ela seria a primeira a criticar com veemência e asco. Encantada consigo, observando cada pequeno órgão - sinal ou vestígio de sexualidade - com curiosidade e interesse, ia se friccionando, a cada momento, com mais vigor. De tempos em tempos, virava o rosto excitado em direção ao filho, inerte e desarmado. Lucinho, cada vez mais cheio de culpa, segurava, como podia, a respiração, ao participar, estupefato, sem o desejar, do desatino da mãe.
  • 34. 34Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Após alguns minutos, a respiração barulhenta de Rosária tornou-se mais profunda, sincronizada com os movimentos das mãos e dedos; seus músculos enrijeceram. Dominada pela loucura, sem controlar suas ações, girou o corpo em direção ao filho. Possessa, deitou-se, com seu corpo grosseiro e imenso, sobre o delicado organismo do filho e o abraçou fortemente. Seus grandes seios, umedecidos pelo líquido leitoso e pelo suor que nascia de seus poros, saíram do pequeno sutiã vermelho, espalharam- se sobre o rosto do garoto, quase impedindo-o de respirar, deixando-o, ainda, mais assustado e paralisado. Sufocado, ele escutava a respiração ofegante de sua mãe, os gemidos retidos e profundos, os sons vindos do seu agitado coração. Após alguns instantes, participou da convulsão muscular que irrompeu em todo o corpo de Rosária. Lucinho, perplexo, teve vontade de chorar, entretanto, ao mesmo tempo, imaginou poder estar recebendo um carinho desconhecido, diferente dos usuais; um abraço jamais experimentado. Lembrava que sua mãe, só raramente, transmitia-lhe afetos. Imobilizado, ficou em dúvida se deve- ria ou não corresponder àquela afeição ou, no mínimo, aceitá-la, mesmo sendo um sinal de amor incompreensível. Assim raciocinando ele resistiu ao impulso de gritar e continuou paralisado, como um animal pequeno e fraco, diante do inimigo grande e poderoso, da ameaça im- possível de escapar. Esmagado sob ela, refletia acerca daquela conduta, estranhamente afetu- osa, naquela hora da noite. “Por que tudo aquilo: a nudez, o creme, a música, o vestir e despir da calcinha, os movimentos de mãos que ele ja- mais presenciara? O que isso significaria? O que teria feito para merecer, naquele dia, tanto empenho de sua mãe, sem receber xingamentos, nem nada ser exigido?” Até então, as relações com sua mãe tinham sido admoestações, maltra-
  • 35. 35Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br tos; jamais afagos. Os espasmos corporais se extinguiram; a respiração se normalizou e o coração passou a bater mais ritmado. Por fim, a razão retornou. Ao olhar para o filho, pôde observar que ele tinha os olhos abertos e espantados. Desorientada, afastou-se rapidamente de seu corpo e, pigarreando, quase sem voz, perguntou-lhe, aflita: - Acordou, filhinho? Ele tornou a fechar os olhos, mas logo os abriu. Observou sua mãe, certo de que iria receber um castigo. Imaginou ter cometido algum erro grave, não sabia qual. Ela, assustada, afastou-se ainda mais. Mais serena e racional, culpada e envergonhada, começou a soluçar. Ao se levantar, caminhou pelo quarto escuro e abafado, vigiada pelos olhos aflitos do filho e, só minutos depois, lembrou-se de que estava nua. Procurou, apressada e desajeitadamente, suas roupas, custando a encontrá-las, uma vez que, por instantes, desapareceram no quarto desmazelado. Vestiu, na pressa, a calcinha pelo avesso, ajeitou, de qualquer modo, o sutiã; colocou, por cima de tudo, o “pegnoir” de veludo vermelho lam- buzado de cremes e, chorando, deitou-se, com cuidado, ao lado do filho. Minutos depois, começou a abraçá-lo, num misto de atração e aversão. Chorando e excitada, beijou-lhe o rosto, passando as mãos, ainda un- tadas, sobre seus pequenos olhos. Tentava, automática e inutilmente, fechá-los, pois era intolerável fitá-los. Sabia que estava sendo examinada por aquela mente indagadora: “Estaria sendo criticada? O que ele estaria pensando naquele instante? Compreendia aquela ação vil, executada num momento de desespero?” Ela, angustiada, se perguntava... A tempestade, aos poucos, foi cessando, um vento fresco soprou. Rosária imaginou se enforcar; sair daquela casa, para sempre; desa- parecer. Gemendo e orando, ela permaneceu enrolada no corpo do filho,
  • 36. 36Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br mesmo após Lucinho ter adormecido profundamente. Nas suas orações, pedia perdão a ele e a Deus, implorava uma solução divina para seu pecado. Julgava-se perdida. Na manhã seguinte, ele acordou, com a mãe desperta a seu lado. Ela, com os olhos empapuçados, continuava a lhe pedir, insistentemente, desculpas, por tê-lo assustado, na noite anterior. Rogo-lhe, ainda, que, aquele momento vivido por ambos, fosse um segredo entre eles. Mas esses encontros, ao contrário do imaginado, desejado e prometido, não terminariam naquela noite. Durante outros períodos de loucura, as mesmas cenas se repetiram, com o esquecimento completo das promes- sas e boas intenções do passado. Preparado o ambiente, agora mais racional, ela já não se preocupava com o espanto do filho. Tudo já era conhecido. O hábito sempre fez as pessoas suportarem e até apoiarem os costumes mais abomináveis e indignos. A partir da primeira experiência, Lucinho foi se acostumando com os abraços e os carinhos da madrugada. Às vezes, quando os intervalos entre os encontros cresciam e sua mãe, calada e triste, passava semanas sem chamá-lo para o quarto, ele perguntava-lhe quando iria dormir no seu quarto. Ela disfarçava, pigarreava, fingia não o ouvir. Sua pele branca tornava-se cheia de pontos avermelhados e lágrimas envergonhadas umedeciam seus olhos azuis. Com o passar do tempo, o prazer da novidade foi diminuindo. Ela chegava sorridente e agitada; Lucinho esperava o início do conhecido espetáculo. Deitado, sem se mexer, ele permanecia estendido, como um defunto à espera de urna funerária e da hora de ser enterrado. Numa tarde, durante suas crises de euforia, ele, ao sair com sua mãe para fazer compras, foi obrigado a esperá-la numa lanchonete, ao lado
  • 37. 37Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br do edifício onde entrara. Para diminuir sua angústia, ela lhe ofereceu um sorvete de creme, recheado com morangos. O acompanhante de sua mãe, naquele dia, era o pintor de paredes, o mesmo que minutos antes, esteve trabalhando em sua casa. A espera foi longa e cansativa. Por mais de uma hora, Lucinho ficou sem o que fazer. Na saída, sua mãe ordenou-lhe, como sempre, nada dizer acerca do passeio. Devia contar, caso seu pai perguntasse, que estavam fazendo compras. Agora mais crescido, pôde notar que sua mãe, junto ao pintor, ficava diferente do que era em casa: o semblante, o tom de voz se transformava. Ela se tornava gentil e risonha. Ao se despedir do pin- tor, ela o abraçou carinhosamente. Ele lhe deu um tapinha no traseiro. Ela, em lugar de brigar, deu boas gargalhadas. Aborrecido com o que viu, mas ainda sem decifrar seu significado, ele resolveu não mais sair com sua mãe e também, não mais dormir no quarto dela. Os tempos passaram. Rosária se transformou mais uma vez. Agora ficou triste e calada. Passava a maior parte do dia deitada no quarto fechado, não tirava a velha camisola branca e nem tomava banho, respondia somente ao que lhe era perguntado e queixava-se de tudo, principalmente, de doenças. Com voz fraca, quase inaudível, murmu- rava: “É preferível morrer a viver assim; não tenho vontade, nem prazer com nada. Para mim, o fim seria um descanso, uma bênção do céu”. Os familiares, acostumados às mudanças, não estranhavam quando uma ou outra personagem da mesma atriz, entrava em cena. Como eram diferentes! Os amantes da fase de euforia, não tão próximos dela, não entendiam a metamorfose, o afastamento repentino e “sem motivos”. O pintor acostumado a sair com ela, ao voltar a pintar a casa, aproximou- se, seguro de sua concordância e tentou marcar um encontro, entretanto, foi duramente afastado por ela:
  • 38. 38Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br - Como? Eu? Você está louco. Não quero saber de homem; já basta o que tenho. Detesto fazer sexo. Quer saber? Detesto você. Tenho nojo de tudo, não sei onde estava com a cabeça ao ir com você, naquele lugar. Nunca mais me fale nisso...Suma; saia da minha frente, depravado! O que nunca mudava era seu gênio irascível. Numa ou noutra crise, alegre ou triste, calada ou falante, ela sempre estava nervosa com tudo. Bastava acontecer alguma coisa que a desagradasse, algo que ela não desejasse. Mas Rosária tinha seus momentos positivos. Nos momentos de lucidez, preocupava-se com a casa, com Dr. Adamastor e com sua conduta em relação a Lucinho e com o mal que causara ao filho. Para compensar o sentimento de culpa, ela se dedicou mais a ele, deu-lhe mais carinhos e presentes. Entretanto, essa estratégia pouco funcionou. Ele estava, cada vez mais convencido, que sua mãe fazia algo errado, que não podia ser comentado. Ele demorou a entender o espetáculo do qual participara e que se iniciou naquela noite escura de fevereiro. Mais crescido, ao conversar com os companheiros, concluiu que o acontecido, não tinha ocorrido com eles. Quando decifrou com clareza o significado do evento, desesperou-se.
  • 39. 39Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Na Serena Manhã de Domingo Numa manhã quente e abafada de novembro, pouco depois do sol mos- trar os primeiros clarões avermelhados, por cima das montanhas azula- das que contornam Belo Horizonte, Rosária, acompanhada dos filhos, foi à casa de sua mãe, cumprir uma obrigação familiar: as enfadonhas visitas domingueiras. D. Gertrudes e o marido Clarimundo moravam numa casa do bairro dos Funcionários, na zona sul da cidade. Um imenso portão de ferro ficava logo na entrada da casa. Era nele que as crianças menores subiam para girá-lo, abrindo e fechando, até que um adulto viesse acabar com o divertimento proibido. A casa, comprada por Clarimundo quando suas rendas aumentaram, situava-se no bairro chique da cidade. Era ali onde moravam as famílias de maior poder aquisitivo ou possuidoras de “status” profissional mais elevado. Para entrar na porta principal da casa era preciso descer uma escada de três degraus, forrada pelos mesmos ladrilhos encardidos, imitando âncoras pretas, existentes no chão do alpendre. Duas cadeiras e um sofá simples, de ferro batido, com assento e almofadas de veludo marrom, adornavam o comprido alpendre cercado por grades, formando desen- hos sinuosos. Em cima das grades de ferro, assentava-se uma peça de madeira roliça escura, já gasta. Uma porta de madeira larga e alta, talhada com figuras geométricas, separava o alpendre da sala de visitas. Dentro da casa quase não entrava a luz do sol. A sala era iluminada por oito pequenas lâmpadas que saíam horizontalmente dos bocais de um velho lustre empoeirado de vidro amarelo, pendurado no centro do teto. O brilho fosco das lâmpadas era refletido no forro branco de madeira pintada a óleo. Um cheiro de cera exalava-se do assoalho brilhante de peroba vermelho- escura. No centro da sala uma mesa redonda, coberta por uma toalha de
  • 40. 40Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br linho branco engomada, rodeada por seis cadeiras altas, tudo em jaca- randá. O silêncio da casa, seu mobiliário, a quantidade de madeira e ferro, transmitia ao visitante, uma sensação de estar entrando num museu ou numa igreja; num local apropriado para se fazer preces e escapar do mundo barulhento e confuso. Contrastando com a apatia e a velhice do interior da casa, lá fora, o que se via era a vida florescendo. Do lado direito: roseiras vermelhas, orgul- hosas de sua vitalidade e beleza, um pouco adiante rosas brancas e am- arelas, indiferentes às agressões das margaridas atrevidas, violetas tristes tentavam se espichar para alcançar as roseiras, crisântemos exalando perfume completavam o jardim. Insetos, dourados pelo sol, começavam seu aquecimento e busca do alimento. No fundo do terreno, erguiam-se pés de mamão. Ao lado, jabuticabei- ras deixavam cair, no solo, milhares de jabuticabas que ali apodreciam. Goiabeiras ainda novas começavam a mostrar as flores brancas. No ar exalava-se um perfume adocicado que era disputado pelas abelhas e beija-flores em busca do néctar daquele paraíso. Isolada e desapontada, uma tamareira estagnava. Plantada pelo antigo dono, jamais dera um fruto, apesar dos desejos e cuidados dos proprietários, todos encantados com sua imponência. Num canto, cercadas por telas de arame, galinhas, barulhentas e agita- das, ciscavam à procura de algum resto de canjiquinha ou, caso tivessem mais sorte, de abocanhar uma desvalida minhoca, que ousasse atraves- sar aquele lugar proibido. Através de uma pequena porta de tela, todos os dias D. Gertrudes ali entrava para colher ovos frescos. As galinhas se bicavam, sob os olhares severos de um único galo, com grandes cristas e barbelas vermelhas, orgulhoso do papel desempenhado. Ao lado do galinheiro, nos canteiros estreitos, acima do nível do solo, cobertos por terra escura e úmida, pés de alface verdes e viçosos, couve,
  • 41. 41Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br cebolinha, salsa e taioba. Uma mangueira enorme, situada na divisa do quintal, mostrava as frutas ainda pequenas e verdes, prometendo, para o fim do ano, milhares de mangas grandes, cheirosas e avermelhadas, infe- lizmente, não tão saborosas quanto sua beleza e perfume. Embaixo dessa frondosa árvore, um banco de madeira pintado de cinzento, ao seu lado uma rede com listras pretas e vermelhas, entre a mangueira e o muro, esperava algum corpo cansado. Era nesse recanto que a família de D. Gertrudes se reunia todos os do- mingos em torno, principalmente, dela. Os irmãos foram chamados para dentro de casa, para participar de um jogo de dados, comprado para distrair os netos. Lucinho, cansado do jogo, saiu para o terreiro, com a prima Isaura, de sua idade, que havia dormido, aquela noite, com a avó. Os dois, após ter visitado o galinheiro, balançavam-se no portão de entrada, quando ninguém os via. No fundo da casa, ao lado do galinheiro, algumas pedras haviam sido abandonadas desde o tempo em que a casa fora construída. Esse era o lugar preferido pelas crianças que ali brincavam. Bastava levantar uma das achatadas e esbranquiçadas pedras, principalmente, nos meses de outubro e novembro, para que de lá saíssem escorpiões, grandes e pequenos, todos andando apressados, com os ferrões levantados e pron- tos para dar a terrível picada. Lucinho e a prima, divertiam-se com os perigosos e atraentes bichinhos. Naquele domingo preguiçoso, debaixo da mangueira, D. Gertrudes, assentada no banco cinzento e Rosária, deitada na rede, esperavam a chegada do resto da família. Possuidoras de temperamentos semelhan- tes, procuravam inquietas e inutilmente, por um assunto que não vinha: - A vida hoje em dia tá muito difícil, falou Rosária, sem grande entu- siasmo, tentando iniciar a conversa, mesmo sabendo que este papo não
  • 42. 42Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br lhe interessava e, nem mesmo, à mãe. - Você tem razão minha filha, hoje tá tudo mudado, o mundo não é mais o mesmo... resmungou D. Gertrudes, bocejando. Ninguém quer nada com o serviço... com a dureza... Antigamente, as empregadas trabal- havam até doze horas por dia. Levantavam ainda antes do sol nascer... Eram dedicadas à patroa, gostavam da gente e, no entanto, ganhavam menos do que agora e, além disso, quase não roubavam... Olhe a sujeira no quintal. Elas não ligam prá nada... Deixam tudo por nossa conta... Nesse instante, D. Gertrudes se vira e aponta para algumas folhas caídas, contraindo a face enrugada e empurrando os lábios para frente, para indicar seu asco e desprezo pelas subalternas. - É mesmo... a senhora tem razão, balbuciou cansada Rosária, sem pre- star muita atenção ao que foi dito nem às expressões de sua mãe. Esse ano essa jabuticabeira deu tão pouco... Antes dava muito mais. Eram mais doces, saborosas, maiores... - Não foi tão pouco, um pouco menos do que no ano passado...Você não veio aqui...deu até muita...Também, o tempo...Choveu menos esse ano, no mês de setembro, quando elas florescem...Mas, olhe o chão...Está cheio de jabuticabas que caíram. Dá uma pena, tudo apodrecido. Falam que é porque as árvores estão sendo cortadas. É o progresso, chove menos... Não sei para onde estamos caminhando. Tenho saudades de antigamente, de Maceió, do tempo de criança. - É, suspirou...ando exausta... resmungou Rosária, olhando para o chão, junto ao pé de jabuticabas. Não sei por que já acordo assim, cheia de dores. Hoje mesmo, levantei com uma dor aqui na perna!...Não sei o que é... Acho que são varizes. Tenho muito medo delas... Dizem que podem dar derrame. Não queria ter filhos; engordei tanto... minha barriga au- mentou, está cheia de estrias. Coisa ruim é velhice...
  • 43. 43Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br - Por quê? D. Gertrudes muda o tom de voz baixo e aborrecido, elevando-o, para fingir interesse e simpatia pelo que foi dito: - Você é tão nova...Como está sua vida com Adamastor? - A gente vai vivendo, ele não é mau, trabalha muito, ganha bem, mas... - Todo casamento é igual, as mulheres sofrem muito nas mãos dos homens... Isso eu sei... resmungou D. Gertrudes; - Minha mãe já falava o mesmo, ela também nunca viveu bem com meu pai... Você assistiu ao programa... Como é mesmo o nome?... Aquele de debates...Eu gosto muito dele... À tarde, quando não tenho o que fazer - e agora é quase todos os dias - eu assisto... - Eu também não perco... A gente fica tão bem informada...Tem muita gente boa que vai lá. Outro dia, foi um psiquiatra, o Dr. Marcondes, eu acho... comentou Rosária. - Eu assisti. Falou sobre “sexo e casamento”, não foi? Exclamou mais animada Gertrudes. - Acho que sim. Não guardei bem o que falou; mas ele fala muito bem, todo mundo sabe disso, além do mais, é um bonitão, alegre e falante, com um homem assim é que eu gostaria de ter me casado. Já assisti out- ros programas em que ele apareceu... - Fala mesmo, mas tem umas idéias esquisitas... Não concordo com elas... Não gosto dessas novidades de sexo...Fechou a cara D. Gertrudes enquanto falava. - Seria bom se ele morasse em Belo Horizonte, iria consultar-me com ele.
  • 44. 44Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br - Vá a São Paulo...Consulte lá...Os melhores médicos vão para São Paulo. Mas, consultar pra quê? Perguntou assustada D. Gertrudes. - Uns problemas que tenho, nada sério... Rosária evitou falar. - Todos nós temos problemas. Que problema é pior do que ter que mexer com essa gentinha, cada uma pior e mais safada do que a outra? E mais ainda: ter que abraçar um homem quando a gente quer é dormir. Que saudade de minha mãe, suspira D. Gertrudes...Para que consultar com psiquiatra? - Certas coisas... É... com relação a Lucinho. Coisa à toa... bobagens, bobagens...Depois, eu te conto, continuou Rosária, evitando se expor e desinteressada. - Eu também tenho problemas com respeito ao seu pai. Minhas preocu- pações não são apenas com as empregadas. Cuidar da casa dá trabalho: verificar se a comida está bem feita, se a roupa foi bem lavada e pas- sada. O pior é vigiar. Temos que vigiar sempre. Outro dia, uma camisa nova de Clarimundo, ele tinha vestido poucas vezes, foi queimada, ficou imprestável. Dá uma pena! E o ruim, você nem imagina... ela nada falou. Eta gente à-toa. Ela colocou a camisa na gaveta, como se estivesse boa para vestir. Ele é um bocó. Vestiu a camisa furada e nem notou. Imag- ine só... ir trabalhar assim! Por pouco, saía com ela. Que vergonha! Não gosto nem de pensar... Seu pai já não é mais o mesmo homem... nunca foi lá grandes coisas, agora está um caco. Não serve pra nada. Você com- preende o que quero dizer, não é? De certo modo até gosto. - É sempre assim... Também, não sei em que um psiquiatra poderia ajudar... continuou a falar sem prestar atenção nos comentários de sua mãe... - Aqui em Belo Horizonte tem médicos bons. Por que não procura um deles? Muitos têm aparelhos para examinar as pessoas, alguns desses vêem ou descobrem...não sei bem... me falaram... até o que nós pensa- mos. Por meio de uns risquinhos no papel, os médicos descobrem como está dentro da nossa cabeça. Deus me livre disso. Nunca irei fazer esses exames... Completou assustada D. Gertrudes.
  • 45. 45Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br - É... já me falaram acerca de um deles... um que só trata dessas coisas... - Que coisas? Perguntou mais espantada e atenta, D. Gertrudes. - Nada. Nada. Coisas que passam pela minha cabeça. - Fale com sua mãe, eu saberei ajudá-la...quem sabe? Sua mãe sempre foi sua amiga. Mãe só deseja o bem; quem mais pode ajudar um filho? - Concordo, toda mãe gosta do filho...Depois... uma hora eu te conto... hoje não! Não é um bom dia para isso, é uma conversa longa...comentou Rosária. - Tá bem, lamentou D. Gertrudes, desinteressada mas, ao mesmo tempo, satisfeita em não ter que ouvir uma possível e longa história. - Que pas- sarinho bonito, aquele azulado!... todas as manhãs fico horas ouvindo seu canto... Olhe lá em cima da mangueira, no alto... Ele gosta de ficar escondido nos galhos mais altos. Bom para ele... - Qual? Não estou vendo. Estou vendo um beija-flor. - Não... ali, na mangueira. Ah! Agora foi para a goiabeira. Acho que ele tem um ninho por aqui. - Você se lembra daquele canarinho amarelo que papai me deu? pergun- tou Rosária. E lamentou, sem esperar pela resposta: - Era tão bonito!... - Lembro. Até para dormir, você o levava para o quarto, para lhe fazer companhia. - O que foi feito dele? Não me lembro... - Fugiu, um dia. O arame da gaiola era largo demais para seu tamanho. Ainda ficou por uns dias, no quintal... - Não! Lembrei-me. Ele foi dado para Alfredo. Eu até chorei muito. Agora me lembro... resmungou Rosária. - Você está enganada. Falou firme D. Gertrudes. - Para o Alfredo foi dado o poodle, que você tinha e que sujava tudo. - É... Não sei... Hoje está tão quente...Não é? Mudou de assunto Rosária. - Ninguém chegou ainda!...comentou D. Gertrudes, - Sua irmã sempre foi preguiçosa, levanta tarde... - Que horas são? Estou sem relógio. Não gosto da pulseira me apertando o braço, dá uma impressão de prisão. Gosto de ficar livre... disse Rosária bocejando. - Eu também estou sem o meu. Deve ser umas onze horas.
  • 46. 46Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br - Isso tudo? Por isso mesmo é que já estou começando a ficar com fome. - Quer comer alguma coisa? Há leite e frutas na geladeira, convidou D. Gertrudes. A conversa se prolongou por mais de uma hora nesse tom. Mudavam, ora para um assunto, ora para outro, sempre se arrastando com dificul- dade e nunca chegando a lugar algum. As duas tinham consciência de que não havia entre elas, como nunca houve, uma intimidade, que diziam existir; por certo, nunca mesmo, a tenham desejado. Mãe e filha falavam por falar, pela vergonha de estarem, frente à frente, sem terem nada que dizer. Buscavam assuntos mas eles se esvaziavam rapidamente. - Por falar em comida, continuou Rosária, você leu ontem o jornal? - Não. Não leio o jornal todos os dias. Pego e olho apenas os filmes que vão passar na televisão. Sabe, uma coisa que me atrai são os classificados. Gosto de ver as ofertas, tem muita coisa boa e barata... - Também vejo, outro dia comprei esse sapato que estou usando, baratís- simo. Mas tem também muita porcaria nas liquidações... contou Rosária. - Se tem! - A gente precisa ficar bem informada. Gosto muito da página policial. Nesse instante Rosária se levanta da rede e pega o jornal de domingo que está em cima do banco... - Olhe aqui, algumas notícias de que gosto de ler, pois me divertem: “Mulher mata marido a machadadas”. - Eu, às vezes, leio também essas notícias. A gente pensa: “Ainda bem que não foi comigo”. Elas nos distraem. O que mais a gente quer nessa idade? gemeu D. Gertrudes dando um sorriso dúbio. - Mas existem notícias que eu gostaria que acontecessem comigo: “Gan- hou sozinho o prêmio da Loteria Esportiva”. É o que mais sonho. Assim poderia comprar tudo o que desejasse sem ter que pedir dinheiro àquele pão-duro. - Ele te dá o que você deseja! completou D. Gertrudes. - Sim. Mas tenho que fazer várias coisas para agradá-lo e não gosto... A conversa continuava, às vezes quase parava, como um velho camin- hão, soltando vapor pelo radiador, pesado e cansado, subindo uma ladeira devagar, falhando freqüentemente. A todo o momento, surgiam
  • 47. 47Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br perguntas acerca das horas. - Deve ser onze e meia, ou mais. Marilda até agora não chegou. Gosto muito de conversar com ela, não com o Artur, ele é um “chato”! - Quando vocês eram mocinhas..., Oh! Que tormento era para ela sair da cama para ir ao colégio. Você também era preguiçosa. Hoje, um pouco menos... - Eu não sou boba. Para que ficar trabalhando o dia todo? Para depois morrer? “Do mundo nada se leva”. Quero ter uma vida boa. De repente, Isaura chegou aos berros, até à avó. - Ele me mordeu! Ele me mordeu! - O que foi minha filha? perguntou a avó, preocupada. Mas D. Gertrudes, bem como Rosária, apesar de apreensivas com os gritos da menina, não deixaram de ficar satisfeitas. A partir da mordida e do pedido de socorro, elas seriam forçadas a tomar uma decisão, a agir: deixariam de lado a conversa aborrecida, que já estava se tornando insuportável. Antes, sem direção, agora, a partir do grito, sabiam o que deveriam fazer. Rosária olhou para a sobrinha e constatou que o braço dela estava realmente marcado por ferimentos de dentes. Lucinho, que a acompan- hava, sabia que seria repreendido. Quase sem falar, como era seu hábito, diante da mãe e da avó, balançou a cabeça, sinalizando que não fora ele o causador da lesão. Mas não havia dúvida. Ele era o agressor. O garoto foi duramente xingado por sua mãe, diante da avó, para alegria das duas. Desse modo elas aliviaram suas tensões. Ele encarnou, como era co- mum, a culpa do mal-estar crônico.
  • 48. 48Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Um Dia de Cão Ele, na escola, foi transferido de uma sala a outra, a procura de uma pro- fessora ideal para o ajudar a combater a distração e desmotivação. Saiu da sala de D. Edina e foi para a de D. Maria de Lourdes, desta foi para a sala de D. Francisca. Ele era inteligente e estudioso nas matérias de que gostava; mas revoltava-se sempre, contra a rígida disciplina escolar, principalmente após ter sido transferido para essa nova professora. D. Francisca era gorda como um barril, baixa, morena de cabelos muito pretos. Tinha os olhos escuros, miúdos, rodeados por olheiras roxas. No centro da face, nascia um nariz fino e pequeno para seu rosto arre- dondado e grande. Lembrava os desenhos infantis, representando a lua cheia. A pele do rosto era vermelha-escura, como a dos índios. Durante as aulas, caminhava de um lado a outro da sala, falando alto. Parecia estar repreendendo alguém, mesmo quando explicava um texto poético, ou fazia pilhérias...Nunca sorria. Os alunos, aos pares, nas estreitas carteiras, encolhiam-se espantados diante de sua figura autoritária. Apesar da baixa estatura, D. Francisca era percebida, aos olhinhos amedrontados dos alunos, como um gigante perigoso, pronto para feri-los. Era para ela que os maus alunos, bagun- ceiros, agressivos e desatentos eram enviados, como punição. Cabia a ela transformá-los em cordeiros bem comportados. Jamais um aluno enfrentou essa professora temida. Ele, como a maioria, ali estava para ser domesticado, por não se adaptar a certos companheiros e por não acatar ordens, para ele injustas. Naquele início de tarde de segunda-feira, quando os alunos parecem estar cansados desde o começo da aula, D. Francisca ordenou a Lucinho, asperamente como sempre, que recitasse o “Pai-Nosso”. A oração tinha por finalidade agradecer a Deus pela semana que passou, sem desgraças e pedir para que o pior dia da semana corresse em paz.
  • 49. 49Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Ele, após relutar por instantes, caminhou amedrontado para a frente da turma. Apesar do nervosismo, começou a rezar até bem. Num certo momento atrapalhou-se e interrompeu por segundos a oração. Fez-se um silêncio, só quebrado quando ele recomeçou. Um calor invadiu o seu corpo. Diante dos olhares fixos e apreensivos dos colegas, ele se pertur- bou mais ainda. A partir desse instante não conseguiu prestar atenção à oração declamada. Em lugar de dizer, “ vosso nome”, falou “nosso nome”. Bastou essa pequena falha para que a professora começasse a gritar, quase encostando a boca no rosto de Lucinho, permitindo-lhe sentir o hálito quente e nauseabundo que saía de sua garganta junto com perdigotos amargos. Cada vez mais abafado, Lucinho começou a ficar tonto. Enquanto ele encolhia, D. Francisca parecia crescer. - Mais depressa, molenga! Mais depressa! Fale corretamente. Comece de novo...Comece de novo! Mais depressa! Você não termina nunca! Ainda erra! Ande! Depressa! Preciso começar a aula. O modo de ela falar imitava o som dos discos estragados e rachados, que têm a agulha agarrada num lugar, repetindo a mesma letra e melo- dia. Ela parava por instantes e retornava com os gritos, nos ouvidos de Lucinho: - Parece um bicho-preguiça! Molenga! O pavor continuava entre os alunos que mantinham a tensão reprimida. Os sons foram ficando distantes, Lucinho, antes vermelho, tornou-se pálido; não mais conseguia raciocinar. Parou por instantes. Tomou novo impulso e prosseguiu, balbuciando perdido: - “Pai-Nosso...Pai-Nosso...” Não foi além disso. Os colegas gargalharam, liberando a ansiedade. D. Francisca o olhava agressiva, desanimada. Ele não se concentrava em nada. A ira dela aumentou. - Você rezando assim, vai para o inferno! Não sabe nada! Palerma! Fica só no “Pai nosso, Pai nosso”... Parece um idiota.
  • 50. 50Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br A face de Lucinho, cada vez mais pálida, estampava uma mistura de medo e ódio. Pensou em avançar no pescoço curto da professora, que sustentava sua horrorosa cabeça redonda. Faltaram-lhe força e cor- agem para tanto. Em dúvida, diante da idéia de atacar ou fugir, prestes a desmaiar, quase vomitando, amoleceu quando foi amparado por dois co- legas e levado até à pequena enfermaria da escola. Ali, foi prontamente atendido por uma simpática e bondosa enfermeira, que lhe passou as mãos macias e sedosas sobre o rosto esverdeado. Em seguida, ela lhe deu um copo d’água com açúcar, pedindo-lhe, com a voz mais doce do que o açúcar ingerido, para que ele se recostasse num divã e descansasse, por uns minutos. Em pouco tempo ele ficou calmo e menos tonto, sua pele readquiriu o tom róseo natural, estava curado. Depois de recuperado, foi mandado para casa mais cedo, por ter “adoe- cido”. Em casa, como era o costume, foi repreendido pela mãe que não acredi- tou na história contada e, depois, mesmo esforçando-se para aceitá-la, colocou-lhe a culpa, xingando-o duramente, pois não podia tolerar uma ignorância tão grande; um filho seu que não soubesse, uma reza tão fácil. Sem entender as críticas, Lucinho decidiu, sem outra coisa a fazer no inesperado horário vago, bem como para escapar do ambiente tenso de casa, ir até à casa da avó. Lá chegando contou o episódio para D. Gertrudes, que, inicialmente, também o repreendeu. Depois, ela criticou, com ódio, a maldade da professora. As críticas violentas da avó à professora, deram a ele alívio e força para enfrentar, no dia seguinte, D. Francisca. A avó, para agradá- lo, ofereceu-lhe ovos frescos para se fortificar. Era assim que recebia os netos. Enquanto esperava a avó colher os ovos no galinheiro, ele permaneceu,
  • 51. 51Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br solitário e pensativo, na casa escura. Ouviam-se apenas os batimentos de seu coração assustado e o tic-tac do grande relógio de pêndulo da parede da copa. Uma pequena borboleta preta entrou na sala; dançou de um lado a outro e pousou na parede branca. Lucinho a invejava. Ele caminhou até à cozinha, tudo limpo, no lugar...ninguém. Inspe- cionou o banheiro, a despensa fechada, voltou à sala. Olhou para um e outro objeto, como se procurasse alguma coisa importante. Ele mesmo não sabia o que era. Nada. Abriu a porta do quarto de casal, a cama estava arrumada, a penteadeira fechada. Uma abelha zunindo, passou perto de seus ouvidos fazendo cócegas. Virou-se para trás; não havia ninguém, o silêncio continuava. Entrou no quarto da avó. Abriu curioso o armário, olhou para um terno, pôs um pouco do perfume na mão e o cheirou, pegou o aparelho de barba do avô e o passou no rosto. Ofegante, voltou até à porta do quarto, olhou: nenhum barulho. Lá fora, D. Gertrudes cantava: “Neste mundo eu choro a dor/ Por uma paixão sem fim/ Ninguém conhece a razão/ Por que choro no mundo assim...” Puxou com cuidado e nervosamente a porta semi-aberta do criado-mu- do e abriu-a completamente. Assustou-se por instantes. Estava parali- sado diante do que via. Sua respiração acelerou-se. Ali estava; poderoso, belo, quieto, entretanto, ameaçador, o objeto de sedução, a força externa procurada e temida. Fixou os olhos na peça brilhante, pequena, leve e atraente. Com o cuidado de quem não quer ferir objeto tão importante e delicado, gentilmente, apanha o antigo e possante Smith-Wesson, um revólver guardado e mostrado constantemente, com orgulho, pelo avô. Ele estava agora, nas suas mãos, preso, sem reclamar, a relíquia adorada. D. Gertrudes continuava sua cantoria: ”Lá no céu/ junto a Deus/ Em silêncio minh’alma descansa/ e na terra, todos cantam/ eu lamento
  • 52. 52Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br minha desventura/ nesta grande dor.” Ele, fechada a porta do criado, embrulhou o revólver com extremo cuidado no jornal jogado em cima da mesa. A borboleta voou espantada com o vento provocado pelo movimento das folhas do jornal. D. Gertrudes continuava sua procura. O galo cantou desarmônico, enquanto o sol fraco e pálido desaparecia no horizonte ensangüentado. Ele correu para fora do quarto com o revólver. Rapidamente, desceu as escadas, antes que a avó voltasse. Escondeu, com cuidado, a arma de- baixo das “Coroas de Cristo”, perto do portão, por onde teria que passar para sair. Desejava ir logo, afastar-se dali, não podia ser descoberto. Um sinal de vida percorria seu organismo de menino. A avó entrou na sala, carregava os ovos e cantava os últimos versos: “ Ninguém me diz/ que sofreu tanto assim/ esta dor que me consome/ não posso viver/ quero morrer/ vou partir para bem longe daqui/ Já que a sorte não quis/ me fazer feliz.” Nervoso, ele queria sair rápido, antes que ela entrasse no quarto e desse falta do revólver. Recusou firmemente o convite feito por ela para jantar, alegando estar tarde. Não desejava que a avó o acompanhasse até o portão. Entretanto, ela decidiu carregar um pouco mais os ovos, com receio de que ele os quebrasse ao subir a escada para alcançar o passeio. Esse fato o obrigou a deixar o embrulho escondido por mais algum tem- po. Despediu-se e andou pelas ruas da vizinhança, sempre olhando para trás, disfarçadamente, para ver se a avó já tinha entrado em casa. Depois de caminhar não mais de cem metros, ele retornou, ofegante, como se fosse realizar um perigoso roubo. Não havia ninguém no portão, nem na varanda ou janelas da casa. Precisava completar o que iniciara. Pisando nas pontas dos pés, levantando exageradamente cada perna antes de abaixá-la, entrou no terreiro da casa e retirou, aliviado, o embrulho debaixo dos espinhos.
  • 53. 53Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br Saiu revigorado. Transformado em adulto, agora possuía poderes espe- ciais, era capaz de enfrentar pessoas perigosas; até “gangs”. Não precisava mais ter medo de ninguém. Atravessou, corajosamente, as ruas cheias de carros e da multidão dos fins de tarde. Empanturrado de energia e dis- posto a gastá-la, caminhou um pouco mais do que o necessário, dando voltas pelo centro da cidade. Andava espichando seu pescoço fino, que saía do tronco encurvado; levantava os ombros para parecer maior do que era. Olhava destemido, ora para um lado, ora para outro. Examinava e desafiava os passantes distraídos, sempre segurando seu embrulho de jornal. Procurava o marginal perigoso, algum valente disposto a manter com ele um duelo de bravos. Imaginava, se preciso fosse, matar o ousado desafiador. Recordava, animado, os filmes de faroeste, imitava, vicari- antemente, o andar compassado e firme dos mocinhos. Para isso, man- tinha os braços finos e sem músculos, afastados do tronco e balançava as grandes mãos soltas e dependuradas que saíam dos compridos braços. Parecia estar pronto para a luta. Contava, segundo a segundo, o momen- to de começar a atirar contra o maldito fora-da-lei. Era chegada a hora da decisão. Ele mostraria para todos quem era o gatilho mais rápido de Belo Horizonte. Para sorte dos apressados trabalhadores que regressavam exaustos do serviço naquela segunda-feira, ninguém o desafiou. Ninguém nem mes- mo o notou. Desse modo, ele chegou em casa com o revólver intacto e com as cinco balas no tambor. Uma das balas, a mais próxima da agulha do cão, sistematicamente, era retirada pelo avô, para prevenir acidentes, segundo este dizia. O Smith-Wesson foi cuidadosamente guardado dentro de um sapato, quase sem uso, calçado apenas nos casamentos e grandes aniversários. A caixa foi fechada e escondida dentro da gaveta do guarda-roupas. Antes de dormir, com o quarto bem trancado, tornou a adorar a arma. Passou as mãos com carinho sobre seu cano curto, alisou-o, sentiu e deliciou- se com sua textura dura, lisa e fria, com o polimento que refletia a luz. Tudo nele era belo, tudo indicava poder e simplicidade, virtudes que ele
  • 54. 54Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br jamais possuíra, que sempre invejara. Antes de escondê-la entre folhas de papel almaço, rodou o tambor, colocando uma bala pronta para ser disparada. O novo embrulho foi guardado, com cuidado, na pasta esco- lar. Esperava com ansiedade a chegada do dia seguinte. Cantarolando a melodia “High Noon”, Lucinho caminhou sereno e seguro, corpo solto, ao meio-dia daquela tarde, até chegar à sala de aula. Sentia-se protegido pelo simbolismo da arma; imaginava ser respeitado pelos colegas e professoras, caso descobrissem sua força escondida, seu grande poder. Entrou na sala de cabeça erguida, como há muito não ac- ontecia. Seus pequenos olhos brilhantes e sua boca fechada e contraída, davam-lhe a aparência de forte e destemido. Ele mostrava um ar arro- gante, um olhar desafiador, a disposição para a grande batalha. Mas, sua grande e poderosa inimiga, distraída, ocupada com outros afazeres, verificava quais alunos não haviam respondido à chamada, a troca irregular de lugares sem sua ordem, a discussão entre Alfredo e Mário, por causa do empate do Cruzeiro e Atlético. D. Francisca mal o olhou, não percebeu sua presença, desconsiderou sua valentia. Tratou- o como fazia todos os dias, nem mesmo se lembrou do episódio do dia anterior. E, assim, a professora iniciou a aula. Deu algumas explicações iniciais, dissertou sobre a proclamação da República, que seria comemo- rada na próxima semana. A sala estava como quase sempre, quente e abafada. Recebia em cheio o sol da tarde. Ela falava, falava, cansada, monótona. Alguns alunos dor- mitavam, outros conversavam e, poucos, ou nenhum a ouviam. Ele estava atento, esperava o momento propício para o início da luta. Quase mostrou a arma ao colega do lado, quando a professora foi ao quadro negro. Quando ia mostrar o troféu guardado, a professora pediu silêncio, aos gritos. Prosseguiu, pedindo a um aluno para vir à frente comentar o que ela havia explicado antes. Lucinho, apressado, levantou-se, queria ser