Trabalho acad. clarissa pereira da paz patricia ferreira - clima organizacion...
Profissões e competências claudia kober
1. 1
PROFISSÕES E COMPETÊNCIAS
Trabalho a ser apresentado no
XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
1 a 5 de setembro de 2003
UNICAMP, Campinas, SP
GT 12: Ocupações e Profissões
Autora:
Claudia Mattos Kober
Doutoranda Fac. Educação /UNICAMP
2. 2
Este texto pretende discutir a relação entre a introdução das novas formas de
gestão nas empresas, baseadas no “modelo das competências” (Zarifian, 2001) e sua
utilização correlata no sistema educacional com os princípios administrativos e
ocupacionais de Freidson (1998).
Discutiremos a tese de Freidson (1998) de que as mudanças sociais das últimas
décadas e a valorização do conhecimento tendem a reforçar o profissionalismo, à luz da
lógica das competências nas empresas e na educação e defenderemos a hipótese de que,
aliada a outras mudanças ocorridas na sociedade, nas áreas ligadas à educação e ao
trabalho, o “modelo das competências” contribui para profundas mudanças na
construção das identidades profissionais dos indivíduos, dificultando a sua identificação
com a profissão (aquela para a qual estudaram inicialmente), ao longo da sua vida
profissionalmente ativa, provocando uma identificação cada vez mais difusa com a sua
profissão original e contribuindo para uma perda do poder ligado às profissões.
Freidson e o profissionalismo
Após uma fase de fortes críticas e de ser colocada em certo ostracismo, a
sociologia das profissões volta, nas décadas de 70 e 80, a ganhar corpo com a discussão
acerca do “poder profissional, econômico, social e político dos próprios grupos”
(Rodrigues, 1997, p. 47) profissionais. Ante as intensas mudanças sociais e econômicas
vividas no período, para onde evoluiriam as profissões? Manteriam elas os seus
privilégios e proteções de mercado ou haveria uma tendência, para o declínio do poder
profissional? Mapeando a sociologia das profissões como campo de estudo, Rodrigues
(1997) destaca três autores que discutem a questão do paradigma do poder profissional:
Johnson, Freidson e Larson. No entanto, como aponta a autora (p. 50), é Freidson que
consolida tal paradigma. É com as teses deste autor que pretendemos dialogar.
Para Freidson (1998, p. 40) uma profissão é genericamente uma ocupação,
distinguida das demais pelo “conhecimento e competência especializados necessários
para a realização de tarefas diferentes numa divisão do trabalho”. Estes conhecimentos,
formais e abstratos, são adquiridos ao longo de uma educação de nível superior, que é
pré-requisito para o exercício da profissão, ou seja, o credenciamento é condição de
acesso exclusivo ao mercado de trabalho. O controle rigoroso da formação e do
3. 3
exercício profissional é a base do poder e dos privilégios profissionais e são garantidos
pelas universidades, pelas associações profissionais e pelo Estado (Bonelli, 1998, p. 24).
O poder profissional, para Freidson está ancorado, pois, em três pilares: a
autonomia, ou seja, o poder de decidir sobre o próprio trabalho; a expertise, ou
monopólio sobre o conhecimento (é a exclusividade do conhecimento que confere
poder) e o credencialismo (gatekeeping), que controla o acesso e a formação, com papel
preponderante do Estado na institucionalização e organização da maioria das profissões
(Rodrigues, 1997 p. 51).
A questão da racionalização e da organização do trabalho é abordada de forma
importante por Freidson (1998, p. 85 e ss.). O autor considera a divisão do trabalho um
processo de interação social por meio do qual “os participantes são levados
continuamente a tentar definir, estabelecer, manter e renovar as tarefas que realizam e as
relações com outros pressupostas por suas tarefas” (p. 95). Neste processo, desde a
Revolução Industrial, cabe à administração determinar qual é o trabalho a ser feito,
como ele será realizado e por quem; fragmentando, mecanizando e racionalizando as
tarefas em busca de melhor eficiência e resultados financeiros. A este princípio
administrativo, Freidson contrapõe, como fonte de controle do trabalho, o princípio
ocupacional, que teria se desenvolvido e ganhado forças a partir da segunda metade do
século XX. Com o aumento do profissionalismo1
, reforçado pelo aumento de
trabalhadores2
portadores de educação de nível superior e pela valorização do status
profissional, a administração perderia sua força, pois “depois que uma ocupação se
tornou plenamente profissionalizada, mesmo que seu trabalho continue a ser feito
caracteristicamente numa organização, a administração pode controlar os recursos
relacionados com o trabalho, mas não pode controlar a maior parte do que os
trabalhadores fazem e como o fazem” (Freidson, 1998, p. 99). Este controle e
autoridade seriam exercidos pelos próprios trabalhadores profissionais de forma
autônoma. A administração não teria, portanto, a capacidade de coordenação
imperativa, característica básica da autoridade administrativa, segundo Weber. Esta
1
Freidson (1998, p. 98) utiliza a definição de profissionalismo de Vollmer & Mills (1966), como sendo o
“o processo pelo qual uma ocupação organizada, geralmente mas nem sempre por alegar uma
competência esotérica especial e cuidar da qualidade de seu trabalho e de seus benefícios para a
sociedade, obtém o direito exclusivo de realizar um determinado tipo de trabalho, controlar o treinamento
para ele e o acesso a ele e controlar o direito de determinar e avaliar a maneira como o trabalho é
realizado.”
2
Usarei aqui a designação geral de trabalhador para aquele que vive do seu trabalho, englobando,
portanto, os profissionais com nível superior e não apenas aqueles inseridos nos pontos mais baixos da
hierarquia ocupacional- os operários.
4. 4
autoridade de coordenação da divisão do trabalho seria desempenhada pelo trabalhador
profissional, baseado no seu expertise. Uma mudança resultante de um processo
histórico, social e político de disputa sobre o controle e o desempenho do trabalho na
qual é central a valorização do papel do conhecimento e da tecnologia na sociedade3
.
Na construção desta sociedade do conhecimento, as profissões têm papel
fundamental.
É o conceito de ocupação, e particularmente de profissão, que nos fornece o vínculo
sociológico entre o conhecimento enquanto tal e seu papel organizado na sociedade
atual. Não é, afinal de contas, o fato de o conhecimento especializado ter o potencial
prático de desenvolver uma tecnocracia, mas antes o fato de ocupações e/ou órgãos
organizados, líderes e classe terem acesso exclusivo a tal conhecimento. O
conhecimento em si não dá um poder especial: somente o conhecimento exclusivo dá
poder aos seus detentores. E tal poder é obtido precisamente no princípio ocupacional
de organização, pelo qual o recrutamento, o treinamento e o desempenho do trabalho de
criar, disseminar e aplicar conhecimento são controlados pelas “ocupações do
conhecimento”. (Freidson, 1998, p. 104)
É também com base na exclusividade do conhecimento e da capacidade de
desenvolver determinadas tarefas que as profissões vão reivindicar e disputar privilégios
junto ao Estado no que se refere a estabelecer e controlar a jurisdição de sua atuação.
Freidson é bastante otimista no que se refere ao futuro das profissões e do
princípio ocupacional como organizador da divisão do trabalho. Acredita que o
princípio administrativo só ganharia forças novamente se ele pudesse fazer com o
trabalho profissional, baseado no conhecimento, aquilo que fez com o trabalho manual:
dividi-lo em operações mínimas, simples e isoladas, retirando do trabalhador toda a
autonomia sobre seu trabalho.
Se o conhecimento e a competência esotéricos forem realmente necessários para realizar
a maior parte do trabalho do futuro, as bases para a racionalização administrativa do
trabalho parecem propensas a tornar-se cada vez mais tênues e, empregado ou não,
aumenta a possibilidade de o princípio ocupacional ter precedência sobre o princípio
administrativo. (Freidson, 1998, p. 110)
Deteremos para nossa análise dois pontos fundamentais do profissionalismo de
Freidson: a autonomia em relação ao próprio trabalho e a formação profissional, os seja,
a transmissão e detenção exclusiva de saberes e conhecimentos transmitidos por meio
do ensino superior e controlados e regulamentados pelas associações profissionais e
pelo Estado (que compõem o pilar expertise e credencialismo). Em seguida,
procuraremos analisar quais as implicações do “modelo de competências” tanto na área
3
Freidson cita diversos autores que apontam o desenvolvimento da “sociedade do conhecimento”: Daniel
Bell, Lane, Amitai Etzioni, Galbraith etc.
5. 5
do trabalho e da autonomia do trabalhador, quanto na educação e na formação
profissional, que a nosso ver impediriam a possibilidade do princípio ocupacional
sobrepujar o princípio administrativo, como quer Freidson.
Trabalho e modelo das competências
Paralelamente à discussão sobre as profissões, e de certa forma ignorada por ela
(pelo menos por sua vertente anglo-saxã), a noção de competência impôs-se tanto no
campo do trabalho como no campo da educação. Oriunda do meio empresarial nos anos
80 e mais tarde apropriada pelo campo da educação, a noção de competência vem sendo
apontada como mais adequada às necessidades inerentes ao trabalho na nova economia
do que a noção de qualificação profissional. Para enfrentar o aumento da concorrência,
as exigências de qualidade e produzir cada vez mais para um mercado consumidor
segmentado e ávido de inovações, é preciso uma nova organização do trabalho e uma
nova formação do trabalhador, que permita que ele enfrente “quotidianamente os
dilemas da gestão, isto é, realizar arbitragens complexas entre a qualidade, o custo, o
prazo, a variedade, a inovação e isso em tempo real, no mesmo momento em que essas
necessidades de arbitragem aparecem”. (Zarifian, 1996, p.18)
O “modelo das competências” vem então ao encontro destas necessidades do
mundo do trabalho, combinando cinco elementos, conforme Saglio, citado por Dubar
(1998, p. 97):
Normas de recrutamento que privilegiam o "nível de diploma".
Valorização da mobilidade e do acompanhamento individualizado da
carreira. Introdução de processos de avaliação contínua do
desenvolvimento do funcionário na empresa.
Novos critérios de avaliação, que privilegiam as qualidades pessoais
e relacionais como responsabilidade, autonomia, capacidade de
trabalhar em equipe etc.
Instigação à formação contínua, o aprender sempre.
Desvalorização dos antigos sistemas de classificação fundados nos
níveis de qualificação e originados nas negociações coletivas.
Privilegiamento das negociações individuais de salários e benefícios.
6. 6
Analisando os cinco elementos acima e os princípios norteadores do modelo das
competências, tal como proposto por Zarifian (2001), poderíamos ser levados a pensar
que a implantação desta lógica na gestão das organizações seria a ferramenta mais
adequada para que se desse o fortalecimento do princípio ocupacional de Freidson, uma
vez que ele tende a “privilegiar os diplomas” e “instigar a formação contínua”. Não é no
entanto o que ocorre.
Centrando a atenção no indivíduo e não mais no posto de trabalho, a lógica da
competência realça a importância da autonomia de decisão e ação do indivíduo e do
grupo sobre seu trabalho (condição principal de funcionamento do princípio
ocupacional). O controle do trabalho se desloca para a avaliação de resultados em
relação a metas acordadas anteriormente — metas estabelecidas pela administração.
Além disso, a lógica da competência tem como efeito flexibilizar a organização do
trabalho: “exprime uma ampliação da área de utilização das competências do
assalariado, conservando-se, entretanto, o princípio de unidade e de coerência
profissional nessa utilização.” (Zarifian, 2001, p. 102) Zarifian enfatiza a diferença entre
este conceito e o de polivalência: neste, os postos de trabalho continuam separados e o
assalariado passa de um para outro de acordo com as necessidades, devendo realizar
uma lista de tarefas pré-estabelecidas; no espaço da competência, “as atividades não são
separadas, são ampliadas” (idem).
O próprio autor, preocupado com um novo modelo de gestão de recursos
humanos, que se torne instrumento de desenvolvimento da empresa e do assalariado, já
adverte, no entanto, quanto à dificuldade de implantação e funcionamento do modelo:
De qualquer modo, é preciso enfatizar que a utilização de competências pressupõe que o
assalariado possa atribuir um sentido profissional unificado ao papel expandido que
ele assume daí em diante e, por conseguinte, que possa dar um sentido unificado ao
conjunto de suas ações. O que quer dizer, a contrário, que é preciso evitar que essas
ações pareçam uma simples soma quantitativa de tarefas, sem vínculo entre elas. (idem,
p. 102)
O reconhecimento da autonomia tem de ser traduzido no funcionamento da
organização, para que ela possa ser exercida. Para tanto, é preciso garantir os meios para
que a autonomia possa realmente se desenvolver:
(...) de meios técnicos, de acesso às informações e às redes de relações necessárias, de
formação profissional, a disponibilidade de tempo. Garantir esses meios é da
responsabilidade da gerência da empresa. É mesmo provável que este seja um dos
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aspectos mais importantes de um procedimento competências, aquele que atuará com
força na motivação dos assalariados. (idem, p. 105)
Quanto ao processo de avaliação, base do deslocamento do controle do trabalho
da administração para o assalariado, Zarifian adverte: “Na falta de diálogo sobre as
implicações (que fundamentam os objetivos) e de envolvimento de diversos atores, o
puro controle de resultado é, simultaneamente, pobre em termos de expansão de
competências, e muito alienante.” (p. 105)
Como se pode perceber, o próprio defensor da lógica das competências vê
problemas para o seu pleno funcionamento, que abalariam a autonomia e o auto-
controle do trabalho, condições básicas do princípio ocupacional preconizado por
Freidson.
Outro ponto em que o modelo das competências tende a entrar em conflito com
o princípio ocupacional de Freidson é a construção da carreira do trabalhador e da sua
identidade profissional. Do trabalhador inserido nesta nova lógica (Zarifian, 2001, p.68-
76) exige-se que tome iniciativas, assuma responsabilidades, articulando e mobilizando
conhecimentos, atitudes e valores para fazer frente à diversidade de situações práticas
que lhe serão apresentadas no cotidiano do trabalho. É preciso ainda que ele seja capaz
de “mobilizar redes de atores em torno das mesmas situações”, levando esses atores a
“compartilharem as implicações de suas ações” e assumir co-responsabilidade. A
articulação destes elementos, altamente subjetivos é inteiramente individual e é baseada
nela que vai-se articular a carreira do indivíduo. O percurso da carreira não vai se apoiar
mais na sua formação educacional, mas na avaliação feita pela empresa das suas
qualidades pessoais e interpessoais. As negociações coletivas entram em colapso e
passa-se a negociar salários, promoções, benefícios e condições de trabalho
individualmente, com base nas competências e na avaliação delas. Na lógica da
individualização, cada um se torna senhor absoluto do seu próprio destino, tanto na
construção de oportunidades e auto-desenvolvimento para fazer frente à miríade de
transformações que se impõem em curtíssimo prazo, como na responsabilidade pelo seu
próprio fracasso ou exclusão, por não conseguir „administrar‟ a sua carreira de forma
adequada aos novos moldes.
A nova organização das empresas, mais em formato de redes do que de
pirâmides hierárquicas, tende a modificar e influenciar as carreiras profissionais. Já não
se espera de um indivíduo que ele ingresse em uma área da empresa e desenvolva sua
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carreira galgando posições hierárquicas nesta mesma área. A nova organização
pressupõe que o trabalhador „flexível‟ desenvolva sempre novas competências e passe a
atuar em áreas de diferentes expertises. Aquele que ingressou na „contabilidade‟, pode
acabar se vendo no „controle de qualidade‟ e mais tarde tendo de migrar para
„desenvolvimento de produtos‟. A determinação deste percurso, tendo pouco a ver com
proximidade nos campos do saber profissional, mas com as necessidades de
flexibilidade da empresa.
No trabalho, a carreira tradicional, que avança passo a passo pelos corredores de uma ou
duas instituições, está fenecendo; e também a utilização de um único conjunto de
qualificações no decorrer de uma vida de trabalho. Hoje, um jovem americano com pelo
menos dois anos de faculdade pode mudar de emprego pelo menos onze vezes no curso
do trabalho, e trocar de aptidão básica outras três durante os quarenta anos de trabalho.
(Sennett, 1999, p. 22)
A troca de campo de atuação ao longo da vida profissional entra em confronto
direto com a profissionalização, que nas palavras de Freidson, representa
uma ocupação tão bem organizada que seus membros podem vislumbrar realisticamente
uma carreira para a maior parte de seus anos de atividade produtiva, uma carreira
durante a qual conservem uma identidade ocupacional particular e continuem exercendo
as mesmas competências independentemente da instituição onde trabalhem. (1998, p.
140)
A troca de campo de atuação mina também a identidade profissional e a
identificação do indivíduo com os seus pares:
A educação vocacional superior não apenas introduz “conhecimento” nas cabeças das
pessoas, mas também constrói expectativas e compromissos que não são facilmente
dominados pela racionalização política ou administrativa. Constróem-se identidades
especializadas e organizadas . O conhecimento se institucionaliza como expertise. A
estrutura de significados e compromissos pode sobrepujar as metas ou compromissos
organizacionais. (Freidson, 1998, p. 138)
A construção de identidades, não se dá apenas durante os anos de formação na
faculdade. Nem pode-se afirmar que a identidade ali construída se cristalize para o resto
da vida do indivíduo. A identidade humana se constrói ao longo de um processo de
desenvolvimento, como ressalta Elias (1994). Um processo que necessariamente passa
pelas relações de trabalho e no qual “cada fase posterior emerge de uma fase anterior,
numa seqüência ininterrupta” (p. 156). As contínuas mudanças nos campos de atuação
profissional, tendem a fazer com que o indivíduo vá se distanciando daquela identidade
profissional original. Na nova estruturação do trabalho nas organizações e na própria
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vida social, “o tempo de curto prazo, flexível, do novo capitalismo parece excluir que
façamos uma narrativa constante de nossos labores, e portanto uma carreira.” (Sennett,
1999, p. 146)
A situação fica ainda mais agravada quando se desvia o olhar de dentro da
empresa para o que está acontecendo no mundo do trabalho fora dela. A nova
organização da reprodução do capital, nomeada por Harvey (1998, p.140) de
acumulação flexível de capital, da qual a reestruturação das empresas faz parte, levou,
em todo o mundo, um contingente enorme de pessoas a situações de trabalho precárias,
com pouca ou nenhuma proteção social (trabalhos terceirizados, prestação de serviços
esporádicos, tempos parciais etc. ) ou à exclusão da possibilidade mesma de inserção
em algum tipo de relação de trabalho. Neste contingente não se incluem apenas aqueles
que tem poucos anos de escola. Pelo contrário, estudos (ver Segnini, 1998, Sennett,
1999) têm mostrado que mesmo profissionais com cursos superiores tem enfrentado a
situação de desemprego e precarização, obrigando-os a buscar alternativas de
sobrevivência econômica que nada tem a ver com a carreira na qual acreditaram e
buscaram construir suas identidades. Mais uma das formas, pois, que contribuem para o
esfarelamento da identidade profissional e da autonomia e autodeterminação que o
profissionalismo deveria trazer.
Também para aqueles que estão empregados, a situação de desemprego e
precarização é um fator de restrição da autonomia profissional, na medida em que o
medo de ser mais um a fazer parte do contingente precarizado, como aponta Dejours
(2001, p. 52) submete os trabalhadores a uma nova forma de dominação pela
manipulação gerencial, que “gera condutas de obediência e até de submissão”, muitas
vezes contrárias à ação profissional.
Face às restrições acima apontadas na autonomia dos profissionais e na
construção de suas carreiras, talvez se pudesse pensar que, ao contrário do que supõe
Freidson, não há um enfraquecimento do princípio administrativo sob a lógica do
modelo das competências, mas pelo contrário, há uma toda uma reformulação que tende
a manter o controle do trabalho e das carreiras cada vez mais nas mãos da
administração— mesmo o trabalho de profissionais de nível superior. O controle
possibilitado pelo modelo das competências traz como uma de suas armas mais
poderosas o chamado à colaboração empregado-empresa. Baseada no compromisso,
valoriza a participação de cada um para que se alcancem as metas e a missão da
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empresa possa ser atingida. O trabalhador deve „vestir a camisa‟ da empresa. Desta
forma,
a lógica da competência, que transforma os empregados em atores da mudança, leva-os
a acreditar que estão do lado do poder: até então colocados em posição claramente
subordinada, eles são incitados a integrar-se no contínuo de autoridade característica das
organizações burocráticas, e assim a se sentirem o último elo da corrente que os liga à
direção da empresa. (Dugué, 1998, p. 123)
Desta forma, a administração não apenas ganha poder, mas ganha em submissão
(e na conseqüente perda de autonomia profissional).
Educação e o modelo das competências
A noção de competência no trabalho, não se dissocia da questão da educação e
da formação profissional. Pelo contrário, ela surgiu como uma promessa de integração
entre as lógicas da educação e do trabalho; de coadunação entre o que o aluno aprendia
na escola e o que iria necessitar ao ingressar no mundo do trabalho; de superação da
acusação que a educação vinha sofrendo de transmissão de conhecimentos „inúteis‟ e
„acadêmicos‟, desvinculados da „vida real‟.
Muito associada às noções de desempenho e de eficiência em cada um desses domínios
(da educação e do trabalho), a noção de competências é, todavia, utilizada em
diferentes sentidos. Ela tende a substituir outras noções que prevaleciam anteriormente
como as dos saberes e conhecimentos na esfera educativa, ou a de qualificação na esfera
do trabalho. (Ropé e Tanguy, 1997, p.16)
Nascida no campo do trabalho, a polissêmica4
noção de competências é
assimilada pelo campo da educação e faz parte dos documentos da CEPAL (1994) e da
UNESCO (1995), destinados a nortear os modelos de educação dos mais diferentes
Estados nacionais. No Brasil elas permeiam toda a lógica do modelo educacional
vigente, fundamentado nas noções-chave: competências, objetivos, avaliação e contrato
(Tanguy, 1997, p.35). Elas estão, desse modo, tanto nos Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Fundamental, como por detrás da lógica do Exame Nacional de
Cursos, o “Provão” do ensino superior.
4
Ropé e Tanguy (1997, p. 17). Nesta introdução as autoras discutem, entre outros aspectos, o quanto a
noção de competência é “uma dessas noções cruzadas, cuja opacidade semântica favorece seu uso
inflacionado em lugares diferentes por agentes com interesses diversos”(p.16), que “permitem pensar que,
além de um efeito de moda, a noção de competência contribui para modelar uma realidade social
enquanto pretende justificá-la” (p. 19).
11. 11
Aparentemente, a valorização que o modelo das competências traz do diploma e
da formação contínua, poderia ser interpretada como um fortalecimento do princípio
ocupacional de Freidson. Não é isso o que ocorre, porém.
Pilar fundamental do profissionalismo, a formação universitária, por meio da
qual se transferiam os saberes exclusivos, de forma controlada, para as novas gerações,
também sofre mudanças impostas pela “lógica das competências”. Há um deslocamento
da importância do conhecimento científico ligado à profissão para a mobilização de
recursos cognitivos, afetivos, estéticos e morais necessários à convivência participativa
e respeitosa, condição para o desenvolvimento do trabalho em equipe. Vigora a
concepção segundo a qual os trabalhadores devem possuir, “não conhecimentos úteis ao
trabalho, mas sim comportamentos úteis à empresa” (Dugué, 1998, p. 113). Às
instituições educacionais cabe “fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo
complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar
através dele” (Delors, 1999, p. 89). Já não se trata mais de apenas “saber fazer”, mas
principalmente de “saber ser”. A ação da educação passa, portanto, a ser pautada muito
mais sobre a transformação da subjetividade do educando e na transmissão de atitudes e
valores considerados adequados à competência no local de trabalho, do que na
transmissão do corpo de conhecimentos ligados à profissão.
A valorização da experiência e a desvalorização do pensamento científico que,
supostamente, não se adapta às necessidades da ação, correspondem às restrições no
seio das quais se desenvolve a atividade dos novos executantes: os saberes são
valorizados como necessários, mas nos limites estreitos estabelecidos pela divisão do
trabalho que, embora deixem de ouvir os apelos à mobilidade dos atores, só permite aos
executantes uma iniciativa sob controle. (Dugué, 1998, p. 105)
A lógica disseminada pelos novos modelos sociais e políticos é de que, para
obter uma posição de trabalho é necessário que os indivíduos estudem cada vez mais e
quanto mais a população for educada, mais o país poderá crescer. A falácia desta lógica
e as desigualdades que ela oculta vêm sendo discutidos ao longo das últimas décadas,
mas a sua força permeia as representações sociais, reforçada pela realidade das
exigências de contratação impostas pelas empresas. Esta consonância entre as estruturas
objetivas e as estruturas subjetivas funda a violência simbólica, que, nas palavras de
Bourdieu (1997, p. 170), “extorque submissões que sequer são percebidas como tais,
apoiando-se em „expectativas coletivas‟, em crenças socialmente inculcadas”.
12. 12
Se o diploma é exigido, o é menos pela complexidade do trabalho e necessidade
de conhecimentos científicos e abstratos, mas pela expectativa de que indivíduos que
tenham passado pelos bancos de uma faculdade tenham o seu “modo de ser” adequado
às novas necessidades do mundo do trabalho. Fato que fica cada vez mais evidenciado
pelo contingente de pessoas contratadas para realizar tarefas bastante simples para as
quais é exigido o nível universitário, o que tende a provocar no indivíduo conflitos entre
a identidade profissional que adquiriu na faculdade e as atividades que lhe são
atribuídas na realidade.
No novo modelo das competências e de organização do trabalho, afirma-se e
faz-se acreditar que é o indivíduo o responsável último pela construção de sua carreira,
tanto no sucesso que ele possa obter como no fracasso. Paradoxalmente, no entanto, a
desconexão do diploma e do percurso educacional do reconhecimento em termos de
cargos, salário e prestígio — pois estes são, no novo modelo, dependentes das
avaliações das competências — faz com que fique depositado quase que totalmente nas
mãos da administração o reconhecimento da carreira de cada trabalhador, o que vai
depender em última instância das necessidades e interesses da organização. Deste modo,
amplia-se para todas as categorias funcionais, inclusive para as de nível superior, o que
ocorria com o trabalhador das linhas de produção, a quem era dado o reconhecimento
das capacidades funcionais por meio do registro na carteira de trabalho5
, o que dependia
exclusivamente da boa vontade e dos interesses da administração.
Por trás da lógica do modelo das competências está também, paradoxalmente, a
desvalorização do diploma. Se antes ele tinha um valor universal e atemporal, se os
indivíduos possuíam um diploma que lhes dava direito a exercer determinada profissão,
hoje, os rápidos avanços dos saberes técnicos e as mudanças provocadas por novas
descobertas são usados para justificar a desatualização do diploma em pouco tempo.
Para fazer frente a esta desatualização, o modelo das competências prega o
incentivo a aprender sempre, o que é outro ponto que poderia ser entendido como um
elemento de incremento do profissionalismo como o vê Freidson, se fosse pensado em
termos de aprofundamento dos conhecimentos e da autonomia. São enormes os gastos
com treinamentos e ações das empresas no sentido de elevar o padrão educacional de
seus empregados. No entanto, é preciso lembrar que é a administração que vai decidir,
5
A esse respeito ver Ferretti, C.J. Opção: Trabalho, São Paulo, Cortez/ Autores Associados, 1998 (p. 82)
e Kober, C.M. A qualificação profissional do ponto de vista de trabalhadores da indústria, dissertação de
mestrado PUC-SP, 2001 (p. 114)
13. 13
em última instância, o conteúdo e a direção da aquisição destes conhecimentos, sempre
articulados com a lógica do „saber ser‟ e das competências. Há, portanto, pouquíssima
autonomia do profissional, que em muitos casos se submete à prescrição da
administração, por medo da exclusão (Dugué, 1998, p. 121) e não porque julgue que
aquele curso ou treinamento vá de algum modo contribuir para o aumento de sua
profissionalização.
Esta formação proporcionada pelas organizações por meio de treinamentos e
cursos avulsos é totalmente desvinculada da estrutura educacional oficial. Isso significa
que “o desenvolvimento das ações de formação, de avaliação e da validação das
competências se efetua disputando, no sistema escolar, o monopólio que até agora tinha
nesse domínio” (Ropé e Tanguy, 1997, p. 23), levando a um afrouxamento ainda maior
entre a relação cargo-diploma, que interessa às organizações, como já apontava
Bourdieu e Boltanski:
Os mestres da economia têm interesse em suprimir o diploma e seus fundamentos, ou
seja, a autonomia do sistema educacional; interessa-lhes a confusão completa entre
diploma e cargo. Desejam ter as capacidades técnicas produzidas pelo instrumento de
produção de produtores (o sistema de educação), sem pagar a contrapartida, ou seja, as
garantias que lhe confere a existência de um sistema de ensino relativamente autônomo
(i.e., o diploma). (…) Daí o sonho patronal de uma escola confundida com a empresa,
de uma escola "da casa". (1998, p. 136)
O enorme contingente de portadores de um diploma universitário é outro fator
que contribui para a sua própria desvalorização. Em um mercado de trabalho saturado
de ofertas, os empregadores podem escolher profissionais cada vez mais educados para
exercer funções simples e rotineiras, desvalorizando desta forma a qualificação obtida e,
como já foi apontado, levando os indivíduos a conflitos em termos da identidade
profissional. Outra forma de desvalorização se dá no nível simbólico. O surgimento de
faculdades e universidades particulares destinados a segmentos sociais que
anteriormente não teriam acesso ao ensino superior, levou a uma intensificação da
valorização simbólica dos diplomas obtidos nas instituições públicas de nível superior
(e em raras escolas privadas) e na criação, por parte da classe dominante, de estratégias
educacionais (cursos no exterior, domínio de línguas estrangeiras etc.) destinadas a
manter as distâncias sociais que anteriormente eram asseguradas pelo diploma de nível
superior. (Bourdieu, 1998)
14. 14
O modelo das competências e o princípio ocupacional
As considerações feitas até aqui nos levam a pensar que a lógica das
competências, com sua força simbólica e organizativa no mundo do trabalho e no plano
da educação, tende a fortificar o princípio administrativo, ou seja, a divisão e controle
do trabalho pela administração, contra o princípio ocupacional, como queria Freidson,
por provocar uma diminuição na autonomia dos profissionais, desvalorizar os
conhecimentos específicos de cada profissão, descaracterizar as carreiras e as
identidades profissionais e minar o controle do acesso às profissões. Deste modo,
poderíamos dizer que o princípio administrativo não enfraqueceu. Pelo contrário, foram
criadas novas formas de manter seu poder.
As considerações deste trabalho levam-nos também a pensar nos rumos da
pesquisa no campo da sociologia da educação, do trabalho e das profissões. Muito se
tem falado do modelo das competências e suas relações com as estratégias atuais do
capital em busca de sua reprodução e as formas de gerenciamento das organizações nas
quais ele toma forma, bem como nas relações e apropriações que o modelo possibilita
com a educação e a formação profissional. É preciso, no entanto, buscar saber como
estas relações se projetam e se concretizam na vida dos indivíduos, nas suas carreiras,
nas suas subjetividades. Não no sentido de desvendar psiques individuais, mas de
apreender “identidades sociais como processos ao mesmo tempo biográficos e
institucionais”, como quer Dubar (1998). O aprofundamento do estudo das trajetórias
sociais e da construção das identidades profissionais pode, pois, trazer luz à
compreensão das dinâmicas sociais envolvidas e suas articulações com questões de
gênero, raça e geracionais. Neste sentido, ganham força as palavras de Dubar (1998, p.
11):
A ingênua crença sociológica na determinação mecânica das subjetividades pelas
“condições objetivas” será necessariamente substituída por laudos problemáticos de
dependências parciais e de autonomias irredutíveis, de mediações complexas e de
coerências frágeis, de defasagens múltiplas e de indeterminações tenazes. A pesquisa
ganhará com isso.
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