1. O texto discute a visão de mundo da classe média brasileira, que vê a política como algo sujo e distante, preferindo viver em uma "bolha" limpa e aséptica como um shopping center.
2. Essa visão classifica programas sociais e debates sobre direitos como algo sujo, negando as desigualdades e injustiças na origem de sua própria condição privilegiada.
3. O debate sobre o IPTU em São Paulo é usado como exemplo, com a classe média rejeitando a proposta de taxar zonas valorizadas
Movimentos sociais na américa latina na atualidade
IPTU de SP: Uma visão da política como um shopping center
1. 1
O
IPTU
vai
ao
shopping
de
metrô
Há
muitas
maneiras
de
se
pensar
a
vida
brasileira.
Todas
elas
enraizadas
em
visões
de
mundo
historicamente
identificáveis
e,
portanto,
passíveis
de
algum
nível
de
entendimento.
Uma
dessas
maneiras,
talvez
a
hegemônica
no
Brasil
das
cidades
grandes,
é
o
que
chamo
de
visão
de
classe
média:
um
tipo
de
visão
de
mundo
bastante
alicerçado
em
valores
como
intenso
consumo
(tanto
de
bens
quanto
de
serviços),
segmentação
das
cidades
em
ilhas
de
convívio
(como
os
condomínios,
por
exemplo)
e
a
reiterada
negação
do
Estado
e
do
debate
público.
Essa
sorrateira
e
envolvente
visão
de
classe
média
pensa
a
vida
política
brasileira
como
se
estivesse
num
shopping
center:
olha
o
jogo
democrático
a
partir
da
suposta
assepsia
de
seu
mundo
privado
-‐
embora
ache
que
está
no
ambiente
público
-‐
concebido
para
ser
uma
solução
dos
problemas
sociais
onde
reinam
desajustes,
desigualdades,
contradições,
imprevistos.
E
é
assim
que
ela
debate
o
aumento
do
IPTU
em
São
Paulo,
as
denúncias
de
corrupção,
a
cocaína
no
helicóptero
do
deputado
de
Minas
Gerais
ou
as
propostas
de
financiamento
público
de
campanhas
eleitorais.
Essa
lógica
de
classe
média
considera
a
política
como
suja
e
como
o
‘mundo
de
fora’
em
contraposição
ao
"shopping
center"
no
qual
vive,
que,
para
ela,
é
o
‘mundo
de
dentro’.
O
‘mundo
de
fora’
seria
a
realidade-‐real,
o
espaço
urbano
com
seus
problemas
de
transporte,
de
saneamento,
coleta
de
lixo,
filas
na
saúde,
educadores
cansados
e
maltratados,
uma
gigantesca
parcela
da
população
em
habitações
informais
e
todo
o
caráter
público
que
o
compõe.
É
como
se
esse
mundo
contivesse
outra
realidade
construída
artificialmente
(uma
realidade
paralela
que
a
classe
média
julga
ser
a
verdadeira,
única
e
correta):
o
‘mundo
de
dentro’
(que,
como
nos
shoppings,
é
limpo
e
isento
dos
fatores
que
agem
no
‘mundo
de
fora’
-‐
chuva,
sol,
frio,
neve,
mendigos,
pedintes,
trânsito,
poluição
etc.)1.
O
que
ela
não
vê,
nem
aceita,
é
que
a
assepsia
na
qual
julga
viver
foi
concebida
à
custa
de
escravidão,
desastres
ambientais,
desigualdade,
privatização
do
debate
público
e
negação
de
direitos.
No
seu
mundo
asséptico,
empregados
domésticos
não
devem
ter
direito
a
cuidar
de
seus
próprios
filhos,
nem
viajar
de
avião,
nem
entrar
nos
seus
shoppings.
É
essa
visão
asséptica
do
mundo
que
entende
que
a
política
sob
a
lógica
dos
interesses
empresariais
é
limpa.
Sujo
é
o
Programa
Bolsa
Família
que
em
vez
de
cesta
básica,
garante
um
mínimo
de
dinheiro
para
que
as
pessoas
possam
escolher
a
comida
que
querem
comer,
ou
o
metrô
no
bairro
de
Higienópolis,
terra
prometida
à
gente
diferenciada,
ou,
ainda,
um
modelo
de
IPTU
que
reconhece
que
Itaim
Paulista
e
Itaim
Bibi
não
são
iguais
perante
a
prefeitura,
assim
como
são
diferentes
perante
o
mercado.
Para
os
que
negam
o
debate
público,
tudo
isso
é
sujo,
tudo
isso
é
coisa
de
quem
precisa
do
Estado:
ele,
por
si
só,
também
uma
coisa
suja
e
de
sujos.
1
Sobre
isso,
ver
Valquíria
Padilha
em
Shopping
Center:
a
catedral
das
mercadorias,
Editora
Boitempo,
2006.
2. 2
O
debate
em
torno
do
IPTU
em
São
Paulo
é
um
bom
exemplo
disso.
Como
Fernando
Haddad
propôs
maior
isenção
a
aposentados
e,
por
várias
razões
que
se
entrecruzam,
o
aumento
da
quantidade
de
imóveis
isentos
e
a
divisão
da
cidade
em
três
zonas
com
diferentes
índices
de
cálculo
para
cada
uma
delas.
Pela
regra
proposta,
a
régua
que
mede
uma
casa
na
periferia
não
será
mais
a
mesma
da
construção
em
bairros
mais
centrais,
mais
valorizados.
Já
que
o
m2
de
área
construída
em
bairros
nobres
é
mais
caro,
será
mais
caro
também
o
imposto
cobrado
para
os
imóveis
dessas
áreas.
A
questão
aqui
não
é
apenas
se
alguns
pagarão
mais
que
outros,
mas
a
maneira
como
é
percebia
a
atuação
dos
governos
e
como
se
estabelecem
diferenciações
hierárquicas
entre
ricos
e
pobres,
entre
os
de
dentro
e
os
de
fora
do
grande
shopping.
Sendo
assim,
quando
falamos
“classe
média”,
não
estamos
nos
referindo
àquela
faixa
de
renda
acima
de
x
reais.
Esse
x
só
serve
para
identificar
a
faixa
de
renda
e,
portanto,
a
capacidade
de
consumo
das
famílias.
O
que
define
a
classe
média
é
sua
posição
em
relação
ao
núcleo
econômico
da
sociedade
ou
em
relação
ao
núcleo
do
poder
político:
a
classe
média
não
detém
o
poder
do
Estado
nem
o
poder
social
da
classe
trabalhadora
organizada.
Tampouco
é
detentora
do
capital
e
dos
meios
sociais
de
produção,
assim
como
não
é
a
força
de
trabalho
que
produz
capital.
Sem
identidade
própria,
a
classe
média
se
fragmenta
e
se
alimenta
de
um
individualismo
competitivo
intenso.
Instável,
alimenta
permanentemente
as
ideias
de
ordem
e
segurança,
povoando
seu
imaginário
com
o
sonho
de
se
tornar
parte
da
classe
dominante,
e
o
pesadelo
de
se
tornar
proletária.
Como
aponta
Chauí,
para
que
o
sonho
se
realize
e
o
pesadelo
não
se
concretize,
é
preciso
ordem
e
segurança.
Isso
torna
a
classe
média
ideologicamente
conservadora
e
reacionária
e
seu
papel
social
e
político
torna-‐se
o
de
“assegurar
a
hegemonia
ideológica
da
classe
dominante”,
fazendo
com
que
essa
ideologia,
por
intermédio
da
escola,
da
religião,
dos
meios
de
comunicação,
se
naturalize
e
se
espalhe
pelo
todo
da
sociedade.
É
sob
esta
perspectiva
que
se
pode
dizer
que
a
classe
média
encara
o
ambiente
público
como
um
shopping
center,
um
lugar
de
ordem
e
segurança,
defendido
por
uma
polícia
privada
e
dotado
de
regras
próprias
daqueles
que
colocam
o
consumo
e
o
indivíduo
no
centro
das
preocupações.
Há
rachaduras
profundas
na
sociedade
brasileira
que
a
classe
média
prefere
ignorar,
esperando
que
o
mundo
tenha
a
mesma
cara
asséptica
que
eles
preferem
ver
nos
centros
de
compras
das
grandes
cidades.
Como
vive
entre
o
pesadelo
e
o
sonho,
há
uma
contradição
permanente
na
classe
média.
Quando
debate
o
metrô
em
Higienópolis,
não
aceita
que
os
pobres
frequentadores
do
Estádio
do
Pacaembu
utilizem
suas
ruas:
quer
ser
diferenciada.
Mas,
quando
debate
o
IPTU,
quer
ser
igual,
não
aceitando
que
a
alíquota
de
Guaianases
seja
diferente
da
sua.
Como,
do
ponto
de
vista
simbólico,
a
classe
média
precisa
substituir,
ao
mesmo
tempo,
sua
falta
de
poder
econômico
e
de
poder
político,
ela
se
dedica
à
busca
dos
signos
de
prestígio,
como
diplomas
e
consumo
de
serviços
e
objetos
indicadores
de
autoridade,
abundância
e
ascensão
social.
Assim,
o
comportamento
e
o
discurso
da
classe
média
brasileira
são
obstáculos
que
se
erguem
contra
a
democracia
e
alimentam
a
hegemonia
do
autoritarismo
social
que
conhecemos.
3. 3
Essa
mistura
de
medo
e
ódio,
silêncio
e
torpor,
comporta
seus
preconceitos
e
alimenta
suas
opiniões
sobre
a
política,
os
políticos,
o
Estado
e
o
dissenso
característico
do
dinamismo
da
vida
social.
Quando
os
meios
de
comunicação
tradicionais
proclamam
insistentemente
que
somos
democráticos,
‘cordiais’,
fraternos
e
docemente
miscigenados,
estão
apenas
trabalhando
para
pasteurizar
as
tensões
da
luta
de
classes
e
carimbar
“vândalos”
na
testa
dos
divergentes:
maus
são
os
outros
(!),
aqueles
que
não
frequentam
as
festas
de
peão
do
interior
paulista,
os
sambas
requintados
da
zona
sul
carioca
e
nem
aceitam
os
ideais
de
ordem,
segurança
e
individualismo
das
democracias
endinheiradas
pelas
compras
de
Natal.
Glauber
Piva