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Contracapa:
Na mesma tradição de Garota interrompida, Correndo com as tesouras e An unquiet
mind, esta autobiografia dolorosa e maravilhosamente escrita narra as experiências de
uma mulher vivendo com o transtorno bipolar.
"Mais do que demolidora história sentimental, Bipolar é uma biografia com força
descritiva... e observações assustadoramente lúcidas."
PUBLISHERS WEEKLY
"Escrito em capítulos episódicos, que imitam os altos e baixos da depressão bipolar -
mania, hipomania, depressão -, o livro de Cheney é de dar frio na barriga."
LOS ANGELES TIMES
"Esta é uma biografia pungente... O texto é maravilhoso e a história, cativante."
DR. LORI ALTSHULER,
DIRETOR DE PESQUISAS SOBRE DESORDENS DE COMPORTAMENTO
DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA (UCLA)
Abas:
Em um momento, Terri Cheney está agachada sob sua mesa em seu escritório de
advocacia em Beverly Hills, paralisada pela depressão; no momento seguinte, está
empinando pipas à beira de um penhasco em Big Sur, sob uma violenta tempestade.
Em outro momento, ela está tomando uma dose excessiva de analgésicos com
tequila, e depois está perdidamente apaixonada. Bonita, extremamente bem-sucedida
e brilhante, Cheney - como outros 10 milhões de pessoas, apenas nos Estados Unidos
- sofre de transtorno bipolar, um terrível segredo que quase a matou.
Nesta angustiante, mas esperançosa, autobiografia, ela revela as manifestações e os
efeitos causados por essa devastadora doença sobre si própria e sobre aqueles que a
cercavam, enquanto se debatia nas profundezas da depressão e nos picos temerários
da mania. Desde as múltiplas tentativas de suicídio, experiências de quase morte,
noites na cadeia e exploração sexual, passando por amizades rompidas e pelo
tratamento de eletrochoque, Bipolar é o retrato de uma vida vivida em extremos, uma
inesquecível viagem numa montanha-russa.
BIPOLAR
MEMÓRIAS DE EXTREMOS
Terri Cheney, advogada especializada em entretenimento e
propriedade intelectual, trabalhou em proeminentes escritórios de
advocacia de Los Angeles, e ao longo de dezesseis anos de carreira
representou clientes como Michael Jackson e Quincy Jones, além de
grandes estúdios de cinema como Universal e Columbia Pictures. Ela
agora dedica seu talento à causa das doenças mentais. Foi nomeada
membro do conselho de consultores do Programa de Pesquisas sobre
Desordens do Comportamento da Universidade da Califórnia, Los
Angeles, e fundou um grupo comunitário de apoio no Instituto de
Neuropsiquiatria da UCLA. Terri Cheney mora em Los Angeles,
Califórnia.
Para meu pai e minha mãe.
Prefácio
Se você embarcar comigo nesta jornada, uma
advertência é necessária: o transtorno bipolar, ou depressão maníaca,
não é uma viagem segura. Ela não vai partir do ponto A e chegar ao
ponto B, da maneira que você esteja acostumado. E uma viagem
caótica, imprevisível. Nunca se sabe qual será a próxima etapa. Eu
queria que este livro espelhasse a doença, que desse ao leitor uma
experiência visceral. É por isso que decidi contar minha história de vida
por episódios, em vez de seguir uma ordem cronológica. É mais fiel à
maneira como eu penso. Quando olho para trás, raramente me lembro
dos eventos em termos de data ou seqüência. Pelo contrário, lembro-me
do estado emocional em que estava. Desvairada? Deprimida? Suicida?
Eufórica? A vida, para
8 Ter ri Cheney
mim, não é definida pelo tempo, mas pelo estado de espírito do
momento.
Tentei descrever aquilo de que me lembro do modo mais
verdadeiro. Mas a doença mental cria em nós sua própria realidade,
vibrante e tão convincente, que, por vezes, é difícil descobrir
exatamente o que é real e o que não é. E isso fica ainda mais difícil com
o passar do tempo, porque a memória é a primeira vítima da psicose
maníaco-depressiva. Quando estou no estado maníaco, tudo de que me
lembro é o momento. Quando estou deprimida, tudo de que me recordo
é a dor. Os detalhes se perdem.
Mas este transtorno, ironicamente, tem me prejudicado muito
menos do que o tratamento. Já há muito perdi o controle de todas as
medicações psicotrópicas que tive que tomar ao longo dos anos, ou a
natureza e a quantidade de seus efeitos secundários. Mais devastador, no
entanto, foi o processo da terapia eletroconvulsiva (ECT), que durou até
1994. A ECT pode ser de grande ajuda como um último recurso de
tratamento, mas é um processo conhecido por causar amnésia. Por um
bom período, esqueci-me até mesmo das coisas mais simples: em que
parte da cidade eu vivia, o nome de solteira da minha mãe, para que
servia uma tesoura. Algumas dessas alterações de memória
desapareceram, mas continuo a ter dificuldade em recordar
acontecimentos passados e reter a lembrança dos mais recentes. O
mundo nunca mais foi tão nítido e claro como era antes do ECT. Em
alguns casos, os eventos que descrevi podem ser comprovados pela
polícia ou por registros hospitalares (embora alguns dos hospitais não
existam mais). Optei por mudar o nome da maioria das pessoas e
instituições representadas, para proteger suas identidades. As
experiências que descrevi são tão difíceis e particulares que preferi
apenas contar minha própria história.
Contar estes fatos foi o que me manteve viva, mesmo quando a
morte parecia tão sedutora. É por isso que a compartilhei, apesar de
certas passagens ainda serem muito dolorosas para recordar, mesmo
através de uma névoa obscurecida
pela medicação, pela doença mental e pela terapia eletroconvulsiva. Mas
a doença viceja na vergonha, a vergonha prospera no silêncio e tenho
sido omissa por tempo demais. Este livro representa aquilo de que me
lembro. Este livro é a minha verdade.
Terri Cheney Los Angeles, Califórnia, 23 de outubro
de 2006
1
Eu não disse a ninguém que estava indo à
Santa Fé para me matar. Achei que era mais informação do que as
pessoas precisavam saber, além do quê, se alguém tentasse descobrir a
verdade poderia interferir em meus planos. As pessoas sempre lhe
querem bem, mas elas não entendem que, quando você está seriamente
deprimido, a concepção do suicídio pode ser a única coisa que lhe
mantém vivo. Basta saber que existe uma saída — mesmo que
sangrenta, mesmo que permanente — para tornar a dor quase
suportável por mais um dia.
Fazia cinco meses que meu pai havia morrido de câncer no
pulmão, e o mundo não era mais um lugar para se viver. Enquanto
papai ainda estava vivo, fazia sentido me levantar todas as manhãs,
12 Terri Cheney
deprimida ou não. Havia uma guerra a travar. Mas no dia em que dei
a ordem de aumentar a morfina para uma dose letal, a luta perdeu
todo o significado para mim. Então eu quis morrer. Não vi nada de
excepcional nesse desejo, embora tivesse apenas 38 anos de idade.
Naquelas circunstâncias, parecia uma resposta perfeitamente natural.
Estava fatigada, esgotada, e a morte soava como um período de férias
para mim. Tudo o que realmente desejava era estar em outro lugar.
Quando me foi oferecida a oportunidade de deixar Los Angeles
e fazer uma longa viagem até Santa Fé sozinha, fiquei em êxtase.
Aluguei uma pequena hacienda perto de Canyon Road, a parte
intelectual e artística da cidade, com galerias de arte, barzinhos de
jazz e excêntricos cafés-livrarias. Era um bom lugar para morar,
especialmente em dezembro, quando a neve caía espessa e profunda
sobre as ruas calçadas de pedra, abafando o ruído da cidade de tal
modo que parecia que todos andavam de meias.
Houve uma quantidade excepcional de neve naquele mês.
Tudo parecia um estudo de contrastes: o sol feroz e redondo do
deserto, fulgurante enquanto eu tremia; as sombras brancas e azuis da
neve contra as grossas paredes vermelhas; e sempre, para toda parte
que eu olhasse, havia as pontiagudas colunas da cidade antiga
pressionando-se contra as lustrosas curvas do novo. Mas o mais
flagrante contraste era eu: emocionada até as lágrimas, simplesmente
por estar viva nesses ambientes — e mais determinada do que nunca
em morrer.
Nunca me senti tão bipolar na minha vida.
A crise maníaca chegou num jorro que durou quatro dias. Quatro
dias sem comer nem dormir, apenas sentando-me não mais do que
cinco minutos em cada lugar. Quatro dias de compras - e Canyon
Road é o lugar certo para se fazer isso, com todo o seu fantástico
conjunto de lojas. E quatro dias falando indiscriminadamente e sem
parar: em primeiro lugar, com todas
as pessoas que conhecia na Costa Oeste e, em seguida, com todos que
continuavam acordados na Costa Leste; depois, na própria Santa Fé,
com qualquer um disposto a ouvir-me. A verdade é que eu não
precisava falar, apenas tinha medo de ficar sozinha. Havia coisas
pairando no ar, em torno de mim, que não queria lembrar: a expressão
no rosto do meu pai quando eu disse a ele que era a fase IV do câncer, já
em metástase; seu olhar perplexo quando não pude fazer sua dor ir
embora; e a maneira como seus olhos me observavam no final, um olhar
fixo seguindo-me em cada movimento, implorando por um conforto que
não fui capaz de lhe dar. Nunca pensei que pudesse ser assombrada por
algo tão familiar, e tão querido, quanto os olhos de meu pai.
Na maioria das vezes, porém, eu conversava com homens.
Canyon Road tem uma série de bares e boates extremamente
simpáticos, todos a pouca distância da minha hacienda. Não era difícil
para uma ruiva, com um sorriso no rosto e um brilho febril nos olhos,
engajar-se numa conversa que só terminaria nas primeiras horas da
manhã seguinte, na casa dele ou na minha. A única palavra que eu não
dizia era "não". Mas consigo aliviar a minha consciência lembrando-me
de que o sexo maníaco não é realmente intercurso, é apenas uma outra
forma de aliviar a insaciável necessidade de contato e comunicação. Em
lugar das palavras, simplesmente falava usando a minha pele.
Eu já havia decidido, há muito tempo, que a véspera de Natal
seria meu último dia na Terra. Escolhi esta data precisamente porque
tinha significado e beleza, e escolhi Santa Fé por causa de seu festival
de luzes. Neste dia, cantores vinham de todos os lugares do mundo,
descendo as ruas iluminadas entoando cânticos natalinos até o
amanhecer. Todas as portas ficavam abertas e o ar era impregnado pelo
aroma pungente de cidra e pinhão.
Escolhido morrer quando o mundo estivesse no seu melhor
momento, quando eu poderia oferecer meu coração a Deus e dizer:
"Obrigada por tudo". Não é que eu seja ingrata. É só que não sou mais
capaz da alegria que uma noite como esta merece. Alegria é
14 Terri Cheney
uma blasfêmia, agora que papai morreu; viver neste mundo é um
desperdício. E isto, em minha opinião, é uma razão mais do que
suficiente para morrer. Esta oração não escrita era a única nota de
suicídio que eu pretendia deixar.
A véspera de Natal surgiu brilhante e fria, com previsão de neve
para aquela tarde. Era o quarto dia da minha farra maníaca, e minha
mente continuava acelerada. Por causa disto, já havia cuidadosamente
definido o meu traje de despedida: um longo vestido preto de cashmere
— não para dar um ar macabro ao acontecimento, mas porque cashmere
é um tecido que não amassa, e o preto porque poderia esconder alguma
mancha de sangue, ou de vômito, não prevista. Eu também separei todas
as pílulas que guardei ao longo do último ano, incluindo os
medicamentos pesados que meu pai não tivera tempo suficiente para
tomá-los. Eles estavam dispostos em ordem de provável letalidade e
separados em punhados, cerca de dez comprimidos em cada um.
Contando pela última vez, concluí que havia muito mais do que
trezentos comprimidos e cápsulas, o que significava uma enorme
quantidade para engolir. Só então percebi que eu não tinha tequila
suficiente para empurrar todos eles goela abaixo. Água não era uma
opção. Eu precisava da interação.
Coloquei as luvas, chapéu e casaco, peguei as chaves do carro e
fui procurar a loja de bebidas mais próxima, rezando para que estivesse
aberta. A neve caía pesadamente, o suficiente para me obrigar a ir mais
devagar, mas eu estava com sorte. Não só a loja estava aberta, como
tinha a minha tequila favorita. Comprei três garrafas, e o senhor no
caixa, que já me conhecia das várias vezes que eu visitara sua loja,
desejou-me um "Feliz Natal". Estiquei a mão para cumprimentá-lo, mas
de repente me voltei e dei-lhe um forte abraço e o beijei nas duas
bochechas. "Feliz Natal!", eu disse, e alguma coisa gelada e afiada
vibrou dentro de mim. Havia prometido a mim mesma não dar nenhum
adeus...
A neve caía rapidamente quando voltei à hacienda. O aquecedor
do carro não estava funcionando muito bem e eu estava
tremendo tanto que mal pude abrir a bolsa para pegar as chaves de casa.
Eu odiava ficar com frio. Remexendo na bolsa com os dedos meio
endurecidos, perguntei-me se, na hora em que o corpo fosse colocado na
sepultura, aquele último arrepio realmente abandonaria os ossos. Cinco
minutos depois, percebi que a chave não estava na minha bolsa, nem no
carro, nem caída na neve. Estava, pura e simplesmente, em algum outro
lugar, e eu estava trancada lá fora, longe do meu sonho mais
desesperado.
Felizmente, meu celular estava no porta-luvas e uma prestativa
telefonista conseguiu indicar-me o único chaveiro trabalhando na
véspera de Natal. Mas iria demorar pelo menos uma hora até o chaveiro
chegar. "Melhor se agasalhar bem", disse ele. "Eu vou fazer melhor do
que isso", pensei. Abri uma garrafa de tequila, tomei um longo e
profundo gole, e comecei a cantar canções de Natal em ordem
alfabética, para mim mesma.
Já tinha passado três vezes pelo alfabeto inteiro, no momento em que
o chaveiro chegou, uma hora e meia mais tarde. Estava cantando a
plenos pulmões e não ouvi a sua chave batendo contra o gelo incrustado
na janela do carro. Tudo que vi foi um par de olhos avermelhados, sob
espessas sobrancelhas, e bêbada como estava, só pude pensar em Papai
Noel. "Porta", disse apontando. "Trancada".
Enquanto ele experimentava uma chave após a outra, perguntei
sobre seu trabalho, sobre a vida em Santa Fé, sobre a vida em geral. A
velha mania de saber de tudo que estava a minha volta, e, felizmente,
encontrara um participante bem disposto. Na verdade, eu nem terminava
minhas perguntas direito e ele já as respondia, completa e
profundamente. Foi um choque quando percebi que ele estava falando
ainda mais rápido do que eu, e que suas respostas não faziam muito
sentido. Havia algo de errado com ele, algo ligeiramente fora do lugar.
Olhei para aquele homem enquanto falava e percebi que era mais jovem
do que eu pensara. E praticamente sem dentes. Um único dente da frente
era
16 Terri Cheney
enquadrado por dois remanescentes na parte de trás. O resto da
gengiva era escuro, como uma grossa fatia de fígado de bezerro. E
seus olhos não eram apenas vermelhos, eram sangrentos, com
virulentas estrias brancas pela superfície do globo ocular.
Mesmo sob a forte névoa de tequila, ouvi uma advertência. "Dê
um passo para trás", disse a mim mesma. "Componha-se, seja mais
formal." Mas nós já havíamos embarcado nesse ritmo estranho: eu
perguntando, ele respondendo; eu ouvindo com todo o meu corpo. Não
sabia como fazê-lo parar e estava preocupada em não ofendê-lo. Antes
de definir meu próximo passo, o estoque de chaves acabou e o chaveiro
disse que a única coisa a fazer seria quebrar o vidro.
Eu adorei a idéia de quebrar vidros naquele momento. Desejava
eu mesma fazer isso, mas ele se recusou. Enrolando a mão em um trapo
velho e gorduroso, ele disse para me afastar e fechar os olhos. Então
esmurrou a vidraça uma vez, duas vezes, e, na terceira, o vidro tilintou
pelo chão de pedra. Não há nada melhor do que quebrar alguma coisa
— a lei, um painel de vidro, seja lá o que for — para animar um estado
de espírito depressivo. "Isso merece uma bebida", disse, enquanto ele
abria a porta.
Preparei tudo rapidamente: os copos, o sal, o limão e uma garrafa
recém-aberta de tequila. Uma vez que este seria provavelmente o último
brinde que eu faria na vida, queria dizer algo profundo, e mais do que
isso, queria a bebida. "Pelo arrombamento!" Quando tocamos nossos
copos, vi uma mancha de sangue na camisa. "Acho que você se cortou
na janela", eu disse a ele. "Sente-se, e eu vou cuidar disso."
"Não é nada", respondeu, puxando seu braço.
"Eu já vi sangue antes", comentei rindo. Ele se sentou e
começou a desabotoar a camisa, mas parou de repente.
"Não posso, uma dama não deveria ver isto."
"Sinto muito", eu disse. "Você tem queimaduras?"
"Não", resmungou, aborrecido.
"Cicatrizes?"
"Nada disso."
Aproximei-me e pus a mão em sua manga. "Então deixe de ser
bobo. Você está sangrando sobre a minha mesa." Sem olhar para mim,
ele terminou de desabotoar e enrolou sua camisa, expondo assim, a
partir do pulso até o bíceps, a maior exposição de material pornográfico
que eu já tinha visto tatuado sobre o corpo de um homem.
"Sou assim no corpo todo", disse. "Eu usava drogas e não
conseguia raciocinar direito, naquela época."
Sem querer, seu bíceps flexionou, fazendo com que o corpulento
casal tatuado começasse a copular. Senti meu rosto ficar ruborizado,
mas eu não conseguia tirar os olhos dali. Foi grotesco e estranhamente
inocente: tão desprovido de apelo sexual como as tiras de jornal do
domingo.
Não consegui resistir e explodi em risadas, dizendo-lhe que tinha
visto coisa muito pior nas minhas viagens. Ele não respondeu, nem
olhou em meus olhos. Comecei a limpar o pequeno corte na parte
superior do antebraço, esperando relaxá-lo, mas o contato o deixou mais
nervoso. "Estou tão arrependido", ele continuava dizendo. "Se eu
pudesse, eu ia queimar tudo isso."
"Está tudo bem, espere mais um pouco."
"Não, eu sou medonho", insistiu. "As vezes, eu só quero
morrer."
Há muitas maneiras fáceis de responder a uma declaração como
esta — de modo superficial, ou com doses de sabedoria — mas a ironia
abrandou-me. Ali estava eu, apenas esperando que aquele pobre homem
fosse embora, para que eu pudesse me matar, por volta da meia-noite; e
de repente eu devia tranqüilizá-lo, reafirmando a santidade da vida?
Servi mais uma dose de tequila.
Ele empurrou o copo e balançou a cabeça. Vi uma lágrima
começar a se formar, no canto do olho. Desdentado, tatuado como um
maluco, fosse o que fosse, aquele homem estava sofrendo e eu conhecia
muito bem esse sentimento. Virei seu braço, expondo o punho com um
demônio dançando. Umedeci a área com tequila,
18 Terri Cheney
espalhei um pouco de sal e me dobrei um pouco, lambendo por entre
os tendões. Depois, engoli a tequila de um gole só, virei o copo de
boca sobre a mesa e suguei o limão.
"Isso é o que penso da suas tatuagens", eu disse. "Agora
tome sua bebida, é véspera de Natal".
As intenções dos maníaco-depressivos são sempre boas. As
conseqüências de seus gestos, quase nunca. Eu não tive nenhuma
intenção sexual com aquilo, era apenas um animal machucado lambendo
as feridas de outro animal.
Mas então ele se levantou repentinamente e me agarrou pelos
braços, puxando-me para perto e me beijando. Tentei escapar, mas seu
aperto era muito forte e sua boca, muito insistente. Eu não queria sexo.
Queria apenas conversar por um minuto ou dois, e depois queria morrer,
apenas isso. Sua boca tinha um gosto lodoso, era escura e azeda, e eu
não conseguia afastar a imagem daquelas gengivas repugnantes. Meu
estômago revolveu, parte por causa da tequila, parte por causa da bile, e
tentei me soltar, novamente. Senti o aperto relaxar, então ele se afastou
um pouco, e eu ouvi "não!" — só essa palavra - e não sei qual de nós
disse isto antes de o mundo se apagar.
Acordei várias horas mais tarde, estatelada em minha cama,
estranhamente rígida e toda ferida e úmida. Estava sozinha. Quando
empurrei a coberta, rocei minhas coxas e senti uma viscosidade fria e
familiar. Devia estar menstruada, pensei, mas logo senti o cheiro de suor
— não um suor que eu conhecia, mas o suor de um homem. A parte
interna de minhas coxas estava palpitando, dolorida demais para mexer,
mas mesmo assim me inclinei para olhar. Estavam cobertas com
manchas de sangue, começando a brilhar.
Realmente, isso não deveria ter tanta importância. Eu ia mesmo
abandonar este corpo, continuei dizendo a mim mesma, assim que puder
me levantar e engolir os comprimidos. Mas teve importância, e muita.
Da mesma forma que queria deixar a casa
imaculada, meu desejo era ter uma morte limpa. Sem nenhuma ponta
solta, sem nenhuma despedida, especialmente para a minha inocência.
Eu já tinha usado minha cota de despedidas.
Eu certamente não queria recordar nem sentir, mas as lágrimas
começaram a fluir, indesejadas. Com elas, vieram as memórias: o
gargalo de uma garrafa azul quebrada, oscilando para frente e para trás
diante de meus olhos, antes de desaparecer entre as minhas pernas; um
pesado braço apertando minha garganta; uma rápida respiração na
minha orelha. E, por todo lado, os pequenos demônios dançando,
encrespados, sobre a superfície da sua pele, da minha pele, de nossas
peles.
Olhei para baixo novamente, o mosaico de sangue sobre os
lençóis. Era muito sangue, não poderia ter vindo apenas das lacerações
nas minhas coxas, que pareciam bastante superficiais. Não, devia haver
um ferimento mais profundo. Agachei-me e procurei cuidadosamente
entre minhas pernas. Meus dedos surgiram com sangue fresco. Sempre
há um profundo ferimento, se você procurar por ele.
Deitei-me no travesseiro, esgotada. Mas a dor física não me
incomodava mais. Foi sobrepujada por uma monstruosa onda se
aproximando, um tsunami que eu vinha tentando evitar desde que
chegara à Santa Fé. Apertei os olhos; mordi meus lábios, mas me sentia
esmagada pela noção de que, pela primeira vez na minha vida, estava
total e completamente só.
"Se papai estivesse vivo", uma voz interior me defendeu. Ele teria
me salvado de tudo isso: não apenas do homem demoníaco com a
garrafa azul, mas também de todas as perigosas manias que me levavam
a esses homens, além da depressão suicida que se seguia a esses
encontros. Se papai estivesse vivo, nada disso aconteceria, e eu nem
teria vindo à Santa Fé. Se ele estivesse vivo... A verdade é que papai não
me salvaria de nada disso. Nem das manias, nem da depressão, e muito
menos das conseqüências, porque se recusava a acreditar que eu
estivesse doente. "É tudo coisa da sua cabeça", dizia, com certo
desprezo e
20 Terri Cheney
sem nenhum traço de ironia nessa afirmação. Papai não acreditava em
psiquiatria, mas sim no esforço individual — do tipo "aprume-se
novamente e siga em frente, pelos seus próprios meios."
O momento que eu mais tentava esquecer de repente voltava à
vida, em todos os pormenores, até no acentuado e adstringente cheiro do
quarto de hospital. Tinha sido uma longa noite para nós dois. O câncer
havia se espalhado para os ossos e até mesmo a morfina não era capaz
de manter a dor afastada por muito tempo. Nos últimos dez dias, eu
havia dormido numa cama de lona ao pé da cama de meu pai e usado o
que tinha conseguido enfiar numa mala, apressadamente preparada
enquanto aguardava os paramédicos chegarem. Eu mal sabia se era dia
ou noite, exceto pelo número de pílulas que tomava.
Estava zelosamente contando o suprimento da manhã, um bom
punhado de comprimidos, quando olhei para cima e reparei meu pai me
observando. Aproximei-me do leito para beijá-lo, mas ele virou a cabeça
abruptamente. "O que há de errado, papai?", perguntei. "Você quer que
eu chame a enfermeira?"
Ele fez que sim com a cabeça e eu pressionei o botão. Seus olhos
tremulavam e fechavam, mas sua respiração parecia regular, então
sentei de volta e continuei contando minhas pílulas. Quando a
enfermeira chegou, minutos depois, gentilmente acordei meu pai. "Ela
está aqui, papai. A enfermeira. O que você deseja?" Seus olhos estavam
sombrios e seu rosto parecia estranho, a pele acinzentada; mas quando
se sentou e falou com a enfermeira, sua voz era surpreendentemente
forte. Ele sinalizou na direção da mesa de cabeceira. "Há um documento
na gaveta", disse ele. "E eu preciso de uma caneta."
A enfermeira abriu a gaveta e tirou o papel. Eu sabia o que era,
porque ajudara o advogado de meu pai a preparar o documento e
registrá-lo. A enfermeira tirou uma caneta do bolso e entregou-a a
papai, juntamente com o testamento, e virou-se para sair.
"Não, você fica", disse ele à enfermeira. "Alguém deve
testemunhar isso". Com agitação, começou a riscar o meu nome em
todas as páginas que aparecia.
"Ela é viciada em drogas", disse papai. "Basta ver todas essas
pílulas". A enfermeira olhou para mim. Eu ainda estava com os
comprimidos na minha mão e instintivamente tentei fechar meus dedos.
Mas eram muitos e eles se espalharam pelo chão. "É transtorno bipolar",
comecei a explicar, mas meu pai interrompeu.
"Eu a coloquei em Vassar, na faculdade de direito, e tudo o que
ela se tornou foi uma droga de uma viciada. Quem poderia acreditar
nisso? A minha menina". Então ele baixou a cabeça no travesseiro e
começou a gemer suavemente.
A enfermeira, ainda bem, ocupou-se com meu pai. "É hora de sua
medicação", disse, enquanto lhe dava doses e mais doses de pílulas
coloridas, um arco-íris de farmacologia, tudo muito bonito, mas inútil.
Exausto de tanto engolir, meu pai logo fechou os olhos e adormeceu.
Eu estava lá quando acordou, algumas horas mais tarde, e estava
lá também quando ele morreu, na semana seguinte. No funeral, rezei
para ter forças de perdoar-lhe por seus erros, e pensei que tinha
conseguido. Mas agora, deitada em Santa Fé, machucada e muito
abatida para lutar contra os meus próprios sentimentos, eu tive a
revelação. Eu poderia perdoar meu pai por ter me deserdado. Poderia
perdoar-lhe por se recusar a acreditar que eu estava doente. Poderia até
perdoar-lhe por não ter me protegido do mundo... Mas, como ele poderia
ter feito tudo isso, quando essencialmente não conseguiu me proteger de
mim mesma? Mas eu não podia ou não conseguia, não importa o quanto
eu tentasse, perdoar-lhe por ter me deixado sozinha.
Um profundo e ressonante "boing" atravessou meus pensamentos,
quando o relógio da sala tocou. Faltam apenas mais trinta minutos até a
meia-noite, apenas mais trinta minutos para morrer. Essa percepção me
deu forças, porque eu soube que a morte não era o caminho mais fácil -
a morte era o único caminho. Uma súbita onda de energia me fez pular
da cama, tropeçando
22 Terri Cheney
quando as dores me faziam perder a noção dos movimentos. A caminho
do banheiro, caí uma vez e quase fiquei ali mesmo, no tapete felpudo.
Mas então me forcei a levantar e comecei a engolir as pílulas, um
punhado atrás do outro, goela abaixo com goles cada vez maiores de
tequila.
Vinte e cinco minutos depois, já não sentia mais dor, nem por
dentro, nem por fora. Comecei a estapear meu rosto e a cavar as unhas
nas palmas da mão, até a dor me despertar novamente. Então, obriguei
meu braço a continuar pegando as pílulas e minha garganta a continuar
engolindo... Até que, finalmente, peguei a última cápsula verde e rosa
entre meus dedos, e forcei-a garganta abaixo com a última gota de
tequila que esperava tomar.
Minhas pernas lentamente escorregaram sob meu corpo, e eu
pressionei meu rosto contra o piso gelado do banheiro, olhando para o
Natal através do vitrô. A última coisa de que me lembro é ter ouvido o
relógio soar doze vezes; e de um floco de neve, teimoso, agarrado ao
parapeito, recusando-se a cair.
Não tinha idéia se acabaria no Céu ou no Inferno, ou, ao menos, no
Purgatório. Em vez disso, acordei no Hospital Geral, presa a uma maça
e com uma ânsia de vômito incontrolável. Tinha certeza de que não
estava no Céu, porque ouvia vozes perguntando sobre meu seguro-
saúde. E suspeitava não estar no Inferno, porque o médico tinha
bondosos olhos azuis e ficava dando tapinhas na minha mão e me
encorajando: "Você está viva, encontramos você na hora certa. É uma
garota de muita sorte". E então eu soube que estava no Inferno, afinal.
Não tinha conseguido. Ia levar anos até poder juntar de novo todos
aqueles comprimidos, até ter nova oportunidade e dinheiro para fazer
outra tentativa daquela escala de grandeza. Não era nada gestual, eu
estava em profundo desespero, havia falhado.
Quando finalmente tiraram o tubo da minha garganta, dois dias
depois, a enfermeira me deu uma prancheta para escrever. "Por quê?"
Foi tudo o que podia pensar em dizer. "Por quê, por
quê, por quê?" O doce médico-assistente finalmente entendeu. "Por que
você ainda está viva?", ele me perguntou. Eu acenei com a cabeça,
enfaticamente...
"Tudo o que sei é que os paramédicos foram chamados na manhã
de Natal. Parece que um jovem, um chaveiro, acho, veio para substituir
um painel de vidro quebrado em sua casa, e ele a encontrou
inconsciente. Ele salvou sua vida."
"Agora, sobre estes outros ferimentos. Os policiais estão
esperando para falar com você sobre eles. Você está com cortes e
machucados bastante desagradáveis. Sabe ao que estou me referindo?"
Mexi a cabeça, concordando.
"Quer falar sobre isso?"
Olhei para os simpáticos olhos azuis e balancei a cabeça
negativamente, com firmeza. Se quem me violentou foi quem me
salvou, que assim fosse. Talvez meu pai, que tanto duvidou de mim,
tenha sido a pessoa que mais me amou. O mundo é essencialmente
bipolar: conduzido por extremos, mas definido por fluxos. Os santos
estão a apenas um tropeção dos pecadores. Nada é absoluto, nem mesmo
a morte.
Apesar da nuvem rosa que enevoava a minha mente, eu sabia que
tinha atingido algo importante. Toda minha vida havia lutado contra
meus próprios extremos, sem sucesso — e a prova estava aqui, na minha
passagem de Ano Novo, presa a uma cama de hospital. Esse transtorno
bipolar era mais que uma doença mental: era uma predisposição mental,
um hábito, que a tudo coloria e abrangia. "O mundo devia ser de um
jeito ou de outro", pensei. Os homens, por exemplo, ou fazem você se
sentir segura, ou fazem você sangrar. Se eles não são deuses, são vilões,
e não importa se vêem até você com uma garrafa, ou se desconfiam de
você: de um jeito ou de outro, eles vão fazer você sangrar.
Isto era muito rígido, um modo não natural de pensar. A vida era
mais encrespada do que isto. Pensei em meu pai, e os perfeitos anéis de
fumaça que ele soprava quando eu pedia, as intermináveis
24 ! Terri Cheney
horas que ele passou esfregando minhas costas quando eu tinha
asma no meio da noite, e as mil e uma histórias que me contou,
sentado em sua grande cadeira marrom — cigarro numa mão, uísque
na outra, e eu em seu colo, no meu céu. E era impossível não saber
que ele me amava; e que esse amor tinha condições; e que ainda
assim, isso era amor. O truque era lembrar-se daquele enorme e...
A enfermeira entrou para ajustar a cama e entregou-me uma caixa
de lenços de papel ao sair. Eu estava chorando, meu rosto e peito
estavam molhados de lágrimas: lágrimas de resignação, de relutante
concessão e comprometimento. Nada era absoluto, nem mesmo o
desespero. Eu não queria essa vida que tinha sido devolvida a mim. Mas
foi um presente, e os presentes de Natal devem ser abertos e
agradecidos. Eu poria a morte de lado, por um tempo, ou então pelo
menos até o momento em que entendesse porquê eu ainda estava viva.
2
Eu fazia isso com habilidade calculada,
num piscar de olhos. Era um hábito trazer flores frescas para o
escritório, um toque de feminilidade a que eu recorria como forma de
compensar minhas roupas sóbrias e meu sorriso neutro. E não era
apenas uma única rosa, mas braçadas das mais raras e resplandecentes
flores que se pudesse encontrar: tulipas vermelhas, delicadamente
festonadas nas extremidades; ou orquídeas tão carnudas que beiravam o
limite do obsceno.
Eu justificava a despesa, para mim mesma, como sendo algo bom
nas relações com os clientes. Qualquer advogado que pudesse se
permitir comprar tulipas em dezembro, criadas em estufas, demonstraria
que estava fazendo a coisa certa. Na verdade, era
26; Terri Cheney
apenas uma camuflagem para desviar a atenção. Naquele momento da
minha carreira, eu podia me dar ao luxo de despender algumas centenas
de dólares por mês com flores. O que eu não podia suportar era um
exame minucioso.
O rumor que corria no escritório, e que eu não desmentia, era que
eu tinha um namorado rico. O que eles não sabiam é que o meu
admirador secreto era a depressão, ao meu lado durante anos, muito
antes de começar a praticar a advocacia. Eu nunca sabia quando ela
chegaria, por quanto tempo ou quão perigosa seria. Apenas sabia que
devia manter isso em segredo. Portanto, as flores precisavam ser frescas
e puras. Não podia permitir uma pitada sequer de escuridão ou
decadência em torno de mim, pelo menos nada que não pudesse ser
mascarado por um lírio. Ordenava a minha secretária que trocasse
diariamente a água de todos os vasos e que jogasse fora tudo que
estivesse morrendo.
Haveria sempre mais flores, eu achava. Principalmente enquanto
nenhum dos sócios descobrisse que eu não tinha a mínima idéia do que
fazia como advogada. Eu odiava cada momento da minha existência e
detestava cada um dos sócios; logo, a coisa mais frágil naquela sala não
eram as tulipas... Enquanto eles continuassem a entrar ali, jogassem
uma nova pasta na mesa, dissessem "lindas flores" e saíssem sem notar
as profundas olheiras ao redor de meus olhos ou a montanha de lenços
de papéis úmidos sob minha mesa; enquanto todos nós concordássemos
em não nos olharmos de perto nem nos fazermos muitas perguntas,
sempre haveria mais flores.
Superstição ou estratégia, não importa. A tática estava dando
certo, porque numa tarde de abril, alguns anos antes de meu pai morrer,
fui chamada a me juntar à equipe de advogados que trabalhava no
grande caso de Michael Jackson. Nossa primeira missão era encontrar
uma testemunha que atestasse que nenhuma das canções de Michael era
"substancialmente similar" a qualquer das canções dos queixosos.
Precisávamos de um musicólogo de primeiro time, alguém que iria
impressionar o júri não só por suas
credenciais de perito, mas também por sua conduta, sinceridade e
amabilidade.
Vinte almoços mais tarde, tínhamos reduzido a pesquisa para dois
candidatos estelares. Um professor conhecido e respeitado no mundo do
entretenimento, e o outro candidato (vamos chamá-lo de Joe), com
requisitos tão impressionantes, mas vinte anos mais jovem e ainda com
cabelos — amarrados para trás em um longo e esmerado rabo-de-cavalo.
Além disso, ele tocava numa banda que já tivera dias melhores, mas ainda
passava dez meses por ano em turnês. Como advogada júnior, eu senti que
era meu papel injetar alguma juventude nessa ação judicial que, afinal,
tratava de defender um caso envolvendo rock-'n'-roll. Então, naturalmente,
fiquei fortemente inclinada por Joe.
No dia em que Joe seria apresentado à equipe, escolhi um belo
restaurante onde a elite da indústria se encontrava. Mandei um memorando
preparatório para a equipe, onde dizia que, em minha opinião, Joe era a
pessoa certa, com sua mistura original de conhecimentos musicais e sua
perícia de showman. De fato, ele se apresentou com ar professoral mas
moderno, num paletó Armani preto e jeans bem cortados. Eu poderia tê-lo
beijado, poderia ter beijado todo mundo, eu me sentia muito bem.
Assim, permanecemos durante algum tempo tomando cremes brülées
e cappuccinos, tanto que o ângulo do sol começou a se deslocar para o
oeste, e o pátio do restaurante começou a ficar frio. Um dos sócios
perguntou as horas e eu disse: "Quase quatro". "Sério?", Joe perguntou,
surpreso. Eu garanti que sim. "Merda", ele disse. "Eu esqueci de tomar meu
lítio".
Os minutos seguintes ficaram gravados em câmera lenta na minha
memória. Joe foi buscar o medicamento que tinha esquecido no carro e
ninguém disse uma palavra até ele sair pelo portão. Os advogados não
costumam rir com facilidade, mas eles explodiram em gargalhadas pelos
próximos minutos, como se lítio fosse a palavra mais engraçada no mundo.
Eu não estava em condições de avaliar a piada. Tudo o que eu conseguia
avaliar era
28 Terri Cheney
o tom: desprezo. E tudo o que eu podia pensar era sobre o que eles
diriam se vissem a cornucópia farmacêutica que eu levava, naquele
momento, na minha bolsa. Se o velho lítio era merecedor daquela
gargalhada toda, eles morreriam de rir se vissem meus estabilizadores
de humor, antidepressivos, agentes contra ansiedade e antipsicóticos.
Muitas vezes pensara sobre o que aconteceria se a empresa
descobrisse o meu transtorno mental. Agora, eu sabia. E sabia também,
sem que ninguém precisasse me dizer, que Joe estava fora do negócio
desde aquele momento, e que ele não teria chance de atuar como um
perito no caso de Michael Jackson e nem teria qualquer tipo de ligação
com o escritório, no futuro. E eu seria a pessoa a lhe contar tudo isso.
Enquanto todo mundo ria, eu avaliava as minhas opções:
primeiro, poderia defender o pobre Joe, lembrando suas credenciais,
reputação e a boa impressão pré-lítio que causara a todos; segundo,
poderia fazer uma grande defesa do transtorno bipolar e ensinar aqueles
homens influentes sobre a importância de lutar contra o estigma; ou,
terceiro, eu poderia simplesmente não dizer nada e acordar amanhã
sabendo estar a um passo de me tornar a mais nova sócia do escritório
— e também a um passo mais longe de mim mesma.
Ao olhar meu futuro de maneira simples, sem enfeites, percebi
que não estava pronta para abandonar o conto de fadas. Não o conto de
fadas de me tornar sócia — olhando os homens sentados ao meu lado,
sabia que nunca seria um deles. Mas eu queria ser insensível, durona a
ponto de nunca me importar com nada, mas não era assim. A verdade é
que eu era muito mole, bem lá no fundo, onde as decisões mais difíceis
devem ser tomadas. E sabia que choraria muito pelo que tinha
acontecido com Joe.
Não, o único e verdadeiro conto de fadas que eu não poderia
renunciar era aquele no qual eu despertava numa ensolarada manhã e
descobria que o feitiço tinha sido quebrado, a maldição terminara e eu
não era mais bipolar. Naquela época, não me considerava
uma pessoa maníaco-depressiva, isso era apenas alguma coisa que eu
tinha, algo simples como uma gripe. Na verdade, nem estava convencida
de ser portadora desse transtorno, apenas entendia que, seja lá o que
fosse que eu tivesse, era minha culpa e não pretendia passar muito tempo
pensando sobre aquilo.
Minha escolha foi feita. Ia defender Joe, isso seria um ato de
solidariedade para com a doença - um ato simbólico, sutil, mas
inconfundível. Eu não estava prestes a sacrificar o meu futuro por algo
se não acreditasse naquilo de verdade, se achasse que seria algo que
desapareceria como mágica, no dia seguinte. Assim, quando Joe voltou à
mesa, evitei seu olhar, do mesmo jeito que os outros.
Levei uma semana inteira para que reunisse coragem suficiente
para chamar Joe à minha sala e contar-lhe as más notícias. Não falei
nada sobre o lítio, mas inventei uma história sobre advogados
antiquados que preferiam peritos antiquados. Toda vez que eu mentia,
porém, me dava vontade de pedir perdão e absolvição pelo pecado da
hipocrisia que estava devorando minha alma católica desesperada.
Em vez disso, ele me ofereceu flores: um lindo ramalhete de
narcisos, comprados na floricultura naquela manhã. Quando ele saiu,
senti-me mal por fingir que estava gostando das piadas sobre lítio que
circulavam no escritório até que finalmente fossem substituídas por
gracinhas sobre Prozac. Comecei a evitar os outros membros da equipe
que trabalhavam no caso Jackson, chegando cada dia mais tarde, até o
momento em que estava fazendo quase todo o meu trabalho à noite.
Passei a entregar minhas flores mortas ao pessoal da limpeza, primeiro
alguns vasos, depois várias braçadas de uma vez, até que me vi sem
nada na sala... E esqueci de encomendar mais flores.
Peguei o telefone e liguei para a floricultura, mas desliguei ao
primeiro toque. Não haveria flores suficientes no mundo, percebi, para
embelezar o escritório, minha vida, e a mentira perpetuava-se.
Novamente com o telefone na mão liguei para outro número: o do
30
:
Terri Cheney
headhunter que vinha me procurando nos últimos meses. "Olhe", disse
eu, "existe um problema, que você deveria saber antes de continuarmos
conversando, porque acho que vai fazer diferença no lugar para onde eu
for e no trabalho que farei. Eu tenho...", e calei-me por alguns instantes.
"Não, eu sou maníaco-depressiva. Então, o que você acha disso?"
"Igual ao meu primo", disse ele. "E também igual a tal, tal e tal",
citando os nomes de três grandes advogados de empresas de
entretenimento, com os quais eu havia trabalhado recentemente. "Mas,
na verdade, não estou muito certo se você deve contar isso a alguém",
acrescentou.
"É claro que eu não deveria", eu disse. "É por isso que estou
falando com você." Então sorri um sorriso verdadeiro. Histórias nem
sempre têm que ter um final feliz, percebi. Por vezes, basta apenas que
tenham um final, abrindo caminho para novas histórias. Olhei para
baixo, no meu bloco de anotações, e percebi que tinha desenhado um
narciso perfeito.
3
Eu estava sentada na sala de espera do
cirurgião especialista em cabeça e pescoço, acompanhada de uma
sensação inexplicável de felicidade. Nunca estivera lá antes, não
conhecia o Dr. Cameron e nem tinha idéia do que ele ia dizer sobre o
misterioso inchaço do meu rosto e pescoço, algo que tinha deixado
perplexo meu endocrinologista, principalmente porque o inchaço
resistia a todos os antibióticos de seu arsenal. A palavra tumor fora
mencionada, e é por isso que eu estava lá, para falar sobre tumores e
exames de ressonância magnética, além de outras palavras assustadoras.
Mas naquele período eu estava centrada nas pequenas coisas. Um dia
reparei e observei que, quando o sol bate na água depois da chuva, cria
um efeito que, observado de determinado ângulo, parece um papel de
parede feito de arco-íris.
32 Terri Cheney
Naquele horário não deveria haver sol. Eram quatro e meia da
tarde do último dia do mês de novembro, mas o céu continuava de um
azul brilhante. Sentia o sol atravessar minhas roupas, dilatando meus
poros e queimando minha pele branca de inverno. Eu podia sentir os
pêlos dos braços e da nuca começarem a ondular de prazer, como o trigo
ao vento e...
Oh, meu Deus... Os pêlos.
Na maior parte do tempo, eu mal notava que tinha pêlos pelo
corpo. Tal como a maioria das pessoas ruivas, os meus são muito finos e
delicados, quase invisíveis e suaves ao toque. Eu nunca me preocupei
em me depilar ou branqueá-los. Desde a morte de meu pai e a minha
tentativa de suicídio em Santa Fé, a depressão se tornara mais e mais
profunda, difícil de esquecer. Mas por mais inócuos que pudessem
parecer, esses pêlos funcionavam como meu alarme pessoal.
Inevitavelmente, quando o equilíbrio químico do meu cérebro começava
a mudar, eles eram os primeiros a alertar-me sobre isso. E quando eu
sentia esses pêlos vivos novamente, sabia que, finalmente, a depressão
estava melhorando. Eu sabia que era hipomania, a divina hipomania.
Meus pêlos adoravam a hipomania: o mundo de repente se
resumia a texturas, sabores e sensações, tantas que não podiam ser
ignoradas. Era tudo tão delicioso, realmente a melhor parte de ser
bipolar, mas isso só até meus mamilos protestarem contra o excesso de
seda e eu me sentir como um cego em meio a uma profusão de palavras
em Braille. Nessa hora, os pêlos viravam para dentro, irritando e
queimando a pele a cada nova sensação, até que todos os nervos do meu
corpo estivessem inflamados e eu estremecesse com o mínimo soprar do
vento contra a minha pele.
Mas meus pêlos estavam certamente felizes naquela tarde,
contentes apenas em estar ali, na sala de espera do cirurgião, banhando-
se sob o sol. Eu então pensei se deveria lembrar-me da gravidade da
ocasião, afinal aquele não era o momento nem o lugar para me sentir tão
bem. Felicidade é ótimo, na hora certa, mas a felicidade fora de época é
prenuncio de ruína. É por isso que você
nunca deve confiar num brilhante céu azul de novembro. Talvez ele o
atraia demais e o faça esquecer, por um momento, que ele é, na verdade,
a morte do inverno — talvez não para hoje, ou amanhã, não importa
quando, porque esta morte certamente virá.
Como poderia eu ter a esperança de contar a uma pessoa normal
sobre os terrores de ser feliz? A não ser que houvesse uma boa razão
para isso, algo objetivo e palpável, como um bilhete premiado de loteria
ou um resultado negativo de biópsia, a felicidade não era um porto
seguro para mim. Era apenas mais um ponto de controle rumo à
insanidade. Mas pare, espere um minuto — eu estava feliz? E se eu
estava assim feliz, pelo amor de Deus, por quê? Será que eu vivia
fazendo algo inadequado, alguma coisa maluca como quebrar gelo nos
elevadores ou dar piscadelas aleatoriamente? Eu estava curtindo a vida
de forma desordenada?
Tive de perguntar, porque aquele sentimento de felicidade
poderia virar, num segundo, um sentimento de muita felicidade
— e todos nós sabíamos aonde isso poderia me levar. Se você fica
muito feliz, passa a colher flores no meio da noite, no jardim do
vizinho, vestindo nada mais que um sorriso sorrateiro. Se você fica
feliz demais e, alegremente, faz uma conversão proibida na frente
de dois policiais, com um monte de remédios soltos em sua bolsa.
No meu caso, felicidade além da conta poderia ser ilegal.
Assim, quando todos os meus pêlos se arrepiavam, ou o sol do
inverno brilhava mais do que o normal ou eu ria em voz alta... Então, aí,
eu parava - isso se ainda pudesse parar. Parava só para ver se poderia
parar. Então, eu impiedosamente identificava o momento segundo
minha escala de humor, espetando-o como a uma borboleta morta.
Administrar a felicidade pode ser uma ciência cruel. Isto pode ter me
mantido a salvo de borboletas inesperadas, mas certamente matou todo
encantamento e excitação.
Ainda assim, eu estava feliz. Sentada lá, tentando lembrar a
diferença entre tomografia computadorizada e ressonância magnética,
eu ainda continuava feliz. Pare, espere um minuto
— por quê? Eu poderia pensar em mil razões para não sorrir,
34 Terri Cheney
mas nenhuma delas tinha importância quando o céu estava azul, às
quatro e meia da tarde do último dia do mês de novembro. Era absurdo,
eu tentando me dissuadir de um sorriso quando os sorrisos eram tão
raros em mim.
Lembrei-me da desagradável carta da Receita Federal sobre a
mesa da cozinha, a última de uma série de outras, ameaçando embargo e
apreensão de todos os meus bens. Eu sabia que não devia o dinheiro que
eles queriam, mas eu estava com dificuldades para explicar porquê.
Minhas finanças misturadas às de meu pai haviam desabado após sua
morte. Não tinha prova de nada, exceto da minha doença, mas eles não
estavam interessados nisso. A única coisa que eu poderia fazer seria
selar meus documentos com sangue, fora isso, nada mais.
Apertei meus olhos e refleti sobre o problema, apertei tanto até
que uma umidade familiar se juntou em seus cantos. Eu ainda podia
chorar. Isto era tranqüilizador, pensei, enquanto uma lágrima solitária
rolava sobre meu rosto. Eu estava feliz? Não, mas estava contente em
desfrutar um momento de tristeza. Queria que me deixassem sozinha.
Mas eu não estava sozinha. Eu nunca estava sozinha. Minha
consciência desbocada e resmungona soprava, na minha orelha, o
mesmo velho mantra de sempre: "Pare. Espere um minuto..." Se eu
estava feliz, qual era a razão? Então, naquela hora, achei que sabia a
resposta: era o efeito do medicamento Aripiprazol.
Aripiprazol. A-ri-pi-pra-zol. Era um nome bobo, que espumava
na minha língua. Bastava pronunciar e eu já ficava com vertigens. Vinha
tomando o medicamento há duas semanas. Alguém, cuja felicidade era
induzida por drogas, poderia se considerar feliz? Esse era o jeito certo
da felicidade? Bem, enquanto eu mesma não me levasse para a cadeia
ou para a cama de um estranho, não me importava. Daria as boas-vindas
à felicidade da maneira que ela viesse - mesmo à base de medicamentos,
se necessário.
A recepcionista abriu a porta, chamou meu nome e, em
seguida, levou-me para baixo, à sala de exames. Os instrumentos
cirúrgicos estavam enfileirados, em perfeito alinhamento, mas aquilo
não era nenhum piquenique. O negócio era sério, e o homem que
poderia anunciar meu destino estava prestes a entrar naquela sala.
A porta abriu e com ela meu destino, mas eu estava outra vez
inexplicavelmente feliz. Ninguém me disse que o Dr. Cameron era um
sósia de Montgomery Clift. Se alguém tivesse mencionado isso, teria
certamente tornado a longa espera mais tolerável. Estive à espera de
Montgomery Clift, eu poderia ter dito a mim mesma, principalmente
quando quinze minutos se transformaram em meia hora, meia hora
numa hora inteira e assim por diante, até chegar ao final do último dia
do mês de novembro e eu de repente ser a última paciente na sala de
espera.
O Dr. Cameron desculpou-se por sua longa demora. Internação
inesperada, cirurgia de urgência, algo assim . Eu não estava ouvindo.
Sua mão era tão quente como seu sorriso, e quase tão suave quanto seus
olhos. Sua saudação não foi como aquela costumeira "sou o médico,
você é o paciente" tão comum em uma primeira consulta. Ele ficou me
olhando, segurando minha mão, e eu com pelo menos meia-dúzia de
batimentos cardíacos a mais. Não passou muito tempo, mas o suficiente
para meus pêlos da nuca se arrepiarem e eu sentir um profundo rubor se
propagar do pescoço ao queixo, e depois pelo meu rosto. Graças a Deus
eu tinha uma ligeira febre e poderia culpá-la por aquele calor que sentia.
Ou não poderia? O Dr. Cameron não mediu minha temperatura.
Ele nem sequer deu uma espiada em meus exames. Olhou nos meus
olhos e, em seguida, colocou suavemente meus cabelos para trás da
orelha. Então, pegou um dos utensílios (de tamanho médio, algo entre
um garfo para camarões e um espelho de aço polido) e soprou sobre ele.
"Para esquentar um pouco", disse, com uma piscadela, enquanto
suavemente o inseria em minha orelha e tentava tomar o meu pulso ao
mesmo tempo, deixando-me sentir sua loção de barba.
36 Terri Cheney
"Ótimo", disse o Dr. Cameron, finalmente, colocando meu cabelo
na posição original. Eu não sabia se ele se referia à minha orelha, ao
meu cabelo ou a mim mesma, mas isso não importava. Tentei-me
concentrar em algo totalmente assexuado e estéril, como o teto de
azulejos ou o esterilizador.
Meus pêlos estavam muito felizes. Eu sabia que deveria parar
com isso e me preocupar, mas também sabia que o exame de garganta
seria o próximo, com todos os seus presságios, e eu precisava me
concentrar. Assim, enquanto o Dr. Cameron explorava minha boca e
língua com a sua longa sonda prateada, seus lábios a apenas dez
centímetros de distância dos meus, afastei todos os pensamentos
estranhos e coloquei toda a minha atenção no que estava acontecendo,
antes que o doutor terminasse.
"Boas notícias", disse ele, recuando. "Eu não acho que seja um
tumor. A inflamação é muito simétrica — aqui e aqui". Ele deu uma
pancadinha em ambos os lados do meu rosto, enquanto falava. "Sem
dúvida, é por causa de toda essa medicação que vem tomando. Ela a tem
mantido tão desidratada que seu corpo está tentando reter todos os
fluidos possíveis. O que explica esse inchaço nas parótidas — aqui, aqui
e aqui embaixo." Mais pancadas. Quem imaginaria que Montgomery
Clift tinha um toque tão delicado? Mas espera aí, Montgomery Clift não
era gay?
Olhei de perto o Dr. Cameron, que tinha finalmente parado de dar
pancadinhas em meu rosto e garganta e escrevia alguma coisa em meu
fichário. Ele era muito bonito — não apenas um astro de cinema bonito,
um astro bonito e gay. Seria o calor entre nós uma coisa da minha
imaginação? Eu gostaria de pensar que, aos quarenta e dois anos, meu
corpo já era sábio o suficiente para reconhecer, visceralmente, quando o
sexo estava no ar. Alguns poucos segundos a mais de aperto de mãos,
um contato visual que permanecera um pouco além do necessário, um
toque suave o suficiente para ser um carinho: noutras circunstâncias,
eram excelentes pistas. Mas o verdadeiro mistério não era saber se o Dr.
Cameron era realmente gay. Era saber se eu estava delirando.
Talvez a eletricidade na sala fosse apenas conseqüência desse delírio,
resíduo da minha sensibilidade sobrecarregada Talvez o calor fosse
apenas uma febre, a minha febre, era só isso.
Mas, então, ele me olhou e deu um grande sorriso de dentes
brancos, e percebi na hora que pouco me importava se ele era gaj ou
não. Ele era lindo. Só teria que usar todo o meu charme... E costumava
ser muito persuasiva. Ao longo dos anos, tinha desenvolvido um grande
repertório de truques, sutilezas na voz e nos olhos, com os quais eu
costumava fazer balançar um júri hesitante ou convencer um juiz
teimoso. Aquilo ali não era muito diferente. Recostei-me na cadeira e
olhei bem fundo nos olhos do Dr. Cameron. Então sorri, de maneira
lenta e gradual, sem dizer uma palavra - um velho jogo que
normalmente faz a outra pessoa sorrir de volta, em antecipação. Todo
mundo gosta de ouvir um segredo, e quanto mais secreto, melhor. Então
baixei minha voz e disse: "Você sabe, é claro, que se parece exatamente
com o meu astro de cinema favorito?"
Ele riu. "Montgomery Clift? Sim, já ouvi isso antes".
"Mas não um Montgomery Clift qualquer", continuei. "O
Montgomery Clift de Um lugar ao sol- você sabe, aquele filme em que
ele beija Elizabeth Taylor num close que parece durar para sempre,
tanto que a gente não acredita que tenha passado pela censura da
época". Procurei me conter, mas meus olhos se fixaram em seus lábios
e ficaram ali, esperando pela resposta.
"Não só conheço esse filme", disse ele, "como tenho uma cópia
do teste do Montgomery Clift com Elizabeth Taylor. É um verdadeiro
item de colecionador. Minha ex me deu de presente em meu último
aniversário".
Minha ex. Ele não precisava dizer isso. Minha mente
rapidamente calculou as possibilidades existentes na frase. Não era
casado; possivelmente, também não era comprometido. Ou, não era
casado, mas ele e sua ex ainda eram bons amigos, o que não era tão
bom como não estar envolvido, mas certamente melhor do que estar
casado. Meus olhos focaram seu dedo: nu, nenhuma
38 Terri Cheney
linha branca onde o sol não queimava, era o dedo de alguém não
comprometido.
"Uau, deve ser fantástico!", eu respondi. "Ele se parece com você
nesse teste? Ele chega a beijar a Elizabeth Taylor? Ou ele beija outra
pessoa? Ele chega a falar alguma coisa sobre beijar? Uau. Eu adoraria
ver esse teste".
Ele colocou meu fichário na mesa. "Pelo jeito, você é uma
verdadeira fã. Terei muito prazer em emprestar — se você prometer que
o trará de volta na próxima semana".
"Mas... nós não tínhamos acabado? Pensei que já soubesse o que
estava errado comigo. Terei que voltar?"
"Você não tem que voltar", disse ele; a ênfase fez meu coração
parar. "Mas espero que volte. Pelo menos para me dizer o que você
achou da fita. Estou em cirurgia nas segundas e quartas, mas as sextas
geralmente são mais tranqüilas, especialmente depois das quatro. Se
puder, venha nesse horário. Você normalmente pode ver o pôr-do-sol
daqui e isso ultimamente tem sido incrível. Parece durar para sempre-
assim como o beijo, suponho eu". Outro sorriso pirotécnico.
Comecei a dizer-lhe que não ocorrera nenhum pôr-do-sol naquele
dia, pelo menos que eu tivesse visto; que a sala de espera estava
brilhantemente ensolarada e quente naquela tarde. Eu estava cativada
por ele e queria avisá-lo de que havia um céu azul brilhante e que nós
dois deveríamos ser muito cuidadosos... Mas ele já havia deixado a sala
para pegar a fita.
Pare, espere um minuto, calma lá. Eu nem precisava perguntar se
estava feliz, eu estava terrivelmente feliz, e o que tinha acontecido?
Estar terrivelmente feliz era estar feliz além da conta? E a pergunta mais
assustadora de todas: o que eu tinha feito desta vez para merecer isso?
Droga, droga, droga! Se havia um sinal seguro de que o transtorno
bipolar estava se aproximando, era a convicção secreta de que eu era a
suprema juíza da sexualidade alheia, essa confiança súbita de que
nenhum homem — ou mulher - estava além de minha jurisdição.
Peguei meu espelho e comecei a retocar meu batom, então me
obriguei a parar. Não. Resisti à quase necessidade física de pentear meus
cabelos, endireitar minha saia, verificar minha respiração. Não, não,
não. Não podia sucumbir ao redemoinho delirante em meu ouvido, que
me exortava a aproveitar qualquer alegria ao meu alcance, porque
amanhã eu poderia estar num lugar pior do que a morte — poderia estar
deprimida. Não, eu disse. Eu não queria agarrar a felicidade, nunca
mais. Pelo menos uma vez, eu queria que a felicidade apenas flutuasse
suavemente e pousasse sobre meus ombros.
Dr. Cameron voltaria, a qualquer instante, e me senti
dolorosamente consciente de que a risca de meu cabelo estava torta, eu
podia sentir a assimetria. Olhando para baixo, vi um fio puxado em
minha meia, que eu poderia ter escondido se eu tivesse apenas me
levantado por um segundo, sob a saia. Estava absolutamente certa de
que havia um risco no meu sapato esquerdo também. Mas essa era a
minha forma de sedução, fingindo que estava perfeita em todos os
lugares, mesmo naqueles em que estava mais imperfeita. Então me
obriguei a ficar sentada, tentando não imaginar como meus lábios
deviam parecer pálidos sob a iluminação fria.
Minha sensação de felicidade rapidamente se dissolvia em uma
situação não muito confortável. Como era maravilhoso. Como era
emocionante. Provavelmente ninguém, a não ser um maníaco-
depressivo, pode compreender que pisar nos freios pode ser muito mais
excitante do que ganhar a corrida. Algo estava funcionando e desta vez
eu estava certa de que era a nova medicação. O Aripiprazol, quando
funcionava, buscava o equilíbrio entre muita e pouca dopamina, até que,
finalmente, chegava à quantidade adequada.
"Adequada". Quem teria pensado que eu ficaria satisfeita com a
palavra "adequada", quando "mais" é o que eu sempre procurava? Mas
eu sabia o que me esperava quando corria atrás dos excedentes. Foi por
isso que a felicidade, para mim, já não
40 Terri Cheney
existia no excesso. Ela morava na ausência: na ausência de dor, na
ausência de depressão, na ausência de conseqüências, nas quais eu
nunca pretendia incorrer.
Olhei para baixo novamente, para o fio muito visível na minha
coxa — e, sim, havia um risco no meu sapato — então me endireitei.
Senti-me nobre e vitoriosa, resistindo ao chamado de meus pêlos
arrepiados. O Dr. Cameron voltou, deu-me um tapinha nas costas e me
entregou a fita. "Vamos dar uma última olhada", disse ele. "Abra a
boca". Mas o meu corpo tinha ficado rígido e meu maxilar estava
praticamente fechado. "Bem aberta", disse. "Agora vamos, abra para
mim".
Seria difícil resistir a um pedido como aquele, mesmo quando não
se é maníaco-depressiva, mas eu tentei o máximo que consegui. Antes
que a loção pós-barba do Dr. Cameron me fizesse esquecer todas as
minhas boas intenções, o exame terminou. Ele então procurou algo em
seu bolso e retirou um pirulito. Eu juro. Um grande pirulito vermelho. O
médico me deu o pirulito e riu da expressão em meu rosto. "Este é
realmente o seu tratamento", disse. "Quero que saia e compre vários
pacotes destes. Eles são bem azedos e quando você os chupar, isso vai
estimular a produção de saliva da glândula parótida. Mas eu preciso
avisar — vai ser muito desconfortável. Você vai se sentir bem pior antes
que comece a melhorar".
"Vou me sentir pior por muito mais razões do que você possa
imaginar, doutor", disse a mim mesma, ao guardar o pirulito em minha
bolsa. Forcei-me a não fazer um movimento sedutor com minha cabeça,
jogando os cabelos para o lado, o que foi quase insuportável para meus
pobres pelinhos da nuca. Mas agora era guerra, guerra contra todos os
impulsos naturais que me colocavam em problemas, e eu não esperava
que essa guerra fosse fácil. Levantei-me e estendi minha mão,
agradecendo ao Dr. Cameron pela fita e prometendo devolvê-la o mais
rápido possível. Meu Deus, a mão dele se encaixava na minha... Mas
não marquei uma data e, naquele momento, decidi devolver a fita para
sua
recepcionista dali a poucos dias, e deixar que as coisas tomassem seu livre
curso a partir daí. Eu iria colocar meu repertório de truques meio de lado,
momentaneamente.
Saí do consultório sem olhar para trás. O elevador era demasiado
lento, por isso, fui pelas escadas. Dez, onze, doze andares para baixo, e
minha nuca ainda formigava. Quando saí do prédio, o crepúsculo estava
começando a descer. Dirigi-me automaticamente à farmácia — mas então
percebi que, pela primeira vez em anos, tinha saído de um consultório
médico sem nenhuma prescrição. Nenhuma daquelas pílulas ou poções
carésimas, apenas a permissão para comprar um grande saco de pirulitos
quando chegasse em casa.
A vida das pessoas felizes deve ser sempre assim, pensei. Nenhum
medicamento, apenas céus azuis brilhantes em novembro, o que pressagia
nada além do que um pôr-do-sol espetacular. Talvez o conto de fadas do
Aripiprazol estivesse próximo de se tornar realidade, e talvez aquele fosse
seu final feliz.
Feliz para sempre, ao menos uma vez — ou, no mínimo, feliz para
sempre, por agora. Ou melhor ainda: feliz para sempre, do modo mais
adequado possível.
Eu nunca errei de propósito. Mas isso não
importa agora, já que a coisa aconteceu. Lembro-me de caminhar pela
estreita cela, uma cela sem grades, sem janelas, sem distrações, a não
ser meus pensamentos vagueando. Bem que poderia ter me atrasado
para virar naquele sinal verde. Não conseguia me lembrar direito. Mas
ouvia muito bem uma voz de comando, saindo do alto-falante,
ordenando-me que parasse o carro. Mas quando olhei pelo retrovisor,
não havia ninguém lá. Nenhum carro preto-e-branco com a luz
vermelha piscando no teto.
Só percebi alguma coisa quando parei o carro de vez e ouvi a
batida no vidro. Esquadrinhei no escuro e vi dois rostos com capacetes
de bicicleta. Eram dez horas da noite, eu estava
4
em Van Nuys, próximo a Los Angeles, e não me sentia muito
bem.Arranquei com os pneus cantando. Então, finalmente, ouvi a
sirene, vi as luzes, a mesma voz dizendo: "Pare o carro
imediatamente. É a polícia".
Policiais de bicicleta. Fui presa por policiais de bicicleta!
Eu detinha um recorde até então: em sete anos, tinha apenas uma
multa de trânsito, por excesso de velocidade, o que, para uma garota com
um Porsche, era algo excepcional. Portanto, eu não estava muito
preocupada. Talvez uma das lanternas traseiras estivesse apagada. E
certamente eles entenderiam por que eu não tinha parado em Van Nuys às
dez da noite, sozinha e sem nenhum carro de polícia no meu retrovisor.
Mas esqueci da droga. Não era uma droga de rua, a que eu portava
naquele momento era uma droga perfeitamente legal. Prescrita. Levava o
cartão do médico na bolsa, junto com pílulas extras que trazia por
segurança. Essas pílulas seriam letais se tomadas com alimentos ou
medicamentos errados. São os chamados inibidores IMAO1
, a última saída
quando se trata de depressão maníaca. Nenhum médico prescreve os
IMAOs a menos que tudo tenha fracassado antes. Mas eu já havia passado
por todas as drogas que estão por aí, não apenas as dos Estados Unidos, mas
as da Europa também. Tinha feito terapia eletroconvulsiva e todos os
demais tipos conhecidos. Nada tinha dado certo. Quando deprimida, tentava
o suicídio. Quando entrava em mania, adquiria a energia necessária para
agir sobre os impulsos suicidas - e eu fiz isso. Repetidamente.
Assim, quando o meu médico prescreveu esses IMAOs, eu topei. Mas
quando li a composição do medicamento no manual de drogas a que tive
acesso, levei um susto. Se eu comesse alguma coisa que contivesse a
substância tiramina, poderia sofrer um
1
IMAO é um acrônimo para o inibidor de monoaminoxidase. Os inibidores de monoaminoxidase
são usados para tratar da depressão e de várias outras doenças relacionadas, como fobias, o
transtorno de pânico, transtorno bipolar etc. Não são usados enquanto uma primeira linha de
tratamento não tiver sido tentada antes. Pessoas que usam IMAOs devem manter dieta restritiva,
porque esses medicamentos podem interagir muito mal com alguns alimentos e bebidas, como
queijo e vinho tinto. (N. do T.)
44 Terri Cheney
acidente vascular cerebral. A tiramina está em todo lugar: nas pizzas, no
vinho tinto, no queijo, e nas carnes defumadas, como fígado, caviar,
fava. Eu sabia que poderia viver sem fava, até mesmo sem pizza, e, de
qualquer jeito, teria que viver sem eles, querendo ou não. Eu estava a
centímetros de distância da próxima tentativa de suicídio, e sabia disso.
O único problema era que continuava desmaiando,
principalmente quando me levantava rapidamente, mas, às vezes, até
quando estava caminhando. Nunca quando estava sentada. Até onde
podia me lembrar, a droga fazia minha pressão cair quando me
levantava, uma condição chamada de hipotensão ortostática2
. Eu
levava um medidor de pressão comigo e a controlava de hora em hora,
mas ultimamente isso não vinha adiantando.
Eu tinha desmaiado em vários lugares durante as últimas semanas
— na rua, na Biblioteca Pública, nos braços de meu namorado, nos
braços de um estranho. Um dia, desmaiei numa parte não muito boa da
cidade e, quando acordei, vi que minha bolsa tinha sido roubada e
minha saia estava parcialmente aberta. Uma outra vez, desmaiei a
caminho da Saks, em Beverly Hills, e fui acordada por dois policiais me
sacudindo, que só não me levaram presa porque liguei para o meu
médico do celular. Ele explicou a situação — dizendo que o
medicamento era prescrito. Os policiais até que foram bem simpáticos e
me ofereceram carona até minha casa. Mas, a essa altura, eu já estava
melhor — mais coerente, educada, até jogando charme — então eles me
deixaram ir, não sem antes me advertir sobre andar na rua enquanto
estivesse sob esta medicação. E quem alguma vez deu atenção a uma
advertência da polícia? Você está é aliviado por se safar de uma
confusão daquelas... Mas eu deveria ter ouvido a advertência...
2
Quando uma pessoa se levanta bruscamente, a gravidade faz com que uma parte do
sangue se detenha nas veias das pernas e na parte inferior do corpo. A acumulação reduz a
quantidade de sangue que volta ao coração e, portanto, a quantidade bombeada. A
conseqüência disso é uma queda da pressão arterial. Perante essa situação, o organismo
responde rapidamente: o coração bate com mais rapidez, as contrações são mais fortes, os
vasos sangüíneos contraem-se e reduz-se a sua capacidade. Quando essas reações
compensatórias falham ou são lentas, verifica-se a hipotensão ortostática. (N. do T.)
Quando os policiais em Van Nuys me mandaram sair do carro,
hesitei, porque isso significava levantar-me. "Saia do carro, cora as
mãos à vista". Saí do carro, coloquei minhas mãos na porta e, de
repente, o mundo ficou branco novamente. Então, pequenos pontos
começaram a pipocar na frente de meus olhos, como acontecia com
freqüência. Tudo o que eu podia ver claramente era um capacete de
bicicleta se aproximando ameaçadoramente. "Caminhe em linha reta",
disse ele. "Sinto muito, eu queria poder fazer isso, de verdade. Mas
estou um pouco tonta no momento..."
Um segundo capacete surgiu e, em seguida, quatro braços, e,
então, fui jogada contra o carro e meu corpo começou a ser revistado.
"Está na minha bolsa", eu disse. Eu me referia ao número do telefone do
meu médico, que iria resolver todos os problemas, assim como
acontecera com os policiais gentis em Beverly Hills. Mas aqui era Van
Nuys, e quando despejaram o conteúdo da minha bolsa na calçada, as
pílulas de reserva se espalharam. Enquanto eu tentava explicar, eles
leram meus direitos. Igualzinho na tv.
Foi tudo como você já viu nos filmes, e um pouco mais. As
algemas frias em meus pulsos fizeram um inesperado som quando
foram fechadas. A delegacia estava suja, lotada, e eu não conseguia
identificar o cheiro. Quando eles tiraram a foto para me fichar, eu não
sabia se sorria ou se olhava com seriedade. Mas o pior de tudo foi o
fichamento. Eu continuava tentando explicar, implorando para que eles
apenas me deixassem chamar o meu médico. Ou meu advogado, meu
terapeuta, meu namorado. Uma mulher cuidadosamente rolava meus
dedos na tinta preta, recusando-se até mesmo a olhar-me nos olhos.
Nenhum deles me olhou nos olhos. Eles focavam algum lugar na minha
garganta, como se estivessem medindo seu tamanho para um possível
estrangulamento. Comecei a perceber que não era mais humana, porque,
uma vez que eles tinham me atribuído um número no processo, os meus
olhos já não existiam.
Em seguida, uma policial me levou para uma pequena sala,
46 Terri Cheney
atrás do balcão da recepção. Ela abriu as algemas, Deus a abençoe, e
disse-me para esperar ali. Pensei que, finalmente, teria meu celular de
volta, puxa, como eles tinham demorado! Mas ela voltou com luvas de
borracha e um pequeno espelho anexado a um bastão, como aqueles que
o dentista usa para investigar se você tem cáries.
Ainda olhando para qualquer outro lugar, menos em meus olhos,
ela mostrou uma caixa metálica. "Os cordões do sapato, cinto e relógio",
disse ela. Eu não estava usando sapatos com cordões, mas sandálias
baixas. Chanel, minhas favoritas. Mas como tinham pequenos lacinhos
de enfeite, achei melhor tirá-los. Observei, enquanto fazia isso, que
minhas mãos tremiam. "Agora, tire a roupa". Olhei para ela, com os
olhos arregalados. "Tire a roupa, ou então eu vou fazer isso por você".
Eu usava um vestidinho de verão, que chamava de minha roupa à Ia
Audrey Hepburn. Não estava usando sutiã, nem camisola, apenas
calcinhas. E quando a tirasse, ficaria nua. "Qual o motivo?", perguntei.
"Para revistar seu corpo". "Espere, vocês não entenderam, aquilo era
uma medicação prescrita pelo meu médico". Ela me pegou pelos
ombros e me virou, puxou meu vestido sobre minha cabeça e me fez
dobrar o corpo à força.
Aquilo não estava acontecendo, não podia ser verdade; mas os
dedos emborrachados eram muito reais. Graças a Deus que eu não podia
ver o que estava acontecendo lá atrás, ou o que ela viu no espelho
odontológico. Quando terminou, ela disse-me para levantar e esperar.
Ficar de pé era assustador, porque pensei que poderia desmaiar
novamente, mas minha mente clareou lentamente e fiquei firme. Ela
retornou alguns minutos mais tarde com um macacão laranja: "vista
isto, e espere aí". Espere aí, espere aí. Para onde eles achavam que eu
poderia ir? "E o meu telefonema?". Quando perguntei, a policial já
havia saído e fechado a porta.
Laranja nunca foi minha cor predileta. Aliás, quem é ruivo nunca
deveria usar laranja. O macacão era grande demais e bem tosco, mas
enrolei as mangas e a barra das calças e fiquei aguardando.
Os tremores começaram a me preocupar. Era mais do que medo,
aquilo era sinal de alguma coisa química estava acontecendo comigo.
Sempre sentia estes tremores quando ficava naquele estado meio
delirante, com dores de cabeça e tonturas, e suava muito. Tudo isto
estava acontecendo naquele exato momento. Eu até podia sentir as
palavras chegando, uma vontade irresistível de falar... Precisava fazer
aquele telefonema, precisava muito.
Um policial finalmente abriu a porta. Vi as algemas penduradas
no cinto, mas ele não as colocou em mim e só me disse para segui-lo. "E
o meu telefonema?", mas ele não respondeu. Eu o segui por um longo
corredor, passando por uma pesada porta de ferro com barras na janela.
De um lado, havia uma cela, contendo meia dúzia de mulheres ainda
vestidas com suas roupas, parecendo aborrecidas e um pouco
desgrenhadas. Uma delas estava lendo um livro, o que, por alguma
razão, me deu esperança. Passamos por uma outra porta metálica e
chegamos a um outro corredor. Finalmente, paramos em frente a uma
terceira porta de metal, ainda mais grossa. Ali não havia janelas, como
as anteriores. A porta dava para uma pequena cela, com uma bancada de
metal presa na parede. Quando o policial me disse para entrar e esperar,
fiz isso alegremente e me sentei no banco, aliviada. Achei que agora eles
trariam meu celular, que queriam me dar privacidade completa. Esse
alívio passou no momento em que a porta foi fechada e escutei o
estalido do trinco. Eu assisti tv o suficiente para saber o significado de
uma porta que estala quando fecha. Ela foi trancada, aferrolhada. Eu
sempre achei que era algum tipo de efeito sonoro reforçado pelos
técnicos de cinema, mas na realidade o ruído era ainda mais alto, mais
derradeiro, mais conclusivo do que eu tinha imaginado.
Já havia passado da hora da minha medicação. Eu estava indo
para casa tomá-la quando fui detida pela polícia. O IMAO requer uma
dosagem precisa para manter um nível seguro e eficaz da pressão
sangüínea. É um tipo de religião para mim, tomar pílulas no tempo
certo. Não quero confusão com os deuses ou com a
48 Terri Cheney
química de meu cérebro. Só porque tenho uma condição mental delicada
não significa que sou louca.
Eu deveria ter percebido que estava ficando maníaca bem antes
de meus dedos tremerem, ao tentar fechar o macacão com o zíper. O
que, em nome de Deus e de todos os santos, eu estava fazendo em Van
Nuys? Eu nunca ia para o Vale. Sobretudo no verão, quando está quente
e nevoento. A lembrança voltou, em pequenos pedaços desordenados:
eu tinha saído de casa quando estava claro, para colher flores do campo.
Sempre queria flores do campo no começo de meus surtos maníaco-
depressivos.
O melhor lugar para colher essas florzinhas era bem ao norte de
minha casa, subindo a colina, e quando você está em surto, é por vezes
impossível mudar de rumo. Simplesmente prossegue e mantém o curso.
Então, eu devo ter subido até o alto e, depois, descido em direção a Van
Nuys. Tinha uma vaga idéia de estar sentada num bar barulhento e
obscuro, cercada por homens jovens e ouvindo os constantes "pings"
dos videogames. Pedi café para todos, pagando as despesas, como
sempre fazia quando estava em crise maníaca. E paquerei. Paquerei
pesado um rapaz de forte sotaque. Era um deslumbrante rapaz moreno
de Mombasa, como um sheik do deserto. O estacionamento, o beijo —
não, espere, os beijos. Suas mãos. Meu carro. Será que eu perguntei seu
nome? Ainda bem que meu carro tinha bancos individuais e um enorme
console entre eles.
Devo ter dormido de pura exaustão, porque eu não me lembro de
ter me deitado no catre. Quando acordei, minha garganta ardia de tão
seca e minha língua estava grossa e rugosa. Eu ouvi um bater à porta, e
uma chave girando na fechadura. Um guarda entrou, trazendo uma
bandeja de plástico com uma banana, um pequeno recipiente com suco
de laranja e uma fatia de pão com um naco de manteiga em cima. Devia
ser o café da manhã. Eu tinha sido presa antes da meia-noite.
"E o meu telefonema?", reclamei. "Eu só trago a comida",
respondeu o guarda, colocando a bandeja no chão e indo embora.
Atirei tudo aquilo na porta, mas praticamente não fez ruído contra o metal
reforçado. Recusei-me a comer aquela comida nojenta, embora tenha
tomado o suco de um só gole. Um dos piores efeitos colaterais da
medicação é a constante boca seca. Eu nunca ia a lugar algum sem levar
uma garrafa de água e uma meia dúzia de hidratantes labiais. Mas eles
tinham confiscado tudo, e agora os cantos da minha boca estavam
começando a rachar e sangrar. Aproveitei a manteiga e a espalhei pelos
lábios. Era hora de agir com esperteza; sabe-se lá por quanto tempo eu
ficaria naquele lugar. Peguei o restante da manteiga e espalhei-a no meu
umbigo, e entre os dedos do pé, para mais tarde.
Eu não tinha idéia de quanto tempo tinha ficado isolada, quando
então um guarda finalmente chegou para me escoltar até o telefone. Fiquei
preocupada, entre todas as outras coisas, sobre a manteiga que gotejava do
meu umbigo até minha área pubiana. E se eles fizessem outra revista em
meu corpo, seria aquilo parecido com algum tipo de droga derretida?
Mas o guarda levou-me a uma cabine telefônica e ficou de vigia lá
fora, enquanto eu discava o número de meu terapeuta, que sabia de cor. Não
houve nenhum toque. Desliguei e tentei novamente, pensando talvez que
tivesse teclado os números errados. Nenhum som, novamente. Uma terceira
vez e agora não havia nem sinal de discar.
Abri a porta e disse ao guarda que o telefone não funcionava. Havia
outro telefone, ou eu poderia usar meu celular? Conversando com a minha
garganta, ele explicou que, na solitária, só era permitido um telefonema por
hora. Eu me lembro de levantar a voz: "espere um minuto. Estive aqui a
noite toda e esta é a primeira vez que fui autorizada a ligar para alguém.
Você está me dizendo que tenho de esperar outra hora antes de poder falar
com o meu advogado? Com meu advogado?!” Meu cérebro se esforçava
para lembrar o que a televisão mostrava sobre o direito dos prisioneiros a
um telefonema. Será que a polícia contava como uma vez, mesmo que o
telefonema não se completasse? Ou eles deveriam
50 Terri Cheney
lhe fornecer outro aparelho? Eu não conseguia lembrar, e nem a minha
formação jurídica ajudava, uma vez que tudo o que eu sabia era sobre
entretenimento e a lei de direitos autorais.
O guarda me levou de volta à cela, e não sei por quanto tempo
fiquei chorando e socando aquela porta até que outro guarda, desta vez
uma mulher, apareceu. Ela gesticulava com impaciência, mas levantei-
me demasiado depressa e as paredes começaram a girar. Tentei me
apoiar na policial, segurando um de seus braços, mas ela me deu um
safanão. Caí, e a porta foi fechada novamente.
Havia uma refeição esperando por mim no chão, quando me
recobrei. Às vezes a proteína ajuda a aliviar a tremedeira, então eu
cuidadosamente retirei o queijo daquela coisa cinza que talvez fosse
carne e mordisquei-a. Poucos minutos depois, a mesma mulher
destravou a porta. "Já está sóbria?", perguntou. Comecei a chorar
enquanto andávamos pelo corredor, em parte de alívio, porque parecia
que eu ia ter a chance de dar outro telefonema, e, em parte, pela
frustração de não conseguir me fazer entender. "Eu não estou bêbada",
eu disse. "E não estou drogada, aquelas pílulas têm prescrição médica.
E eu preciso de minha medicação. Minha condição é grave. Você não
tem idéia de como é sério". Aquela mulher tinha um talento enorme
para ignorar seus semelhantes. "Pelo menos olhe para a porra dos meus
olhos enquanto estiver me ignorando, caralho!" Nessa hora, me dei
conta de que atravessara uma determinada linha, tanto com os policiais,
quanto com o meu nível de sanidade. Eu jamais diria "porra" para um
policial, seria o mesmo que dizer isso para um juiz. A menos que eu
estivesse em um surto psicótico. Bem, provavelmente era o que estava
acontecendo. Ótimo. Aqueles merdas bem que mereciam.
Os lábios da policial se fecharam na hora que xinguei, e ela
pegou meu cotovelo com força, como se estivesse a me orientar pelo
corredor. Mas não foi esse tipo de toque. Aquilo machucava e eu não
precisava de orientação, até porque já estávamos lá, na abençoada
cabine telefônica. Eu estava chorando
a plenos pulmões enquanto discava. Quando o telefone não tocou,
redisquei cuidadosamente. E quando não tocou de novo, repeti ainda
mais lentamente, dizendo cada número em voz alta enquanto o
pressionava. Mas na hora em que fui tentar pela última vez e não ouvi o
sinal de discar, algo explodiu dentro de mim e perdi o controle.
Ao sair da cabine, não sentia mais com medo. Eu era uma
advogada, uma advogada maníaco-depressiva e não existe fera mais
assustadora na face da Terra. Investi contra todos na sala com as
seguintes palavras: "isso é uma notória violação à 14a
. emenda, sem
mencionar o artigo 42 de 1983, que caracteriza seus atos como tendo a
intenção de infligir angústia emocional! Seus imbecis — nem seu
sindicato vai conseguir salvar seus rabos, desta vez!"
Havia pelo menos dez policiais na sala, atrás de uma janela de
vidro e acho que insultei a todos juntos, e também individualmente, até
o momento em que perceberam de onde vinha a gritaria. Vi um telefone
vago sobre uma mesa vizinha. Levei dez segundos para dar um bote
naquela direção. Mas a policial levou cinco segundos para atirar-me ao
chão.
E, então, de repente ela estava sobre mim, com todos os seus
noventa quilos. Forçou minha cabeça contra o chão, que estava pegajoso
com o que eu percebi, mais tarde, ser meu próprio sangue. Ela
comprimiu um joelho contra minhas costas e começou a me bater. Não
com o punho, mas com o cassetete que pendia em seu cinto, ao lado das
algemas e das chaves. Eu estava tremendo tanto que não sei como ela
conseguia acertar os golpes, mas ela deve ter sido bem treinada, porque
minhas costelas explodiam, uma após a outra, num completo e
sistemático ataque.
O que eu estava sentindo naquele momento? Estava ainda
gritando punições legais? Lembro-me apenas dos sons, redondos, ocos,
sons de pancadas que vinham de dentro, que poderiam ter sido de
minhas costelas ou da minha cabeça batendo contra o chão. Não senti
nenhuma dor, só mais tarde, quando as nódoas negras se dissolveram e
uma espessa cicatriz começou a se formar
52 Terri Cheney
em minha testa. Na hora, só me preocupava com a manteiga e o que a
aquela mulher faria se a encontrasse em meu umbigo. E também queria
saber quanto tempo aquilo iria durar, se ela nunca ficaria cansada. Eu
estava cansada. O chão era suave e frio, e eu só queria deitar e dormir,
dormir para sempre, ou até que acabasse. Dormir e despertar em algum
outro lugar, em um campo de flores silvestres, seguro e acolhedor.
A policial parou em algum momento, ou eu caí adormecida, ou
desmaiei. Não importa. A manteiga ainda estava lá quando fui atirada
de volta à minha cela, e tentei espalhá-la na hemorragia da minha
testa. Tinha endurecido e estava rançosa.
Algum tempo depois, eles levaram um telefone à minha cela e
pude falar com meu advogado, finalmente. Ele disse-me para esperar
— mais uma vez, esperar — que chegaria em uma hora. Depois de
pagar a fiança, fui finalmente libertada. Foram catorze horas de
encarceramento.
Meu advogado me disse, mais tarde, que o Código Penal previa
que um prisioneiro poderia entrar em contato com seu advogado no
prazo de três horas após a sua detenção, e que qualquer medicação
solicitada devia ser analisada pelo médico de plantão. Isso não tinha
mais importância. A coisa dentro de mim que costumava se importar —
que ficava indignada, que insistia em seus direitos - tinha sido surrada
para fora de mim.
Nada mais foi do mesmo jeito, desde o momento interminável
sobre aquele chão frio de pedra. Entendo agora que não sou intocável,
que não sou imune. Você cresce separada das pessoas no ônibus, ou das
pessoas na rua, por uma parede de vidro feita de dinheiro, de boa
educação, de uma profissão. Nunca pensa que poderia ser aquele pobre
rapaz negro sendo espancado pelos policiais. É só tv. Você nem mesmo
se lembra de seu nome — Arthur King? Robert King? Rodney. Isso
mesmo, você é Rodney King e quando se olha no espelho, a imagem
nem aparece.
Talvez seja pior quando se é um advogado, e sabe que seus
direitos estão sendo violados. Talvez não seja, afinal, porque
quando você sair, haverá outro advogado esperando para defendê-lo.
No fim das contas, minha sentença foi de apenas "direção perigosa"3
, o
que me custou um pacotão de dinheiro, mas não atrapalhou demais
minha vida. Mas continuo a hesitar em tirar minha blusa e revelar as
cicatrizes para um novo amante. Na verdade, fico em dúvida até para
tirar toda a minha roupa.
3
No original, "wet reckless". É uma sentença do juiz, ligada à direção temerária e relacionada ao
consumo de álcool. Para se obter este benefício, porém, o indivíduo não deve ter causado nenhum
acidente e não pode ter sido sentenciado previamente. Tal sentença reduz a multa e não obriga
que a pessoa passe um tempo na cadeia. Se, no entanto, houver outro caso igual, o "wet r eckless"
será considerado como um registro prévio e a sentença será mais pesada. (N. do T.)
5
Eu sabia que estava começando a ter uma
pequena crise maníaca quando o som da bateria, vindo da casa ao lado,
começou a me deixar maluca. Mesmo que agora eu não estivesse
trabalhando em tempo integral, ainda assim precisava pagar o aluguel.
Estudava uma petição para um habeas-corpus, e o tempo para entrar
com a petição estava acabando. Mas, nas últimas duas horas, eu tinha
sido agredida por um incessante tump-tump-da-tump, tão alto que fazia
tremer os vidros das janelas. Eu vinha sendo paciente com as sessões
musicais noturnas, com o treino das escalas ao piano logo cedo, e com
o Álbum Branco dos Beatles tocando sem parar, numa homenagem sem
fim aos anos 1960. E tinha sido paciente porque ouvira dizer que meu
vizinho era um
grande produtor e compositor, um cara poderoso da indústria
musical, e eu adorava viver ao lado de um grande produtor e
compositor. De certa forma, ele fazia meu aluguel parecer um
pouco menos obsceno.
Mas quando você está a caminho de uma crise maníaca, a menor
sensação frita seus nervos. Qualquer som é ruído, o sol é apenas um
clarão ofuscante e você precisa de todo o seu autocontrole para não
cortar fora o pedaço do tornozelo que foi picado por um pernilongo.
Naquela manhã, as cerdas de minha escova de cabelos me atormentaram
tanto, que joguei a escova na privada. Tenho jogado um monte de coisas
na privada, nesse meu caminho até a crise maníaca — nem todas
visíveis, ou facilmente substituíveis.
Quarenta e dois minutos mais de tump-tump-da-tump e os
pelinhos da minha nuca e braços estavam irritados de indignação.
Alguma coisa tinha que ser feita — e naquele mesmo instante, antes que
meu sangue pulsante jorrasse pelos meus ouvidos. A raiva costuma me
impulsionar para a ação antes mesmo que eu possa me perguntar o
motivo, ou se é a hora certa de fazer qualquer coisa. Entre os batimentos
do coração e respirações entrecortadas, me preparei para enfrentar o
bastardo, cara a cara. Olhando da perspectiva atual, aquele deve ter sido
um dos meus momentos mais precários, quando meu equilíbrio químico
estava desabando e minha quase estabilidade deixava de existir. Num
minuto, eu estava pensando em como cobrir minhas janelas com fita
isolante para abafar o som, e no minuto seguinte, já estava fuçando em
meu guarda-roupa, procurando a roupa mais sexy do gênero enfrente-
seu-vizinho que pudesse encontrar.
Você fica maravilhosamente magra quando se vê a caminho da
depressão maníaca. Comer é um ato que não lhe ocorre, porque existem
muitos outros pensamentos que ocupam sua mente, importantes
reflexões, pensamentos que até podiam mudar o mundo — isso se você
tivesse um tempinho para anotá-los. Portanto, eu estava suficientemente
magra nesse dia para vestir
56 Terri Cheney
meu jeans preto lustroso. Aquele jeans não era minha vestimenta
habitual, mas combinava perfeitamente com minha camisa verde de seda
favorita, uma que parecia superdelicada sobre minha pele branca, isto é,
até que a luz batesse diretamente sobre ela e a seda ficasse transparente.
"Os mamilos são coisa natural", pensei, enquanto abotoava a
camisa e calçava meus sapatos. Eram sapatos baixos como uma
concessão à sobriedade, o que prova que eu não devia estar totalmente
maníaca naquela hora. Uma verdadeira maníaca jamais pisaria na rua se
não estivesse usando um scarpin com salto agulha.
Jeans apertados, mamilos visíveis e sapatos baixos: uma estranha
reunião de personalidades, mas não era isso o que eu estava realmente
vestindo quando marchei até o portão do meu vizinho. Em minha mente,
eu estava vestida para a batalha, no cruel terno cinza que usava apenas
no tribunal e naqueles casos de vida ou morte; calçando aqueles sapatos
de couro negro que eu havia comprado em um número menor de
propósito, apenas para me manter irritada.
Ao chegar em frente ao portão do inimigo, passei a mão nos
cabelos, me endireitei e alinhei os ombros. Era estranha, mas conhecida
a sensação. O movimento foi tão automático como o meu pulso
acelerando. Era tudo muito familiar: eu estava em pé, na frente da porta
do tribunal.
Meu corpo simplesmente não esquecia, não importava o quanto
minha mente tentasse: aquela excitação das altas batalhas na corte. Fora
assim nos últimos quatro anos, desde que saíra da cena principal, e por
mais que lamentasse todo o dinheiro que deixara de ganhar, eu sabia que
não seria seguro voltar a praticar advocacia em período integral. Sabia
disso, com absoluta certeza; mas, como um alcoólatra que se lembra do
porre e nunca da ressaca, o meu corpo ainda suplicava pela embriaguez
da adrenalina, de sempre jogar para ganhar. Vencer sempre tinha sido
meu treinamento e, sem falsa modéstia, era o que eu sabia fazer melhor.
Então saboreei, apenas por um momento, a lembrança da agulhada
daqueles sapatos pretos, que nunca encaixavam nos meus pes, nem
mesmo quando eu ganhava. Então, estiquei o braço e pressionei a
campainha da casa do vizinho, segurando-a por alguns segundos além
do tempo indicado para uma pessoa educada.
Ele abriu a porta e seu "olá, como vai?" foi tão doce que soou
como se ele estivesse cantando. Ou estaria chapado? Aí, eu vi os olhos
verdes. Esses homens com olhos verdes causam algum efeito na
cartilagem de meus ossos, sempre foi assim. E sempre será.
"Eu moro aqui ao lado", e apontei na direção errada. "Sou
advogada". Ele fez sim com a cabeça e ficou esperando. Mas eu não
disse mais nada. Apesar de existir mais coisas a dizer, atoladas em
minha garganta, mas com medo de sair e se mostrarem mais idiotas do
que "oi, sou a advogada que mora aqui ao lado".
"Bem, obrigado. Eu estou muito contente com meu advogado
atual, mas certamente vou me lembrar de você, se um dia precisar de
alguma coisa", ele falou. "Por que não deixa um de seus cartões com
minha empregada, qualquer dia desses, que tal? Foi um prazer conhecê-
la".
Eu ainda tinha bastante raiva residual em mim e bastante
irritabilidade maníaca, para aceitar um insulto dito na mais inocente das
observações, não importa se de maneira educada e nem mesmo se os
olhos verdes eram lindos. Eu poderia até não ser capaz de continuar
vivendo naquele bairro e minha casinha aos pedaços provava esse fato.
Mas não aceitaria jamais que alguém insinuasse que eu estaria
mascateando meu registro de advogada para cima e para baixo na rua,
como se fosse uma vendedora da Avon. Então, resgatei A Voz que eu
usava para destilar venenos polidos como "meu digníssimo oponente"
ou "senhor juiz, eu discordo respeitosamente".
"Olhe", disse A Voz, "eu tenho que preparar uma petição e o
tempo está acabando, não há maneira de eu conseguir fazer isso se essa
bateria não parar. Quero dizer, já tentei de tudo, usei fones de ouvido,
tampões e...".
58 Terri Cheney
Fui interrompida por outra leva de tump-tump-da-tump. O ruído
foi ainda mais alto, ali, na fonte, e vi com o canto dos olhos, com
satisfação, que as janelas do meu vizinho também vibravam com o
barulho.
Não havia nada mais entre nós, a não ser as vibrações.
Durante os julgamentos mais sérios, você tem que ser rápida,
estar sempre dois passos à frente de seu oponente. Então, eu estava
pronta para qualquer coisa que os próximos segundos trouxessem.
Pronta, como uma cascavel para atacar, pronta para uma batalha — mas
não estava preparada para risadas. Risadas não têm lugar adequado
entre inimigos. Mas, mesmo assim, ele ria. Ele se encostou no batente e
riu, uma risada honesta que vinha do fundo do diafragma. Acho que
devia ter sido uma risada de alguém chapado, talvez, porque eu também
entrei no jogo, e, pela primeira vez naquele dia, talvez nos últimos dias,
não sei, os sons que emergiram de mim não continham nenhum sinal de
raiva ou irritação.
Ele chegou mais perto e colocou a mão em meu braço. "Deus, eu
estou tão arrependido", disse. "Pensei que você estava... Eu pensei que
você queria... Enfim, eu juro que eu nunca sequer ouvi os tambores, até
agora. Tenho vivido tanto tempo no negócio de música que, às vezes,
apenas desligo tudo, entende? Hoje é aniversário de meu filho e como
fico com ele apenas nos finais de semana, estou provavelmente
supertolerante com ele. Mas não se preocupe, ele volta para casa da
mãe com a bateria amanhã cedo. Um presente-surpresa para ela, sabe
como é..."
Não era engraçado, na verdade. Talvez pudesse ser, numa dessas
comédias da tv, mas de todo modo, isso esclareceu tudo. E, sem
perceber, toda a minha raiva tinha passado.
"Na verdade, isso é perfeito", meu vizinho disse. "Estamos
fazendo uma festa para Trevor — o meu menino — e temos toneladas
de alimentos. Sobremesas incríveis. Nós vamos ter que jogar tudo fora
amanhã, a menos que você venha nos ajudar a comer. E você pode
levar para casa o quanto quiser". Ele então estendeu a mão. "Falando
nisso, o meu nome é Julian".
"Sou Terri", eu disse, segurando sua mão do jeito mais
apropriado para uma garota de família, e não mais como uma
advogada durona.
Embora fôssemos vizinhos, a casa de Julian e a minha só
tinham uma coisa em comum, o código postal. Meu quarto cabia em
seu vestíbulo, e sua pia de cozinha teria engolido minha banheira, se
eu tivesse uma.
Mas a maior diferença entre nós não era o tamanho da casa: era
a luz, a luz que cintilava e refletia de todas as direções, ricocheteando
ao redor da sala nas luminárias de cromo de alta tecnologia e tachos
de cobre e panelas de estanho. Luzes como aquelas são um luxo que
poucos podem pagar. Então, eu concluí que a dezena de pessoas em
sua cozinha era provavelmente de alto luxo também. Não se
adivinhava pelas roupas que usavam — de fato, roupas bem comuns.
Mas se você soubesse como é esse mundo altamente competitivo, e eu
o conhecia muito bem, então res ipsa loquitor as provas falam por si.
Eu sabia que aqueles alongamentos no cabelo, praticamente perfeitos
e sem emendas, puxados para trás de qualquer maneira, deviam custar
acima de mil dólares. E eu sabia o que significava ter aqueles
logotipos diminutos aplicados nas bolsas e mochilas: quanto menor o
logotipo Chanel, mais alto o preço. Mas o mais revelador foi o que eu
não vi. Nenhuma daquelas seis mulheres, todas nos seus quarenta anos
ou mais, tinha qualquer ruga na testa, ou marcas de expressão ao lado
da boca, ou qualquer fissura acima dos lábios. Ergo: injeções de
Botox e colágeno, entre quatrocentos e quinhentos dólares cada; com
manutenção a cada três ou cinco meses.
Algumas das mulheres me deram aquele olhar de cima abaixo e,
como eu conhecia esse olhar, devolvi do mesmo modo. Mas, com o
Julian ao meu lado, fazendo as apresentações, não senti nenhuma
necessidade de defender-me. Seus amigos foram apresentados à
garota da casa ao lado, naqueles jeans quase indecentes e vestindo
uma camisa verde de seda, que desapareceu
60 Te rri Cheney
sob a luz da cozinha. Os homens não pareciam se importar com minha
aparência. Na verdade, eles estavam interessados na minha história
sobre a bateria de Trevor. Não sei o que as mulheres pensavam. Após
um rápido alô, elas se retiraram para uma pequena sala de jantar.
Julian não estava brincando quando disse que havia muita comida.
Eu contei pelo menos dez diferentes sobremesas para menos de uma
dúzia de pessoas, além de dois sacos de cachorros-quentes. Tive que
admitir que eram surpreendentes: tortas de limão cobertas com flores
comestíveis; uma profunda tigela de bolo inglês com crème fraîche ao
lado; pudins tão cheios de rum que fizeram meus olhos se encherem de
água só com o cheiro.
Julian sentou-me num banquinho no meio dos rapazes, sob uma
dupla fileira de panelas de cobre, e me entregou um prato com um
pouco de cada sobremesa, dizendo para eu experimentar todas. Eu não
estava com fome, embora soubesse que deveria estar, e quem não ficaria
esfomeado quando se visse frente a frente com sorvetes de maracujá e
de chocolate branco — coberto por morangos tão grandes quanto o
punho de uma criança? Nessa hora, me dei conta de que não tinha
comido nada naquele dia, ou, pensando bem, nem no dia anterior. Na
verdade, não me lembrava da última vez que tinha comido alguma
coisa. Isso provavelmente significava que havia atingido certo ponto, no
caminho até a crise maníaca: pelo menos três quartos desse caminho
tinham sido percorridos até ali.
Teria sido grosseiro recusar o prato, mas eu não queria
desperdiçar nenhum tempo de conversa, de sorrisos, de risadas. A fase
inicial da paquera demanda completa atenção, não pode ser desviada
por um bolo inglês. Mas como Julian insistia, e os rapazes ficavam
dizendo qual das sobremesas eu deveria experimentar primeiro, resolvi
pegar um enorme morango. Era grande demais para uma mordida, então
eu comecei a lamber o chocolate branco: casualmente, sem pressa.
Depois, mordisquei apenas um segundo ou dois, delicadamente, ao
redor da haste. Então eu sorri, com
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BIPOLAR - BIPOLAR - MEMÓRIAS DE EXTREMOS - TERRI CHENEY.pdf

  • 1.
  • 2. Contracapa: Na mesma tradição de Garota interrompida, Correndo com as tesouras e An unquiet mind, esta autobiografia dolorosa e maravilhosamente escrita narra as experiências de uma mulher vivendo com o transtorno bipolar. "Mais do que demolidora história sentimental, Bipolar é uma biografia com força descritiva... e observações assustadoramente lúcidas." PUBLISHERS WEEKLY "Escrito em capítulos episódicos, que imitam os altos e baixos da depressão bipolar - mania, hipomania, depressão -, o livro de Cheney é de dar frio na barriga." LOS ANGELES TIMES "Esta é uma biografia pungente... O texto é maravilhoso e a história, cativante." DR. LORI ALTSHULER, DIRETOR DE PESQUISAS SOBRE DESORDENS DE COMPORTAMENTO DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA (UCLA) Abas: Em um momento, Terri Cheney está agachada sob sua mesa em seu escritório de advocacia em Beverly Hills, paralisada pela depressão; no momento seguinte, está empinando pipas à beira de um penhasco em Big Sur, sob uma violenta tempestade. Em outro momento, ela está tomando uma dose excessiva de analgésicos com tequila, e depois está perdidamente apaixonada. Bonita, extremamente bem-sucedida e brilhante, Cheney - como outros 10 milhões de pessoas, apenas nos Estados Unidos - sofre de transtorno bipolar, um terrível segredo que quase a matou. Nesta angustiante, mas esperançosa, autobiografia, ela revela as manifestações e os efeitos causados por essa devastadora doença sobre si própria e sobre aqueles que a cercavam, enquanto se debatia nas profundezas da depressão e nos picos temerários da mania. Desde as múltiplas tentativas de suicídio, experiências de quase morte, noites na cadeia e exploração sexual, passando por amizades rompidas e pelo tratamento de eletrochoque, Bipolar é o retrato de uma vida vivida em extremos, uma inesquecível viagem numa montanha-russa. BIPOLAR MEMÓRIAS DE EXTREMOS Terri Cheney, advogada especializada em entretenimento e propriedade intelectual, trabalhou em proeminentes escritórios de advocacia de Los Angeles, e ao longo de dezesseis anos de carreira representou clientes como Michael Jackson e Quincy Jones, além de grandes estúdios de cinema como Universal e Columbia Pictures. Ela agora dedica seu talento à causa das doenças mentais. Foi nomeada membro do conselho de consultores do Programa de Pesquisas sobre Desordens do Comportamento da Universidade da Califórnia, Los Angeles, e fundou um grupo comunitário de apoio no Instituto de Neuropsiquiatria da UCLA. Terri Cheney mora em Los Angeles, Califórnia.
  • 3. Para meu pai e minha mãe.
  • 4. Prefácio Se você embarcar comigo nesta jornada, uma advertência é necessária: o transtorno bipolar, ou depressão maníaca, não é uma viagem segura. Ela não vai partir do ponto A e chegar ao ponto B, da maneira que você esteja acostumado. E uma viagem caótica, imprevisível. Nunca se sabe qual será a próxima etapa. Eu queria que este livro espelhasse a doença, que desse ao leitor uma experiência visceral. É por isso que decidi contar minha história de vida por episódios, em vez de seguir uma ordem cronológica. É mais fiel à maneira como eu penso. Quando olho para trás, raramente me lembro dos eventos em termos de data ou seqüência. Pelo contrário, lembro-me do estado emocional em que estava. Desvairada? Deprimida? Suicida? Eufórica? A vida, para
  • 5. 8 Ter ri Cheney mim, não é definida pelo tempo, mas pelo estado de espírito do momento. Tentei descrever aquilo de que me lembro do modo mais verdadeiro. Mas a doença mental cria em nós sua própria realidade, vibrante e tão convincente, que, por vezes, é difícil descobrir exatamente o que é real e o que não é. E isso fica ainda mais difícil com o passar do tempo, porque a memória é a primeira vítima da psicose maníaco-depressiva. Quando estou no estado maníaco, tudo de que me lembro é o momento. Quando estou deprimida, tudo de que me recordo é a dor. Os detalhes se perdem. Mas este transtorno, ironicamente, tem me prejudicado muito menos do que o tratamento. Já há muito perdi o controle de todas as medicações psicotrópicas que tive que tomar ao longo dos anos, ou a natureza e a quantidade de seus efeitos secundários. Mais devastador, no entanto, foi o processo da terapia eletroconvulsiva (ECT), que durou até 1994. A ECT pode ser de grande ajuda como um último recurso de tratamento, mas é um processo conhecido por causar amnésia. Por um bom período, esqueci-me até mesmo das coisas mais simples: em que parte da cidade eu vivia, o nome de solteira da minha mãe, para que servia uma tesoura. Algumas dessas alterações de memória desapareceram, mas continuo a ter dificuldade em recordar acontecimentos passados e reter a lembrança dos mais recentes. O mundo nunca mais foi tão nítido e claro como era antes do ECT. Em alguns casos, os eventos que descrevi podem ser comprovados pela polícia ou por registros hospitalares (embora alguns dos hospitais não existam mais). Optei por mudar o nome da maioria das pessoas e instituições representadas, para proteger suas identidades. As experiências que descrevi são tão difíceis e particulares que preferi apenas contar minha própria história. Contar estes fatos foi o que me manteve viva, mesmo quando a morte parecia tão sedutora. É por isso que a compartilhei, apesar de certas passagens ainda serem muito dolorosas para recordar, mesmo através de uma névoa obscurecida
  • 6. pela medicação, pela doença mental e pela terapia eletroconvulsiva. Mas a doença viceja na vergonha, a vergonha prospera no silêncio e tenho sido omissa por tempo demais. Este livro representa aquilo de que me lembro. Este livro é a minha verdade. Terri Cheney Los Angeles, Califórnia, 23 de outubro de 2006
  • 7. 1 Eu não disse a ninguém que estava indo à Santa Fé para me matar. Achei que era mais informação do que as pessoas precisavam saber, além do quê, se alguém tentasse descobrir a verdade poderia interferir em meus planos. As pessoas sempre lhe querem bem, mas elas não entendem que, quando você está seriamente deprimido, a concepção do suicídio pode ser a única coisa que lhe mantém vivo. Basta saber que existe uma saída — mesmo que sangrenta, mesmo que permanente — para tornar a dor quase suportável por mais um dia. Fazia cinco meses que meu pai havia morrido de câncer no pulmão, e o mundo não era mais um lugar para se viver. Enquanto papai ainda estava vivo, fazia sentido me levantar todas as manhãs,
  • 8. 12 Terri Cheney deprimida ou não. Havia uma guerra a travar. Mas no dia em que dei a ordem de aumentar a morfina para uma dose letal, a luta perdeu todo o significado para mim. Então eu quis morrer. Não vi nada de excepcional nesse desejo, embora tivesse apenas 38 anos de idade. Naquelas circunstâncias, parecia uma resposta perfeitamente natural. Estava fatigada, esgotada, e a morte soava como um período de férias para mim. Tudo o que realmente desejava era estar em outro lugar. Quando me foi oferecida a oportunidade de deixar Los Angeles e fazer uma longa viagem até Santa Fé sozinha, fiquei em êxtase. Aluguei uma pequena hacienda perto de Canyon Road, a parte intelectual e artística da cidade, com galerias de arte, barzinhos de jazz e excêntricos cafés-livrarias. Era um bom lugar para morar, especialmente em dezembro, quando a neve caía espessa e profunda sobre as ruas calçadas de pedra, abafando o ruído da cidade de tal modo que parecia que todos andavam de meias. Houve uma quantidade excepcional de neve naquele mês. Tudo parecia um estudo de contrastes: o sol feroz e redondo do deserto, fulgurante enquanto eu tremia; as sombras brancas e azuis da neve contra as grossas paredes vermelhas; e sempre, para toda parte que eu olhasse, havia as pontiagudas colunas da cidade antiga pressionando-se contra as lustrosas curvas do novo. Mas o mais flagrante contraste era eu: emocionada até as lágrimas, simplesmente por estar viva nesses ambientes — e mais determinada do que nunca em morrer. Nunca me senti tão bipolar na minha vida. A crise maníaca chegou num jorro que durou quatro dias. Quatro dias sem comer nem dormir, apenas sentando-me não mais do que cinco minutos em cada lugar. Quatro dias de compras - e Canyon Road é o lugar certo para se fazer isso, com todo o seu fantástico conjunto de lojas. E quatro dias falando indiscriminadamente e sem parar: em primeiro lugar, com todas
  • 9. as pessoas que conhecia na Costa Oeste e, em seguida, com todos que continuavam acordados na Costa Leste; depois, na própria Santa Fé, com qualquer um disposto a ouvir-me. A verdade é que eu não precisava falar, apenas tinha medo de ficar sozinha. Havia coisas pairando no ar, em torno de mim, que não queria lembrar: a expressão no rosto do meu pai quando eu disse a ele que era a fase IV do câncer, já em metástase; seu olhar perplexo quando não pude fazer sua dor ir embora; e a maneira como seus olhos me observavam no final, um olhar fixo seguindo-me em cada movimento, implorando por um conforto que não fui capaz de lhe dar. Nunca pensei que pudesse ser assombrada por algo tão familiar, e tão querido, quanto os olhos de meu pai. Na maioria das vezes, porém, eu conversava com homens. Canyon Road tem uma série de bares e boates extremamente simpáticos, todos a pouca distância da minha hacienda. Não era difícil para uma ruiva, com um sorriso no rosto e um brilho febril nos olhos, engajar-se numa conversa que só terminaria nas primeiras horas da manhã seguinte, na casa dele ou na minha. A única palavra que eu não dizia era "não". Mas consigo aliviar a minha consciência lembrando-me de que o sexo maníaco não é realmente intercurso, é apenas uma outra forma de aliviar a insaciável necessidade de contato e comunicação. Em lugar das palavras, simplesmente falava usando a minha pele. Eu já havia decidido, há muito tempo, que a véspera de Natal seria meu último dia na Terra. Escolhi esta data precisamente porque tinha significado e beleza, e escolhi Santa Fé por causa de seu festival de luzes. Neste dia, cantores vinham de todos os lugares do mundo, descendo as ruas iluminadas entoando cânticos natalinos até o amanhecer. Todas as portas ficavam abertas e o ar era impregnado pelo aroma pungente de cidra e pinhão. Escolhido morrer quando o mundo estivesse no seu melhor momento, quando eu poderia oferecer meu coração a Deus e dizer: "Obrigada por tudo". Não é que eu seja ingrata. É só que não sou mais capaz da alegria que uma noite como esta merece. Alegria é
  • 10. 14 Terri Cheney uma blasfêmia, agora que papai morreu; viver neste mundo é um desperdício. E isto, em minha opinião, é uma razão mais do que suficiente para morrer. Esta oração não escrita era a única nota de suicídio que eu pretendia deixar. A véspera de Natal surgiu brilhante e fria, com previsão de neve para aquela tarde. Era o quarto dia da minha farra maníaca, e minha mente continuava acelerada. Por causa disto, já havia cuidadosamente definido o meu traje de despedida: um longo vestido preto de cashmere — não para dar um ar macabro ao acontecimento, mas porque cashmere é um tecido que não amassa, e o preto porque poderia esconder alguma mancha de sangue, ou de vômito, não prevista. Eu também separei todas as pílulas que guardei ao longo do último ano, incluindo os medicamentos pesados que meu pai não tivera tempo suficiente para tomá-los. Eles estavam dispostos em ordem de provável letalidade e separados em punhados, cerca de dez comprimidos em cada um. Contando pela última vez, concluí que havia muito mais do que trezentos comprimidos e cápsulas, o que significava uma enorme quantidade para engolir. Só então percebi que eu não tinha tequila suficiente para empurrar todos eles goela abaixo. Água não era uma opção. Eu precisava da interação. Coloquei as luvas, chapéu e casaco, peguei as chaves do carro e fui procurar a loja de bebidas mais próxima, rezando para que estivesse aberta. A neve caía pesadamente, o suficiente para me obrigar a ir mais devagar, mas eu estava com sorte. Não só a loja estava aberta, como tinha a minha tequila favorita. Comprei três garrafas, e o senhor no caixa, que já me conhecia das várias vezes que eu visitara sua loja, desejou-me um "Feliz Natal". Estiquei a mão para cumprimentá-lo, mas de repente me voltei e dei-lhe um forte abraço e o beijei nas duas bochechas. "Feliz Natal!", eu disse, e alguma coisa gelada e afiada vibrou dentro de mim. Havia prometido a mim mesma não dar nenhum adeus... A neve caía rapidamente quando voltei à hacienda. O aquecedor do carro não estava funcionando muito bem e eu estava
  • 11. tremendo tanto que mal pude abrir a bolsa para pegar as chaves de casa. Eu odiava ficar com frio. Remexendo na bolsa com os dedos meio endurecidos, perguntei-me se, na hora em que o corpo fosse colocado na sepultura, aquele último arrepio realmente abandonaria os ossos. Cinco minutos depois, percebi que a chave não estava na minha bolsa, nem no carro, nem caída na neve. Estava, pura e simplesmente, em algum outro lugar, e eu estava trancada lá fora, longe do meu sonho mais desesperado. Felizmente, meu celular estava no porta-luvas e uma prestativa telefonista conseguiu indicar-me o único chaveiro trabalhando na véspera de Natal. Mas iria demorar pelo menos uma hora até o chaveiro chegar. "Melhor se agasalhar bem", disse ele. "Eu vou fazer melhor do que isso", pensei. Abri uma garrafa de tequila, tomei um longo e profundo gole, e comecei a cantar canções de Natal em ordem alfabética, para mim mesma. Já tinha passado três vezes pelo alfabeto inteiro, no momento em que o chaveiro chegou, uma hora e meia mais tarde. Estava cantando a plenos pulmões e não ouvi a sua chave batendo contra o gelo incrustado na janela do carro. Tudo que vi foi um par de olhos avermelhados, sob espessas sobrancelhas, e bêbada como estava, só pude pensar em Papai Noel. "Porta", disse apontando. "Trancada". Enquanto ele experimentava uma chave após a outra, perguntei sobre seu trabalho, sobre a vida em Santa Fé, sobre a vida em geral. A velha mania de saber de tudo que estava a minha volta, e, felizmente, encontrara um participante bem disposto. Na verdade, eu nem terminava minhas perguntas direito e ele já as respondia, completa e profundamente. Foi um choque quando percebi que ele estava falando ainda mais rápido do que eu, e que suas respostas não faziam muito sentido. Havia algo de errado com ele, algo ligeiramente fora do lugar. Olhei para aquele homem enquanto falava e percebi que era mais jovem do que eu pensara. E praticamente sem dentes. Um único dente da frente era
  • 12. 16 Terri Cheney enquadrado por dois remanescentes na parte de trás. O resto da gengiva era escuro, como uma grossa fatia de fígado de bezerro. E seus olhos não eram apenas vermelhos, eram sangrentos, com virulentas estrias brancas pela superfície do globo ocular. Mesmo sob a forte névoa de tequila, ouvi uma advertência. "Dê um passo para trás", disse a mim mesma. "Componha-se, seja mais formal." Mas nós já havíamos embarcado nesse ritmo estranho: eu perguntando, ele respondendo; eu ouvindo com todo o meu corpo. Não sabia como fazê-lo parar e estava preocupada em não ofendê-lo. Antes de definir meu próximo passo, o estoque de chaves acabou e o chaveiro disse que a única coisa a fazer seria quebrar o vidro. Eu adorei a idéia de quebrar vidros naquele momento. Desejava eu mesma fazer isso, mas ele se recusou. Enrolando a mão em um trapo velho e gorduroso, ele disse para me afastar e fechar os olhos. Então esmurrou a vidraça uma vez, duas vezes, e, na terceira, o vidro tilintou pelo chão de pedra. Não há nada melhor do que quebrar alguma coisa — a lei, um painel de vidro, seja lá o que for — para animar um estado de espírito depressivo. "Isso merece uma bebida", disse, enquanto ele abria a porta. Preparei tudo rapidamente: os copos, o sal, o limão e uma garrafa recém-aberta de tequila. Uma vez que este seria provavelmente o último brinde que eu faria na vida, queria dizer algo profundo, e mais do que isso, queria a bebida. "Pelo arrombamento!" Quando tocamos nossos copos, vi uma mancha de sangue na camisa. "Acho que você se cortou na janela", eu disse a ele. "Sente-se, e eu vou cuidar disso." "Não é nada", respondeu, puxando seu braço. "Eu já vi sangue antes", comentei rindo. Ele se sentou e começou a desabotoar a camisa, mas parou de repente. "Não posso, uma dama não deveria ver isto." "Sinto muito", eu disse. "Você tem queimaduras?" "Não", resmungou, aborrecido. "Cicatrizes?"
  • 13. "Nada disso." Aproximei-me e pus a mão em sua manga. "Então deixe de ser bobo. Você está sangrando sobre a minha mesa." Sem olhar para mim, ele terminou de desabotoar e enrolou sua camisa, expondo assim, a partir do pulso até o bíceps, a maior exposição de material pornográfico que eu já tinha visto tatuado sobre o corpo de um homem. "Sou assim no corpo todo", disse. "Eu usava drogas e não conseguia raciocinar direito, naquela época." Sem querer, seu bíceps flexionou, fazendo com que o corpulento casal tatuado começasse a copular. Senti meu rosto ficar ruborizado, mas eu não conseguia tirar os olhos dali. Foi grotesco e estranhamente inocente: tão desprovido de apelo sexual como as tiras de jornal do domingo. Não consegui resistir e explodi em risadas, dizendo-lhe que tinha visto coisa muito pior nas minhas viagens. Ele não respondeu, nem olhou em meus olhos. Comecei a limpar o pequeno corte na parte superior do antebraço, esperando relaxá-lo, mas o contato o deixou mais nervoso. "Estou tão arrependido", ele continuava dizendo. "Se eu pudesse, eu ia queimar tudo isso." "Está tudo bem, espere mais um pouco." "Não, eu sou medonho", insistiu. "As vezes, eu só quero morrer." Há muitas maneiras fáceis de responder a uma declaração como esta — de modo superficial, ou com doses de sabedoria — mas a ironia abrandou-me. Ali estava eu, apenas esperando que aquele pobre homem fosse embora, para que eu pudesse me matar, por volta da meia-noite; e de repente eu devia tranqüilizá-lo, reafirmando a santidade da vida? Servi mais uma dose de tequila. Ele empurrou o copo e balançou a cabeça. Vi uma lágrima começar a se formar, no canto do olho. Desdentado, tatuado como um maluco, fosse o que fosse, aquele homem estava sofrendo e eu conhecia muito bem esse sentimento. Virei seu braço, expondo o punho com um demônio dançando. Umedeci a área com tequila,
  • 14. 18 Terri Cheney espalhei um pouco de sal e me dobrei um pouco, lambendo por entre os tendões. Depois, engoli a tequila de um gole só, virei o copo de boca sobre a mesa e suguei o limão. "Isso é o que penso da suas tatuagens", eu disse. "Agora tome sua bebida, é véspera de Natal". As intenções dos maníaco-depressivos são sempre boas. As conseqüências de seus gestos, quase nunca. Eu não tive nenhuma intenção sexual com aquilo, era apenas um animal machucado lambendo as feridas de outro animal. Mas então ele se levantou repentinamente e me agarrou pelos braços, puxando-me para perto e me beijando. Tentei escapar, mas seu aperto era muito forte e sua boca, muito insistente. Eu não queria sexo. Queria apenas conversar por um minuto ou dois, e depois queria morrer, apenas isso. Sua boca tinha um gosto lodoso, era escura e azeda, e eu não conseguia afastar a imagem daquelas gengivas repugnantes. Meu estômago revolveu, parte por causa da tequila, parte por causa da bile, e tentei me soltar, novamente. Senti o aperto relaxar, então ele se afastou um pouco, e eu ouvi "não!" — só essa palavra - e não sei qual de nós disse isto antes de o mundo se apagar. Acordei várias horas mais tarde, estatelada em minha cama, estranhamente rígida e toda ferida e úmida. Estava sozinha. Quando empurrei a coberta, rocei minhas coxas e senti uma viscosidade fria e familiar. Devia estar menstruada, pensei, mas logo senti o cheiro de suor — não um suor que eu conhecia, mas o suor de um homem. A parte interna de minhas coxas estava palpitando, dolorida demais para mexer, mas mesmo assim me inclinei para olhar. Estavam cobertas com manchas de sangue, começando a brilhar. Realmente, isso não deveria ter tanta importância. Eu ia mesmo abandonar este corpo, continuei dizendo a mim mesma, assim que puder me levantar e engolir os comprimidos. Mas teve importância, e muita. Da mesma forma que queria deixar a casa
  • 15. imaculada, meu desejo era ter uma morte limpa. Sem nenhuma ponta solta, sem nenhuma despedida, especialmente para a minha inocência. Eu já tinha usado minha cota de despedidas. Eu certamente não queria recordar nem sentir, mas as lágrimas começaram a fluir, indesejadas. Com elas, vieram as memórias: o gargalo de uma garrafa azul quebrada, oscilando para frente e para trás diante de meus olhos, antes de desaparecer entre as minhas pernas; um pesado braço apertando minha garganta; uma rápida respiração na minha orelha. E, por todo lado, os pequenos demônios dançando, encrespados, sobre a superfície da sua pele, da minha pele, de nossas peles. Olhei para baixo novamente, o mosaico de sangue sobre os lençóis. Era muito sangue, não poderia ter vindo apenas das lacerações nas minhas coxas, que pareciam bastante superficiais. Não, devia haver um ferimento mais profundo. Agachei-me e procurei cuidadosamente entre minhas pernas. Meus dedos surgiram com sangue fresco. Sempre há um profundo ferimento, se você procurar por ele. Deitei-me no travesseiro, esgotada. Mas a dor física não me incomodava mais. Foi sobrepujada por uma monstruosa onda se aproximando, um tsunami que eu vinha tentando evitar desde que chegara à Santa Fé. Apertei os olhos; mordi meus lábios, mas me sentia esmagada pela noção de que, pela primeira vez na minha vida, estava total e completamente só. "Se papai estivesse vivo", uma voz interior me defendeu. Ele teria me salvado de tudo isso: não apenas do homem demoníaco com a garrafa azul, mas também de todas as perigosas manias que me levavam a esses homens, além da depressão suicida que se seguia a esses encontros. Se papai estivesse vivo, nada disso aconteceria, e eu nem teria vindo à Santa Fé. Se ele estivesse vivo... A verdade é que papai não me salvaria de nada disso. Nem das manias, nem da depressão, e muito menos das conseqüências, porque se recusava a acreditar que eu estivesse doente. "É tudo coisa da sua cabeça", dizia, com certo desprezo e
  • 16. 20 Terri Cheney sem nenhum traço de ironia nessa afirmação. Papai não acreditava em psiquiatria, mas sim no esforço individual — do tipo "aprume-se novamente e siga em frente, pelos seus próprios meios." O momento que eu mais tentava esquecer de repente voltava à vida, em todos os pormenores, até no acentuado e adstringente cheiro do quarto de hospital. Tinha sido uma longa noite para nós dois. O câncer havia se espalhado para os ossos e até mesmo a morfina não era capaz de manter a dor afastada por muito tempo. Nos últimos dez dias, eu havia dormido numa cama de lona ao pé da cama de meu pai e usado o que tinha conseguido enfiar numa mala, apressadamente preparada enquanto aguardava os paramédicos chegarem. Eu mal sabia se era dia ou noite, exceto pelo número de pílulas que tomava. Estava zelosamente contando o suprimento da manhã, um bom punhado de comprimidos, quando olhei para cima e reparei meu pai me observando. Aproximei-me do leito para beijá-lo, mas ele virou a cabeça abruptamente. "O que há de errado, papai?", perguntei. "Você quer que eu chame a enfermeira?" Ele fez que sim com a cabeça e eu pressionei o botão. Seus olhos tremulavam e fechavam, mas sua respiração parecia regular, então sentei de volta e continuei contando minhas pílulas. Quando a enfermeira chegou, minutos depois, gentilmente acordei meu pai. "Ela está aqui, papai. A enfermeira. O que você deseja?" Seus olhos estavam sombrios e seu rosto parecia estranho, a pele acinzentada; mas quando se sentou e falou com a enfermeira, sua voz era surpreendentemente forte. Ele sinalizou na direção da mesa de cabeceira. "Há um documento na gaveta", disse ele. "E eu preciso de uma caneta." A enfermeira abriu a gaveta e tirou o papel. Eu sabia o que era, porque ajudara o advogado de meu pai a preparar o documento e registrá-lo. A enfermeira tirou uma caneta do bolso e entregou-a a papai, juntamente com o testamento, e virou-se para sair. "Não, você fica", disse ele à enfermeira. "Alguém deve
  • 17. testemunhar isso". Com agitação, começou a riscar o meu nome em todas as páginas que aparecia. "Ela é viciada em drogas", disse papai. "Basta ver todas essas pílulas". A enfermeira olhou para mim. Eu ainda estava com os comprimidos na minha mão e instintivamente tentei fechar meus dedos. Mas eram muitos e eles se espalharam pelo chão. "É transtorno bipolar", comecei a explicar, mas meu pai interrompeu. "Eu a coloquei em Vassar, na faculdade de direito, e tudo o que ela se tornou foi uma droga de uma viciada. Quem poderia acreditar nisso? A minha menina". Então ele baixou a cabeça no travesseiro e começou a gemer suavemente. A enfermeira, ainda bem, ocupou-se com meu pai. "É hora de sua medicação", disse, enquanto lhe dava doses e mais doses de pílulas coloridas, um arco-íris de farmacologia, tudo muito bonito, mas inútil. Exausto de tanto engolir, meu pai logo fechou os olhos e adormeceu. Eu estava lá quando acordou, algumas horas mais tarde, e estava lá também quando ele morreu, na semana seguinte. No funeral, rezei para ter forças de perdoar-lhe por seus erros, e pensei que tinha conseguido. Mas agora, deitada em Santa Fé, machucada e muito abatida para lutar contra os meus próprios sentimentos, eu tive a revelação. Eu poderia perdoar meu pai por ter me deserdado. Poderia perdoar-lhe por se recusar a acreditar que eu estava doente. Poderia até perdoar-lhe por não ter me protegido do mundo... Mas, como ele poderia ter feito tudo isso, quando essencialmente não conseguiu me proteger de mim mesma? Mas eu não podia ou não conseguia, não importa o quanto eu tentasse, perdoar-lhe por ter me deixado sozinha. Um profundo e ressonante "boing" atravessou meus pensamentos, quando o relógio da sala tocou. Faltam apenas mais trinta minutos até a meia-noite, apenas mais trinta minutos para morrer. Essa percepção me deu forças, porque eu soube que a morte não era o caminho mais fácil - a morte era o único caminho. Uma súbita onda de energia me fez pular da cama, tropeçando
  • 18. 22 Terri Cheney quando as dores me faziam perder a noção dos movimentos. A caminho do banheiro, caí uma vez e quase fiquei ali mesmo, no tapete felpudo. Mas então me forcei a levantar e comecei a engolir as pílulas, um punhado atrás do outro, goela abaixo com goles cada vez maiores de tequila. Vinte e cinco minutos depois, já não sentia mais dor, nem por dentro, nem por fora. Comecei a estapear meu rosto e a cavar as unhas nas palmas da mão, até a dor me despertar novamente. Então, obriguei meu braço a continuar pegando as pílulas e minha garganta a continuar engolindo... Até que, finalmente, peguei a última cápsula verde e rosa entre meus dedos, e forcei-a garganta abaixo com a última gota de tequila que esperava tomar. Minhas pernas lentamente escorregaram sob meu corpo, e eu pressionei meu rosto contra o piso gelado do banheiro, olhando para o Natal através do vitrô. A última coisa de que me lembro é ter ouvido o relógio soar doze vezes; e de um floco de neve, teimoso, agarrado ao parapeito, recusando-se a cair. Não tinha idéia se acabaria no Céu ou no Inferno, ou, ao menos, no Purgatório. Em vez disso, acordei no Hospital Geral, presa a uma maça e com uma ânsia de vômito incontrolável. Tinha certeza de que não estava no Céu, porque ouvia vozes perguntando sobre meu seguro- saúde. E suspeitava não estar no Inferno, porque o médico tinha bondosos olhos azuis e ficava dando tapinhas na minha mão e me encorajando: "Você está viva, encontramos você na hora certa. É uma garota de muita sorte". E então eu soube que estava no Inferno, afinal. Não tinha conseguido. Ia levar anos até poder juntar de novo todos aqueles comprimidos, até ter nova oportunidade e dinheiro para fazer outra tentativa daquela escala de grandeza. Não era nada gestual, eu estava em profundo desespero, havia falhado. Quando finalmente tiraram o tubo da minha garganta, dois dias depois, a enfermeira me deu uma prancheta para escrever. "Por quê?" Foi tudo o que podia pensar em dizer. "Por quê, por
  • 19. quê, por quê?" O doce médico-assistente finalmente entendeu. "Por que você ainda está viva?", ele me perguntou. Eu acenei com a cabeça, enfaticamente... "Tudo o que sei é que os paramédicos foram chamados na manhã de Natal. Parece que um jovem, um chaveiro, acho, veio para substituir um painel de vidro quebrado em sua casa, e ele a encontrou inconsciente. Ele salvou sua vida." "Agora, sobre estes outros ferimentos. Os policiais estão esperando para falar com você sobre eles. Você está com cortes e machucados bastante desagradáveis. Sabe ao que estou me referindo?" Mexi a cabeça, concordando. "Quer falar sobre isso?" Olhei para os simpáticos olhos azuis e balancei a cabeça negativamente, com firmeza. Se quem me violentou foi quem me salvou, que assim fosse. Talvez meu pai, que tanto duvidou de mim, tenha sido a pessoa que mais me amou. O mundo é essencialmente bipolar: conduzido por extremos, mas definido por fluxos. Os santos estão a apenas um tropeção dos pecadores. Nada é absoluto, nem mesmo a morte. Apesar da nuvem rosa que enevoava a minha mente, eu sabia que tinha atingido algo importante. Toda minha vida havia lutado contra meus próprios extremos, sem sucesso — e a prova estava aqui, na minha passagem de Ano Novo, presa a uma cama de hospital. Esse transtorno bipolar era mais que uma doença mental: era uma predisposição mental, um hábito, que a tudo coloria e abrangia. "O mundo devia ser de um jeito ou de outro", pensei. Os homens, por exemplo, ou fazem você se sentir segura, ou fazem você sangrar. Se eles não são deuses, são vilões, e não importa se vêem até você com uma garrafa, ou se desconfiam de você: de um jeito ou de outro, eles vão fazer você sangrar. Isto era muito rígido, um modo não natural de pensar. A vida era mais encrespada do que isto. Pensei em meu pai, e os perfeitos anéis de fumaça que ele soprava quando eu pedia, as intermináveis
  • 20. 24 ! Terri Cheney horas que ele passou esfregando minhas costas quando eu tinha asma no meio da noite, e as mil e uma histórias que me contou, sentado em sua grande cadeira marrom — cigarro numa mão, uísque na outra, e eu em seu colo, no meu céu. E era impossível não saber que ele me amava; e que esse amor tinha condições; e que ainda assim, isso era amor. O truque era lembrar-se daquele enorme e... A enfermeira entrou para ajustar a cama e entregou-me uma caixa de lenços de papel ao sair. Eu estava chorando, meu rosto e peito estavam molhados de lágrimas: lágrimas de resignação, de relutante concessão e comprometimento. Nada era absoluto, nem mesmo o desespero. Eu não queria essa vida que tinha sido devolvida a mim. Mas foi um presente, e os presentes de Natal devem ser abertos e agradecidos. Eu poria a morte de lado, por um tempo, ou então pelo menos até o momento em que entendesse porquê eu ainda estava viva.
  • 21. 2 Eu fazia isso com habilidade calculada, num piscar de olhos. Era um hábito trazer flores frescas para o escritório, um toque de feminilidade a que eu recorria como forma de compensar minhas roupas sóbrias e meu sorriso neutro. E não era apenas uma única rosa, mas braçadas das mais raras e resplandecentes flores que se pudesse encontrar: tulipas vermelhas, delicadamente festonadas nas extremidades; ou orquídeas tão carnudas que beiravam o limite do obsceno. Eu justificava a despesa, para mim mesma, como sendo algo bom nas relações com os clientes. Qualquer advogado que pudesse se permitir comprar tulipas em dezembro, criadas em estufas, demonstraria que estava fazendo a coisa certa. Na verdade, era
  • 22. 26; Terri Cheney apenas uma camuflagem para desviar a atenção. Naquele momento da minha carreira, eu podia me dar ao luxo de despender algumas centenas de dólares por mês com flores. O que eu não podia suportar era um exame minucioso. O rumor que corria no escritório, e que eu não desmentia, era que eu tinha um namorado rico. O que eles não sabiam é que o meu admirador secreto era a depressão, ao meu lado durante anos, muito antes de começar a praticar a advocacia. Eu nunca sabia quando ela chegaria, por quanto tempo ou quão perigosa seria. Apenas sabia que devia manter isso em segredo. Portanto, as flores precisavam ser frescas e puras. Não podia permitir uma pitada sequer de escuridão ou decadência em torno de mim, pelo menos nada que não pudesse ser mascarado por um lírio. Ordenava a minha secretária que trocasse diariamente a água de todos os vasos e que jogasse fora tudo que estivesse morrendo. Haveria sempre mais flores, eu achava. Principalmente enquanto nenhum dos sócios descobrisse que eu não tinha a mínima idéia do que fazia como advogada. Eu odiava cada momento da minha existência e detestava cada um dos sócios; logo, a coisa mais frágil naquela sala não eram as tulipas... Enquanto eles continuassem a entrar ali, jogassem uma nova pasta na mesa, dissessem "lindas flores" e saíssem sem notar as profundas olheiras ao redor de meus olhos ou a montanha de lenços de papéis úmidos sob minha mesa; enquanto todos nós concordássemos em não nos olharmos de perto nem nos fazermos muitas perguntas, sempre haveria mais flores. Superstição ou estratégia, não importa. A tática estava dando certo, porque numa tarde de abril, alguns anos antes de meu pai morrer, fui chamada a me juntar à equipe de advogados que trabalhava no grande caso de Michael Jackson. Nossa primeira missão era encontrar uma testemunha que atestasse que nenhuma das canções de Michael era "substancialmente similar" a qualquer das canções dos queixosos. Precisávamos de um musicólogo de primeiro time, alguém que iria impressionar o júri não só por suas
  • 23. credenciais de perito, mas também por sua conduta, sinceridade e amabilidade. Vinte almoços mais tarde, tínhamos reduzido a pesquisa para dois candidatos estelares. Um professor conhecido e respeitado no mundo do entretenimento, e o outro candidato (vamos chamá-lo de Joe), com requisitos tão impressionantes, mas vinte anos mais jovem e ainda com cabelos — amarrados para trás em um longo e esmerado rabo-de-cavalo. Além disso, ele tocava numa banda que já tivera dias melhores, mas ainda passava dez meses por ano em turnês. Como advogada júnior, eu senti que era meu papel injetar alguma juventude nessa ação judicial que, afinal, tratava de defender um caso envolvendo rock-'n'-roll. Então, naturalmente, fiquei fortemente inclinada por Joe. No dia em que Joe seria apresentado à equipe, escolhi um belo restaurante onde a elite da indústria se encontrava. Mandei um memorando preparatório para a equipe, onde dizia que, em minha opinião, Joe era a pessoa certa, com sua mistura original de conhecimentos musicais e sua perícia de showman. De fato, ele se apresentou com ar professoral mas moderno, num paletó Armani preto e jeans bem cortados. Eu poderia tê-lo beijado, poderia ter beijado todo mundo, eu me sentia muito bem. Assim, permanecemos durante algum tempo tomando cremes brülées e cappuccinos, tanto que o ângulo do sol começou a se deslocar para o oeste, e o pátio do restaurante começou a ficar frio. Um dos sócios perguntou as horas e eu disse: "Quase quatro". "Sério?", Joe perguntou, surpreso. Eu garanti que sim. "Merda", ele disse. "Eu esqueci de tomar meu lítio". Os minutos seguintes ficaram gravados em câmera lenta na minha memória. Joe foi buscar o medicamento que tinha esquecido no carro e ninguém disse uma palavra até ele sair pelo portão. Os advogados não costumam rir com facilidade, mas eles explodiram em gargalhadas pelos próximos minutos, como se lítio fosse a palavra mais engraçada no mundo. Eu não estava em condições de avaliar a piada. Tudo o que eu conseguia avaliar era
  • 24. 28 Terri Cheney o tom: desprezo. E tudo o que eu podia pensar era sobre o que eles diriam se vissem a cornucópia farmacêutica que eu levava, naquele momento, na minha bolsa. Se o velho lítio era merecedor daquela gargalhada toda, eles morreriam de rir se vissem meus estabilizadores de humor, antidepressivos, agentes contra ansiedade e antipsicóticos. Muitas vezes pensara sobre o que aconteceria se a empresa descobrisse o meu transtorno mental. Agora, eu sabia. E sabia também, sem que ninguém precisasse me dizer, que Joe estava fora do negócio desde aquele momento, e que ele não teria chance de atuar como um perito no caso de Michael Jackson e nem teria qualquer tipo de ligação com o escritório, no futuro. E eu seria a pessoa a lhe contar tudo isso. Enquanto todo mundo ria, eu avaliava as minhas opções: primeiro, poderia defender o pobre Joe, lembrando suas credenciais, reputação e a boa impressão pré-lítio que causara a todos; segundo, poderia fazer uma grande defesa do transtorno bipolar e ensinar aqueles homens influentes sobre a importância de lutar contra o estigma; ou, terceiro, eu poderia simplesmente não dizer nada e acordar amanhã sabendo estar a um passo de me tornar a mais nova sócia do escritório — e também a um passo mais longe de mim mesma. Ao olhar meu futuro de maneira simples, sem enfeites, percebi que não estava pronta para abandonar o conto de fadas. Não o conto de fadas de me tornar sócia — olhando os homens sentados ao meu lado, sabia que nunca seria um deles. Mas eu queria ser insensível, durona a ponto de nunca me importar com nada, mas não era assim. A verdade é que eu era muito mole, bem lá no fundo, onde as decisões mais difíceis devem ser tomadas. E sabia que choraria muito pelo que tinha acontecido com Joe. Não, o único e verdadeiro conto de fadas que eu não poderia renunciar era aquele no qual eu despertava numa ensolarada manhã e descobria que o feitiço tinha sido quebrado, a maldição terminara e eu não era mais bipolar. Naquela época, não me considerava
  • 25. uma pessoa maníaco-depressiva, isso era apenas alguma coisa que eu tinha, algo simples como uma gripe. Na verdade, nem estava convencida de ser portadora desse transtorno, apenas entendia que, seja lá o que fosse que eu tivesse, era minha culpa e não pretendia passar muito tempo pensando sobre aquilo. Minha escolha foi feita. Ia defender Joe, isso seria um ato de solidariedade para com a doença - um ato simbólico, sutil, mas inconfundível. Eu não estava prestes a sacrificar o meu futuro por algo se não acreditasse naquilo de verdade, se achasse que seria algo que desapareceria como mágica, no dia seguinte. Assim, quando Joe voltou à mesa, evitei seu olhar, do mesmo jeito que os outros. Levei uma semana inteira para que reunisse coragem suficiente para chamar Joe à minha sala e contar-lhe as más notícias. Não falei nada sobre o lítio, mas inventei uma história sobre advogados antiquados que preferiam peritos antiquados. Toda vez que eu mentia, porém, me dava vontade de pedir perdão e absolvição pelo pecado da hipocrisia que estava devorando minha alma católica desesperada. Em vez disso, ele me ofereceu flores: um lindo ramalhete de narcisos, comprados na floricultura naquela manhã. Quando ele saiu, senti-me mal por fingir que estava gostando das piadas sobre lítio que circulavam no escritório até que finalmente fossem substituídas por gracinhas sobre Prozac. Comecei a evitar os outros membros da equipe que trabalhavam no caso Jackson, chegando cada dia mais tarde, até o momento em que estava fazendo quase todo o meu trabalho à noite. Passei a entregar minhas flores mortas ao pessoal da limpeza, primeiro alguns vasos, depois várias braçadas de uma vez, até que me vi sem nada na sala... E esqueci de encomendar mais flores. Peguei o telefone e liguei para a floricultura, mas desliguei ao primeiro toque. Não haveria flores suficientes no mundo, percebi, para embelezar o escritório, minha vida, e a mentira perpetuava-se. Novamente com o telefone na mão liguei para outro número: o do
  • 26. 30 : Terri Cheney headhunter que vinha me procurando nos últimos meses. "Olhe", disse eu, "existe um problema, que você deveria saber antes de continuarmos conversando, porque acho que vai fazer diferença no lugar para onde eu for e no trabalho que farei. Eu tenho...", e calei-me por alguns instantes. "Não, eu sou maníaco-depressiva. Então, o que você acha disso?" "Igual ao meu primo", disse ele. "E também igual a tal, tal e tal", citando os nomes de três grandes advogados de empresas de entretenimento, com os quais eu havia trabalhado recentemente. "Mas, na verdade, não estou muito certo se você deve contar isso a alguém", acrescentou. "É claro que eu não deveria", eu disse. "É por isso que estou falando com você." Então sorri um sorriso verdadeiro. Histórias nem sempre têm que ter um final feliz, percebi. Por vezes, basta apenas que tenham um final, abrindo caminho para novas histórias. Olhei para baixo, no meu bloco de anotações, e percebi que tinha desenhado um narciso perfeito.
  • 27. 3 Eu estava sentada na sala de espera do cirurgião especialista em cabeça e pescoço, acompanhada de uma sensação inexplicável de felicidade. Nunca estivera lá antes, não conhecia o Dr. Cameron e nem tinha idéia do que ele ia dizer sobre o misterioso inchaço do meu rosto e pescoço, algo que tinha deixado perplexo meu endocrinologista, principalmente porque o inchaço resistia a todos os antibióticos de seu arsenal. A palavra tumor fora mencionada, e é por isso que eu estava lá, para falar sobre tumores e exames de ressonância magnética, além de outras palavras assustadoras. Mas naquele período eu estava centrada nas pequenas coisas. Um dia reparei e observei que, quando o sol bate na água depois da chuva, cria um efeito que, observado de determinado ângulo, parece um papel de parede feito de arco-íris.
  • 28. 32 Terri Cheney Naquele horário não deveria haver sol. Eram quatro e meia da tarde do último dia do mês de novembro, mas o céu continuava de um azul brilhante. Sentia o sol atravessar minhas roupas, dilatando meus poros e queimando minha pele branca de inverno. Eu podia sentir os pêlos dos braços e da nuca começarem a ondular de prazer, como o trigo ao vento e... Oh, meu Deus... Os pêlos. Na maior parte do tempo, eu mal notava que tinha pêlos pelo corpo. Tal como a maioria das pessoas ruivas, os meus são muito finos e delicados, quase invisíveis e suaves ao toque. Eu nunca me preocupei em me depilar ou branqueá-los. Desde a morte de meu pai e a minha tentativa de suicídio em Santa Fé, a depressão se tornara mais e mais profunda, difícil de esquecer. Mas por mais inócuos que pudessem parecer, esses pêlos funcionavam como meu alarme pessoal. Inevitavelmente, quando o equilíbrio químico do meu cérebro começava a mudar, eles eram os primeiros a alertar-me sobre isso. E quando eu sentia esses pêlos vivos novamente, sabia que, finalmente, a depressão estava melhorando. Eu sabia que era hipomania, a divina hipomania. Meus pêlos adoravam a hipomania: o mundo de repente se resumia a texturas, sabores e sensações, tantas que não podiam ser ignoradas. Era tudo tão delicioso, realmente a melhor parte de ser bipolar, mas isso só até meus mamilos protestarem contra o excesso de seda e eu me sentir como um cego em meio a uma profusão de palavras em Braille. Nessa hora, os pêlos viravam para dentro, irritando e queimando a pele a cada nova sensação, até que todos os nervos do meu corpo estivessem inflamados e eu estremecesse com o mínimo soprar do vento contra a minha pele. Mas meus pêlos estavam certamente felizes naquela tarde, contentes apenas em estar ali, na sala de espera do cirurgião, banhando- se sob o sol. Eu então pensei se deveria lembrar-me da gravidade da ocasião, afinal aquele não era o momento nem o lugar para me sentir tão bem. Felicidade é ótimo, na hora certa, mas a felicidade fora de época é prenuncio de ruína. É por isso que você
  • 29. nunca deve confiar num brilhante céu azul de novembro. Talvez ele o atraia demais e o faça esquecer, por um momento, que ele é, na verdade, a morte do inverno — talvez não para hoje, ou amanhã, não importa quando, porque esta morte certamente virá. Como poderia eu ter a esperança de contar a uma pessoa normal sobre os terrores de ser feliz? A não ser que houvesse uma boa razão para isso, algo objetivo e palpável, como um bilhete premiado de loteria ou um resultado negativo de biópsia, a felicidade não era um porto seguro para mim. Era apenas mais um ponto de controle rumo à insanidade. Mas pare, espere um minuto — eu estava feliz? E se eu estava assim feliz, pelo amor de Deus, por quê? Será que eu vivia fazendo algo inadequado, alguma coisa maluca como quebrar gelo nos elevadores ou dar piscadelas aleatoriamente? Eu estava curtindo a vida de forma desordenada? Tive de perguntar, porque aquele sentimento de felicidade poderia virar, num segundo, um sentimento de muita felicidade — e todos nós sabíamos aonde isso poderia me levar. Se você fica muito feliz, passa a colher flores no meio da noite, no jardim do vizinho, vestindo nada mais que um sorriso sorrateiro. Se você fica feliz demais e, alegremente, faz uma conversão proibida na frente de dois policiais, com um monte de remédios soltos em sua bolsa. No meu caso, felicidade além da conta poderia ser ilegal. Assim, quando todos os meus pêlos se arrepiavam, ou o sol do inverno brilhava mais do que o normal ou eu ria em voz alta... Então, aí, eu parava - isso se ainda pudesse parar. Parava só para ver se poderia parar. Então, eu impiedosamente identificava o momento segundo minha escala de humor, espetando-o como a uma borboleta morta. Administrar a felicidade pode ser uma ciência cruel. Isto pode ter me mantido a salvo de borboletas inesperadas, mas certamente matou todo encantamento e excitação. Ainda assim, eu estava feliz. Sentada lá, tentando lembrar a diferença entre tomografia computadorizada e ressonância magnética, eu ainda continuava feliz. Pare, espere um minuto — por quê? Eu poderia pensar em mil razões para não sorrir,
  • 30. 34 Terri Cheney mas nenhuma delas tinha importância quando o céu estava azul, às quatro e meia da tarde do último dia do mês de novembro. Era absurdo, eu tentando me dissuadir de um sorriso quando os sorrisos eram tão raros em mim. Lembrei-me da desagradável carta da Receita Federal sobre a mesa da cozinha, a última de uma série de outras, ameaçando embargo e apreensão de todos os meus bens. Eu sabia que não devia o dinheiro que eles queriam, mas eu estava com dificuldades para explicar porquê. Minhas finanças misturadas às de meu pai haviam desabado após sua morte. Não tinha prova de nada, exceto da minha doença, mas eles não estavam interessados nisso. A única coisa que eu poderia fazer seria selar meus documentos com sangue, fora isso, nada mais. Apertei meus olhos e refleti sobre o problema, apertei tanto até que uma umidade familiar se juntou em seus cantos. Eu ainda podia chorar. Isto era tranqüilizador, pensei, enquanto uma lágrima solitária rolava sobre meu rosto. Eu estava feliz? Não, mas estava contente em desfrutar um momento de tristeza. Queria que me deixassem sozinha. Mas eu não estava sozinha. Eu nunca estava sozinha. Minha consciência desbocada e resmungona soprava, na minha orelha, o mesmo velho mantra de sempre: "Pare. Espere um minuto..." Se eu estava feliz, qual era a razão? Então, naquela hora, achei que sabia a resposta: era o efeito do medicamento Aripiprazol. Aripiprazol. A-ri-pi-pra-zol. Era um nome bobo, que espumava na minha língua. Bastava pronunciar e eu já ficava com vertigens. Vinha tomando o medicamento há duas semanas. Alguém, cuja felicidade era induzida por drogas, poderia se considerar feliz? Esse era o jeito certo da felicidade? Bem, enquanto eu mesma não me levasse para a cadeia ou para a cama de um estranho, não me importava. Daria as boas-vindas à felicidade da maneira que ela viesse - mesmo à base de medicamentos, se necessário. A recepcionista abriu a porta, chamou meu nome e, em
  • 31. seguida, levou-me para baixo, à sala de exames. Os instrumentos cirúrgicos estavam enfileirados, em perfeito alinhamento, mas aquilo não era nenhum piquenique. O negócio era sério, e o homem que poderia anunciar meu destino estava prestes a entrar naquela sala. A porta abriu e com ela meu destino, mas eu estava outra vez inexplicavelmente feliz. Ninguém me disse que o Dr. Cameron era um sósia de Montgomery Clift. Se alguém tivesse mencionado isso, teria certamente tornado a longa espera mais tolerável. Estive à espera de Montgomery Clift, eu poderia ter dito a mim mesma, principalmente quando quinze minutos se transformaram em meia hora, meia hora numa hora inteira e assim por diante, até chegar ao final do último dia do mês de novembro e eu de repente ser a última paciente na sala de espera. O Dr. Cameron desculpou-se por sua longa demora. Internação inesperada, cirurgia de urgência, algo assim . Eu não estava ouvindo. Sua mão era tão quente como seu sorriso, e quase tão suave quanto seus olhos. Sua saudação não foi como aquela costumeira "sou o médico, você é o paciente" tão comum em uma primeira consulta. Ele ficou me olhando, segurando minha mão, e eu com pelo menos meia-dúzia de batimentos cardíacos a mais. Não passou muito tempo, mas o suficiente para meus pêlos da nuca se arrepiarem e eu sentir um profundo rubor se propagar do pescoço ao queixo, e depois pelo meu rosto. Graças a Deus eu tinha uma ligeira febre e poderia culpá-la por aquele calor que sentia. Ou não poderia? O Dr. Cameron não mediu minha temperatura. Ele nem sequer deu uma espiada em meus exames. Olhou nos meus olhos e, em seguida, colocou suavemente meus cabelos para trás da orelha. Então, pegou um dos utensílios (de tamanho médio, algo entre um garfo para camarões e um espelho de aço polido) e soprou sobre ele. "Para esquentar um pouco", disse, com uma piscadela, enquanto suavemente o inseria em minha orelha e tentava tomar o meu pulso ao mesmo tempo, deixando-me sentir sua loção de barba.
  • 32. 36 Terri Cheney "Ótimo", disse o Dr. Cameron, finalmente, colocando meu cabelo na posição original. Eu não sabia se ele se referia à minha orelha, ao meu cabelo ou a mim mesma, mas isso não importava. Tentei-me concentrar em algo totalmente assexuado e estéril, como o teto de azulejos ou o esterilizador. Meus pêlos estavam muito felizes. Eu sabia que deveria parar com isso e me preocupar, mas também sabia que o exame de garganta seria o próximo, com todos os seus presságios, e eu precisava me concentrar. Assim, enquanto o Dr. Cameron explorava minha boca e língua com a sua longa sonda prateada, seus lábios a apenas dez centímetros de distância dos meus, afastei todos os pensamentos estranhos e coloquei toda a minha atenção no que estava acontecendo, antes que o doutor terminasse. "Boas notícias", disse ele, recuando. "Eu não acho que seja um tumor. A inflamação é muito simétrica — aqui e aqui". Ele deu uma pancadinha em ambos os lados do meu rosto, enquanto falava. "Sem dúvida, é por causa de toda essa medicação que vem tomando. Ela a tem mantido tão desidratada que seu corpo está tentando reter todos os fluidos possíveis. O que explica esse inchaço nas parótidas — aqui, aqui e aqui embaixo." Mais pancadas. Quem imaginaria que Montgomery Clift tinha um toque tão delicado? Mas espera aí, Montgomery Clift não era gay? Olhei de perto o Dr. Cameron, que tinha finalmente parado de dar pancadinhas em meu rosto e garganta e escrevia alguma coisa em meu fichário. Ele era muito bonito — não apenas um astro de cinema bonito, um astro bonito e gay. Seria o calor entre nós uma coisa da minha imaginação? Eu gostaria de pensar que, aos quarenta e dois anos, meu corpo já era sábio o suficiente para reconhecer, visceralmente, quando o sexo estava no ar. Alguns poucos segundos a mais de aperto de mãos, um contato visual que permanecera um pouco além do necessário, um toque suave o suficiente para ser um carinho: noutras circunstâncias, eram excelentes pistas. Mas o verdadeiro mistério não era saber se o Dr. Cameron era realmente gay. Era saber se eu estava delirando.
  • 33. Talvez a eletricidade na sala fosse apenas conseqüência desse delírio, resíduo da minha sensibilidade sobrecarregada Talvez o calor fosse apenas uma febre, a minha febre, era só isso. Mas, então, ele me olhou e deu um grande sorriso de dentes brancos, e percebi na hora que pouco me importava se ele era gaj ou não. Ele era lindo. Só teria que usar todo o meu charme... E costumava ser muito persuasiva. Ao longo dos anos, tinha desenvolvido um grande repertório de truques, sutilezas na voz e nos olhos, com os quais eu costumava fazer balançar um júri hesitante ou convencer um juiz teimoso. Aquilo ali não era muito diferente. Recostei-me na cadeira e olhei bem fundo nos olhos do Dr. Cameron. Então sorri, de maneira lenta e gradual, sem dizer uma palavra - um velho jogo que normalmente faz a outra pessoa sorrir de volta, em antecipação. Todo mundo gosta de ouvir um segredo, e quanto mais secreto, melhor. Então baixei minha voz e disse: "Você sabe, é claro, que se parece exatamente com o meu astro de cinema favorito?" Ele riu. "Montgomery Clift? Sim, já ouvi isso antes". "Mas não um Montgomery Clift qualquer", continuei. "O Montgomery Clift de Um lugar ao sol- você sabe, aquele filme em que ele beija Elizabeth Taylor num close que parece durar para sempre, tanto que a gente não acredita que tenha passado pela censura da época". Procurei me conter, mas meus olhos se fixaram em seus lábios e ficaram ali, esperando pela resposta. "Não só conheço esse filme", disse ele, "como tenho uma cópia do teste do Montgomery Clift com Elizabeth Taylor. É um verdadeiro item de colecionador. Minha ex me deu de presente em meu último aniversário". Minha ex. Ele não precisava dizer isso. Minha mente rapidamente calculou as possibilidades existentes na frase. Não era casado; possivelmente, também não era comprometido. Ou, não era casado, mas ele e sua ex ainda eram bons amigos, o que não era tão bom como não estar envolvido, mas certamente melhor do que estar casado. Meus olhos focaram seu dedo: nu, nenhuma
  • 34. 38 Terri Cheney linha branca onde o sol não queimava, era o dedo de alguém não comprometido. "Uau, deve ser fantástico!", eu respondi. "Ele se parece com você nesse teste? Ele chega a beijar a Elizabeth Taylor? Ou ele beija outra pessoa? Ele chega a falar alguma coisa sobre beijar? Uau. Eu adoraria ver esse teste". Ele colocou meu fichário na mesa. "Pelo jeito, você é uma verdadeira fã. Terei muito prazer em emprestar — se você prometer que o trará de volta na próxima semana". "Mas... nós não tínhamos acabado? Pensei que já soubesse o que estava errado comigo. Terei que voltar?" "Você não tem que voltar", disse ele; a ênfase fez meu coração parar. "Mas espero que volte. Pelo menos para me dizer o que você achou da fita. Estou em cirurgia nas segundas e quartas, mas as sextas geralmente são mais tranqüilas, especialmente depois das quatro. Se puder, venha nesse horário. Você normalmente pode ver o pôr-do-sol daqui e isso ultimamente tem sido incrível. Parece durar para sempre- assim como o beijo, suponho eu". Outro sorriso pirotécnico. Comecei a dizer-lhe que não ocorrera nenhum pôr-do-sol naquele dia, pelo menos que eu tivesse visto; que a sala de espera estava brilhantemente ensolarada e quente naquela tarde. Eu estava cativada por ele e queria avisá-lo de que havia um céu azul brilhante e que nós dois deveríamos ser muito cuidadosos... Mas ele já havia deixado a sala para pegar a fita. Pare, espere um minuto, calma lá. Eu nem precisava perguntar se estava feliz, eu estava terrivelmente feliz, e o que tinha acontecido? Estar terrivelmente feliz era estar feliz além da conta? E a pergunta mais assustadora de todas: o que eu tinha feito desta vez para merecer isso? Droga, droga, droga! Se havia um sinal seguro de que o transtorno bipolar estava se aproximando, era a convicção secreta de que eu era a suprema juíza da sexualidade alheia, essa confiança súbita de que nenhum homem — ou mulher - estava além de minha jurisdição.
  • 35. Peguei meu espelho e comecei a retocar meu batom, então me obriguei a parar. Não. Resisti à quase necessidade física de pentear meus cabelos, endireitar minha saia, verificar minha respiração. Não, não, não. Não podia sucumbir ao redemoinho delirante em meu ouvido, que me exortava a aproveitar qualquer alegria ao meu alcance, porque amanhã eu poderia estar num lugar pior do que a morte — poderia estar deprimida. Não, eu disse. Eu não queria agarrar a felicidade, nunca mais. Pelo menos uma vez, eu queria que a felicidade apenas flutuasse suavemente e pousasse sobre meus ombros. Dr. Cameron voltaria, a qualquer instante, e me senti dolorosamente consciente de que a risca de meu cabelo estava torta, eu podia sentir a assimetria. Olhando para baixo, vi um fio puxado em minha meia, que eu poderia ter escondido se eu tivesse apenas me levantado por um segundo, sob a saia. Estava absolutamente certa de que havia um risco no meu sapato esquerdo também. Mas essa era a minha forma de sedução, fingindo que estava perfeita em todos os lugares, mesmo naqueles em que estava mais imperfeita. Então me obriguei a ficar sentada, tentando não imaginar como meus lábios deviam parecer pálidos sob a iluminação fria. Minha sensação de felicidade rapidamente se dissolvia em uma situação não muito confortável. Como era maravilhoso. Como era emocionante. Provavelmente ninguém, a não ser um maníaco- depressivo, pode compreender que pisar nos freios pode ser muito mais excitante do que ganhar a corrida. Algo estava funcionando e desta vez eu estava certa de que era a nova medicação. O Aripiprazol, quando funcionava, buscava o equilíbrio entre muita e pouca dopamina, até que, finalmente, chegava à quantidade adequada. "Adequada". Quem teria pensado que eu ficaria satisfeita com a palavra "adequada", quando "mais" é o que eu sempre procurava? Mas eu sabia o que me esperava quando corria atrás dos excedentes. Foi por isso que a felicidade, para mim, já não
  • 36. 40 Terri Cheney existia no excesso. Ela morava na ausência: na ausência de dor, na ausência de depressão, na ausência de conseqüências, nas quais eu nunca pretendia incorrer. Olhei para baixo novamente, para o fio muito visível na minha coxa — e, sim, havia um risco no meu sapato — então me endireitei. Senti-me nobre e vitoriosa, resistindo ao chamado de meus pêlos arrepiados. O Dr. Cameron voltou, deu-me um tapinha nas costas e me entregou a fita. "Vamos dar uma última olhada", disse ele. "Abra a boca". Mas o meu corpo tinha ficado rígido e meu maxilar estava praticamente fechado. "Bem aberta", disse. "Agora vamos, abra para mim". Seria difícil resistir a um pedido como aquele, mesmo quando não se é maníaco-depressiva, mas eu tentei o máximo que consegui. Antes que a loção pós-barba do Dr. Cameron me fizesse esquecer todas as minhas boas intenções, o exame terminou. Ele então procurou algo em seu bolso e retirou um pirulito. Eu juro. Um grande pirulito vermelho. O médico me deu o pirulito e riu da expressão em meu rosto. "Este é realmente o seu tratamento", disse. "Quero que saia e compre vários pacotes destes. Eles são bem azedos e quando você os chupar, isso vai estimular a produção de saliva da glândula parótida. Mas eu preciso avisar — vai ser muito desconfortável. Você vai se sentir bem pior antes que comece a melhorar". "Vou me sentir pior por muito mais razões do que você possa imaginar, doutor", disse a mim mesma, ao guardar o pirulito em minha bolsa. Forcei-me a não fazer um movimento sedutor com minha cabeça, jogando os cabelos para o lado, o que foi quase insuportável para meus pobres pelinhos da nuca. Mas agora era guerra, guerra contra todos os impulsos naturais que me colocavam em problemas, e eu não esperava que essa guerra fosse fácil. Levantei-me e estendi minha mão, agradecendo ao Dr. Cameron pela fita e prometendo devolvê-la o mais rápido possível. Meu Deus, a mão dele se encaixava na minha... Mas não marquei uma data e, naquele momento, decidi devolver a fita para sua
  • 37. recepcionista dali a poucos dias, e deixar que as coisas tomassem seu livre curso a partir daí. Eu iria colocar meu repertório de truques meio de lado, momentaneamente. Saí do consultório sem olhar para trás. O elevador era demasiado lento, por isso, fui pelas escadas. Dez, onze, doze andares para baixo, e minha nuca ainda formigava. Quando saí do prédio, o crepúsculo estava começando a descer. Dirigi-me automaticamente à farmácia — mas então percebi que, pela primeira vez em anos, tinha saído de um consultório médico sem nenhuma prescrição. Nenhuma daquelas pílulas ou poções carésimas, apenas a permissão para comprar um grande saco de pirulitos quando chegasse em casa. A vida das pessoas felizes deve ser sempre assim, pensei. Nenhum medicamento, apenas céus azuis brilhantes em novembro, o que pressagia nada além do que um pôr-do-sol espetacular. Talvez o conto de fadas do Aripiprazol estivesse próximo de se tornar realidade, e talvez aquele fosse seu final feliz. Feliz para sempre, ao menos uma vez — ou, no mínimo, feliz para sempre, por agora. Ou melhor ainda: feliz para sempre, do modo mais adequado possível.
  • 38. Eu nunca errei de propósito. Mas isso não importa agora, já que a coisa aconteceu. Lembro-me de caminhar pela estreita cela, uma cela sem grades, sem janelas, sem distrações, a não ser meus pensamentos vagueando. Bem que poderia ter me atrasado para virar naquele sinal verde. Não conseguia me lembrar direito. Mas ouvia muito bem uma voz de comando, saindo do alto-falante, ordenando-me que parasse o carro. Mas quando olhei pelo retrovisor, não havia ninguém lá. Nenhum carro preto-e-branco com a luz vermelha piscando no teto. Só percebi alguma coisa quando parei o carro de vez e ouvi a batida no vidro. Esquadrinhei no escuro e vi dois rostos com capacetes de bicicleta. Eram dez horas da noite, eu estava 4
  • 39. em Van Nuys, próximo a Los Angeles, e não me sentia muito bem.Arranquei com os pneus cantando. Então, finalmente, ouvi a sirene, vi as luzes, a mesma voz dizendo: "Pare o carro imediatamente. É a polícia". Policiais de bicicleta. Fui presa por policiais de bicicleta! Eu detinha um recorde até então: em sete anos, tinha apenas uma multa de trânsito, por excesso de velocidade, o que, para uma garota com um Porsche, era algo excepcional. Portanto, eu não estava muito preocupada. Talvez uma das lanternas traseiras estivesse apagada. E certamente eles entenderiam por que eu não tinha parado em Van Nuys às dez da noite, sozinha e sem nenhum carro de polícia no meu retrovisor. Mas esqueci da droga. Não era uma droga de rua, a que eu portava naquele momento era uma droga perfeitamente legal. Prescrita. Levava o cartão do médico na bolsa, junto com pílulas extras que trazia por segurança. Essas pílulas seriam letais se tomadas com alimentos ou medicamentos errados. São os chamados inibidores IMAO1 , a última saída quando se trata de depressão maníaca. Nenhum médico prescreve os IMAOs a menos que tudo tenha fracassado antes. Mas eu já havia passado por todas as drogas que estão por aí, não apenas as dos Estados Unidos, mas as da Europa também. Tinha feito terapia eletroconvulsiva e todos os demais tipos conhecidos. Nada tinha dado certo. Quando deprimida, tentava o suicídio. Quando entrava em mania, adquiria a energia necessária para agir sobre os impulsos suicidas - e eu fiz isso. Repetidamente. Assim, quando o meu médico prescreveu esses IMAOs, eu topei. Mas quando li a composição do medicamento no manual de drogas a que tive acesso, levei um susto. Se eu comesse alguma coisa que contivesse a substância tiramina, poderia sofrer um 1 IMAO é um acrônimo para o inibidor de monoaminoxidase. Os inibidores de monoaminoxidase são usados para tratar da depressão e de várias outras doenças relacionadas, como fobias, o transtorno de pânico, transtorno bipolar etc. Não são usados enquanto uma primeira linha de tratamento não tiver sido tentada antes. Pessoas que usam IMAOs devem manter dieta restritiva, porque esses medicamentos podem interagir muito mal com alguns alimentos e bebidas, como queijo e vinho tinto. (N. do T.)
  • 40. 44 Terri Cheney acidente vascular cerebral. A tiramina está em todo lugar: nas pizzas, no vinho tinto, no queijo, e nas carnes defumadas, como fígado, caviar, fava. Eu sabia que poderia viver sem fava, até mesmo sem pizza, e, de qualquer jeito, teria que viver sem eles, querendo ou não. Eu estava a centímetros de distância da próxima tentativa de suicídio, e sabia disso. O único problema era que continuava desmaiando, principalmente quando me levantava rapidamente, mas, às vezes, até quando estava caminhando. Nunca quando estava sentada. Até onde podia me lembrar, a droga fazia minha pressão cair quando me levantava, uma condição chamada de hipotensão ortostática2 . Eu levava um medidor de pressão comigo e a controlava de hora em hora, mas ultimamente isso não vinha adiantando. Eu tinha desmaiado em vários lugares durante as últimas semanas — na rua, na Biblioteca Pública, nos braços de meu namorado, nos braços de um estranho. Um dia, desmaiei numa parte não muito boa da cidade e, quando acordei, vi que minha bolsa tinha sido roubada e minha saia estava parcialmente aberta. Uma outra vez, desmaiei a caminho da Saks, em Beverly Hills, e fui acordada por dois policiais me sacudindo, que só não me levaram presa porque liguei para o meu médico do celular. Ele explicou a situação — dizendo que o medicamento era prescrito. Os policiais até que foram bem simpáticos e me ofereceram carona até minha casa. Mas, a essa altura, eu já estava melhor — mais coerente, educada, até jogando charme — então eles me deixaram ir, não sem antes me advertir sobre andar na rua enquanto estivesse sob esta medicação. E quem alguma vez deu atenção a uma advertência da polícia? Você está é aliviado por se safar de uma confusão daquelas... Mas eu deveria ter ouvido a advertência... 2 Quando uma pessoa se levanta bruscamente, a gravidade faz com que uma parte do sangue se detenha nas veias das pernas e na parte inferior do corpo. A acumulação reduz a quantidade de sangue que volta ao coração e, portanto, a quantidade bombeada. A conseqüência disso é uma queda da pressão arterial. Perante essa situação, o organismo responde rapidamente: o coração bate com mais rapidez, as contrações são mais fortes, os vasos sangüíneos contraem-se e reduz-se a sua capacidade. Quando essas reações compensatórias falham ou são lentas, verifica-se a hipotensão ortostática. (N. do T.)
  • 41. Quando os policiais em Van Nuys me mandaram sair do carro, hesitei, porque isso significava levantar-me. "Saia do carro, cora as mãos à vista". Saí do carro, coloquei minhas mãos na porta e, de repente, o mundo ficou branco novamente. Então, pequenos pontos começaram a pipocar na frente de meus olhos, como acontecia com freqüência. Tudo o que eu podia ver claramente era um capacete de bicicleta se aproximando ameaçadoramente. "Caminhe em linha reta", disse ele. "Sinto muito, eu queria poder fazer isso, de verdade. Mas estou um pouco tonta no momento..." Um segundo capacete surgiu e, em seguida, quatro braços, e, então, fui jogada contra o carro e meu corpo começou a ser revistado. "Está na minha bolsa", eu disse. Eu me referia ao número do telefone do meu médico, que iria resolver todos os problemas, assim como acontecera com os policiais gentis em Beverly Hills. Mas aqui era Van Nuys, e quando despejaram o conteúdo da minha bolsa na calçada, as pílulas de reserva se espalharam. Enquanto eu tentava explicar, eles leram meus direitos. Igualzinho na tv. Foi tudo como você já viu nos filmes, e um pouco mais. As algemas frias em meus pulsos fizeram um inesperado som quando foram fechadas. A delegacia estava suja, lotada, e eu não conseguia identificar o cheiro. Quando eles tiraram a foto para me fichar, eu não sabia se sorria ou se olhava com seriedade. Mas o pior de tudo foi o fichamento. Eu continuava tentando explicar, implorando para que eles apenas me deixassem chamar o meu médico. Ou meu advogado, meu terapeuta, meu namorado. Uma mulher cuidadosamente rolava meus dedos na tinta preta, recusando-se até mesmo a olhar-me nos olhos. Nenhum deles me olhou nos olhos. Eles focavam algum lugar na minha garganta, como se estivessem medindo seu tamanho para um possível estrangulamento. Comecei a perceber que não era mais humana, porque, uma vez que eles tinham me atribuído um número no processo, os meus olhos já não existiam. Em seguida, uma policial me levou para uma pequena sala,
  • 42. 46 Terri Cheney atrás do balcão da recepção. Ela abriu as algemas, Deus a abençoe, e disse-me para esperar ali. Pensei que, finalmente, teria meu celular de volta, puxa, como eles tinham demorado! Mas ela voltou com luvas de borracha e um pequeno espelho anexado a um bastão, como aqueles que o dentista usa para investigar se você tem cáries. Ainda olhando para qualquer outro lugar, menos em meus olhos, ela mostrou uma caixa metálica. "Os cordões do sapato, cinto e relógio", disse ela. Eu não estava usando sapatos com cordões, mas sandálias baixas. Chanel, minhas favoritas. Mas como tinham pequenos lacinhos de enfeite, achei melhor tirá-los. Observei, enquanto fazia isso, que minhas mãos tremiam. "Agora, tire a roupa". Olhei para ela, com os olhos arregalados. "Tire a roupa, ou então eu vou fazer isso por você". Eu usava um vestidinho de verão, que chamava de minha roupa à Ia Audrey Hepburn. Não estava usando sutiã, nem camisola, apenas calcinhas. E quando a tirasse, ficaria nua. "Qual o motivo?", perguntei. "Para revistar seu corpo". "Espere, vocês não entenderam, aquilo era uma medicação prescrita pelo meu médico". Ela me pegou pelos ombros e me virou, puxou meu vestido sobre minha cabeça e me fez dobrar o corpo à força. Aquilo não estava acontecendo, não podia ser verdade; mas os dedos emborrachados eram muito reais. Graças a Deus que eu não podia ver o que estava acontecendo lá atrás, ou o que ela viu no espelho odontológico. Quando terminou, ela disse-me para levantar e esperar. Ficar de pé era assustador, porque pensei que poderia desmaiar novamente, mas minha mente clareou lentamente e fiquei firme. Ela retornou alguns minutos mais tarde com um macacão laranja: "vista isto, e espere aí". Espere aí, espere aí. Para onde eles achavam que eu poderia ir? "E o meu telefonema?". Quando perguntei, a policial já havia saído e fechado a porta. Laranja nunca foi minha cor predileta. Aliás, quem é ruivo nunca deveria usar laranja. O macacão era grande demais e bem tosco, mas enrolei as mangas e a barra das calças e fiquei aguardando.
  • 43. Os tremores começaram a me preocupar. Era mais do que medo, aquilo era sinal de alguma coisa química estava acontecendo comigo. Sempre sentia estes tremores quando ficava naquele estado meio delirante, com dores de cabeça e tonturas, e suava muito. Tudo isto estava acontecendo naquele exato momento. Eu até podia sentir as palavras chegando, uma vontade irresistível de falar... Precisava fazer aquele telefonema, precisava muito. Um policial finalmente abriu a porta. Vi as algemas penduradas no cinto, mas ele não as colocou em mim e só me disse para segui-lo. "E o meu telefonema?", mas ele não respondeu. Eu o segui por um longo corredor, passando por uma pesada porta de ferro com barras na janela. De um lado, havia uma cela, contendo meia dúzia de mulheres ainda vestidas com suas roupas, parecendo aborrecidas e um pouco desgrenhadas. Uma delas estava lendo um livro, o que, por alguma razão, me deu esperança. Passamos por uma outra porta metálica e chegamos a um outro corredor. Finalmente, paramos em frente a uma terceira porta de metal, ainda mais grossa. Ali não havia janelas, como as anteriores. A porta dava para uma pequena cela, com uma bancada de metal presa na parede. Quando o policial me disse para entrar e esperar, fiz isso alegremente e me sentei no banco, aliviada. Achei que agora eles trariam meu celular, que queriam me dar privacidade completa. Esse alívio passou no momento em que a porta foi fechada e escutei o estalido do trinco. Eu assisti tv o suficiente para saber o significado de uma porta que estala quando fecha. Ela foi trancada, aferrolhada. Eu sempre achei que era algum tipo de efeito sonoro reforçado pelos técnicos de cinema, mas na realidade o ruído era ainda mais alto, mais derradeiro, mais conclusivo do que eu tinha imaginado. Já havia passado da hora da minha medicação. Eu estava indo para casa tomá-la quando fui detida pela polícia. O IMAO requer uma dosagem precisa para manter um nível seguro e eficaz da pressão sangüínea. É um tipo de religião para mim, tomar pílulas no tempo certo. Não quero confusão com os deuses ou com a
  • 44. 48 Terri Cheney química de meu cérebro. Só porque tenho uma condição mental delicada não significa que sou louca. Eu deveria ter percebido que estava ficando maníaca bem antes de meus dedos tremerem, ao tentar fechar o macacão com o zíper. O que, em nome de Deus e de todos os santos, eu estava fazendo em Van Nuys? Eu nunca ia para o Vale. Sobretudo no verão, quando está quente e nevoento. A lembrança voltou, em pequenos pedaços desordenados: eu tinha saído de casa quando estava claro, para colher flores do campo. Sempre queria flores do campo no começo de meus surtos maníaco- depressivos. O melhor lugar para colher essas florzinhas era bem ao norte de minha casa, subindo a colina, e quando você está em surto, é por vezes impossível mudar de rumo. Simplesmente prossegue e mantém o curso. Então, eu devo ter subido até o alto e, depois, descido em direção a Van Nuys. Tinha uma vaga idéia de estar sentada num bar barulhento e obscuro, cercada por homens jovens e ouvindo os constantes "pings" dos videogames. Pedi café para todos, pagando as despesas, como sempre fazia quando estava em crise maníaca. E paquerei. Paquerei pesado um rapaz de forte sotaque. Era um deslumbrante rapaz moreno de Mombasa, como um sheik do deserto. O estacionamento, o beijo — não, espere, os beijos. Suas mãos. Meu carro. Será que eu perguntei seu nome? Ainda bem que meu carro tinha bancos individuais e um enorme console entre eles. Devo ter dormido de pura exaustão, porque eu não me lembro de ter me deitado no catre. Quando acordei, minha garganta ardia de tão seca e minha língua estava grossa e rugosa. Eu ouvi um bater à porta, e uma chave girando na fechadura. Um guarda entrou, trazendo uma bandeja de plástico com uma banana, um pequeno recipiente com suco de laranja e uma fatia de pão com um naco de manteiga em cima. Devia ser o café da manhã. Eu tinha sido presa antes da meia-noite. "E o meu telefonema?", reclamei. "Eu só trago a comida", respondeu o guarda, colocando a bandeja no chão e indo embora.
  • 45. Atirei tudo aquilo na porta, mas praticamente não fez ruído contra o metal reforçado. Recusei-me a comer aquela comida nojenta, embora tenha tomado o suco de um só gole. Um dos piores efeitos colaterais da medicação é a constante boca seca. Eu nunca ia a lugar algum sem levar uma garrafa de água e uma meia dúzia de hidratantes labiais. Mas eles tinham confiscado tudo, e agora os cantos da minha boca estavam começando a rachar e sangrar. Aproveitei a manteiga e a espalhei pelos lábios. Era hora de agir com esperteza; sabe-se lá por quanto tempo eu ficaria naquele lugar. Peguei o restante da manteiga e espalhei-a no meu umbigo, e entre os dedos do pé, para mais tarde. Eu não tinha idéia de quanto tempo tinha ficado isolada, quando então um guarda finalmente chegou para me escoltar até o telefone. Fiquei preocupada, entre todas as outras coisas, sobre a manteiga que gotejava do meu umbigo até minha área pubiana. E se eles fizessem outra revista em meu corpo, seria aquilo parecido com algum tipo de droga derretida? Mas o guarda levou-me a uma cabine telefônica e ficou de vigia lá fora, enquanto eu discava o número de meu terapeuta, que sabia de cor. Não houve nenhum toque. Desliguei e tentei novamente, pensando talvez que tivesse teclado os números errados. Nenhum som, novamente. Uma terceira vez e agora não havia nem sinal de discar. Abri a porta e disse ao guarda que o telefone não funcionava. Havia outro telefone, ou eu poderia usar meu celular? Conversando com a minha garganta, ele explicou que, na solitária, só era permitido um telefonema por hora. Eu me lembro de levantar a voz: "espere um minuto. Estive aqui a noite toda e esta é a primeira vez que fui autorizada a ligar para alguém. Você está me dizendo que tenho de esperar outra hora antes de poder falar com o meu advogado? Com meu advogado?!” Meu cérebro se esforçava para lembrar o que a televisão mostrava sobre o direito dos prisioneiros a um telefonema. Será que a polícia contava como uma vez, mesmo que o telefonema não se completasse? Ou eles deveriam
  • 46. 50 Terri Cheney lhe fornecer outro aparelho? Eu não conseguia lembrar, e nem a minha formação jurídica ajudava, uma vez que tudo o que eu sabia era sobre entretenimento e a lei de direitos autorais. O guarda me levou de volta à cela, e não sei por quanto tempo fiquei chorando e socando aquela porta até que outro guarda, desta vez uma mulher, apareceu. Ela gesticulava com impaciência, mas levantei- me demasiado depressa e as paredes começaram a girar. Tentei me apoiar na policial, segurando um de seus braços, mas ela me deu um safanão. Caí, e a porta foi fechada novamente. Havia uma refeição esperando por mim no chão, quando me recobrei. Às vezes a proteína ajuda a aliviar a tremedeira, então eu cuidadosamente retirei o queijo daquela coisa cinza que talvez fosse carne e mordisquei-a. Poucos minutos depois, a mesma mulher destravou a porta. "Já está sóbria?", perguntou. Comecei a chorar enquanto andávamos pelo corredor, em parte de alívio, porque parecia que eu ia ter a chance de dar outro telefonema, e, em parte, pela frustração de não conseguir me fazer entender. "Eu não estou bêbada", eu disse. "E não estou drogada, aquelas pílulas têm prescrição médica. E eu preciso de minha medicação. Minha condição é grave. Você não tem idéia de como é sério". Aquela mulher tinha um talento enorme para ignorar seus semelhantes. "Pelo menos olhe para a porra dos meus olhos enquanto estiver me ignorando, caralho!" Nessa hora, me dei conta de que atravessara uma determinada linha, tanto com os policiais, quanto com o meu nível de sanidade. Eu jamais diria "porra" para um policial, seria o mesmo que dizer isso para um juiz. A menos que eu estivesse em um surto psicótico. Bem, provavelmente era o que estava acontecendo. Ótimo. Aqueles merdas bem que mereciam. Os lábios da policial se fecharam na hora que xinguei, e ela pegou meu cotovelo com força, como se estivesse a me orientar pelo corredor. Mas não foi esse tipo de toque. Aquilo machucava e eu não precisava de orientação, até porque já estávamos lá, na abençoada cabine telefônica. Eu estava chorando
  • 47. a plenos pulmões enquanto discava. Quando o telefone não tocou, redisquei cuidadosamente. E quando não tocou de novo, repeti ainda mais lentamente, dizendo cada número em voz alta enquanto o pressionava. Mas na hora em que fui tentar pela última vez e não ouvi o sinal de discar, algo explodiu dentro de mim e perdi o controle. Ao sair da cabine, não sentia mais com medo. Eu era uma advogada, uma advogada maníaco-depressiva e não existe fera mais assustadora na face da Terra. Investi contra todos na sala com as seguintes palavras: "isso é uma notória violação à 14a . emenda, sem mencionar o artigo 42 de 1983, que caracteriza seus atos como tendo a intenção de infligir angústia emocional! Seus imbecis — nem seu sindicato vai conseguir salvar seus rabos, desta vez!" Havia pelo menos dez policiais na sala, atrás de uma janela de vidro e acho que insultei a todos juntos, e também individualmente, até o momento em que perceberam de onde vinha a gritaria. Vi um telefone vago sobre uma mesa vizinha. Levei dez segundos para dar um bote naquela direção. Mas a policial levou cinco segundos para atirar-me ao chão. E, então, de repente ela estava sobre mim, com todos os seus noventa quilos. Forçou minha cabeça contra o chão, que estava pegajoso com o que eu percebi, mais tarde, ser meu próprio sangue. Ela comprimiu um joelho contra minhas costas e começou a me bater. Não com o punho, mas com o cassetete que pendia em seu cinto, ao lado das algemas e das chaves. Eu estava tremendo tanto que não sei como ela conseguia acertar os golpes, mas ela deve ter sido bem treinada, porque minhas costelas explodiam, uma após a outra, num completo e sistemático ataque. O que eu estava sentindo naquele momento? Estava ainda gritando punições legais? Lembro-me apenas dos sons, redondos, ocos, sons de pancadas que vinham de dentro, que poderiam ter sido de minhas costelas ou da minha cabeça batendo contra o chão. Não senti nenhuma dor, só mais tarde, quando as nódoas negras se dissolveram e uma espessa cicatriz começou a se formar
  • 48. 52 Terri Cheney em minha testa. Na hora, só me preocupava com a manteiga e o que a aquela mulher faria se a encontrasse em meu umbigo. E também queria saber quanto tempo aquilo iria durar, se ela nunca ficaria cansada. Eu estava cansada. O chão era suave e frio, e eu só queria deitar e dormir, dormir para sempre, ou até que acabasse. Dormir e despertar em algum outro lugar, em um campo de flores silvestres, seguro e acolhedor. A policial parou em algum momento, ou eu caí adormecida, ou desmaiei. Não importa. A manteiga ainda estava lá quando fui atirada de volta à minha cela, e tentei espalhá-la na hemorragia da minha testa. Tinha endurecido e estava rançosa. Algum tempo depois, eles levaram um telefone à minha cela e pude falar com meu advogado, finalmente. Ele disse-me para esperar — mais uma vez, esperar — que chegaria em uma hora. Depois de pagar a fiança, fui finalmente libertada. Foram catorze horas de encarceramento. Meu advogado me disse, mais tarde, que o Código Penal previa que um prisioneiro poderia entrar em contato com seu advogado no prazo de três horas após a sua detenção, e que qualquer medicação solicitada devia ser analisada pelo médico de plantão. Isso não tinha mais importância. A coisa dentro de mim que costumava se importar — que ficava indignada, que insistia em seus direitos - tinha sido surrada para fora de mim. Nada mais foi do mesmo jeito, desde o momento interminável sobre aquele chão frio de pedra. Entendo agora que não sou intocável, que não sou imune. Você cresce separada das pessoas no ônibus, ou das pessoas na rua, por uma parede de vidro feita de dinheiro, de boa educação, de uma profissão. Nunca pensa que poderia ser aquele pobre rapaz negro sendo espancado pelos policiais. É só tv. Você nem mesmo se lembra de seu nome — Arthur King? Robert King? Rodney. Isso mesmo, você é Rodney King e quando se olha no espelho, a imagem nem aparece. Talvez seja pior quando se é um advogado, e sabe que seus direitos estão sendo violados. Talvez não seja, afinal, porque
  • 49. quando você sair, haverá outro advogado esperando para defendê-lo. No fim das contas, minha sentença foi de apenas "direção perigosa"3 , o que me custou um pacotão de dinheiro, mas não atrapalhou demais minha vida. Mas continuo a hesitar em tirar minha blusa e revelar as cicatrizes para um novo amante. Na verdade, fico em dúvida até para tirar toda a minha roupa. 3 No original, "wet reckless". É uma sentença do juiz, ligada à direção temerária e relacionada ao consumo de álcool. Para se obter este benefício, porém, o indivíduo não deve ter causado nenhum acidente e não pode ter sido sentenciado previamente. Tal sentença reduz a multa e não obriga que a pessoa passe um tempo na cadeia. Se, no entanto, houver outro caso igual, o "wet r eckless" será considerado como um registro prévio e a sentença será mais pesada. (N. do T.)
  • 50. 5 Eu sabia que estava começando a ter uma pequena crise maníaca quando o som da bateria, vindo da casa ao lado, começou a me deixar maluca. Mesmo que agora eu não estivesse trabalhando em tempo integral, ainda assim precisava pagar o aluguel. Estudava uma petição para um habeas-corpus, e o tempo para entrar com a petição estava acabando. Mas, nas últimas duas horas, eu tinha sido agredida por um incessante tump-tump-da-tump, tão alto que fazia tremer os vidros das janelas. Eu vinha sendo paciente com as sessões musicais noturnas, com o treino das escalas ao piano logo cedo, e com o Álbum Branco dos Beatles tocando sem parar, numa homenagem sem fim aos anos 1960. E tinha sido paciente porque ouvira dizer que meu vizinho era um
  • 51. grande produtor e compositor, um cara poderoso da indústria musical, e eu adorava viver ao lado de um grande produtor e compositor. De certa forma, ele fazia meu aluguel parecer um pouco menos obsceno. Mas quando você está a caminho de uma crise maníaca, a menor sensação frita seus nervos. Qualquer som é ruído, o sol é apenas um clarão ofuscante e você precisa de todo o seu autocontrole para não cortar fora o pedaço do tornozelo que foi picado por um pernilongo. Naquela manhã, as cerdas de minha escova de cabelos me atormentaram tanto, que joguei a escova na privada. Tenho jogado um monte de coisas na privada, nesse meu caminho até a crise maníaca — nem todas visíveis, ou facilmente substituíveis. Quarenta e dois minutos mais de tump-tump-da-tump e os pelinhos da minha nuca e braços estavam irritados de indignação. Alguma coisa tinha que ser feita — e naquele mesmo instante, antes que meu sangue pulsante jorrasse pelos meus ouvidos. A raiva costuma me impulsionar para a ação antes mesmo que eu possa me perguntar o motivo, ou se é a hora certa de fazer qualquer coisa. Entre os batimentos do coração e respirações entrecortadas, me preparei para enfrentar o bastardo, cara a cara. Olhando da perspectiva atual, aquele deve ter sido um dos meus momentos mais precários, quando meu equilíbrio químico estava desabando e minha quase estabilidade deixava de existir. Num minuto, eu estava pensando em como cobrir minhas janelas com fita isolante para abafar o som, e no minuto seguinte, já estava fuçando em meu guarda-roupa, procurando a roupa mais sexy do gênero enfrente- seu-vizinho que pudesse encontrar. Você fica maravilhosamente magra quando se vê a caminho da depressão maníaca. Comer é um ato que não lhe ocorre, porque existem muitos outros pensamentos que ocupam sua mente, importantes reflexões, pensamentos que até podiam mudar o mundo — isso se você tivesse um tempinho para anotá-los. Portanto, eu estava suficientemente magra nesse dia para vestir
  • 52. 56 Terri Cheney meu jeans preto lustroso. Aquele jeans não era minha vestimenta habitual, mas combinava perfeitamente com minha camisa verde de seda favorita, uma que parecia superdelicada sobre minha pele branca, isto é, até que a luz batesse diretamente sobre ela e a seda ficasse transparente. "Os mamilos são coisa natural", pensei, enquanto abotoava a camisa e calçava meus sapatos. Eram sapatos baixos como uma concessão à sobriedade, o que prova que eu não devia estar totalmente maníaca naquela hora. Uma verdadeira maníaca jamais pisaria na rua se não estivesse usando um scarpin com salto agulha. Jeans apertados, mamilos visíveis e sapatos baixos: uma estranha reunião de personalidades, mas não era isso o que eu estava realmente vestindo quando marchei até o portão do meu vizinho. Em minha mente, eu estava vestida para a batalha, no cruel terno cinza que usava apenas no tribunal e naqueles casos de vida ou morte; calçando aqueles sapatos de couro negro que eu havia comprado em um número menor de propósito, apenas para me manter irritada. Ao chegar em frente ao portão do inimigo, passei a mão nos cabelos, me endireitei e alinhei os ombros. Era estranha, mas conhecida a sensação. O movimento foi tão automático como o meu pulso acelerando. Era tudo muito familiar: eu estava em pé, na frente da porta do tribunal. Meu corpo simplesmente não esquecia, não importava o quanto minha mente tentasse: aquela excitação das altas batalhas na corte. Fora assim nos últimos quatro anos, desde que saíra da cena principal, e por mais que lamentasse todo o dinheiro que deixara de ganhar, eu sabia que não seria seguro voltar a praticar advocacia em período integral. Sabia disso, com absoluta certeza; mas, como um alcoólatra que se lembra do porre e nunca da ressaca, o meu corpo ainda suplicava pela embriaguez da adrenalina, de sempre jogar para ganhar. Vencer sempre tinha sido meu treinamento e, sem falsa modéstia, era o que eu sabia fazer melhor. Então saboreei, apenas por um momento, a lembrança da agulhada
  • 53. daqueles sapatos pretos, que nunca encaixavam nos meus pes, nem mesmo quando eu ganhava. Então, estiquei o braço e pressionei a campainha da casa do vizinho, segurando-a por alguns segundos além do tempo indicado para uma pessoa educada. Ele abriu a porta e seu "olá, como vai?" foi tão doce que soou como se ele estivesse cantando. Ou estaria chapado? Aí, eu vi os olhos verdes. Esses homens com olhos verdes causam algum efeito na cartilagem de meus ossos, sempre foi assim. E sempre será. "Eu moro aqui ao lado", e apontei na direção errada. "Sou advogada". Ele fez sim com a cabeça e ficou esperando. Mas eu não disse mais nada. Apesar de existir mais coisas a dizer, atoladas em minha garganta, mas com medo de sair e se mostrarem mais idiotas do que "oi, sou a advogada que mora aqui ao lado". "Bem, obrigado. Eu estou muito contente com meu advogado atual, mas certamente vou me lembrar de você, se um dia precisar de alguma coisa", ele falou. "Por que não deixa um de seus cartões com minha empregada, qualquer dia desses, que tal? Foi um prazer conhecê- la". Eu ainda tinha bastante raiva residual em mim e bastante irritabilidade maníaca, para aceitar um insulto dito na mais inocente das observações, não importa se de maneira educada e nem mesmo se os olhos verdes eram lindos. Eu poderia até não ser capaz de continuar vivendo naquele bairro e minha casinha aos pedaços provava esse fato. Mas não aceitaria jamais que alguém insinuasse que eu estaria mascateando meu registro de advogada para cima e para baixo na rua, como se fosse uma vendedora da Avon. Então, resgatei A Voz que eu usava para destilar venenos polidos como "meu digníssimo oponente" ou "senhor juiz, eu discordo respeitosamente". "Olhe", disse A Voz, "eu tenho que preparar uma petição e o tempo está acabando, não há maneira de eu conseguir fazer isso se essa bateria não parar. Quero dizer, já tentei de tudo, usei fones de ouvido, tampões e...".
  • 54. 58 Terri Cheney Fui interrompida por outra leva de tump-tump-da-tump. O ruído foi ainda mais alto, ali, na fonte, e vi com o canto dos olhos, com satisfação, que as janelas do meu vizinho também vibravam com o barulho. Não havia nada mais entre nós, a não ser as vibrações. Durante os julgamentos mais sérios, você tem que ser rápida, estar sempre dois passos à frente de seu oponente. Então, eu estava pronta para qualquer coisa que os próximos segundos trouxessem. Pronta, como uma cascavel para atacar, pronta para uma batalha — mas não estava preparada para risadas. Risadas não têm lugar adequado entre inimigos. Mas, mesmo assim, ele ria. Ele se encostou no batente e riu, uma risada honesta que vinha do fundo do diafragma. Acho que devia ter sido uma risada de alguém chapado, talvez, porque eu também entrei no jogo, e, pela primeira vez naquele dia, talvez nos últimos dias, não sei, os sons que emergiram de mim não continham nenhum sinal de raiva ou irritação. Ele chegou mais perto e colocou a mão em meu braço. "Deus, eu estou tão arrependido", disse. "Pensei que você estava... Eu pensei que você queria... Enfim, eu juro que eu nunca sequer ouvi os tambores, até agora. Tenho vivido tanto tempo no negócio de música que, às vezes, apenas desligo tudo, entende? Hoje é aniversário de meu filho e como fico com ele apenas nos finais de semana, estou provavelmente supertolerante com ele. Mas não se preocupe, ele volta para casa da mãe com a bateria amanhã cedo. Um presente-surpresa para ela, sabe como é..." Não era engraçado, na verdade. Talvez pudesse ser, numa dessas comédias da tv, mas de todo modo, isso esclareceu tudo. E, sem perceber, toda a minha raiva tinha passado. "Na verdade, isso é perfeito", meu vizinho disse. "Estamos fazendo uma festa para Trevor — o meu menino — e temos toneladas de alimentos. Sobremesas incríveis. Nós vamos ter que jogar tudo fora amanhã, a menos que você venha nos ajudar a comer. E você pode levar para casa o quanto quiser". Ele então estendeu a mão. "Falando nisso, o meu nome é Julian".
  • 55. "Sou Terri", eu disse, segurando sua mão do jeito mais apropriado para uma garota de família, e não mais como uma advogada durona. Embora fôssemos vizinhos, a casa de Julian e a minha só tinham uma coisa em comum, o código postal. Meu quarto cabia em seu vestíbulo, e sua pia de cozinha teria engolido minha banheira, se eu tivesse uma. Mas a maior diferença entre nós não era o tamanho da casa: era a luz, a luz que cintilava e refletia de todas as direções, ricocheteando ao redor da sala nas luminárias de cromo de alta tecnologia e tachos de cobre e panelas de estanho. Luzes como aquelas são um luxo que poucos podem pagar. Então, eu concluí que a dezena de pessoas em sua cozinha era provavelmente de alto luxo também. Não se adivinhava pelas roupas que usavam — de fato, roupas bem comuns. Mas se você soubesse como é esse mundo altamente competitivo, e eu o conhecia muito bem, então res ipsa loquitor as provas falam por si. Eu sabia que aqueles alongamentos no cabelo, praticamente perfeitos e sem emendas, puxados para trás de qualquer maneira, deviam custar acima de mil dólares. E eu sabia o que significava ter aqueles logotipos diminutos aplicados nas bolsas e mochilas: quanto menor o logotipo Chanel, mais alto o preço. Mas o mais revelador foi o que eu não vi. Nenhuma daquelas seis mulheres, todas nos seus quarenta anos ou mais, tinha qualquer ruga na testa, ou marcas de expressão ao lado da boca, ou qualquer fissura acima dos lábios. Ergo: injeções de Botox e colágeno, entre quatrocentos e quinhentos dólares cada; com manutenção a cada três ou cinco meses. Algumas das mulheres me deram aquele olhar de cima abaixo e, como eu conhecia esse olhar, devolvi do mesmo modo. Mas, com o Julian ao meu lado, fazendo as apresentações, não senti nenhuma necessidade de defender-me. Seus amigos foram apresentados à garota da casa ao lado, naqueles jeans quase indecentes e vestindo uma camisa verde de seda, que desapareceu
  • 56. 60 Te rri Cheney sob a luz da cozinha. Os homens não pareciam se importar com minha aparência. Na verdade, eles estavam interessados na minha história sobre a bateria de Trevor. Não sei o que as mulheres pensavam. Após um rápido alô, elas se retiraram para uma pequena sala de jantar. Julian não estava brincando quando disse que havia muita comida. Eu contei pelo menos dez diferentes sobremesas para menos de uma dúzia de pessoas, além de dois sacos de cachorros-quentes. Tive que admitir que eram surpreendentes: tortas de limão cobertas com flores comestíveis; uma profunda tigela de bolo inglês com crème fraîche ao lado; pudins tão cheios de rum que fizeram meus olhos se encherem de água só com o cheiro. Julian sentou-me num banquinho no meio dos rapazes, sob uma dupla fileira de panelas de cobre, e me entregou um prato com um pouco de cada sobremesa, dizendo para eu experimentar todas. Eu não estava com fome, embora soubesse que deveria estar, e quem não ficaria esfomeado quando se visse frente a frente com sorvetes de maracujá e de chocolate branco — coberto por morangos tão grandes quanto o punho de uma criança? Nessa hora, me dei conta de que não tinha comido nada naquele dia, ou, pensando bem, nem no dia anterior. Na verdade, não me lembrava da última vez que tinha comido alguma coisa. Isso provavelmente significava que havia atingido certo ponto, no caminho até a crise maníaca: pelo menos três quartos desse caminho tinham sido percorridos até ali. Teria sido grosseiro recusar o prato, mas eu não queria desperdiçar nenhum tempo de conversa, de sorrisos, de risadas. A fase inicial da paquera demanda completa atenção, não pode ser desviada por um bolo inglês. Mas como Julian insistia, e os rapazes ficavam dizendo qual das sobremesas eu deveria experimentar primeiro, resolvi pegar um enorme morango. Era grande demais para uma mordida, então eu comecei a lamber o chocolate branco: casualmente, sem pressa. Depois, mordisquei apenas um segundo ou dois, delicadamente, ao redor da haste. Então eu sorri, com