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CURSO TÉCNICO
EM AGROECOLOGIA
Fundamentos do Trabalho
Elmano de Freitas da Costa
Governador
Jade Afonso Romero
Vice-Governadora
Eliana Nunes Estrela
Secretária de Educação
Emanuelle Grace Kelly Santos de Oliveira
Secretária Executiva de Cooperação com os Municípios
Helder Nogueira Andrade
Secretário Executivo de Equidade, Direitos Humanos e Educação Complementar e
Protagonismo Estudantil
Maria Jucineide da Costa Fernandes
Secretária Executiva de ensino Médio e Profissional
Maria Oderlânia Torquato Leite
Secretária Executiva de Gestão da Rede Escolar
Stella Cavalcante
Secretária Executiva de Planejamento e gestão Interna da Educação
Nohemy Rezende Ibanez
Coordenadora da Educação Escolar Indígena, Quilombola, e do Campo
Silvana Teófilo Machado
Orientadora da Célula do Campo, Indígena e Educação Contextualizada
Felipe Pinheiro
Lidiane Lima
Patrícia Neto
Teresa Cristina Franco Vieira
Equipe de Educação do Campo e Educação Contextualizada
Ficha Técnica
Comissão Organizadora
José Romário Rodrigues Bastos
Lidiane Lima
Nohemy Rezende Ibanez
Patrícia Neto
Silvana Teófilo Machado
Teresa Cristina Franco Vieira
Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Organização de Conteúdo/Elaboração:
Justino de Sousa Junior
Revisão
Ana Lídia Gonçalves Medeiros
APRESENTAÇÃO
A Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc-CE), por meio das
Coordenadorias da Diversidade e Inclusão Educacional (Codin) e Educação Profissional
(Coedp), visando assegurar a formação e o aperfeiçoamento técnico de jovens egressos do
ensino médio, residentes na zona rural e em áreas de assentamento, acolheu a demanda por
Cursos Técnicos profissionalizantes, no formato subsequente, oriundo de solicitações tanto
dos gestores das escolas do campo quanto do Setor de Educação do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST). São dois Cursos Técnicos a serem ofertados:
Administração, com ênfase nas Organizações Sociais, e Agroecologia. Os Cursos serão
implementados nas escolas do campo em Áreas de Assentamento de Reforma Agrária: EEM
João dos Santos Oliveira, Assentamento 25 de Maio, no município de Madalena (Crede 12); e
EEM Francisco Araújo Barros, Assentamento Lagoa do Mineiro, no município de Itarema
(Crede 3).
Como material de apoio aos estudantes, os cursos contam com 37 apostilas, das quais
32 foram elaboradas pelo Setor de Educação do MST e por profissionais especialistas
colaboradores do Movimento, revisadas por profissionais contratados pela Seduc; 3 são
materiais das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs); e as outras 2 são
guia/livro de outras instituições.
Este material é, portanto, fruto do diálogo permanente e qualificado, desde a
concepção à sua estruturação, entre a Codin e Coedp/Seduc, os gestores das escolas do campo
e o Setor de Educação do MST. Os Cursos buscam fortalecer os sistemas produtivos
agroecológicos no contexto do Semiárido e do bioma caatinga, profissionalizando
tecnicamente a juventude camponesa, destacando as potencialidades transformadoras do
associativismo e cooperativismo. Nesse sentido, os objetos do conhecimento abordados nas
apostilas, a metodologia da alternância dos tempos pedagógicos adotada e as condições de
suporte ao seu funcionamento, bem como os profissionais docentes técnicos decorrem de
diferentes articulações e reuniões de trabalho.
A intenção principal desta iniciativa é que se inaugure uma política de
profissionalização dos jovens do campo diferenciada, fundamentada na escuta das reais
demandas, necessidades e interesses dessas populações.
Coordenadoria da Diversidade e Inclusão Educacional
SUMÁRIO
1 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES 5
2 TRABALHO E PRÁXIS 10
3 O TRABALHO COMO PRÁXIS FUNDANTE 21
4 TRABALHO, ANTAGONISMOS SOCIAIS E FORMAÇÃO HUMANA 32
5 O TRABALHO E A CRISE REGRESSIVO - DESTRUTIVA DO CAPITAL 48
REFERÊNCIAS 66
SITES VISITADOS 69
5
1 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES
Trabalho é uma categoria filosófica e científica, compreendida e tratada de maneiras
diversas conforme a orientação teórico-metodológica adotada. Diferentes pensadores em
diferentes épocas, a partir de diferentes perspectivas e dentro de diferentes contextos
históricos, abordaram o tema do trabalho. O trabalho é, portanto, uma categoria polissêmica
(FRIGOTTO, 2009), mas essa polissemia apresenta, antes de tudo, como marca fundamental,
uma diferença profunda entre as abordagens que emerge, precisamente, da perspectiva
sócio-histórica que as orienta, afinal, uma coisa é falar do trabalho sendo um/a trabalhador/a,
isto é, na condição de alguém que vive do seu próprio trabalho, outra coisa muito distinta é
falar do trabalho na condição oposta, isto é, como alguém que vive do trabalho alheio.
Apontar essa diferença fundamental nas abordagens não significa simplificar a questão
ou reduzi-la a uma simplória oposição maniqueísta. É evidente que sujeitos que só podem
viver da venda de sua própria força de trabalho, muitas vezes, são levados a pensar o trabalho
sob uma perspectiva histórico-social contrária aos próprios interesses históricos da classe a
que pertencem, a classe social dos trabalhadores, assim como o inverso também pode ocorrer.
De todo modo, qualquer apreciação social do trabalho sempre estará relacionada aos
horizontes histórico-sociais dos sujeitos em face não só da atividade trabalho, mas também
em face da questão da propriedade sobre os objetos do trabalho, os meios de trabalho, os
saberes do trabalho, os produtos materiais do trabalho e, sobretudo, em face das relações de
poder que se criam em torno do trabalho.
Se remontarmos à sociedade grega clássica, encontramos ali ilustres pensadores que,
ao tratar do nosso tema em pauta, expressaram exatamente a situação do trabalho naquela
sociedade. A divisão social do trabalho na Grécia Antiga1
separava nitidamente os indivíduos
1
Sabemos dos riscos das generalizações. Sabemos que falar de Grécia Antiga clássica significa falar de um
prazo de muitos séculos e de povos e cidades-Estados diversos; sabemos enfim, que as classes trabalhadoras
naquela região e época eram constituídas de escravos, às vezes de servos, de pequenos produtores, de artesãos,
isto é, que a questão era mais complexa do que se costuma apresentar. Conforme observa Saint Croix (1988:
16-7), alertando sobre os riscos da generalização simplória: “la sociedad griega (y la romana) [era] una
«economía esclavista»: esta expresión no se refiere tanto al modo en que se realizaba el grueso de la producción
(pues casi siempre y en casi todas partes los que participaban en mayor medida en la producción durante la
Antigüedad fueron los campesinos y artesanos libres), cuanto al hecho de que las clases propietarias obtenían sus
ganancias, sobre todo, gracias a la explotación del trabajo no libre”. A despeito disso, aquela generalização é
razoável e válida, pois apanha o essencial da questão. A respeito da tentativa de compreender outros aspectos da
realidade grega do trabalho, encontramos as análises de Bonilla (1975) segundo as quais teria havido na tradição
grega um período em que o trabalho fora concebido como atividade digna. Conforme aponta o autor, na
6
que eram obrigados a se dedicar ao trabalho, como atividade manual, física, exaustiva, como
indivíduos subjugados, posto que trabalhavam sob a condição de escravos; e os indivíduos
que se dedicavam às atividades intelectuais, e/ou lúdicas, participavam da vida política e
gozavam de tempo para seu livre desenvolvimento.
Contudo, a despeito da necessidade de se observar a complexidade da estrutura
produtiva e de classes no mundo antigo, Walvin (2014: 15) aponta que
terá sido o trabalho escravo que libertou os gregos [parte deles,
evidentemente] de desempenharem as suas tarefas quotidianas e que
lhes permitiu assumirem vários deveres cívicos. Por isso, em alguns
aspectos-chave, foi a escravatura que, ironicamente, abriu caminho
para a democracia grega.
As reflexões sobre o trabalho que nos legaram os grandes pensadores gregos, portanto,
são reflexões desenvolvidas por indivíduos que não eram obrigados a trabalhar, muito ao
contrário, viviam do trabalho feito por terceiros e que terminavam apresentando uma visão
bastante negativa do trabalho: atividade indigna, realizada por indivíduos igualmente sem
dignidade, sem cidadania2
.
Como a divisão social do trabalho desde as sociedades antigas até os dias de hoje no
fundamental não se modifica, da mesma forma, as visões sobre o trabalho que vão sendo
registradas ao longo da história não deixam de ser, no essencial, as visões de indivíduos que
viviam sem precisar trabalhar. É somente no âmbito da contradição capital versus trabalho
que aparecerá o registro da teorização sobre o trabalho sob a perspectiva dos/das
2
Para se ter uma ideia disso, podemos lembrar como “Aristóteles codificara o esnobismo da antigüidade clássica
ao distinguir entre certas artes que eram compatíveis com uma ‘educação liberal’ (as chamadas Artes Liberais,
como Gramática, Dialética, Retórica e Geometria) e atividades que envolviam o trabalho com as mãos, que eram
profissões ‘manuais’ e, portanto, ‘mesquinhas’, abaixo da dignidade de um cavalheiro” (GOMBRICH, 1999:
296).
mitologia grega deuses e heróis trabalham: Hefesto (ou Vulcano, na mitologia romana), trabalhava com metais,
era o deus dos ferreiros, dos artesãos; Prometeu é aquele que faz o fogo e o doa aos humanos; Hermes, Hércules
e Sísifo, Demeter e Atenas todos estão relacionados a certos ofícios. De modo que, para o autor mencionado “es
más tarde, quando la generalización de la esclavitud crea el descredito del trabajo” (BONILLA, 1975: 86). Sem
pretender desabonar o ponto de vista do autor, podemos, contudo, observar, dialogando especificamente com a
argumentação desenvolvida, que apenas o fato de se associar o trabalho a algumas figuras divinizadas da
mitologia grega não parece suficiente para o tomarmos como atividade positiva. Como se sabe, os deuses gregos
eram entidades dotadas das mesmas características comportamentais humanas, isto é, amavam, odiavam,
protegiam, castigavam, podiam ser egoístas, mesquinhas, vingativas, cruéis, logo, podiam até mesmo trabalhar.
Dessa forma, não é apenas porque seja realizado por alguma figura divinizada que o trabalho adquirirá
necessariamente significado positivo, isto é, ele ainda poderá estar associado à punição, castigo como é o caso de
Hércules e Sísifo e de Hermes, cuja figura está ligada aos mensageiros e viajantes, mas também a comerciantes
espertalhões, trambiqueiros e ladrões; é o mesmo o caso de Prometeu, que não fez o fogo, mas o roubou e,
inclusive fora por isso punido; ademais, observa-se também que normalmente o trabalho, embora de fato seja
uma realidade entre figuras olímpicas, é atividade feita por deuses e heróis mas a serviço de outras divindades
maiores, portanto, como atividade heterônoma e, como já apontado, muitas vezes sob a forma de penitência.
7
trabalhadores/ras, isto é, somente a partir dessa marca histórica que aparecerá a versão dos
afogados3
sob a forma de uma teorização sistemática.
Cabe observar que a afirmação acima não implica nem autoriza a negação da
existência ao longo de todo esse período histórico apontado de lutas, revoltas realizadas pelas
classes trabalhadoras as quais, evidentemente, expressavam concepções próprias sobre o
trabalho. Acontece, porém, que essas concepções não ficaram sistematicamente registradas,
foram sufocadas assim como foram sufocadas aquelas lutas4
.
É seguramente nos séculos XVIII e XIX, principalmente neste último, que emergiram
as visões sobre o trabalho desenvolvidas no horizonte sócio-histórico dos/das próprios/as
trabalhadores/ras. Favorecida pelo próprio desenvolvimento contraditório da sociedade
burguesa, que institui a sociedade baseada no antagonismo econômico entre o capital e o
trabalho e o correspondente antagonismo sócio-político-cultural entre as classes capitalistas e
as classes proletárias, desenvolver-se-á a luta de classes moderna e com ela surgirão as
expressões teóricas dos/das trabalhadores/ras.
Dessa maneira, podemos dizer que é nesse novo cenário histórico que tem lugar a
batalha das ideias (como disputa teórica política) em torno da categoria trabalho. É neste
cenário histórico que as classes trabalhadoras adquirem voz (expressão teórica) e passam a
assumir papel relevante no campo de batalha ideológico a ponto de suas expressões
conseguirem penetrar – ainda que sempre minoritariamente – nos diversos ambientes
intelectuais desde escolas, academias, meios de comunicação, passando pelo universo
bibliográfico, atingindo museus e espaços da chamada alta cultura.
4
Um exemplo disso são as muitas tensões, fugas, revoltas, rebeliões, de escravos que tiveram lugar no mundo
Antigo. Uma das mais vultosas talvez seja a conhecida Revolta comandada por Spartaco cujo exército chegou a
reunir dez mil homens (AA.VV, 1978). Mas, a luta de classes é coisa mais remota: “en Atenas, donde la
democracia alcanzó su mayor vigor, surgió una dura lucha de clases en el plano político en dos ocasiones, una en
411 y otra en 404 [A.C.]” (SAINT CROIX, 1988: 18), assim, também, “entre 508-507 y la destrucción de la
democracia a manos de los macedonios en 322 se produjeron sólo dos episodios en los que la lucha de clases de
Atenas irrumpiera en forma de violenta stasis, o guerra civil (no me queda sino mencionar, de pasada, las dos
conspiraciones oligárquicas abortadas de 480-479 y de 458-457, y el asesinato del líder democrático radical
Efialtes en 462-461 [A.C.])(Idem, ibidem, p. 342).
3
“Existe uma teoria segundo a qual o prestígio do boto entre pescadores, surfistas e outros seres marinhos se
deve a uma deformação estatística. Tudo que sabemos do bom caráter do boto vem do relato de quase afogados
que ele salvou, empurrando-os para a praia. Mas o boto empurra tanto para a praia quanto para o alto-mar.
Estatisticamente, talvez tenha empurrado mais gente para a morte do que para a praia. Só que a versão dos
afogados ninguém fica sabendo” (VERÍSSIMO, L. F. A versão dos afogados: novas comédias da vida pública:
347 crônicas escolhidas. Porto Alegre, L&PM, pp. 75).
8
Nesse período, grandes figuras do mundo das artes5
, da ciência e da filosofia passaram
a expressar com força uma visão de sociedade que revelava a perspectiva histórico-social
dos/das trabalhadores/ras inaugurando uma nova etapa do debate social, uma etapa em que, a
partir de então, as explicações sobre o mundo, sobre a vida não seriam mais um monólogo das
classes dominantes, que viviam e vivem do trabalho alheio e justificam o mundo e a vida a
partir desse fundamento ontológico material.
Depois dessa apresentação inicial, que apanha o elemento essencial, contraditório das
expressões teóricas sobre o trabalho, cuja pretensão, como já assinalamos, não é de
simplificar a questão, mas de consolidar uma demarcação fundamental, muitas vezes
negligenciada, advertimos que seguiremos um caminho de análise que pretende alcançar a
realidade histórica do trabalho livre de preconceitos de classe e buscando criticamente
compreender o sentido do trabalho para a constituição e desenvolvimento do humano; o
surgimento das contradições classistas em torno do trabalho; a realidade do trabalho como
negação de humanidade; a realidade do trabalho como fonte de exploração e opressão de
classes, de povos, de culturas.
Nessa altura de nossa reflexão, isto é, antes de avançarmos em questões mais
profundas da problemática do trabalho, deveremos apresentar algumas notas que nos
permitam estabelecer um acordo conceitual básico em torno do que seja trabalho. São
conhecidas as grandes polêmicas, as profundas controvérsias que envolvem a categoria
trabalho: o que é e o que não é trabalho; trabalho produtivo e trabalho improdutivo; a
centralidade e a não centralidade do trabalho; o fim do trabalho, entre outras.
Como iniciação da abordagem nos limitamos por ora a indicar que o trabalho é uma
atividade humana, teleológica, que se caracteriza inicialmente como prática material de
5
Se nos concentrarmos no campo das artes visuais, nos situaremos num território que, durante muito tempo,
nada além do horizonte das classes dominantes teve vez, por isso, raramente apareceram retratados o trabalho e
os trabalhadores. Podemos mencionar como duas dessas exceções raríssimas as tentativas de retratação pictórica
da gente trabalhadora nas obras de Jacob Jordaens, das quais destacamos “O trabalho” (1620) e de Caravaggio.
O pintor italiano, mediante a encomenda de representar São Mateus para figurar no altar de uma igreja de Roma,
resolveu fazê-lo como supunha ter sido a realidade daquela figura histórica, então pintou-o como um velho e
pobre trabalhador, calvo e descalço, com os pés sujos de terra e poeira, agarrando desajeitadamente o enorme
volume e franzindo ansiosamente o cenho, sob a tensão da inabitual tarefa de escrever, sendo um homem da vida
prática. Obviamente essa obra foi censurada e recusada e teve que ser refeita. Foi realmente após a Revolução de
1789, já no século XIX, portanto, no contexto das profundas transformações ocorridas naquele período,
transformações que encobriam todas as esferas da vida social, dentro das quais se encontravam as mudanças na
vida econômica, social e política dos trabalhadores; foi somente naquele cenário sócio cultural transformado que
a realidade do trabalho e dos trabalhadores e trabalhadoras passou a ocupar as telas e tomar assento nos salões de
arte. Nesse período aparecerão representados/das trabalhadores/as nas telas de Goya, Millet, Gougain, Van Gogh,
entre outros.
9
transformação da natureza com a finalidade de produzir coisas úteis e capazes de atender às
necessidades humanas vitais de existência. De início é assim que definimos o trabalho, isto é,
tentando alcançar os elementos essenciais que fazem dessa a atividade fundante do ser social.
Sem entrar ainda no enfrentamento de dificuldades contemporâneas para atualizar uma
rigorosa definição de trabalho, e essas dificuldades não são de pequeno vulto, assumimos a
perspectiva segundo a qual trabalho é a atividade que permite aos que nada possuem senão
sua força de trabalho adquirir os meios de viver ou sobreviver na sociedade contemporânea.
Se em muitas épocas passadas o trabalho se definia como atividade produtora de valores de
uso, de coisas úteis para a produção da existência humana através da transformação da
natureza, nas sociedades contemporâneas muitos setores das classes trabalhadoras – aquelas
classes que não podem sobreviver senão através da venda de sua própria força de trabalho –
obtém através do trabalho – e só através deste podem fazê-lo – seus meios de vida mas sem
mais estabelecer relação direta com a natureza como objeto da transformação. Nesse sentido,
a ausência da natureza como objeto direto da práxis produtiva não apaga o sentido laboral da
atividade.
Esse alargamento da possibilidade de definição do trabalho, contudo, não pode
alimentar qualquer tentativa de apagar os antagonismos que envolvem a produção da
existência: nem toda atividade é trabalho e nem todos os indivíduos são trabalhadores.
Trabalho é precisamente a atividade que se constitui como única condição de produção e
sustentação material da sociedade humana; trabalhador é aquele indivíduo que tem na sua
própria atividade remunerada sua única condição de sobrevivência.
O trabalho é, assim, uma práxis humana que tem qualidades e características próprias,
únicas que fazem dele um tipo de práxis6
especial. O trabalho se distingue de todas as demais
práxis, ao mesmo tempo em que é a protoforma da atividade humana (LUKÁCS, 2013) por
ser aquela que pratica e materialmente sustenta a existência material humana. O trabalho é a
primeira ação humana prática em resposta às necessidades da existência. O trabalho foi a
forma através da qual nossos ancestrais remotos adquiriram, conquistaram pouco a pouco o
domínio sobre as condições materiais do viver e puderam efetivamente dar o salto ontológico
na sua transformação em seres falantes e pensantes. Do ponto de vista da ontologia
6
Entendemos que tanto a forma de origem grega “práxis” quanto a forma portuguesa “prática” podem revestir o
conceito e servir de expressão do dado objetivo que é a atividade humana transformadora de realidades
materiais. Para maiores aprofundamentos, sugerimos Barata-Moura (1986(a), 1986(b), 1994, entre outros), Sousa
Jr. (2021), além de Kosik (1995), Konder (1992) e Vázquez (2007).
10
materialista dialética, o trabalho é a atividade vital, fundante exatamente porque é ele que
permite a abertura do processo de transição do ser natural ao ser social que não se consuma
somente pelo trabalho, mas, de qualquer forma, se consuma praticamente, noutras palavras, se
consuma como realização da práxis. Lembremos mais uma vez: o trabalho é uma práxis, mas
a práxis não se resume ao trabalho; por sua vez, o homem/mulher é um ser essencialmente
prático, isto é, um ser da práxis.
2 TRABALHO E PRÁXIS
Uma abordagem sobre o trabalho como este que se desenvolve não pode prescindir de
um exame da relação entre as categorias trabalho e práxis. Para começar esse exame, devemos
atentar para as observações de Leandro Konder que vê na elisão da categoria práxis um grave
problema da tradição marxista. De fato, a práxis é uma categoria filosófica importante que
não pode ser subsumida no trabalho. Para o autor, um
mal-entendido que ocasionou graves prejuízos à compreensão do conceito de
práxis elaborado por Marx se encontra na redução da práxis ao trabalho”
(1992: 125). Konder atribuía enorme importância à categoria práxis a ponto
de afirmar que “do papel que se conceder à práxis depende o próprio destino
do marxismo como teoria (novo teoricismo ou arma da revolução) (idem,
ibidem, p. 123).
Outra voz que harmoniza com a de Konder e que trazemos agora à cena é a de Kosik.
Depois de, igualmente a Konder, reconhecer a enorme importância daquela categoria, observa
o autor tcheco que, em torno dela e da sua relação com o trabalho, reside um grave problema
teórico que consiste numa “obscuridade conceitual das definições da práxis e do trabalho: o
trabalho é definido como práxis, e a práxis nos seus elementos característicos, é reduzida a
trabalho” (1995: 222).
Acreditamos que a tradição marxista – pelo menos parte não desprezível dela - de fato
tem uma grande dívida para com a práxis, o que é um paradoxo, dado que é o marxismo a
corrente que mais destaca e ressalta a dimensão da práxis. Essa dívida consiste precisamente
na não compreensão da práxis como categoria filosófica.
O paradoxo apontado acima consiste precisamente numa atribuição de valor simbólico
extremamente elevado à palavra práxis ao mesmo tempo em que dela é destituído seu estatuto
de categoria filosófica. Alguém já disse que as palavras são como cravos vermelhos7
. Com
7
Textualmente, Eduardo Prado diz que “os textos que escrevemos não poderão deixar de incluir estereótipos:
palavras que são resenhas, emblemas, de reconhecimento, cravos vermelhos”. (COELHO, Eduardo Prado.
11
essa expressão, o autor, então, enfatizava o caráter essencialmente ideológico da linguagem
fazendo menção ao magnífico símbolo da Revolução Portuguesa de 1974. Aproveitamos essa
menção para dizer que a práxis é uma espécie de cravo vermelho na medida em que é uma
palavra carregada de simbolismo, mas não é, na maioria das vezes, considerada devidamente
como uma categoria filosófica.
Opitz não só defende o ponto de vista de que a práxis é uma categoria, como insiste na
compreensão de que ela ocupa posição decisiva no edifício teórico marx engelsiano. Para ele,
essa categoria é essencial para o pensamento marxiano, pois representa a própria definição do
caráter da ontologia materialista de Marx. Segundo Opitz (1980: 86), Marx
via nela [na práxis] a característica fundamental da vida humana, o fundamento da
existência humana, o processo metabólico do homem com a Natureza, no qual ao
mesmo tempo o próprio homem se transforma; ele definiu-a como a essência do
homem, como o processo material da autocriação do homem efetuado com
consciência; ele descobria a significação da atividade prática para a vida humana e
para o desenvolvimento histórico da humanidade, da qual, primeira e
consequentemente, resulta que o ponto de vista da vida e da práxis também tem de
ser o primeiro e fundamental ponto de vista da teoria do conhecimento.
A importância da práxis como categoria ressalta quando se constata que a própria
perspectiva materialista de Marx vai se construir simultaneamente com a - ou até mesmo em
função da - definição do lugar da categoria práxis na sua ontologia. Ainda de acordo com
Opitz (1980: 95),
a viragem de Marx para o materialismo esteve ligada simultaneamente a uma
mudança fundamental da sua concepção da práxis”. Mais uma vez contribuindo para
o reforço do caráter analítico categorial da práxis e de sua importância para o
materialismo dialético, Opitz (1980: 103) afirma que “Marx derivou todo o sistema
das suas produções conceituais de uma análise da atividade vital, prática dos
homens.
Na mesma direção, isto é, indicando o destacado lugar da práxis dentro da perspectiva
marxiana, Barata-Moura (1994: 88) conclui que
a meu ver, decerto polemicamente - um dos contributos maiores de Marx para o
patrimônio filosófico da humanidade situa-se precisamente neste quadro duplamente
articulado de um reconhecimento do papel central da prática na mediação história
do ser pelas coletividades humanas, e de uma sua compreensão essencial como
atividade material de transformação. (Grifo do autor).
Se seguirmos com o filósofo português, encontraremos a partir dele a confirmação de
que também Lenin partilha da mesma ideia, isto é, da perspectiva que põe a categoria práxis
Aplicar Barthes. Prefácio. In: BARTHES, R. O Prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1973, p. 9-30). Localizada a
citação a posteriori, resolvemos manter a redação no corpo do texto inalterada.
12
no centro dos debates sobre a formação humana e sobre a emancipação humana que já tinha
sido colocada pelos fundadores do materialismo dialético:
é de ontologia também que Lénin se ocupa quando (...) se debruça sobre o caráter
constitutivo da prática (...) não só pelo papel que a prática é chamada a
desempenhar no processo de veri-ficação da objetividade (do teor objetivo) dos
nossos conhecimentos (...) mas também pela dimensão (efetivamente real) de
modelação, de feitura e de transformação, do ser que ela, na concreção histórica da
sua inerência à materialidade se reveste (BARATA-MOURA, 2012: 124-5) (grifos
do autor).
Voltando a Kosik, encontramos nele a ideia de que a práxis é uma categoria importante
porque fornece a base para a própria definição do homem/mulher, pois representa “o modo
específico de ser do homem, a práxis com ele se articula de modo essencial, em todas as suas
manifestações, e não determina apenas alguns dos seus aspectos ou características. A práxis se
articula com todo o homem e o determina na sua totalidade” (KOSIK, 1995: 222-223).
A compreensão de que a práxis se constitui como uma categoria fundamental para o
marxismo também se encontra em Vázquez. Para o autor hispano mexicano,
nenhum marxista que se preze enquanto tal, isto é, que não se proponha
deliberadamente a extirpar sua medula revolucionária pode elidir esta categoria
central. Nenhum dos grandes teóricos marxistas do passado ou do presente põe em
dúvida a importância da práxis, embora nem sempre se consiga destacar
devidamente seu lugar privilegiado dentro do marxismo, nem enriquecer o conteúdo
desse conceito por não se atender às formas novas e específicas que, em seu múltiplo
e incessante desenvolvimento, a prática real mostra (VÁZQUEZ, 2007: 54).
Para o autor, a práxis é a grande categoria que expressa a condição do homem/mulher
como ser de atividade. A práxis é a categoria capaz de encobrir ou abrigar na sua amplitude
conceitual as diversas formas sob as quais o humano se faz humano.
Se o homem existe, enquanto tal, como ser prático, isto é, afirmando-se com sua
atividade prática transformadora diante da natureza exterior e diante da sua própria
natureza, a práxis revolucionária e a práxis produtiva constituem duas dimensões
essenciais de seu ser prático. Mas, por sua vez, tanto uma como outra atividade,
junto com as restantes formas específicas de práxis, não são mais do que formas
concretas, particulares de uma práxis total humana, graças à qual o homem como ser
social e consciente humaniza os objetos e se humaniza a si mesmo (VÁZQUEZ,
2007: 232).
Se partirmos dessa compreensão, podemos avançar na consideração da relação entre
trabalho e práxis e assim encontramos no autor a definição do trabalho como modalidade da
práxis, ou seja, o trabalho é
práxis produtiva, práxis fundamental porque nela o homem não só produz um
mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetos que satisfazem
13
necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se
plasmam neles fins ou projetos humanos, como também no sentido de que na práxis
produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo (Idem, ibidem, p.
228).
Como se pode observar pelo conjunto das colocações expostas, já bastante
representativo, os diferentes autores reprovariam um procedimento razoavelmente comum em
certos círculos do pensamento crítico que consiste em subsumir a práxis no trabalho ou em
tomá-la simplesmente como uma expressão charmosa do léxico revolucionário, que serve de
ornamentação e embelezamento ao texto crítico, que infla a palavra práxis de valor simbólico,
mas que, em contrapartida, traz a visão que consiste no esvaziamento de seu sentido filosófico
categorial mais profundo. Os autores mencionados ressaltam a importância da práxis,
defendem que ela não pode se reduzir a uma mera expressão que pode ou não ocorrer,
dependendo da conveniência discursiva ou estilística do texto; eles destacam a práxis como
uma categoria que cumpre papel analítico específico independentemente da categoria
trabalho, ainda que ontologicamente articulada a esta.
Depois da exposição acima, pode ser que alguém se encontre a pensar: afinal, o
trabalho é uma práxis, mas práxis não é trabalho? Parece confuso! De fato, nas elaborações
dos autores citados é mesmo assim que se coloca a questão: a práxis ora é uma categoria
diferente do trabalho, ora é categoria que com ele se identifica, ou é a categoria que o
comporta. O trabalho é uma modalidade de práxis, é uma forma de ser da práxis, é a práxis
produtiva. A práxis, por sua vez, define-se como atividade prática, material, atividade humana
criadora, transformadora, teleologicamente orientada. Nesse sentido, o trabalho é uma práxis,
é a práxis que se distingue de todas as outras formas de práxis, porque é a primeira resposta
(prática) dos homens/mulheres às demandas materiais da existência; porque promove a
produção material da vida; e porque é a condição de possibilidade de todas as demais formas
de práxis; além disso, o trabalho se distingue das demais modalidades de práxis, porque sua
posição teleológica visa a modificar causalidades dadas ao passo que as demais formas de
práxis modificam causalidades postas pela intervenção humana, social.
Essa dupla forma de referir a práxis, comum a Lukács, Vázquez, Konder e Kosik,
consiste na dupla posição em que se tem de um lado a categoria práxis, identificada com o
trabalho, uma vez que este se define, ele próprio, como tipo de práxis, como práxis produtiva;
e, de outro, tem-se a práxis distinguindo-se do trabalho na medida em que se associa ao
conjunto de atividades as quais, em bloco, se diferenciam qualitativamente do trabalho, não só
14
pelos objetos que transformam, mas, sobretudo, pelo grau de prioridade ontológica que
possuem no encadeamento da realidade humano social.
Em linhas gerais, quer dizer, deixando de lado outras questões problemáticas que
podem surgir numa comparação mais profunda entre os autores, acreditamos que todos eles
convergem para a compreensão comum da práxis como atividade humana fundamental na
medida em que expressa a própria condição humana. Para todos eles, o trabalho é atividade
humana material, transformadora e define-se como práxis, mas como uma práxis diferente de
todas as outras formas possíveis, porque é a única que se revela como a condição material,
última, efetiva da existência humana. Nesse sentido, o trabalho é uma práxis, mas é a práxis
fundante de toda uma nova ordem de tipos de práxis diferentes do trabalho. Esta outra ordem
de atividades humanas materiais, transformadoras, ao mesmo tempo em que é indicadora da
elevação do homem/mulher em relação à sua condição natural original; à medida que é
expressão da humanização do homem/mulher e do avanço do processo de afastamento das
barreiras naturais; por outro lado, não deixa de ser ontologicamente secundária em relação ao
trabalho. Esta prioridade ontológica do trabalho é que põe objetivamente a distinção
qualitativa entre o trabalho e as demais modalidades de práxis e é o que, consequentemente,
justifica a compreensão teórica dessa distinção entre trabalho e demais modalidades da práxis.
A devida consideração das especificidades da práxis produtiva – o trabalho - e da
práxis interativa é da maior importância para toda reflexão que pense o humano como o ser
que se faz – aprendendo a ser – a partir de sua práxis. A consideração precisa das diferentes
formas através das quais o homem/mulher transforma as realidades objetivas no seu processo
de vida é o caminho para a correta compreensão das transformações práticas que são a
condição do viver e são, ao mesmo tempo, o exercício por meio do qual o ser aprende a ser
humano. O humano é o resultado dos diferentes processos práticos de transformação de
realidades naturais (práxis produtiva – trabalho) e sociais (práxis interativa).
Por isso a práxis é uma categoria tão importante, porque o humano é o ser da práxis,
ser que não vive sem transformar seja natureza, seja sociedade e só pode ser – se tornar –
humano nesse processo de transformações. O trabalho, nesse sentido, é a práxis
ontologicamente prioritária, pois representa a transformação da natureza com a finalidade de
produzir os meios materiais para a satisfação das necessidades imediatas da existência
material. Mas o desenvolvimento humano, que se abre com as transformações promovidas
15
pelo trabalho não se encerra aí, muito ao contrário, o homem/mulher é mais humano quanto
mais ele diminui relativamente sua dependência das dimensões orgânicas, naturais.
A condição humana propriamente dita, isto é, o estágio de desenvolvimento em que o
humano se estabelece e se consolida é, ao mesmo tempo, a etapa em que as determinações
orgânicas, naturais da vida vão sendo relativamente reduzidas a graus mínimos; ou quando,
estando esse reducionismo das determinações orgânicas limitado, passam a adquirir essas
mesmas determinações, sentidos e significados que transcendem totalmente à mera condição
orgânica8
. A condição humana mais desenvolvida é exatamente aquela em que o
homem/mulher se eleva e se afasta das determinações naturais, é aquele estágio em que o
8
Isso não significa que o dado orgânico diminua até desaparecer, significa que o dado natural vai sendo cada vez
mais significado e ressignificado socialmente e que ele tende a ser, progressivamente, menos determinante dos
processos da vida humana social. Nesse caso, podemos refletir um pouquinho sobre a morte, que consiste num
fato inelutável da vida. Todo organismo tem prazo de vida, que não se sabe exatamente qual vem a ser, pois,
diferentemente de algumas crendices populares, a hora da morte de nenhum ser vivo não está demarcada
previamente. Pois bem, embora a morte, em última instância, escape ao controle humano, são fartas as
demonstrações do enorme aumento da capacidade de melhorar a vida e de ampliar seu prazo de duração. Muito
embora, o oposto também seja verdadeiro, isto é, o aumento da capacidade humana de destruir vida tanto
humana como natural. Dessa forma, podemos confirmar que o citado fenômeno, cuja razão de ser pertence ao
mundo dos organismos vivos, já adquiriu elementos sociais históricos que ultrapassam o dado meramente
orgânico. Mesmo quando os elementos transcendentais entram em cena (noções de vida após a morte, de
tribunais divinos que julgam o bem e o mal e premiam ou punem os mortos e definem seus destinos posteriores)
isso não é mais que uma demonstração da capacidade humana de encobrir com suas criações o fenômeno natural.
Então, embora a morte seja um fenômeno que atingirá em algum momento a todos os viventes, os fatores socio
históricos intervém de modo significativo nesse processo de modo que não se pode de maneira alguma afirmar
que a morte se abaterá sobre todos independentemente de qualquer outro fator. Vejamos a título de exemplo o
caso de uma sociedade como a brasileira atingida pela epidemia de um vírus (Covid-19), que é um ser da
natureza com capacidade de provocar adoecimento e morte dos indivíduos humanos. Nesse caso é evidente a
discrepância entre as classes sociais no sentido de evidenciar diferentes modos de exposição à contaminação,
assim como diferentes possibilidades de obter a assistência mais adequada e mais eficiente. Então, a morte em
função de um elemento natural, um vírus, acaba “ressignificada” ou, melhor dizendo, determinada em grande
medida pelos fatores econômicos, sociais, políticos, etc. Afora isso, as estatísticas brasileiras revelam quem mais
morre no Brasil: os indivíduos mais pobres, negros e pardos (ver: “Pessoas negras e pardas morreram 4,7 vezes
mais do que brancas em ações da polícia no RJ nos últimos 15 anos” em
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/11/20/pessoas-negras-e-pardas-morreram-47-vezes-mais-do-q
ue-brancas-em-acoes-da-policia-no-rj-nos-ultimos-15-anos.ghtml ; “Negros apresentaram risco de morte 9%
superior ao de brancos em 2020” em
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/pretos-e-pardos-tiveram-risco-de-morte-9-maior-do-que-brancos-no-brasil-
em-2020 , dentre outras fontes). A brilhante canção de Chico Buarque e Edu Lobo trata com muito bom humor
essa relação entre o social e o natural em torno da morte – a propósito, a própria existência dessa canção já é uma
demonstração do que estamos afirmando: “I Funeral de rico - Rico quando vai / Desta vida, sempre vai de mau
humor / Ir deitado de casaca é um terror / Abafado e morto de calor / Aturar a marcha fúnebre. Só de imaginar /
Que os amigos vão deitar nos seus sofás / Vão tomar os seus vermutes, os seus cristais / E as suas mulheres
principais / Já na beira do seu túmulo. - Gente, quanta gente / Que excelente funeral / - Ficas bem de preto / E o
cabelo ao natural / - Dizem que o eminente / Triplicou seu capital / - Vai sobrar para gente / Que nem viu ele
vivo / - Tem até donativo / Para as obras do hospital. II Enterro de pobre - Pobre quando vai / Sempre dizem que
ele vai para uma melhor / Vai olhando aquela gente a seu redor / Todos com poeira e com suor / E ele achando a
coisa ótima. Só de imaginar / Que os amigos vão pagar o seu caixão / O barbeiro, o aluguel do rabecão / O vinho
do padre, o sacristão / E o sermão na igreja gótica. - Gente, não tem gente / Tem parente pobre só / - Esse teu
modelo / Mais parece um dominó / - Nem o indigente / Quis herdar seu paletó / - Vai sobrar para a gente / Que
nem viu ele vivo / - Tem até um passivo / No caderno do Jacó” (Edu Lobo - Chico Buarque. Opereta do
moribundo. In: O corsário do Rei. Mariola Edições Musicais 1985).
16
homem/mulher cria outras esferas de relações e passa a ter como vitais outras formas de
satisfação, até porque também desenvolveu outras necessidades, de caráter histórico-social,
que não são mais apenas aquelas associadas à sua dimensão natural. É quando se torna
imprescindível para a existência humana (quase) tanto quanto o ar que se respira, a água e o
alimento que organicamente sustentam também a palavra, a poesia, a música, a pintura, a
beleza, enfim. Acontece que o desenvolvimento do ser social, que representa esse elevar-se,
esse afastar-se da condição de simples ser que compõe junto com outras espécies o imenso
catálogo dos seres da natureza, tem como condição de possibilidade o processo fundante que
reside na produção das condições materiais da existência, que é tarefa da práxis produtiva, do
trabalho.
Assim como a condição humana mais elevada é aquela em que homens e mulheres não
se resumem a seres portadores de necessidades orgânicas e que vivem meramente para
satisfazer essas necessidades, conforme aponta Marx já nos seus magníficos Manuscritos
econômico filosóficos de 18449
; também as outras modalidades de práxis, que partem do
trabalho e estão fundadas nele, revelam-se superiores em relação ao trabalho ainda que a
prioridade ontológica de todas as práxis humanas recaia sobre o trabalho. Na passagem
colocada logo a seguir, Lukács (2013: 93) caracteriza essas outras modalidades da práxis em
relação ao trabalho como “mais evoluídas”, “mais complexas”. Para o autor,
o caráter dialético do trabalho como modelo da práxis social [indica] que esta
última, nas suas formas mais evoluídas, apresenta muitos desvios com relação ao
próprio trabalho. (...) O trabalho é a forma fundamental e, por isso, mais simples e
clara daqueles complexos cujo enlace dinâmico forma a peculiaridade da práxis
social. (...) os traços específicos do trabalho não podem ser transferidos diretamente
para formas mais complexas da práxis social. (...) A identidade de identidade e não
identidade, a que já nos reportamos muitas vezes, remonta, nas suas formas
estruturais, assim acreditamos, ao fato de que o trabalho realiza materialmente a
relação radicalmente nova do metabolismo com a natureza, ao passo que as outras
formas mais complexas da práxis social, na sua grandíssima maioria, têm como
pressuposto insuperável esse metabolismo com a natureza, esse fundamento da
reprodução do homem na sociedade. (LUKÁCS 2013: 93).
O grave problema de muitas reflexões que se desenvolvem dentro do que podemos
caracterizar como campo do pensamento crítico, segundo nosso modo de entender, é
justamente o de ter considerado apenas a práxis produtiva, isto é, o trabalho como a base
9
Embora esteja se referindo ao sujeito submetido a relações de trabalho alienado e estranhado, a condição
animal mencionada nos serve de parâmetro: “o trabalhador só se sente livre e ativo em suas funções animais
comer, beber e procriar, quando muito habitação, adornos, etc, e em suas funções humanas só [se sente] como
animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal” (MARX, 2008: 83).
17
exclusiva da formação humana o que resulta num grave reducionismo da análise com
perigosas implicações teóricas e práticas.
Para Kosik, o problema da relação trabalho e práxis que, como vimos, adquire grande
relevância e pode se constituir numa imensa dificuldade, passa pela consideração da
amplitude de cada uma dessas categorias e pelo modo como elas determinam a constituição e
desenvolvimento do ser social. Segundo Kosik (1995: 224),
a práxis compreende – além do momento laborativo – também o momento
existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a
natureza e marca com sentido humano os materiais naturais, como na formação da
subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como a angústia, a náusea,
o medo, a alegria, o riso, a esperança, etc., não se apresentam como ‘experiência’
passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da
realização da liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de
ser parte da práxis. (grifos do autor).
A observação de Kosik é da maior importância, especialmente para o marxismo,
precisamente porque nos alerta para o perigo do reducionismo que seria assentar toda a
reflexão sobre o humano apenas na categoria trabalho. Como se pode observar, para o autor, o
“momento laborativo”, mais estritamente vinculado ao trabalho, é parte da práxis, ou seja, é
parte de um processo que ultrapassa a dimensão produtiva e modifica o sujeito de modo mais
amplo e global, atuando sobre as diversas esferas da formação do ser social.
Tratando ainda da relação entre as categorias trabalho e práxis, Netto e Braz
corroboram a ideia de que a segunda determina muito mais globalmente que o primeiro o ser
social (2008: 43). Afirmam os autores que o trabalho
é constitutivo do ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho.
Quanto mais se desenvolve o ser social, mais as suas objetivações transcendem o
espaço ligado diretamente ao trabalho. No ser social desenvolvido, verificamos a
existência de esferas de objetivação que se autonomizaram das exigências imediatas
do trabalho – a ciência, a filosofia, a arte, etc. (Grifos dos autores).
Os autores percebem a maior amplitude e alcance da categoria práxis em relação ao
trabalho de modo que a primeira contém o segundo. Essa concepção, que nos parece
absolutamente fiel à visão dos fundadores do materialismo dialético, não significa de modo
algum um enfraquecimento do vigor crítico da análise, pois o trabalho continua sendo a
atividade vital, fundante do ser social, apenas ele deixa de ser a única atividade que explica
toda a formação do ser social.
18
O ponto de vista defendido por Kosik é o mesmo de Netto e Braz para quem o
fundamental a se observar no tratamento das duas categorias é basicamente a amplitude do
campo das transformações e o alcance das implicações dessas transformações no que diz
respeito ao processo de produção e reprodução social,
a categoria da práxis permite apreender a riqueza do ser social desenvolvido:
verifica-se, na e pela práxis, como, para além das suas objetivações primárias,
constituídas pelo trabalho o ser social se projeta e se realiza nas objetivações
materiais e ideais da ciência, da filosofia, da arte, construindo um mundo social,
humano... Na sua amplitude, a categoria da práxis revela o homem como ser criativo
e autoprodutivo: ser da práxis, o homem é produto e criação da sua auto-atividade,
ele é o que (se) fez e (se) faz (NETTO e BRAZ, 2008: 44) (grifos dos autores).
As elaborações a respeito das categorias trabalho e práxis expostas acima são
importantes porque nos ajudam a refletir sobre as seguintes questões relacionadas ao trabalho
e à práxis as quais registramos para posteriores desenvolvimentos: o que, em cada uma delas,
se transforma? Que motivações e objetivos dirigem essas atividades transformadoras? Que
tipo de instrumentos práticos elas envolvem? Que tipo de conhecimentos elas mobilizam e
produzem? Que implicações geram para a formação dos sujeitos?
Ainda perseguindo o propósito de aclarar os sentidos das categorias trabalho e práxis
(as demais práxis, que se distinguem do trabalho) e o modo de relacionamento entre elas,
tentaremos recuperar num modo um tanto arriscadamente didático a partir das elaborações
desenvolvidas por Lukács, no capítulo O trabalho da sua Ontologia:
Trabalho (práxis produtiva) Práxis interativas
I) É atividade produtiva, não no sentido
capitalista, mas no sentido de que produz
coisas úteis - valores de uso.
I) nessas relações não se produzem valores de
uso, são relações entre sujeitos, que servem de
mediação para aquela produção e relacionam-se
com ela apenas indiretamente.
II) Trata-se do metabolismo material,
prático desenvolvido entre
homem/mulher e natureza.
II) É a relação material, transformadora que se
desenvolve entre sujeitos, isto é, que toma como
objeto o social e não a natureza.
III) No trabalho a atividade se desenvolve
tendo como única preocupação sua
adequação à realidade objetiva das coisas
envolvidas, isto é, mediante a prática
transformadora os objetos transformados
não reagem senão fisicamente, não
revoltam, não se indignam, não se
entristecem, etc.
III) Dado que o objeto desse tipo de práxis é
outro sujeito, às finalidades, intencionalidades,
método, tipo de abordagem, enfim, precisam
considerar as reações e comportamentos do seu
objeto, pois ele pode aceitar, consentir ou reagir,
questionar, ponderar, revoltar-se, indignar-se,
confrontar-se; ele nunca é matéria passiva
perante a posição teleológica da práxis.
IV) No trabalho, atua-se sobre
causalidades dadas ou espontâneas,
IV) Nas outras modalidades de práxis,
diferentemente do que se passa no trabalho, não
são as causalidades dadas o mais importante;
19
criando, através dessa transformação,
causalidades postas;
aqui a atividade realiza-se mais diretamente com
as causalidades postas, é a estas que visa atacar e
é no circuito dessas que se desenvolve.
V) O trabalho é uma atividade objetiva
em que os valores verdadeiro e falso
ressaltam com maior independência dos
sujeitos, isto é, não são dependentes das
vontades dos sujeitos.
V) Nas outras modalidades de práxis, os
parâmetros de verdadeiro e falso não se colocam
com a mesma objetividade característica do
trabalho. Enquanto neste o êxito do resultado
pode ser atingido com cálculos precisos,
planejamentos objetivos relacionados ao modo
de abordagem adequado do objeto, à sua forma,
quantidade, volume, peso, espessura, etc.; nas
outras formas de práxis, como o objeto é outro
sujeito, as definições gerais em busca de uma
ação exitosa precisam obedecer à dinâmica
social, política, histórica, cultural, ideológica,
psicológica, afetiva, emocional etc.
O quadro acima que, como dissemos, resulta de uma elaboração feita a partir de um
contexto em que Lukács trata o trabalho dentro de uma perspectiva em que se dá
metodologicamente certo grau de abstração10
, tem valor relativo, serve para uma
aproximação, serve para percebermos em linhas gerais algumas diferenças entre a práxis
transformadora de natureza e a práxis transformadora de sociedade.
Na consideração aqui proposta, partimos da compreensão de que tanto a práxis em
geral quanto o trabalho como tipo particular de práxis se definem fundamentalmente como
atividades práticas materiais, transformadoras, portanto, situando a práxis como categoria
importante dentro da perspectiva materialista dialética. Todavia, destacamos a diferença de
que o trabalho é – exclusivamente - a atividade dedicada à transformação material com a
finalidade de produção da existência, que tem como fim assegurar materialmente a existência
humana. Nesse sentido, o trabalho é práxis, é a práxis produtiva. Para além da transformação
material de caráter produtivo, outras atividades transformadoras também importantes,
igualmente formadoras, são desenvolvidas pelos homens e pelas mulheres e são distintas do
trabalho. Podemos dizer, em linhas gerais, recuperando ideias expostas no quadro acima que,
enquanto o trabalho se ocupa originalmente em transformar causalidades dadas, as práxis não
produtivas se ocupam em transformar causalidades postas.
10
“E mesmo que esse estado inicial do trabalho seja uma realidade histórica, cuja constituição e construção
tenham levado um tempo aparentemente infinito, com razão chamamos nossa afirmação de abstração, uma
abstração razoável no sentido de Marx. Ou seja, sempre deixamos de lado conscientemente o entorno social –
que necessariamente surge simultaneamente com aquele – com o fim de poder estudar as determinações do
trabalho na sua máxima pureza possível” (LUKÁCS, 2013: 156-7).
20
As demais modalidades de práxis, que surgem do trabalho, isto é, são geradas a partir
do processo desencadeado pelo trabalho, são ontologicamente secundárias em relação a ele,
muito embora não menos importantes que o mesmo para a definição do ser social. Todas as
demais modalidades de práxis, a política, a educativa, a estética, a artística, esportiva, etc.,
guardam entre si a mesma característica fundamental, distinguindo-se elas todas em bloco do
trabalho porque são posições teleológicas estabelecidas mediante - e atuantes sobre - outros
sujeitos e não sobre a natureza com o objetivo de produzir valor de uso. Por isso, por vezes os
autores referidos aqui (Kosik, Vázquez, Lukács) tratam o trabalho ora como tipo de práxis,
ora como categoria distinta dela.
Lukács também reforça essa mesma perspectiva traçada no sentido de compreender a
relação entre trabalho e práxis da mesma forma, isto é, reafirmando a ideia de que a práxis
possui caráter mais abrangente que o trabalho, e que, consequentemente, explica melhor, de
maneira mais completa o humano que o trabalho. O trabalho não tem o alcance que se verifica
na práxis, categoria esta que designa a atividade humana em geral e alcança a complexidade
aberta pela atividade prática, transformadora primária.
Em Lukács se confirma a noção de que a práxis é a grande categoria que comporta o
trabalho, mas não se resume a ele. Daí podemos afirmar que todo trabalho é práxis, mas nem
toda práxis é trabalho. Ao mesmo tempo em que reafirma a primazia ontológica do trabalho
como modelo de toda práxis, Lukács (2013: 83) afirma que
o trabalho [é] o modelo de toda práxis social, de qualquer conduta social ativa. (...)
[mas] o que distingue o trabalho nesse sentido das formas mais desenvolvidas da
práxis social [é que] nesse sentido originário e mais restrito, o trabalho é um
processo entre atividade humana e natureza: seus atos estão orientados para a
transformação de objetos naturais em valores de uso. Nas formas ulteriores e mais
desenvolvidas da práxis social, destaca-se em primeiro plano a ação sobre outros
homens, cujo objetivo é, em última instância – mas somente em última instância –,
uma mediação para a produção de valores de uso.
O ponto de vista que vem sendo construído e exposto difere-se de outros que
estabelecem outros critérios para distinguir trabalho e práxis. Esse ponto de vista não só se
difere, mas recusa aqueles outros que distinguem trabalho e práxis conforme o caráter de
liberdade ou de necessidade que seria supostamente inerente a cada uma dessas atividades. O
filósofo Markovic11
, por exemplo, pensa a relação entre as duas categorias associando o
11
Markovic é um dos filósofos da práxis, aqueles filósofos da Europa Leste que formavam a chamada Praxis
School. Este grupo reuniu-se em torno da Revista Praxis cuja publicação se iniciou na ex-Iugoslávia em 1964 e
dez anos depois foi encerrada pelas forças repressivas. A orientação inicial da Revista, assentada na
revalorização do humanismo marxiano dos Manuscritos de 1844, era a crítica ao autoritarismo e burocratismo
21
trabalho à necessidade e à heteronomia, enquanto que a práxis, contrariamente, ele a associa à
liberdade e à autonomia.
A práxis tem também que não ser identificada com o trabalho e a produção
material. Estas pertencem à esfera da necessidade, são condições necessárias para a
sobrevivência humana, e têm de envolver divisão de papéis, operações de rotina,
subordinação, hierarquia. O trabalho torna-se práxis apenas quando é escolhido
livremente e fornece uma oportunidade para auto-expressão e auto-realização.
(MARKOVIC, apud, BARATA-MOURA, 1986: 123-4) (Grifos do autor).
Na passagem acima, destaca-se como aspecto positivo, importante a indicação da
necessidade de se considerar o trabalho como uma práxis que tem especificidades e que não
pode ser confundida com toda e qualquer atividade humana materialmente transformadora.
No restante da elaboração, todavia, aparecem noções que muito mais confundem que
esclarecem. A definição que diferencia o trabalho da práxis a partir da suposição que associa à
segunda uma autonomia inexistente no trabalho, como se na práxis não existisse mais
“divisão de papéis, operações de rotina, subordinação, hierarquia” e a práxis fosse veículo de
“auto-expressão e auto-realização” é uma manobra conceitual de exclusiva responsabilidade
de Markovic, que não tem nenhum respaldo em qualquer elaboração de Marx e Engels, que
são, aliás, inspiração da filosofia de Markovic.
3 O TRABALHO COMO PRÁXIS FUNDANTE
Lukács afirma que o trabalho na condição de atividade produtora de coisas úteis, como
produtor de valores de uso é a “base insuprimível real” de toda a cadeia de posições
teleológicas que a ele se articula. O mesmo já o havia dito Marx – cujo pensamento a Lukács
lhe serve de base e de orientação - algum tempo antes na sua obra magna, n’O Capital:
O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e
abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação
do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do
metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e,
portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente
comum a todas as suas formas sociais (MARX, 1996: 303).
O trabalho é, portanto, a práxis produtiva que alicerça o processo de surgimento e
desenvolvimento do humano. Foi o trabalho, como práxis material, o responsável pelo
surgimento a partir da ordem natural, da esfera social. Conforme aponta Engels:
estalinistas, mas também ao que normalmente se define como marxismo positivista. Após 1974 a Revista Práxis
sofrerá modificações de diversas ordens, como a mudança de nome: vira Práxis Internacional, quando passa a
ser impressa em Oxford e depois muda para Constelaciones. Porém, a marca fundamental dessas mudanças será
o afastamento progressivo do marxismo. Na nossa análise destacamos o sérvio Mihailo Markovic e o croata Gajo
Petrovic, mas também vem a completar o bloco o tcheco Karel Kosik.
22
El trabajo es, dicen los economistas, la fuente de toda riqueza. Y lo es, en efecto, a la
par con la naturaleza que se encarga de suministrarle la materia destinada a ser
convertida en riqueza por el trabajo. Pero es infinitamente más que eso. El trabajo es
la primera condición fundamental de toda la vida humana, hasta tal punto que, en
cierto sentido, deberíamos afirmar que el hombre mismo ha sido creado por obra del
trabajo (ENGELS, 1961: 142).
Depois de acatar a enorme contribuição da economia clássica, que pela primeira vez
situa as riquezas econômicas, sociais como produto da própria atividade do homem/mulher,
isto é, como coisas produzidas pelo trabalho humano, Engels a ultrapassa e, inspirado no
legado dialético hegeliano, aponta o trabalho como a atividade que não só cria as riquezas
objetivas, mas, em certo sentido, cria o próprio homem.
A contribuição de Engels através da obra citada, que reputamos de grande valor ainda
nestes tempos hoje vividos, não resulta de nenhuma revelação mística, transcendental, ela se
apoia basicamente nas ricas contribuições filosóficas anteriores, nas importantes descobertas
das ciências naturais da época12
, especialmente as darwinianas, assim como nas próprias
contribuições dos economistas clássicos.
De qualquer modo, no pequeno artigo “O papel do trabalho na transformação do
macaco em homem”, Engels (1961) consegue oferecer uma análise muitíssimo importante e
atual, pois resolve algumas questões cruciais a respeito do sentido que tem o trabalho para a
vida humana.
Fundamentalmente, Engels defende um ponto de vista antagônico às ideias
criacionistas – as quais ainda hoje representam um grande entrave ao progresso do
pensamento humano – e, para levar adiante sua tarefa, recolhe aportes científicos de seu
tempo, mas não só, baseiam-se já nas contribuições remotas de filósofos antigos13
. Engels se
13
Especialmente no campo das reflexões sobre as ciências Engels sempre reconhecia as contribuições dos
antigos sábios, particularmente o fato de o esforço de conhecer, de saber desenvolver-se sem as amarras da
religião. Engels dizia que “todo lo que las ciencias naturales de la primera mitad del siglo XVIII estaban por
encima de la antigüedad griega en punto al conocimiento e incluso a la clasificación de la materia, se hallaban
por debajo de ella en cuanto al modo de dominarla idealmente, en cuanto a la concepción general de la
12
De acordo com Bordiga (1973: 17 (tradução nossa)) Engels “não se apoiava em nenhuma base ‘material’ certa,
dada a ignorância dos ‘especialistas’ da época e as parcas indicações vindas das escavações”. É sabido que o
estágio das ciências naturais nos tempos de Engels era ainda muito incipiente se considerarmos tudo o que
depois se alcançou nesse campo de investigações. De qualquer maneira, as descobertas científicas do século XIX
provocaram em Engels grande interesse posto que via nos avanços científicos uma maneira de fortalecer o
combate às visões teológicas assim como via neles também um importante apoio às teses filosóficas do
materialismo dialético. Nesse sentido, além da imensa contribuição de Darwin, Engels apoiava-se também em
Lyell, naturalista inglês que influenciou àquele e que já tinha, a partir das ciências naturais, combatido o velho
criacionismo; Schmerling, médico e paleontólogo belga que em 1834 publicara um trabalho sobre os fósseis de
Liege; e Jacques Boucher, que descobriu em Abbeville sílex talhado e concluiu com a ideia da existência do
“homem antidiluviano”. Para Engels, “estos moscosos son los patriarcas de la ciencia”. (MARX e ENGELS,
1975: 28).
23
encontra firmemente aportado no horizonte já esboçado por ele e Marx quando afirmavam
que “la raíz, para el hombre, es el hombre mismo” e que “el hombre es el mundo de los
hombres” (MARX, C. e ENGELS, F. 1987).
Depois de propor e sustentar que o homem/mulher não é um mero produto da criação
de forças transcendentais, nem, por outra, produto de meras metamorfoses biológicas,
naturais, isto é, resultado apenas de um processo de evolução das espécies, Engels tenta
descrever aquele que pode ter sido o processo original do surgimento do humano.
Em linhas gerais, o que pretende Engels demonstrar é que os aspectos material e
prático – e não o pensamento, a consciência, a alma humana - são a base do processo de
surgimento do humano e tem prioridade ontológica nesse processo. Para Engels, aqueles
aspectos antecedem, sustentam os elementos ideais, essa é uma das proposições centrais que,
aliás, serão posteriormente confirmadas pelas mais importantes descobertas científicas feitas
depois de Engels.
Engels propõe que nossos antepassados, espécies pertencentes à ordem dos primatas,
devido às circunstâncias dentre as quais a escassez de alimentos em seu habitat deve ter sido a
mais decisiva, precisaram descer do alto das árvores e tentar sobreviver no solo. Esse fato
obrigou os nossos ancestrais a desenvolver a postura ereta, o bipedismo e a consequente
liberação das mãos. Estas transformações viriam a promover uma série de outras
transformações fisiológicas e depois sociais decisivas. Engels menciona apenas algumas,
aquelas que haviam sido percebidas e explicadas em seu tempo como as modificações na
cabeça, que envolviam a diminuição da mandíbula e o crescimento da caixa craniana.
Posteriormente, as ciências iriam demonstrar muitas outras transformações decisivas que
teriam ocorrido nesse processo como o estreitamento da pélvis como consequência da posição
ereta que, por sua vez, obrigou o abreviamento do tempo de gestação dos bebês e
proporcionou, por consequência, modificações no âmbito dos grupos devido à necessidade de
cuidados com os recém-nascidos durante um tempo considerável14
. Outra modificação
14
“El rápido crecimiento del tamaño del cerebro planteó problemas adicionales, especialmente relacionados con
el parto. Mientras que un simio recién nacido tiene una capacidad cerebral algo superior a la mitad de la de un
adulto de su especie, la del bebé humano es sólo la cuarta parte. La forma de la pelvis humana, adaptada para
caminar en posición erguida, limita el tamaño de la abertura pélvica. Por tanto, como resultado de su cerebro
grande y las restricciones impuestas por la ingeniería biológica de la bipedación, todos los bebés humanos nacen
‘prematuramente’. El desamparo total del recién nacido humano en comparación con cualquier otra especie de
naturaleza” (1961: 07). Engels destacava, por exemplo, a percepção de que toda a complexidade da vida era
resultado de transformações complexas a partir de uma base nuclear. Muito antes de Darwin os antigos já diziam
que os seres humanos haviam evoluído dos peixes. Para Tales, por exemplo, toda a vida teria se originado da
água.
24
decorrente da posição ereta foi a transformação do aparelho fonador a partir da nova posição
da cabeça no alto da coluna vertebral, apontando para o alto, portanto, diferente da posição de
nossos antepassados quando a cabeça estava inclinada para a frente. Como se sabe, aquela
posição se constitui num dos entraves para o desenvolvimento da linguagem verbal, portanto,
o bipedismo foi decisivo também para que se pudesse desenvolver a linguagem oral articulada
com a produção de vogais e consoantes15
.
As análises de Engels no seu já relativamente distante século XIX já revelavam que
metamorfoses materiais e práticas estão na base do nosso desenvolvimento e que as
dimensões do pensamento e da linguagem são forjadas nesse ambiente material e prático.
As contribuições de Engels e de Marx nos ajudam a entender o humano como um
desenvolvimento que brota da natureza e que salta para além da base natural através da práxis,
fundamentalmente da práxis produtiva, isto é, do trabalho. Foi esta práxis, o trabalho, que
propiciou o surgimento da condição humana. Quando Engels nos diz que o trabalho em certa
medida criou o próprio homem, além de criar as riquezas objetivas, ele não só supera de modo
genial toda a poderosa tradição mística, transcendental, as visões idealistas em geral, como
supera também aquela que foi a grande revolução científica contra o criacionismo, isto é, o
darwinismo.
Engels demostra como o próprio ser da natureza, dentro de certas circunstâncias
materiais e praticamente, isto é, por meio de sua práxis, elevou-se acima ou transcendeu à
natureza, isto é, escapou às amarras naturais, orgânicas. Noutras palavras, foi o trabalho,
como práxis fundante, que nos permitiu sair da mera condição de natureza, favorecendo a
15
Conforme aponta Kanzi (apud, WOODS y GRANT, 1995: 304-5) a produção de sons consonantais, importante
para o desenvolvimento da linguagem articulada não seria possível sem o bipedismo: “una cabeza con una
mandíbula grande y pesada obligaría a su poseedor a caminar con una inclinación hacia adelante y le impediría
correr con rapidez. Para conseguir una postura erguida equilibrada, era essencial que la estructura de la
mandíbula retrocediese y, de esta manera, el sistema vocal inclinado característico de los símios tomase el ángulo
recto. Junto a la reducción de la mandíbula y el aplastamiento de la cara, la lengua, en lugar de estar situada
totalmente en la boca, retrocedió parcialmente hacia dentro de la garganta para formar la parte posterior de la
orofaringe. La movilidad de la lengua permite la modulación de la cavidad orofaríngea de una manera que no es
posible en el simio, cuya lengua reside totalmente en la boca. De manera parecida, la curva pronunciada en la
nasofaringe significa que la distancia entre el paladar blando y la parte posterior de la garganta es muy corta.
Elevando el paladar blando podemos bloquear los conductos nasales, lo que nos permite formar la turbulencia
necesaria para crear consonantes”.
mamíferos superiores es evidente”. Esse fato gerou enormes implicações para a socialidade humana, para a
organização dos coletivos humanos e para os processos educativos. Quanto a isso, “Barry Bogin, biólogo de la
Universidad de Michigan, ha sugerido que la lenta tasa de crecimiento de las crías humanas, comparada con los
simios, está relacionada con el largo período necesario para absorber las complejas reglas y técnicas de la
sociedad humana. Incluso la diferencia en el tamaño corporal entre niños y adultos ayuda a establecer la relación
maestro-alumno, en la que el joven aprende del viejo, mientras que entre los simios el rápido crecimiento lleva
rápidamente a la rivalidad física” (WOODS y GRANT, 1995: 293).
25
superação de um estágio inferior da nossa existência. É aqui que se dá o que Lukács,
recuperando de Marx, chama de salto ontológico do ser social. Esse salto ontológico não quer
indicar que nós deixamos de ser natureza, mas quer dizer que estamos na natureza, somos
parte dela, mas ao mesmo tempo alcançamos um estágio de desenvolvimento em que somos
também aqueles que se opõem à natureza, que são capazes de se distanciar dela e de tomá-la
como seu objeto.
Devemos ressaltar aqui oportunamente o caráter educativo que marca e caracteriza
todo o processo histórico material e prático do desenvolvimento humano que se constitui
efetivamente num “afastamento das barreiras naturais”16
. A criação do humano pelo trabalho
ou, dizendo de outra maneira, o destaque do trabalho como atividade prática transformadora
que cria o humano é devidamente ressaltado por muitos autores, mas o caráter educativo que
possui o trabalho nesse processo raras vezes é devidamente compreendido.
A dimensão do educativo, como algo associado ao trabalho, de resto associado à toda
práxis humana, está presente no desenvolvimento teórico lukacsiano, embora as ideias que lá
se encontram não tenham exatamente a intencionalidade de propor e demonstrar essa
vinculação entre trabalho e formação humana. Acreditamos, todavia, que é disso que se trata,
pelo menos, é assim que interpretamos quando o autor húngaro afirma:
Como já mostramos em detalhes, o trabalho modifica forçosamente também a
natureza do homem que o realiza. [E continua]: a direção que assume esse processo
de transformação está dada espontaneamente pelo pôr teleológico e pela sua
realização prática. Como já mostramos, a questão central da transformação interna
do homem consiste em chegar a um domínio consciente sobre si mesmo. Não
somente o fim existe na consciência antes de realizar-se praticamente como essa
estrutura dinâmica do trabalho se estende a cada movimento singular: o homem que
trabalha deve planejar antecipadamente cada um dos seus movimentos e verificar
continuamente, conscientemente, a realização do seu plano, se quer obter o melhor
resultado concreto possível. Esse domínio da consciência do homem sobre o seu
próprio corpo, que também se estende a uma parte da esfera da consciência, aos
hábitos, aos instintos, aos afetos, é uma exigência elementar do trabalho mais
primitivo e deve, pois, marcar profundamente as representações que o homem faz de
si mesmo, uma vez que exige, para consigo mesmo, uma relação qualitativamente
diferente, inteiramente heterogênea daquela que corresponde à condição animal, e
uma vez que tais exigências são postas por todo tipo de trabalho (LUKÁCS, 2013:
129).
Em busca de esclarecer uma questão fundamental, lançamos uma pergunta: o trabalho
é uma categoria econômica, sociológica ou filosófica? Evidentemente, o trabalho é peça
16
“A tendência principal do processo que assim tem lugar é o constante crescimento, quantitativo e qualitativo,
dos componentes pura ou predominantemente sociais, aquilo que Marx costumava chamar de ‘recuo da barreira
natural’” (LUKÁCS, 2013: 291 no pdf).
26
importante em diferentes áreas de pesquisa e não precisa ser tomado como exclusivo de
nenhuma área específica. Contudo, acreditamos ser um erro tratar o trabalho como categoria
exclusivamente econômica. Entendemos o trabalho como uma categoria que tem caráter
fundamentalmente filosófico-pedagógico e isso não é uma definição que resulte de uma mera
especulação epistemológica ou de uma preferência subjetiva aleatória, mas emana da própria
posição ontológica da categoria. Partindo de Engels, podemos afirmar que o trabalho cria
riquezas, mas cria principalmente o homem/mulher, funda o “mundo dos homens [e
mulheres]”.
Para Lukács (2010: 73), nesta afirmação que segue, situação em que, não precisamos
relembrar, obviamente, se inclui o trabalho, “a práxis em sua essência e em seus efeitos
espontâneos é o fator decisivo da autoeducação humana”. Por isso, acreditamos que o sentido
fundamental do trabalho, que se impõe para todos, inclusive para economistas e ou
administradores de empresas, é a de atividade criadora de humanidade. Recordemos mais uma
vez Lukács (2013) e sua reflexão segundo a qual o trabalho produz sempre mais do que aquilo
que imediatamente se propõe a fazê-lo. Recordemos Marx (2008) quando, tratando do
trabalho alienado e estranhado afirma que o trabalho produz muito mais que riquezas
objetivas, cria e recria, reproduz as relações em que o trabalhador permanece e se afunda em
cadeias opressivas sob os grilhões da capital. Não só o trabalho alienado e estranhado, mas o
trabalho, em geral, produz e reproduz o conjunto das relações sociais ao seu entorno. Nesse
sentido, é que se verifica a capacidade do trabalho de criar a vida social, desenvolver
subjetividades, individualidades, culturas. O trabalho é, antes de tudo, a atividade prática
material transformadora que cria o humano. Devemos aqui recordar a afirmação de Engels de
que o trabalho cria as riquezas objetivas – coisa já então descoberta pelos economistas – mas,
Engels acrescentava que, além disso, o trabalho cria o próprio homem (e a mulher por
suposto).
Ora, esta afirmação de Engels, se levada seriamente às últimas consequências,
conforme merecimento, nos conduzirá necessariamente na direção do reconhecimento do
caráter essencialmente educativo do trabalho. Afinal, a criação do homem/mulher, ou seja, a
criação do humano através do metabolismo material, prático fundado pelo trabalho é diferente
da criação de qualquer outro ser ou realidade material, trata-se da criação - ou autocriação - de
um ser que pensa e que fala e que tem no seu processo de constituição, como dado essencial,
como condição de ser, a necessidade constante, premente, perene de aprender e ensinar. A
27
fundação do ser humano que é – na verdade precisa ser – fundado no processo material,
prático de transformação das realidades materiais e naturais e sociais, não pode se realizar
sem a dimensão – também prática - do conhecer, do aprender e do ensinar. O humano é aquele
que aprende a ser; o homem/mulher é aquele que se constrói pela sua própria práxis
transformando as realidades materiais e forjando-se a si mesmo como ser social. Esse
processo, todavia, não se consuma só como produção de coisas úteis, isso só se torna possível
porque no processo de produção das coisas úteis produz-se, sobretudo, o sujeito. Essa
produção, isto é, a produção do humano, do homem/mulher, como dissemos, dos sujeitos, por
sua vez, não significa a simples posição de um ser pronto e acabado como um boneco de
barro que num sopro divino vira gente. Essa produção é necessariamente um processo
constante, ininterrupto de aprender e ensinar, que se desenvolve concomitantemente com a - e
ontologicamente fundado na - transformação da natureza com a finalidade de produzir coisas
úteis, necessárias.
Antes de partirmos para o próximo tópico, vejamos mais de perto como o trabalho, na
condição de práxis fundante do ser social, se pode converter também em atividade negadora
de humanidade.
Tentamos desenvolver até aqui uma noção importante para a compreensão do humano.
Essa noção nos permite escapar do domínio das explicações místicas, transcendentais que ao
longo da história serviram de mecanismo de dominação, de meio para acalmar, aquietar os
indivíduos e fazer com que imaginassem que sua existência não depende exatamente de sua
práxis e de sua vontade, mas de um ordenamento teleológico operado por forças
transcendentais.
Nesse sentido, os indivíduos são levados a acreditar que todo o roteiro da história já
está previamente definido e que inclusive a hora da morte de cada um já está acertada. Mais
ainda: que ninguém precisa se preocupar porque toda a engrenagem que envolve fatos reais da
vida e pretensos fatos supostamente verdadeiros do além vida compõem um processo
contínuo que persegue e obedece a princípios e valores de justiça absolutamente perfeitos os
quais serão capazes de reparar todo e qualquer mal estar ou sofrimento, punindo os malfeitos
e premiando as boas ações.
Assim, as maiores misérias, os mais dolorosos sofrimentos pelos quais passem alguns
indivíduos ou grupos, povos ou classes sociais, serão sempre explicados como algum tipo de
28
reparação por algo que se possa ter feito noutras vidas passadas. E assim segue o comboio em
busca de uma presumível e almejada purificação da alma. Não deixa de ter nessas
mirabolantes histórias uma admirável engenhosidade.
A noção desenvolvida nos ajuda também a fugir de uma outra tendência muito forte na
nossa tradição que é a de entender todo o metabolismo social como obra de um processo
natural, biológico. Evidentemente, o darwinismo acabou dando um grande reforço a essa
tendência, mas ela não é totalmente devedora dele17
. Essas duas tendências (a mística,
transcendental e a naturalizante, biologizante), que algumas vezes se colocam como opostas,
dado que uma tem origem na dimensão religiosa e a outra adquiriu reforço, fundamentação no
campo da ciência, na verdade não são exatamente auto excludentes. Não são raros os casos de
cientistas que depois de tentar compreender os fenômenos naturais terminam por encontrar na
base de todo o metabolismo da vida uma transcendental e inalcançável determinação divina18
.
Retomando do ponto anterior: como se converte o trabalho em base de um processo
negador de humanidade?
Em determinadas condições históricas o trabalho, que foi a atividade responsável pelo
salto ontológico do ser social, portanto, tendo sido a razão do surgimento da humanidade, a
18
O movimento de aproximação entre a famosa teoria do big bang e o criacionismo, coisas às vezes apresentadas
como necessariamente opostas, é uma boa representação do que afirmamos. Nos referimos à concepção religiosa
do big bang defendida pelo cientista, depois convertido em capelão, Colin Price. Coloca-se este as indagações:
“seria a teoria do big bang desconcertantemente bíblica? Ou, dizendo de outra maneira, seria a história do
Génesis desconcertantemente científica?”. Depois arremata: “Foi da história do Gênesis - a explicação de tudo –
que surgiu a ciência, a vontade de explicar tudo. Ninguém teria apreciado a história do big bang mais do que os
autores dos dois primeiros capítulos do livro de Gênesis” (PRICE, 2020). A aproximação entre aquelas duas
tendências mencionadas é uma curiosa realidade. Vejamos como entre os agraciados do Prêmio Templeton para o
progresso da Religião (Templeton Prize), dado a quem contribua excepcionalmente para a afirmação da
dimensão espiritual da vida, nos últimos anos se encontram, por exemplo, dois físicos. Em 1995 foi premiado
Paul Davies, autor de livros como Dios y la nueva física e La mente de Dios, um físico teórico que se define
como homem religioso e que sustenta a tese de que “la ciencia ofrece un camino hacia Dios más seguro que la
religión” (DAVIES, apud, WOODS y GRANT, 1995: 40). Dez anos depois, em 2005 o Templeton foi concedido
a Charles Hard Townes um cientista que, mais convicto que o anterior, defende – de maneira não muito diferente
do senso comum – que a beleza da natureza é a confirmação da criação de Deus e que o criador teria feito o
universo para que os humanos emergissem e florescessem. Townes acreditava que até mesmo suas descobertas
eram, na verdade, revelações divinas.
17
Numa carta de 17 de novembro de 1875 em resposta a Piotr Lavrov (militante russo que tomou parte na
Comuna de Paris), Engels recusa a ideia darwinista de luta pela vida, dentre outras coisas, porque,
metodologicamente é um erro “situar la totalidad y la multiplicidad de la riqueza del desarrollo histórico bajo la
pobre fórmula unilateral de ‘lucha por la vida’, fórmula que incluso en el terreno de la naturaleza sólo puede
aceptarse cum grano salis” (MARX e ENGELS, 1975: 84-5). Nem na natureza, tampouco na sociedade, as
relações entre os seres podem ser resumidas à “luta pela vida”. Engels defendia que, mesmo nos estágios mais
remotos do processo de construção do humano se encontrava algo, ainda que inicialmente instintivo, de grupal,
de comportamento colaboracionista, por isso ele respondeu a Lavrov: “no puedo estar de acuerdo con usted
cuando dice que la lucha de todos contra todos fue la primera fase de la evolución humana. En mi opinión, el
instinto social fue una de las palancas más esenciales del desarrollo del hombre a partir del mono” (MARX e
ENGELS, 1975: 88).
29
atividade que funda a liberdade humana no sentido da afirmação do humano como condição
capaz de tomar a natureza como seu objeto, conforme já expusemos antes, vira pelo avesso e
passa a ser uma atividade negadora do humano, isto é, passa a representar o oposto daquilo
que já representou: o trabalho deixa de ser uma atividade em que o humano se forja, se
desenvolve e se fortalece.
Em todas as sociedades baseadas no antagonismo de classes, quer dizer, nas
sociedades que se originam do processo histórico em que o trabalho virou atribuição de
grupos humanos aprisionados, tornados escravos ou servos, o trabalho perde seu sentido
original. Isso se dá justamente porque as condições de trabalho já se encontram dominadas
como propriedade de uma classe específica que passa a impor através da violência o trabalho
como atividade da classe tornada subalterna e que vira classe oprimida.
Essa relação adquire sua forma mais elevada na sociedade capitalista na qual os
produtores diretos das riquezas se encontram totalmente separados dos meios de produção.
Por sua vez, as classes proprietárias passam a ter o monopólio do controle não só dos meios
de produção como também de coerção e do controle ideológico.
Nessas condições históricas, o trabalho deixa de ser a produção da vida e passa a ser
meio de produção de mais valor à custa da vida. Na sociedade baseada no modo de produção
capitalista, as relações sociais são configuradas a partir da produção de mercadorias, da posse
do valor de troca; a produção material está assentada na separação entre o produtor direto e as
condições de produção que se opõem a ele como capital; na concentração da propriedade
privada dos meios de produção; na oposição entre capital e trabalho, trabalho intelectual e
trabalho manual; aqui o movimento de valorização do capital se sobrepõe a toda a sociedade
como um movimento independente e autônomo, submetendo todo o conjunto da sociedade –
embora explorando e oprimindo os/as trabalhadores/ras - e, em tal medida, se constituindo
naquilo que Marx denominou como alienação/estranhamento universal.
A alienação / estranhamento tem suas raízes no trabalho e consiste justamente no fato
de que o/a trabalhador/ra cria as riquezas, mas essas riquezas vão se constituir num mundo
objetivo autônomo, independente do/da trabalhador/ra e que contra este/a se volta
oprimindo-o/a e negando o acesso e a possibilidade do usufruto das riquezas que ele/a mesmo
produziu. Como aponta Marx (2008: 80),
30
o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a
sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria
tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das
coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos
homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a
si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz,
de fato, mercadorias em geral. (Grifos do autor).
Continuando com Marx, ele afirma ainda que “a efetivação do trabalho tanto aparece
como desefetivação que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome” (idem, ibidem) e,
comparando com a alienação religiosa, que era tema comum entre outros filósofos de seu
tempo de juventude, Marx afirma que quanto mais trabalha, mais o trabalhador se desgasta, se
cansa, se exaure, se esvazia de energia e empobrece ao mesmo tempo em que enche os cofres
dos burgueses, abarrota os bancos de dinheiro, enche de riquezas e propriedade os capitalistas
– “é do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém
em si mesmo” (idem, ibidem, p. 81).
Nesse contexto da produção capitalista, o trabalho deixa de ser a maneira pela qual o
humano se revela e passa a ser encargo doloroso, verdadeira tortura daqueles que, não
possuindo nada mais além de sua força de trabalho são obrigados a oferece-la no mercado
conforme as circunstâncias econômicas e as condições históricas e sociais que nunca lhes são
favoráveis. Essa é a única maneira que tem o trabalhador de sobreviver dentro das relações
capitalistas de produção.
A alienação/estranhamento que conforme já colocamos se enraíza no trabalho, tem
duas relações principais: aquela que se estabelece entre o trabalhador e o produto do seu
trabalho; e a relação do trabalhador com sua própria atividade. Na primeira relação, dá-se uma
ruptura no sentido de que o produto não pertence ao seu criador. O produto do trabalho, na
forma de riqueza capitalista, não só é retirado do trabalhador como vira poder estranho que o
domina e oprime. Na segunda relação, verifica-se que o trabalhador comparece como aquele
que é totalmente submetido aos comandos de terceiros. Ele não detém nenhum controle sobre
a atividade, não determina nada em relação a ela, nem o como, nem o porquê, nem o para quê
nada na atividade é determinado pelo trabalhador. Dentro do processo de trabalho
alienado/estranhado, o trabalhador vira uma peça totalmente submetida e controlada pelo
capital.
Mas, além dessas duas relações apontadas, há ainda dois outros fatores a se destacar. O
primeiro é a alienação/estranhamento do trabalhador em relação ao gênero humano a que
31
pertence. A afirmação humana, a constituição do gênero humano, conforme elaboração
marxiana, depende do metabolismo prático com a natureza, isto é, o homem/mulher se faz
humano genericamente pela atividade prática transformadora que toma a natureza como seu
“corpo inorgânico”: “é na elaboração do mundo objetivo que o homem se confirma em
primeiro lugar e efetivamente como ser genérico” (MARX, 2008; 85). Este metabolismo
prático é que produz a vida genérica ao mesmo tempo em que é a própria vida genérica na sua
efetivação dinâmica. Diferentemente dos demais seres da natureza, o homem/mulher não se
confunde com sua atividade, quer dizer, sua atividade não é uma determinação natural, como
é, por exemplo, no caso da aranha e sua atividade de fazer teia:
a atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital
animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser
consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser
genérico. Eis por que a sua atividade é atividade livre (MARX, 2008: 8).
A generidade humana, portanto, se realiza e só pode se realizar praticamente através
da relação entre o homem/mulher e a natureza, porém, como a natureza, que é do
homem/mulher, seu corpo inorgânico vira propriedade privada inacessível ao trabalhador e a
atividade prática de transformação da natureza passa a se realizar sob circunstâncias
totalmente alienadas e estranhadas, tem-se então assim, uma relação de alienação e
estranhamento do trabalhador com o gênero humano, isto é, o trabalhador não se reconhece
no gênero e não reconhece nas conquistas do genro a sua marca de sujeito produtor. Conforme
indica Marx (2008: 84),
a vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo
(Art) da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma espécie, seu caráter
genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. A vida
mesma aparece só como meio de vida”.
Isto é, no contexto da alienação/estranhamento, o trabalho se transforma de atividade
vital fundadora da generidade humana em “mero meio para a satisfação de uma carência, a
necessidade de manutenção da existência física” (idem, ibidem, 84). Por meio da atividade
trabalho, no objeto do trabalho, assim como no seu produto, se objetiva a vida humana, por
isso quando
arranca do homem o objeto de sua produção [assim como quando aliena do
trabalhador o produto do seu trabalho] o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida
genérica, sua efetiva objetividade genérica e transforma a sua vantagem em relação
ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inorgânico, a natureza (idem,
ibidem, p. 85).
32
O trabalho alienado/estranhado representa a redução da atividade vital, livre a simples
meio de satisfação de carências orgânicas imediatas, dessa forma “ele faz da vida genérica do
homem [apenas] um meio de sua existência física” (idem, ibidem, p. 85). Dessa forma, “a
consciência que o homem tem do seu gênero se transforma, portanto, mediante o
estranhamento, de forma que a vida genérica se torna para ele um [simples] meio” (idem,
ibidem, p. 85).
Além da relação de alienação/estranhamento entre o trabalhador e o produto do seu
trabalho; do trabalhador em relação à sua atividade; e da relação do trabalhador com o gênero
humano; encontramos um quarto aspecto da relação de alienação/estranhamento que é
justamente entre os indivíduos uns com os outros todos mergulhados nas cadeias do
estranhamento e cada um enxergando no outro apenas um ser estranho com o qual está em
constante estado de concorrência e oposição. Quando “o homem está estranhado de seu ser
genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles [está
estranhado] da essência humana” (idem, ibidem, p. 86).
4 TRABALHO, ANTAGONISMOS SOCIAIS E FORMAÇÃO HUMANA
Este tópico tem como objetivo principal abordar, ainda que em linhas gerais, o modo
como em torno do trabalho no contexto das condições econômicas sociais contemporâneas se
estruturam e se reproduzem os antagonismos classistas.
Diferentemente das abordagens que costumam enxergar nas grandes mudanças pelas
quais a sociedade humana tem passado sinais de apagamento dos antagonismo classistas, o
fim do trabalho ou da importância deste para se compreender as relações sociais;
diferentemente dessas abordagens de teor conservador e simpático ao estado de coisas
vigente, a análise que aqui se desenvolve acredita que as profundas mudanças que estão em
curso nas últimas décadas não apagam o caráter essencial do sistema do capital, mas, ao
contrário, aprofundam-no. A análise que ora se desenvolve entende que esse sistema continua
perseguindo o mesmo rumo fundamental de sempre: criar cada vez mais riquezas,
promovendo uma apropriação destas cada vez mais restringida, ao mesmo tempo e
consequentemente produzindo e reproduzindo pobreza e miséria em escala crescente.
Resumidamente, acreditamos que o sistema do capital não aboliu aquelas que são suas
principais contradições – nem poderia e nem poderá nunca ele próprio fazê-lo, evidentemente
-, muito ao contrário, acreditamos que aquelas contradições foram aprofundadas e que os
33
problemas advindos delas foram aguçados e ampliados. Isso se verifica com a constatação de
que a dinâmica da acumulação passou a realizar-se agora sem mais vestígios do sentido
progressista que outrora possuiu, isto é, realizando-se agora como uma dinâmica de caráter
exacerbadamente regressivo e destrutivo.
Antes de desenvolvermos a questão nuclear desse tópico, vejamos mais de perto como
se coloca a relação trabalho e educação dentro do processo de desenvolvimento dos
antagonismos classistas até a plena consolidação da forma capitalista.
Sabemos que um dos momentos cruciais do desenvolvimento da sociedade humana foi
aquele em que nossos antepassados remotos se depararam com a produção de riqueza
excedente. Pela primeira vez em toda a história, os grupos humanos conseguiam graças
fundamentalmente ao descobrimento da agricultura produzir bens para além das suas
necessidades imediatas. Esse foi um fato objetivo que provocou mudanças muito profundas,
inclusive no campo das percepções sobre o trabalho, gerando forte impacto histórico social.
Essa percepção alterou para sempre as relações de trabalho e inaugurou uma nova fase do
desenvolvimento social instituindo a sociedade de classes e abrindo a era das relações
humanas baseadas em regimes de opressão sistemática19
.
Até então, antes dessa nova realidade que foi o surgimento da produção de riqueza
excedente, trabalho e educação não eram atividades totalmente separadas20
, apartadas,
realizadas por grupos de indivíduos diferentes, de maneira tal que constituísse uma rigorosa
divisão do trabalho como depois passou a existir.
Antes do excedente de produção os grupos humanos não conheciam antagonismos
internos, regimes de exploração e opressão sistemáticos. Naquela altura do desenvolvimento
humano, social em que a humanização se encontrava em estágios inferiores de sua marcha
20
Vale anotar que, segundo a compreensão que defendemos, trabalho e educação de fato são duas formas de ser
da práxis humana, que têm suas particularidades, contudo, compreendemos o trabalho não como uma seca e
árida atividade produtora de coisas úteis, como já tivemos oportunidade de colocar. O trabalho é atividade
prática, material produtora de coisas úteis, mas é também ao mesmo tempo, essencialmente, atividade formadora
em si mesma, na medida em que altera realidades objetivas e subjetivas. Se, por um lado, o papel do trabalho –
produzir coisas úteis e praticamente sustentar a existência humana material – só o trabalho pode realizar, por
outro, quanto à educação, esta já se encontra de algum modo, enquanto formação humana, amalgamada à própria
atividade trabalho, faz parte dele antes de ser uma práxis em si mesma.
19
“Inútil decir que el trabajo con esclavos aumentó el excedente de productos de que la colectividad disponía y
que los “administradores”, como representantes de ella, intercambiaban con tribus vecinas o lejanas. Las cosas
continuaron así hasta que las funciones de los “organizadores” se volvieron hereditarias y la propiedad común de
la tribu –tierras y ganados- pasó a ser propiedad privada de las familias que la administraban y defendían.
Dueñas de los productos a partir de ese momento, las familias dirigentes se encontraron al mismo tiempo,
dueñas de los hombres” (PONCE, s/d, p. 16) (Grifos do autor).
34
histórica, os indivíduos pertencentes a uma tribo formavam uma só coletividade e tomavam
parte em todas as atividades realizadas, conhecidas e necessárias conforme sua condição
fisiológica, conforme suas capacidades.
Isso porque, em primeiro lugar, o trabalho ainda não tinha adquirido o sentido
negativo que conhecemos tão bem. O trabalho, embora fosse atividade física que exigia muito
esforço e fosse muito arriscada, significava crescimento humano, significava vitória dos
coletivos humanos, representava conquista, evolução, superação de obstáculos – lembrando
Marx, desenvolvimento da generidade humana - cada ação realizada exitosamente
representava um crescimento dos coletivos humanos. Nesse sentido é que se pode falar de
trabalho como libertação, ou seja, libertação em relação às barreiras naturais que
obstaculizavam o desenvolvimento humano. Dessa forma, o trabalho se revela como a
atividade que nos propiciou o desenvolvimento da capacidade de pautar a vida não mais nas
determinações orgânicas, mas na construção de alternativas. O trabalho propiciou a superação
da mera condição de natureza, isto é, forçou o afastamento das barreiras naturais e promoveu
o desencadeamento da formação humana.
É, portanto, com o surgimento do excedente de produção que surgem novas
percepções sobre o trabalho e sobre suas possibilidades – as percepções da realidade não
podem existir sem que antes exista a realidade material. Como nos ensinam Marx e Engels
num duro golpe ao idealismo “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência” (MARX e ENGELS, 2007: 94), desse modo, o entendimento do
excedente de produção, bem como as ideias sobre o que fazer com ele só puderam surgir
depois do surgimento do excedente de produção como dado objetivo.
A percepção fundamental gerada a partir da existência material daquele dado novo foi
que se poderia dispor do trabalho alheio, isto é, de que o trabalho de outros homens/mulheres
poderia ser explorado em favor daqueles que reunissem condições para exercer sobre os
dominados o poder necessário para tal.
É assim que com o surgimento do excedente de produção se abre a possibilidade de
uma nova percepção sobre o trabalho e sobre as relações humanas. A partir daí, os grupos
humanos vencedores de conflitos passam a incorporar os indivíduos vencidos por perceberem
que eles eram portadores de capacidade de trabalho e que essa capacidade poderia ser
utilizada produtivamente segundo os interesses e sob o comando dos grupos vencedores. É,
Fundamentos do Trabalho  curso tecnico A
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  • 2. Elmano de Freitas da Costa Governador Jade Afonso Romero Vice-Governadora Eliana Nunes Estrela Secretária de Educação Emanuelle Grace Kelly Santos de Oliveira Secretária Executiva de Cooperação com os Municípios Helder Nogueira Andrade Secretário Executivo de Equidade, Direitos Humanos e Educação Complementar e Protagonismo Estudantil Maria Jucineide da Costa Fernandes Secretária Executiva de ensino Médio e Profissional Maria Oderlânia Torquato Leite Secretária Executiva de Gestão da Rede Escolar Stella Cavalcante Secretária Executiva de Planejamento e gestão Interna da Educação Nohemy Rezende Ibanez Coordenadora da Educação Escolar Indígena, Quilombola, e do Campo Silvana Teófilo Machado Orientadora da Célula do Campo, Indígena e Educação Contextualizada Felipe Pinheiro Lidiane Lima Patrícia Neto Teresa Cristina Franco Vieira Equipe de Educação do Campo e Educação Contextualizada
  • 3. Ficha Técnica Comissão Organizadora José Romário Rodrigues Bastos Lidiane Lima Nohemy Rezende Ibanez Patrícia Neto Silvana Teófilo Machado Teresa Cristina Franco Vieira Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Organização de Conteúdo/Elaboração: Justino de Sousa Junior Revisão Ana Lídia Gonçalves Medeiros
  • 4. APRESENTAÇÃO A Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc-CE), por meio das Coordenadorias da Diversidade e Inclusão Educacional (Codin) e Educação Profissional (Coedp), visando assegurar a formação e o aperfeiçoamento técnico de jovens egressos do ensino médio, residentes na zona rural e em áreas de assentamento, acolheu a demanda por Cursos Técnicos profissionalizantes, no formato subsequente, oriundo de solicitações tanto dos gestores das escolas do campo quanto do Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). São dois Cursos Técnicos a serem ofertados: Administração, com ênfase nas Organizações Sociais, e Agroecologia. Os Cursos serão implementados nas escolas do campo em Áreas de Assentamento de Reforma Agrária: EEM João dos Santos Oliveira, Assentamento 25 de Maio, no município de Madalena (Crede 12); e EEM Francisco Araújo Barros, Assentamento Lagoa do Mineiro, no município de Itarema (Crede 3). Como material de apoio aos estudantes, os cursos contam com 37 apostilas, das quais 32 foram elaboradas pelo Setor de Educação do MST e por profissionais especialistas colaboradores do Movimento, revisadas por profissionais contratados pela Seduc; 3 são materiais das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs); e as outras 2 são guia/livro de outras instituições. Este material é, portanto, fruto do diálogo permanente e qualificado, desde a concepção à sua estruturação, entre a Codin e Coedp/Seduc, os gestores das escolas do campo e o Setor de Educação do MST. Os Cursos buscam fortalecer os sistemas produtivos agroecológicos no contexto do Semiárido e do bioma caatinga, profissionalizando tecnicamente a juventude camponesa, destacando as potencialidades transformadoras do associativismo e cooperativismo. Nesse sentido, os objetos do conhecimento abordados nas apostilas, a metodologia da alternância dos tempos pedagógicos adotada e as condições de suporte ao seu funcionamento, bem como os profissionais docentes técnicos decorrem de diferentes articulações e reuniões de trabalho. A intenção principal desta iniciativa é que se inaugure uma política de profissionalização dos jovens do campo diferenciada, fundamentada na escuta das reais demandas, necessidades e interesses dessas populações. Coordenadoria da Diversidade e Inclusão Educacional
  • 5. SUMÁRIO 1 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES 5 2 TRABALHO E PRÁXIS 10 3 O TRABALHO COMO PRÁXIS FUNDANTE 21 4 TRABALHO, ANTAGONISMOS SOCIAIS E FORMAÇÃO HUMANA 32 5 O TRABALHO E A CRISE REGRESSIVO - DESTRUTIVA DO CAPITAL 48 REFERÊNCIAS 66 SITES VISITADOS 69
  • 6. 5 1 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Trabalho é uma categoria filosófica e científica, compreendida e tratada de maneiras diversas conforme a orientação teórico-metodológica adotada. Diferentes pensadores em diferentes épocas, a partir de diferentes perspectivas e dentro de diferentes contextos históricos, abordaram o tema do trabalho. O trabalho é, portanto, uma categoria polissêmica (FRIGOTTO, 2009), mas essa polissemia apresenta, antes de tudo, como marca fundamental, uma diferença profunda entre as abordagens que emerge, precisamente, da perspectiva sócio-histórica que as orienta, afinal, uma coisa é falar do trabalho sendo um/a trabalhador/a, isto é, na condição de alguém que vive do seu próprio trabalho, outra coisa muito distinta é falar do trabalho na condição oposta, isto é, como alguém que vive do trabalho alheio. Apontar essa diferença fundamental nas abordagens não significa simplificar a questão ou reduzi-la a uma simplória oposição maniqueísta. É evidente que sujeitos que só podem viver da venda de sua própria força de trabalho, muitas vezes, são levados a pensar o trabalho sob uma perspectiva histórico-social contrária aos próprios interesses históricos da classe a que pertencem, a classe social dos trabalhadores, assim como o inverso também pode ocorrer. De todo modo, qualquer apreciação social do trabalho sempre estará relacionada aos horizontes histórico-sociais dos sujeitos em face não só da atividade trabalho, mas também em face da questão da propriedade sobre os objetos do trabalho, os meios de trabalho, os saberes do trabalho, os produtos materiais do trabalho e, sobretudo, em face das relações de poder que se criam em torno do trabalho. Se remontarmos à sociedade grega clássica, encontramos ali ilustres pensadores que, ao tratar do nosso tema em pauta, expressaram exatamente a situação do trabalho naquela sociedade. A divisão social do trabalho na Grécia Antiga1 separava nitidamente os indivíduos 1 Sabemos dos riscos das generalizações. Sabemos que falar de Grécia Antiga clássica significa falar de um prazo de muitos séculos e de povos e cidades-Estados diversos; sabemos enfim, que as classes trabalhadoras naquela região e época eram constituídas de escravos, às vezes de servos, de pequenos produtores, de artesãos, isto é, que a questão era mais complexa do que se costuma apresentar. Conforme observa Saint Croix (1988: 16-7), alertando sobre os riscos da generalização simplória: “la sociedad griega (y la romana) [era] una «economía esclavista»: esta expresión no se refiere tanto al modo en que se realizaba el grueso de la producción (pues casi siempre y en casi todas partes los que participaban en mayor medida en la producción durante la Antigüedad fueron los campesinos y artesanos libres), cuanto al hecho de que las clases propietarias obtenían sus ganancias, sobre todo, gracias a la explotación del trabajo no libre”. A despeito disso, aquela generalização é razoável e válida, pois apanha o essencial da questão. A respeito da tentativa de compreender outros aspectos da realidade grega do trabalho, encontramos as análises de Bonilla (1975) segundo as quais teria havido na tradição grega um período em que o trabalho fora concebido como atividade digna. Conforme aponta o autor, na
  • 7. 6 que eram obrigados a se dedicar ao trabalho, como atividade manual, física, exaustiva, como indivíduos subjugados, posto que trabalhavam sob a condição de escravos; e os indivíduos que se dedicavam às atividades intelectuais, e/ou lúdicas, participavam da vida política e gozavam de tempo para seu livre desenvolvimento. Contudo, a despeito da necessidade de se observar a complexidade da estrutura produtiva e de classes no mundo antigo, Walvin (2014: 15) aponta que terá sido o trabalho escravo que libertou os gregos [parte deles, evidentemente] de desempenharem as suas tarefas quotidianas e que lhes permitiu assumirem vários deveres cívicos. Por isso, em alguns aspectos-chave, foi a escravatura que, ironicamente, abriu caminho para a democracia grega. As reflexões sobre o trabalho que nos legaram os grandes pensadores gregos, portanto, são reflexões desenvolvidas por indivíduos que não eram obrigados a trabalhar, muito ao contrário, viviam do trabalho feito por terceiros e que terminavam apresentando uma visão bastante negativa do trabalho: atividade indigna, realizada por indivíduos igualmente sem dignidade, sem cidadania2 . Como a divisão social do trabalho desde as sociedades antigas até os dias de hoje no fundamental não se modifica, da mesma forma, as visões sobre o trabalho que vão sendo registradas ao longo da história não deixam de ser, no essencial, as visões de indivíduos que viviam sem precisar trabalhar. É somente no âmbito da contradição capital versus trabalho que aparecerá o registro da teorização sobre o trabalho sob a perspectiva dos/das 2 Para se ter uma ideia disso, podemos lembrar como “Aristóteles codificara o esnobismo da antigüidade clássica ao distinguir entre certas artes que eram compatíveis com uma ‘educação liberal’ (as chamadas Artes Liberais, como Gramática, Dialética, Retórica e Geometria) e atividades que envolviam o trabalho com as mãos, que eram profissões ‘manuais’ e, portanto, ‘mesquinhas’, abaixo da dignidade de um cavalheiro” (GOMBRICH, 1999: 296). mitologia grega deuses e heróis trabalham: Hefesto (ou Vulcano, na mitologia romana), trabalhava com metais, era o deus dos ferreiros, dos artesãos; Prometeu é aquele que faz o fogo e o doa aos humanos; Hermes, Hércules e Sísifo, Demeter e Atenas todos estão relacionados a certos ofícios. De modo que, para o autor mencionado “es más tarde, quando la generalización de la esclavitud crea el descredito del trabajo” (BONILLA, 1975: 86). Sem pretender desabonar o ponto de vista do autor, podemos, contudo, observar, dialogando especificamente com a argumentação desenvolvida, que apenas o fato de se associar o trabalho a algumas figuras divinizadas da mitologia grega não parece suficiente para o tomarmos como atividade positiva. Como se sabe, os deuses gregos eram entidades dotadas das mesmas características comportamentais humanas, isto é, amavam, odiavam, protegiam, castigavam, podiam ser egoístas, mesquinhas, vingativas, cruéis, logo, podiam até mesmo trabalhar. Dessa forma, não é apenas porque seja realizado por alguma figura divinizada que o trabalho adquirirá necessariamente significado positivo, isto é, ele ainda poderá estar associado à punição, castigo como é o caso de Hércules e Sísifo e de Hermes, cuja figura está ligada aos mensageiros e viajantes, mas também a comerciantes espertalhões, trambiqueiros e ladrões; é o mesmo o caso de Prometeu, que não fez o fogo, mas o roubou e, inclusive fora por isso punido; ademais, observa-se também que normalmente o trabalho, embora de fato seja uma realidade entre figuras olímpicas, é atividade feita por deuses e heróis mas a serviço de outras divindades maiores, portanto, como atividade heterônoma e, como já apontado, muitas vezes sob a forma de penitência.
  • 8. 7 trabalhadores/ras, isto é, somente a partir dessa marca histórica que aparecerá a versão dos afogados3 sob a forma de uma teorização sistemática. Cabe observar que a afirmação acima não implica nem autoriza a negação da existência ao longo de todo esse período histórico apontado de lutas, revoltas realizadas pelas classes trabalhadoras as quais, evidentemente, expressavam concepções próprias sobre o trabalho. Acontece, porém, que essas concepções não ficaram sistematicamente registradas, foram sufocadas assim como foram sufocadas aquelas lutas4 . É seguramente nos séculos XVIII e XIX, principalmente neste último, que emergiram as visões sobre o trabalho desenvolvidas no horizonte sócio-histórico dos/das próprios/as trabalhadores/ras. Favorecida pelo próprio desenvolvimento contraditório da sociedade burguesa, que institui a sociedade baseada no antagonismo econômico entre o capital e o trabalho e o correspondente antagonismo sócio-político-cultural entre as classes capitalistas e as classes proletárias, desenvolver-se-á a luta de classes moderna e com ela surgirão as expressões teóricas dos/das trabalhadores/ras. Dessa maneira, podemos dizer que é nesse novo cenário histórico que tem lugar a batalha das ideias (como disputa teórica política) em torno da categoria trabalho. É neste cenário histórico que as classes trabalhadoras adquirem voz (expressão teórica) e passam a assumir papel relevante no campo de batalha ideológico a ponto de suas expressões conseguirem penetrar – ainda que sempre minoritariamente – nos diversos ambientes intelectuais desde escolas, academias, meios de comunicação, passando pelo universo bibliográfico, atingindo museus e espaços da chamada alta cultura. 4 Um exemplo disso são as muitas tensões, fugas, revoltas, rebeliões, de escravos que tiveram lugar no mundo Antigo. Uma das mais vultosas talvez seja a conhecida Revolta comandada por Spartaco cujo exército chegou a reunir dez mil homens (AA.VV, 1978). Mas, a luta de classes é coisa mais remota: “en Atenas, donde la democracia alcanzó su mayor vigor, surgió una dura lucha de clases en el plano político en dos ocasiones, una en 411 y otra en 404 [A.C.]” (SAINT CROIX, 1988: 18), assim, também, “entre 508-507 y la destrucción de la democracia a manos de los macedonios en 322 se produjeron sólo dos episodios en los que la lucha de clases de Atenas irrumpiera en forma de violenta stasis, o guerra civil (no me queda sino mencionar, de pasada, las dos conspiraciones oligárquicas abortadas de 480-479 y de 458-457, y el asesinato del líder democrático radical Efialtes en 462-461 [A.C.])(Idem, ibidem, p. 342). 3 “Existe uma teoria segundo a qual o prestígio do boto entre pescadores, surfistas e outros seres marinhos se deve a uma deformação estatística. Tudo que sabemos do bom caráter do boto vem do relato de quase afogados que ele salvou, empurrando-os para a praia. Mas o boto empurra tanto para a praia quanto para o alto-mar. Estatisticamente, talvez tenha empurrado mais gente para a morte do que para a praia. Só que a versão dos afogados ninguém fica sabendo” (VERÍSSIMO, L. F. A versão dos afogados: novas comédias da vida pública: 347 crônicas escolhidas. Porto Alegre, L&PM, pp. 75).
  • 9. 8 Nesse período, grandes figuras do mundo das artes5 , da ciência e da filosofia passaram a expressar com força uma visão de sociedade que revelava a perspectiva histórico-social dos/das trabalhadores/ras inaugurando uma nova etapa do debate social, uma etapa em que, a partir de então, as explicações sobre o mundo, sobre a vida não seriam mais um monólogo das classes dominantes, que viviam e vivem do trabalho alheio e justificam o mundo e a vida a partir desse fundamento ontológico material. Depois dessa apresentação inicial, que apanha o elemento essencial, contraditório das expressões teóricas sobre o trabalho, cuja pretensão, como já assinalamos, não é de simplificar a questão, mas de consolidar uma demarcação fundamental, muitas vezes negligenciada, advertimos que seguiremos um caminho de análise que pretende alcançar a realidade histórica do trabalho livre de preconceitos de classe e buscando criticamente compreender o sentido do trabalho para a constituição e desenvolvimento do humano; o surgimento das contradições classistas em torno do trabalho; a realidade do trabalho como negação de humanidade; a realidade do trabalho como fonte de exploração e opressão de classes, de povos, de culturas. Nessa altura de nossa reflexão, isto é, antes de avançarmos em questões mais profundas da problemática do trabalho, deveremos apresentar algumas notas que nos permitam estabelecer um acordo conceitual básico em torno do que seja trabalho. São conhecidas as grandes polêmicas, as profundas controvérsias que envolvem a categoria trabalho: o que é e o que não é trabalho; trabalho produtivo e trabalho improdutivo; a centralidade e a não centralidade do trabalho; o fim do trabalho, entre outras. Como iniciação da abordagem nos limitamos por ora a indicar que o trabalho é uma atividade humana, teleológica, que se caracteriza inicialmente como prática material de 5 Se nos concentrarmos no campo das artes visuais, nos situaremos num território que, durante muito tempo, nada além do horizonte das classes dominantes teve vez, por isso, raramente apareceram retratados o trabalho e os trabalhadores. Podemos mencionar como duas dessas exceções raríssimas as tentativas de retratação pictórica da gente trabalhadora nas obras de Jacob Jordaens, das quais destacamos “O trabalho” (1620) e de Caravaggio. O pintor italiano, mediante a encomenda de representar São Mateus para figurar no altar de uma igreja de Roma, resolveu fazê-lo como supunha ter sido a realidade daquela figura histórica, então pintou-o como um velho e pobre trabalhador, calvo e descalço, com os pés sujos de terra e poeira, agarrando desajeitadamente o enorme volume e franzindo ansiosamente o cenho, sob a tensão da inabitual tarefa de escrever, sendo um homem da vida prática. Obviamente essa obra foi censurada e recusada e teve que ser refeita. Foi realmente após a Revolução de 1789, já no século XIX, portanto, no contexto das profundas transformações ocorridas naquele período, transformações que encobriam todas as esferas da vida social, dentro das quais se encontravam as mudanças na vida econômica, social e política dos trabalhadores; foi somente naquele cenário sócio cultural transformado que a realidade do trabalho e dos trabalhadores e trabalhadoras passou a ocupar as telas e tomar assento nos salões de arte. Nesse período aparecerão representados/das trabalhadores/as nas telas de Goya, Millet, Gougain, Van Gogh, entre outros.
  • 10. 9 transformação da natureza com a finalidade de produzir coisas úteis e capazes de atender às necessidades humanas vitais de existência. De início é assim que definimos o trabalho, isto é, tentando alcançar os elementos essenciais que fazem dessa a atividade fundante do ser social. Sem entrar ainda no enfrentamento de dificuldades contemporâneas para atualizar uma rigorosa definição de trabalho, e essas dificuldades não são de pequeno vulto, assumimos a perspectiva segundo a qual trabalho é a atividade que permite aos que nada possuem senão sua força de trabalho adquirir os meios de viver ou sobreviver na sociedade contemporânea. Se em muitas épocas passadas o trabalho se definia como atividade produtora de valores de uso, de coisas úteis para a produção da existência humana através da transformação da natureza, nas sociedades contemporâneas muitos setores das classes trabalhadoras – aquelas classes que não podem sobreviver senão através da venda de sua própria força de trabalho – obtém através do trabalho – e só através deste podem fazê-lo – seus meios de vida mas sem mais estabelecer relação direta com a natureza como objeto da transformação. Nesse sentido, a ausência da natureza como objeto direto da práxis produtiva não apaga o sentido laboral da atividade. Esse alargamento da possibilidade de definição do trabalho, contudo, não pode alimentar qualquer tentativa de apagar os antagonismos que envolvem a produção da existência: nem toda atividade é trabalho e nem todos os indivíduos são trabalhadores. Trabalho é precisamente a atividade que se constitui como única condição de produção e sustentação material da sociedade humana; trabalhador é aquele indivíduo que tem na sua própria atividade remunerada sua única condição de sobrevivência. O trabalho é, assim, uma práxis humana que tem qualidades e características próprias, únicas que fazem dele um tipo de práxis6 especial. O trabalho se distingue de todas as demais práxis, ao mesmo tempo em que é a protoforma da atividade humana (LUKÁCS, 2013) por ser aquela que pratica e materialmente sustenta a existência material humana. O trabalho é a primeira ação humana prática em resposta às necessidades da existência. O trabalho foi a forma através da qual nossos ancestrais remotos adquiriram, conquistaram pouco a pouco o domínio sobre as condições materiais do viver e puderam efetivamente dar o salto ontológico na sua transformação em seres falantes e pensantes. Do ponto de vista da ontologia 6 Entendemos que tanto a forma de origem grega “práxis” quanto a forma portuguesa “prática” podem revestir o conceito e servir de expressão do dado objetivo que é a atividade humana transformadora de realidades materiais. Para maiores aprofundamentos, sugerimos Barata-Moura (1986(a), 1986(b), 1994, entre outros), Sousa Jr. (2021), além de Kosik (1995), Konder (1992) e Vázquez (2007).
  • 11. 10 materialista dialética, o trabalho é a atividade vital, fundante exatamente porque é ele que permite a abertura do processo de transição do ser natural ao ser social que não se consuma somente pelo trabalho, mas, de qualquer forma, se consuma praticamente, noutras palavras, se consuma como realização da práxis. Lembremos mais uma vez: o trabalho é uma práxis, mas a práxis não se resume ao trabalho; por sua vez, o homem/mulher é um ser essencialmente prático, isto é, um ser da práxis. 2 TRABALHO E PRÁXIS Uma abordagem sobre o trabalho como este que se desenvolve não pode prescindir de um exame da relação entre as categorias trabalho e práxis. Para começar esse exame, devemos atentar para as observações de Leandro Konder que vê na elisão da categoria práxis um grave problema da tradição marxista. De fato, a práxis é uma categoria filosófica importante que não pode ser subsumida no trabalho. Para o autor, um mal-entendido que ocasionou graves prejuízos à compreensão do conceito de práxis elaborado por Marx se encontra na redução da práxis ao trabalho” (1992: 125). Konder atribuía enorme importância à categoria práxis a ponto de afirmar que “do papel que se conceder à práxis depende o próprio destino do marxismo como teoria (novo teoricismo ou arma da revolução) (idem, ibidem, p. 123). Outra voz que harmoniza com a de Konder e que trazemos agora à cena é a de Kosik. Depois de, igualmente a Konder, reconhecer a enorme importância daquela categoria, observa o autor tcheco que, em torno dela e da sua relação com o trabalho, reside um grave problema teórico que consiste numa “obscuridade conceitual das definições da práxis e do trabalho: o trabalho é definido como práxis, e a práxis nos seus elementos característicos, é reduzida a trabalho” (1995: 222). Acreditamos que a tradição marxista – pelo menos parte não desprezível dela - de fato tem uma grande dívida para com a práxis, o que é um paradoxo, dado que é o marxismo a corrente que mais destaca e ressalta a dimensão da práxis. Essa dívida consiste precisamente na não compreensão da práxis como categoria filosófica. O paradoxo apontado acima consiste precisamente numa atribuição de valor simbólico extremamente elevado à palavra práxis ao mesmo tempo em que dela é destituído seu estatuto de categoria filosófica. Alguém já disse que as palavras são como cravos vermelhos7 . Com 7 Textualmente, Eduardo Prado diz que “os textos que escrevemos não poderão deixar de incluir estereótipos: palavras que são resenhas, emblemas, de reconhecimento, cravos vermelhos”. (COELHO, Eduardo Prado.
  • 12. 11 essa expressão, o autor, então, enfatizava o caráter essencialmente ideológico da linguagem fazendo menção ao magnífico símbolo da Revolução Portuguesa de 1974. Aproveitamos essa menção para dizer que a práxis é uma espécie de cravo vermelho na medida em que é uma palavra carregada de simbolismo, mas não é, na maioria das vezes, considerada devidamente como uma categoria filosófica. Opitz não só defende o ponto de vista de que a práxis é uma categoria, como insiste na compreensão de que ela ocupa posição decisiva no edifício teórico marx engelsiano. Para ele, essa categoria é essencial para o pensamento marxiano, pois representa a própria definição do caráter da ontologia materialista de Marx. Segundo Opitz (1980: 86), Marx via nela [na práxis] a característica fundamental da vida humana, o fundamento da existência humana, o processo metabólico do homem com a Natureza, no qual ao mesmo tempo o próprio homem se transforma; ele definiu-a como a essência do homem, como o processo material da autocriação do homem efetuado com consciência; ele descobria a significação da atividade prática para a vida humana e para o desenvolvimento histórico da humanidade, da qual, primeira e consequentemente, resulta que o ponto de vista da vida e da práxis também tem de ser o primeiro e fundamental ponto de vista da teoria do conhecimento. A importância da práxis como categoria ressalta quando se constata que a própria perspectiva materialista de Marx vai se construir simultaneamente com a - ou até mesmo em função da - definição do lugar da categoria práxis na sua ontologia. Ainda de acordo com Opitz (1980: 95), a viragem de Marx para o materialismo esteve ligada simultaneamente a uma mudança fundamental da sua concepção da práxis”. Mais uma vez contribuindo para o reforço do caráter analítico categorial da práxis e de sua importância para o materialismo dialético, Opitz (1980: 103) afirma que “Marx derivou todo o sistema das suas produções conceituais de uma análise da atividade vital, prática dos homens. Na mesma direção, isto é, indicando o destacado lugar da práxis dentro da perspectiva marxiana, Barata-Moura (1994: 88) conclui que a meu ver, decerto polemicamente - um dos contributos maiores de Marx para o patrimônio filosófico da humanidade situa-se precisamente neste quadro duplamente articulado de um reconhecimento do papel central da prática na mediação história do ser pelas coletividades humanas, e de uma sua compreensão essencial como atividade material de transformação. (Grifo do autor). Se seguirmos com o filósofo português, encontraremos a partir dele a confirmação de que também Lenin partilha da mesma ideia, isto é, da perspectiva que põe a categoria práxis Aplicar Barthes. Prefácio. In: BARTHES, R. O Prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1973, p. 9-30). Localizada a citação a posteriori, resolvemos manter a redação no corpo do texto inalterada.
  • 13. 12 no centro dos debates sobre a formação humana e sobre a emancipação humana que já tinha sido colocada pelos fundadores do materialismo dialético: é de ontologia também que Lénin se ocupa quando (...) se debruça sobre o caráter constitutivo da prática (...) não só pelo papel que a prática é chamada a desempenhar no processo de veri-ficação da objetividade (do teor objetivo) dos nossos conhecimentos (...) mas também pela dimensão (efetivamente real) de modelação, de feitura e de transformação, do ser que ela, na concreção histórica da sua inerência à materialidade se reveste (BARATA-MOURA, 2012: 124-5) (grifos do autor). Voltando a Kosik, encontramos nele a ideia de que a práxis é uma categoria importante porque fornece a base para a própria definição do homem/mulher, pois representa “o modo específico de ser do homem, a práxis com ele se articula de modo essencial, em todas as suas manifestações, e não determina apenas alguns dos seus aspectos ou características. A práxis se articula com todo o homem e o determina na sua totalidade” (KOSIK, 1995: 222-223). A compreensão de que a práxis se constitui como uma categoria fundamental para o marxismo também se encontra em Vázquez. Para o autor hispano mexicano, nenhum marxista que se preze enquanto tal, isto é, que não se proponha deliberadamente a extirpar sua medula revolucionária pode elidir esta categoria central. Nenhum dos grandes teóricos marxistas do passado ou do presente põe em dúvida a importância da práxis, embora nem sempre se consiga destacar devidamente seu lugar privilegiado dentro do marxismo, nem enriquecer o conteúdo desse conceito por não se atender às formas novas e específicas que, em seu múltiplo e incessante desenvolvimento, a prática real mostra (VÁZQUEZ, 2007: 54). Para o autor, a práxis é a grande categoria que expressa a condição do homem/mulher como ser de atividade. A práxis é a categoria capaz de encobrir ou abrigar na sua amplitude conceitual as diversas formas sob as quais o humano se faz humano. Se o homem existe, enquanto tal, como ser prático, isto é, afirmando-se com sua atividade prática transformadora diante da natureza exterior e diante da sua própria natureza, a práxis revolucionária e a práxis produtiva constituem duas dimensões essenciais de seu ser prático. Mas, por sua vez, tanto uma como outra atividade, junto com as restantes formas específicas de práxis, não são mais do que formas concretas, particulares de uma práxis total humana, graças à qual o homem como ser social e consciente humaniza os objetos e se humaniza a si mesmo (VÁZQUEZ, 2007: 232). Se partirmos dessa compreensão, podemos avançar na consideração da relação entre trabalho e práxis e assim encontramos no autor a definição do trabalho como modalidade da práxis, ou seja, o trabalho é práxis produtiva, práxis fundamental porque nela o homem não só produz um mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetos que satisfazem
  • 14. 13 necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se plasmam neles fins ou projetos humanos, como também no sentido de que na práxis produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo (Idem, ibidem, p. 228). Como se pode observar pelo conjunto das colocações expostas, já bastante representativo, os diferentes autores reprovariam um procedimento razoavelmente comum em certos círculos do pensamento crítico que consiste em subsumir a práxis no trabalho ou em tomá-la simplesmente como uma expressão charmosa do léxico revolucionário, que serve de ornamentação e embelezamento ao texto crítico, que infla a palavra práxis de valor simbólico, mas que, em contrapartida, traz a visão que consiste no esvaziamento de seu sentido filosófico categorial mais profundo. Os autores mencionados ressaltam a importância da práxis, defendem que ela não pode se reduzir a uma mera expressão que pode ou não ocorrer, dependendo da conveniência discursiva ou estilística do texto; eles destacam a práxis como uma categoria que cumpre papel analítico específico independentemente da categoria trabalho, ainda que ontologicamente articulada a esta. Depois da exposição acima, pode ser que alguém se encontre a pensar: afinal, o trabalho é uma práxis, mas práxis não é trabalho? Parece confuso! De fato, nas elaborações dos autores citados é mesmo assim que se coloca a questão: a práxis ora é uma categoria diferente do trabalho, ora é categoria que com ele se identifica, ou é a categoria que o comporta. O trabalho é uma modalidade de práxis, é uma forma de ser da práxis, é a práxis produtiva. A práxis, por sua vez, define-se como atividade prática, material, atividade humana criadora, transformadora, teleologicamente orientada. Nesse sentido, o trabalho é uma práxis, é a práxis que se distingue de todas as outras formas de práxis, porque é a primeira resposta (prática) dos homens/mulheres às demandas materiais da existência; porque promove a produção material da vida; e porque é a condição de possibilidade de todas as demais formas de práxis; além disso, o trabalho se distingue das demais modalidades de práxis, porque sua posição teleológica visa a modificar causalidades dadas ao passo que as demais formas de práxis modificam causalidades postas pela intervenção humana, social. Essa dupla forma de referir a práxis, comum a Lukács, Vázquez, Konder e Kosik, consiste na dupla posição em que se tem de um lado a categoria práxis, identificada com o trabalho, uma vez que este se define, ele próprio, como tipo de práxis, como práxis produtiva; e, de outro, tem-se a práxis distinguindo-se do trabalho na medida em que se associa ao conjunto de atividades as quais, em bloco, se diferenciam qualitativamente do trabalho, não só
  • 15. 14 pelos objetos que transformam, mas, sobretudo, pelo grau de prioridade ontológica que possuem no encadeamento da realidade humano social. Em linhas gerais, quer dizer, deixando de lado outras questões problemáticas que podem surgir numa comparação mais profunda entre os autores, acreditamos que todos eles convergem para a compreensão comum da práxis como atividade humana fundamental na medida em que expressa a própria condição humana. Para todos eles, o trabalho é atividade humana material, transformadora e define-se como práxis, mas como uma práxis diferente de todas as outras formas possíveis, porque é a única que se revela como a condição material, última, efetiva da existência humana. Nesse sentido, o trabalho é uma práxis, mas é a práxis fundante de toda uma nova ordem de tipos de práxis diferentes do trabalho. Esta outra ordem de atividades humanas materiais, transformadoras, ao mesmo tempo em que é indicadora da elevação do homem/mulher em relação à sua condição natural original; à medida que é expressão da humanização do homem/mulher e do avanço do processo de afastamento das barreiras naturais; por outro lado, não deixa de ser ontologicamente secundária em relação ao trabalho. Esta prioridade ontológica do trabalho é que põe objetivamente a distinção qualitativa entre o trabalho e as demais modalidades de práxis e é o que, consequentemente, justifica a compreensão teórica dessa distinção entre trabalho e demais modalidades da práxis. A devida consideração das especificidades da práxis produtiva – o trabalho - e da práxis interativa é da maior importância para toda reflexão que pense o humano como o ser que se faz – aprendendo a ser – a partir de sua práxis. A consideração precisa das diferentes formas através das quais o homem/mulher transforma as realidades objetivas no seu processo de vida é o caminho para a correta compreensão das transformações práticas que são a condição do viver e são, ao mesmo tempo, o exercício por meio do qual o ser aprende a ser humano. O humano é o resultado dos diferentes processos práticos de transformação de realidades naturais (práxis produtiva – trabalho) e sociais (práxis interativa). Por isso a práxis é uma categoria tão importante, porque o humano é o ser da práxis, ser que não vive sem transformar seja natureza, seja sociedade e só pode ser – se tornar – humano nesse processo de transformações. O trabalho, nesse sentido, é a práxis ontologicamente prioritária, pois representa a transformação da natureza com a finalidade de produzir os meios materiais para a satisfação das necessidades imediatas da existência material. Mas o desenvolvimento humano, que se abre com as transformações promovidas
  • 16. 15 pelo trabalho não se encerra aí, muito ao contrário, o homem/mulher é mais humano quanto mais ele diminui relativamente sua dependência das dimensões orgânicas, naturais. A condição humana propriamente dita, isto é, o estágio de desenvolvimento em que o humano se estabelece e se consolida é, ao mesmo tempo, a etapa em que as determinações orgânicas, naturais da vida vão sendo relativamente reduzidas a graus mínimos; ou quando, estando esse reducionismo das determinações orgânicas limitado, passam a adquirir essas mesmas determinações, sentidos e significados que transcendem totalmente à mera condição orgânica8 . A condição humana mais desenvolvida é exatamente aquela em que o homem/mulher se eleva e se afasta das determinações naturais, é aquele estágio em que o 8 Isso não significa que o dado orgânico diminua até desaparecer, significa que o dado natural vai sendo cada vez mais significado e ressignificado socialmente e que ele tende a ser, progressivamente, menos determinante dos processos da vida humana social. Nesse caso, podemos refletir um pouquinho sobre a morte, que consiste num fato inelutável da vida. Todo organismo tem prazo de vida, que não se sabe exatamente qual vem a ser, pois, diferentemente de algumas crendices populares, a hora da morte de nenhum ser vivo não está demarcada previamente. Pois bem, embora a morte, em última instância, escape ao controle humano, são fartas as demonstrações do enorme aumento da capacidade de melhorar a vida e de ampliar seu prazo de duração. Muito embora, o oposto também seja verdadeiro, isto é, o aumento da capacidade humana de destruir vida tanto humana como natural. Dessa forma, podemos confirmar que o citado fenômeno, cuja razão de ser pertence ao mundo dos organismos vivos, já adquiriu elementos sociais históricos que ultrapassam o dado meramente orgânico. Mesmo quando os elementos transcendentais entram em cena (noções de vida após a morte, de tribunais divinos que julgam o bem e o mal e premiam ou punem os mortos e definem seus destinos posteriores) isso não é mais que uma demonstração da capacidade humana de encobrir com suas criações o fenômeno natural. Então, embora a morte seja um fenômeno que atingirá em algum momento a todos os viventes, os fatores socio históricos intervém de modo significativo nesse processo de modo que não se pode de maneira alguma afirmar que a morte se abaterá sobre todos independentemente de qualquer outro fator. Vejamos a título de exemplo o caso de uma sociedade como a brasileira atingida pela epidemia de um vírus (Covid-19), que é um ser da natureza com capacidade de provocar adoecimento e morte dos indivíduos humanos. Nesse caso é evidente a discrepância entre as classes sociais no sentido de evidenciar diferentes modos de exposição à contaminação, assim como diferentes possibilidades de obter a assistência mais adequada e mais eficiente. Então, a morte em função de um elemento natural, um vírus, acaba “ressignificada” ou, melhor dizendo, determinada em grande medida pelos fatores econômicos, sociais, políticos, etc. Afora isso, as estatísticas brasileiras revelam quem mais morre no Brasil: os indivíduos mais pobres, negros e pardos (ver: “Pessoas negras e pardas morreram 4,7 vezes mais do que brancas em ações da polícia no RJ nos últimos 15 anos” em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/11/20/pessoas-negras-e-pardas-morreram-47-vezes-mais-do-q ue-brancas-em-acoes-da-policia-no-rj-nos-ultimos-15-anos.ghtml ; “Negros apresentaram risco de morte 9% superior ao de brancos em 2020” em https://ufmg.br/comunicacao/noticias/pretos-e-pardos-tiveram-risco-de-morte-9-maior-do-que-brancos-no-brasil- em-2020 , dentre outras fontes). A brilhante canção de Chico Buarque e Edu Lobo trata com muito bom humor essa relação entre o social e o natural em torno da morte – a propósito, a própria existência dessa canção já é uma demonstração do que estamos afirmando: “I Funeral de rico - Rico quando vai / Desta vida, sempre vai de mau humor / Ir deitado de casaca é um terror / Abafado e morto de calor / Aturar a marcha fúnebre. Só de imaginar / Que os amigos vão deitar nos seus sofás / Vão tomar os seus vermutes, os seus cristais / E as suas mulheres principais / Já na beira do seu túmulo. - Gente, quanta gente / Que excelente funeral / - Ficas bem de preto / E o cabelo ao natural / - Dizem que o eminente / Triplicou seu capital / - Vai sobrar para gente / Que nem viu ele vivo / - Tem até donativo / Para as obras do hospital. II Enterro de pobre - Pobre quando vai / Sempre dizem que ele vai para uma melhor / Vai olhando aquela gente a seu redor / Todos com poeira e com suor / E ele achando a coisa ótima. Só de imaginar / Que os amigos vão pagar o seu caixão / O barbeiro, o aluguel do rabecão / O vinho do padre, o sacristão / E o sermão na igreja gótica. - Gente, não tem gente / Tem parente pobre só / - Esse teu modelo / Mais parece um dominó / - Nem o indigente / Quis herdar seu paletó / - Vai sobrar para a gente / Que nem viu ele vivo / - Tem até um passivo / No caderno do Jacó” (Edu Lobo - Chico Buarque. Opereta do moribundo. In: O corsário do Rei. Mariola Edições Musicais 1985).
  • 17. 16 homem/mulher cria outras esferas de relações e passa a ter como vitais outras formas de satisfação, até porque também desenvolveu outras necessidades, de caráter histórico-social, que não são mais apenas aquelas associadas à sua dimensão natural. É quando se torna imprescindível para a existência humana (quase) tanto quanto o ar que se respira, a água e o alimento que organicamente sustentam também a palavra, a poesia, a música, a pintura, a beleza, enfim. Acontece que o desenvolvimento do ser social, que representa esse elevar-se, esse afastar-se da condição de simples ser que compõe junto com outras espécies o imenso catálogo dos seres da natureza, tem como condição de possibilidade o processo fundante que reside na produção das condições materiais da existência, que é tarefa da práxis produtiva, do trabalho. Assim como a condição humana mais elevada é aquela em que homens e mulheres não se resumem a seres portadores de necessidades orgânicas e que vivem meramente para satisfazer essas necessidades, conforme aponta Marx já nos seus magníficos Manuscritos econômico filosóficos de 18449 ; também as outras modalidades de práxis, que partem do trabalho e estão fundadas nele, revelam-se superiores em relação ao trabalho ainda que a prioridade ontológica de todas as práxis humanas recaia sobre o trabalho. Na passagem colocada logo a seguir, Lukács (2013: 93) caracteriza essas outras modalidades da práxis em relação ao trabalho como “mais evoluídas”, “mais complexas”. Para o autor, o caráter dialético do trabalho como modelo da práxis social [indica] que esta última, nas suas formas mais evoluídas, apresenta muitos desvios com relação ao próprio trabalho. (...) O trabalho é a forma fundamental e, por isso, mais simples e clara daqueles complexos cujo enlace dinâmico forma a peculiaridade da práxis social. (...) os traços específicos do trabalho não podem ser transferidos diretamente para formas mais complexas da práxis social. (...) A identidade de identidade e não identidade, a que já nos reportamos muitas vezes, remonta, nas suas formas estruturais, assim acreditamos, ao fato de que o trabalho realiza materialmente a relação radicalmente nova do metabolismo com a natureza, ao passo que as outras formas mais complexas da práxis social, na sua grandíssima maioria, têm como pressuposto insuperável esse metabolismo com a natureza, esse fundamento da reprodução do homem na sociedade. (LUKÁCS 2013: 93). O grave problema de muitas reflexões que se desenvolvem dentro do que podemos caracterizar como campo do pensamento crítico, segundo nosso modo de entender, é justamente o de ter considerado apenas a práxis produtiva, isto é, o trabalho como a base 9 Embora esteja se referindo ao sujeito submetido a relações de trabalho alienado e estranhado, a condição animal mencionada nos serve de parâmetro: “o trabalhador só se sente livre e ativo em suas funções animais comer, beber e procriar, quando muito habitação, adornos, etc, e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal” (MARX, 2008: 83).
  • 18. 17 exclusiva da formação humana o que resulta num grave reducionismo da análise com perigosas implicações teóricas e práticas. Para Kosik, o problema da relação trabalho e práxis que, como vimos, adquire grande relevância e pode se constituir numa imensa dificuldade, passa pela consideração da amplitude de cada uma dessas categorias e pelo modo como elas determinam a constituição e desenvolvimento do ser social. Segundo Kosik (1995: 224), a práxis compreende – além do momento laborativo – também o momento existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a esperança, etc., não se apresentam como ‘experiência’ passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da realização da liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de ser parte da práxis. (grifos do autor). A observação de Kosik é da maior importância, especialmente para o marxismo, precisamente porque nos alerta para o perigo do reducionismo que seria assentar toda a reflexão sobre o humano apenas na categoria trabalho. Como se pode observar, para o autor, o “momento laborativo”, mais estritamente vinculado ao trabalho, é parte da práxis, ou seja, é parte de um processo que ultrapassa a dimensão produtiva e modifica o sujeito de modo mais amplo e global, atuando sobre as diversas esferas da formação do ser social. Tratando ainda da relação entre as categorias trabalho e práxis, Netto e Braz corroboram a ideia de que a segunda determina muito mais globalmente que o primeiro o ser social (2008: 43). Afirmam os autores que o trabalho é constitutivo do ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho. Quanto mais se desenvolve o ser social, mais as suas objetivações transcendem o espaço ligado diretamente ao trabalho. No ser social desenvolvido, verificamos a existência de esferas de objetivação que se autonomizaram das exigências imediatas do trabalho – a ciência, a filosofia, a arte, etc. (Grifos dos autores). Os autores percebem a maior amplitude e alcance da categoria práxis em relação ao trabalho de modo que a primeira contém o segundo. Essa concepção, que nos parece absolutamente fiel à visão dos fundadores do materialismo dialético, não significa de modo algum um enfraquecimento do vigor crítico da análise, pois o trabalho continua sendo a atividade vital, fundante do ser social, apenas ele deixa de ser a única atividade que explica toda a formação do ser social.
  • 19. 18 O ponto de vista defendido por Kosik é o mesmo de Netto e Braz para quem o fundamental a se observar no tratamento das duas categorias é basicamente a amplitude do campo das transformações e o alcance das implicações dessas transformações no que diz respeito ao processo de produção e reprodução social, a categoria da práxis permite apreender a riqueza do ser social desenvolvido: verifica-se, na e pela práxis, como, para além das suas objetivações primárias, constituídas pelo trabalho o ser social se projeta e se realiza nas objetivações materiais e ideais da ciência, da filosofia, da arte, construindo um mundo social, humano... Na sua amplitude, a categoria da práxis revela o homem como ser criativo e autoprodutivo: ser da práxis, o homem é produto e criação da sua auto-atividade, ele é o que (se) fez e (se) faz (NETTO e BRAZ, 2008: 44) (grifos dos autores). As elaborações a respeito das categorias trabalho e práxis expostas acima são importantes porque nos ajudam a refletir sobre as seguintes questões relacionadas ao trabalho e à práxis as quais registramos para posteriores desenvolvimentos: o que, em cada uma delas, se transforma? Que motivações e objetivos dirigem essas atividades transformadoras? Que tipo de instrumentos práticos elas envolvem? Que tipo de conhecimentos elas mobilizam e produzem? Que implicações geram para a formação dos sujeitos? Ainda perseguindo o propósito de aclarar os sentidos das categorias trabalho e práxis (as demais práxis, que se distinguem do trabalho) e o modo de relacionamento entre elas, tentaremos recuperar num modo um tanto arriscadamente didático a partir das elaborações desenvolvidas por Lukács, no capítulo O trabalho da sua Ontologia: Trabalho (práxis produtiva) Práxis interativas I) É atividade produtiva, não no sentido capitalista, mas no sentido de que produz coisas úteis - valores de uso. I) nessas relações não se produzem valores de uso, são relações entre sujeitos, que servem de mediação para aquela produção e relacionam-se com ela apenas indiretamente. II) Trata-se do metabolismo material, prático desenvolvido entre homem/mulher e natureza. II) É a relação material, transformadora que se desenvolve entre sujeitos, isto é, que toma como objeto o social e não a natureza. III) No trabalho a atividade se desenvolve tendo como única preocupação sua adequação à realidade objetiva das coisas envolvidas, isto é, mediante a prática transformadora os objetos transformados não reagem senão fisicamente, não revoltam, não se indignam, não se entristecem, etc. III) Dado que o objeto desse tipo de práxis é outro sujeito, às finalidades, intencionalidades, método, tipo de abordagem, enfim, precisam considerar as reações e comportamentos do seu objeto, pois ele pode aceitar, consentir ou reagir, questionar, ponderar, revoltar-se, indignar-se, confrontar-se; ele nunca é matéria passiva perante a posição teleológica da práxis. IV) No trabalho, atua-se sobre causalidades dadas ou espontâneas, IV) Nas outras modalidades de práxis, diferentemente do que se passa no trabalho, não são as causalidades dadas o mais importante;
  • 20. 19 criando, através dessa transformação, causalidades postas; aqui a atividade realiza-se mais diretamente com as causalidades postas, é a estas que visa atacar e é no circuito dessas que se desenvolve. V) O trabalho é uma atividade objetiva em que os valores verdadeiro e falso ressaltam com maior independência dos sujeitos, isto é, não são dependentes das vontades dos sujeitos. V) Nas outras modalidades de práxis, os parâmetros de verdadeiro e falso não se colocam com a mesma objetividade característica do trabalho. Enquanto neste o êxito do resultado pode ser atingido com cálculos precisos, planejamentos objetivos relacionados ao modo de abordagem adequado do objeto, à sua forma, quantidade, volume, peso, espessura, etc.; nas outras formas de práxis, como o objeto é outro sujeito, as definições gerais em busca de uma ação exitosa precisam obedecer à dinâmica social, política, histórica, cultural, ideológica, psicológica, afetiva, emocional etc. O quadro acima que, como dissemos, resulta de uma elaboração feita a partir de um contexto em que Lukács trata o trabalho dentro de uma perspectiva em que se dá metodologicamente certo grau de abstração10 , tem valor relativo, serve para uma aproximação, serve para percebermos em linhas gerais algumas diferenças entre a práxis transformadora de natureza e a práxis transformadora de sociedade. Na consideração aqui proposta, partimos da compreensão de que tanto a práxis em geral quanto o trabalho como tipo particular de práxis se definem fundamentalmente como atividades práticas materiais, transformadoras, portanto, situando a práxis como categoria importante dentro da perspectiva materialista dialética. Todavia, destacamos a diferença de que o trabalho é – exclusivamente - a atividade dedicada à transformação material com a finalidade de produção da existência, que tem como fim assegurar materialmente a existência humana. Nesse sentido, o trabalho é práxis, é a práxis produtiva. Para além da transformação material de caráter produtivo, outras atividades transformadoras também importantes, igualmente formadoras, são desenvolvidas pelos homens e pelas mulheres e são distintas do trabalho. Podemos dizer, em linhas gerais, recuperando ideias expostas no quadro acima que, enquanto o trabalho se ocupa originalmente em transformar causalidades dadas, as práxis não produtivas se ocupam em transformar causalidades postas. 10 “E mesmo que esse estado inicial do trabalho seja uma realidade histórica, cuja constituição e construção tenham levado um tempo aparentemente infinito, com razão chamamos nossa afirmação de abstração, uma abstração razoável no sentido de Marx. Ou seja, sempre deixamos de lado conscientemente o entorno social – que necessariamente surge simultaneamente com aquele – com o fim de poder estudar as determinações do trabalho na sua máxima pureza possível” (LUKÁCS, 2013: 156-7).
  • 21. 20 As demais modalidades de práxis, que surgem do trabalho, isto é, são geradas a partir do processo desencadeado pelo trabalho, são ontologicamente secundárias em relação a ele, muito embora não menos importantes que o mesmo para a definição do ser social. Todas as demais modalidades de práxis, a política, a educativa, a estética, a artística, esportiva, etc., guardam entre si a mesma característica fundamental, distinguindo-se elas todas em bloco do trabalho porque são posições teleológicas estabelecidas mediante - e atuantes sobre - outros sujeitos e não sobre a natureza com o objetivo de produzir valor de uso. Por isso, por vezes os autores referidos aqui (Kosik, Vázquez, Lukács) tratam o trabalho ora como tipo de práxis, ora como categoria distinta dela. Lukács também reforça essa mesma perspectiva traçada no sentido de compreender a relação entre trabalho e práxis da mesma forma, isto é, reafirmando a ideia de que a práxis possui caráter mais abrangente que o trabalho, e que, consequentemente, explica melhor, de maneira mais completa o humano que o trabalho. O trabalho não tem o alcance que se verifica na práxis, categoria esta que designa a atividade humana em geral e alcança a complexidade aberta pela atividade prática, transformadora primária. Em Lukács se confirma a noção de que a práxis é a grande categoria que comporta o trabalho, mas não se resume a ele. Daí podemos afirmar que todo trabalho é práxis, mas nem toda práxis é trabalho. Ao mesmo tempo em que reafirma a primazia ontológica do trabalho como modelo de toda práxis, Lukács (2013: 83) afirma que o trabalho [é] o modelo de toda práxis social, de qualquer conduta social ativa. (...) [mas] o que distingue o trabalho nesse sentido das formas mais desenvolvidas da práxis social [é que] nesse sentido originário e mais restrito, o trabalho é um processo entre atividade humana e natureza: seus atos estão orientados para a transformação de objetos naturais em valores de uso. Nas formas ulteriores e mais desenvolvidas da práxis social, destaca-se em primeiro plano a ação sobre outros homens, cujo objetivo é, em última instância – mas somente em última instância –, uma mediação para a produção de valores de uso. O ponto de vista que vem sendo construído e exposto difere-se de outros que estabelecem outros critérios para distinguir trabalho e práxis. Esse ponto de vista não só se difere, mas recusa aqueles outros que distinguem trabalho e práxis conforme o caráter de liberdade ou de necessidade que seria supostamente inerente a cada uma dessas atividades. O filósofo Markovic11 , por exemplo, pensa a relação entre as duas categorias associando o 11 Markovic é um dos filósofos da práxis, aqueles filósofos da Europa Leste que formavam a chamada Praxis School. Este grupo reuniu-se em torno da Revista Praxis cuja publicação se iniciou na ex-Iugoslávia em 1964 e dez anos depois foi encerrada pelas forças repressivas. A orientação inicial da Revista, assentada na revalorização do humanismo marxiano dos Manuscritos de 1844, era a crítica ao autoritarismo e burocratismo
  • 22. 21 trabalho à necessidade e à heteronomia, enquanto que a práxis, contrariamente, ele a associa à liberdade e à autonomia. A práxis tem também que não ser identificada com o trabalho e a produção material. Estas pertencem à esfera da necessidade, são condições necessárias para a sobrevivência humana, e têm de envolver divisão de papéis, operações de rotina, subordinação, hierarquia. O trabalho torna-se práxis apenas quando é escolhido livremente e fornece uma oportunidade para auto-expressão e auto-realização. (MARKOVIC, apud, BARATA-MOURA, 1986: 123-4) (Grifos do autor). Na passagem acima, destaca-se como aspecto positivo, importante a indicação da necessidade de se considerar o trabalho como uma práxis que tem especificidades e que não pode ser confundida com toda e qualquer atividade humana materialmente transformadora. No restante da elaboração, todavia, aparecem noções que muito mais confundem que esclarecem. A definição que diferencia o trabalho da práxis a partir da suposição que associa à segunda uma autonomia inexistente no trabalho, como se na práxis não existisse mais “divisão de papéis, operações de rotina, subordinação, hierarquia” e a práxis fosse veículo de “auto-expressão e auto-realização” é uma manobra conceitual de exclusiva responsabilidade de Markovic, que não tem nenhum respaldo em qualquer elaboração de Marx e Engels, que são, aliás, inspiração da filosofia de Markovic. 3 O TRABALHO COMO PRÁXIS FUNDANTE Lukács afirma que o trabalho na condição de atividade produtora de coisas úteis, como produtor de valores de uso é a “base insuprimível real” de toda a cadeia de posições teleológicas que a ele se articula. O mesmo já o havia dito Marx – cujo pensamento a Lukács lhe serve de base e de orientação - algum tempo antes na sua obra magna, n’O Capital: O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais (MARX, 1996: 303). O trabalho é, portanto, a práxis produtiva que alicerça o processo de surgimento e desenvolvimento do humano. Foi o trabalho, como práxis material, o responsável pelo surgimento a partir da ordem natural, da esfera social. Conforme aponta Engels: estalinistas, mas também ao que normalmente se define como marxismo positivista. Após 1974 a Revista Práxis sofrerá modificações de diversas ordens, como a mudança de nome: vira Práxis Internacional, quando passa a ser impressa em Oxford e depois muda para Constelaciones. Porém, a marca fundamental dessas mudanças será o afastamento progressivo do marxismo. Na nossa análise destacamos o sérvio Mihailo Markovic e o croata Gajo Petrovic, mas também vem a completar o bloco o tcheco Karel Kosik.
  • 23. 22 El trabajo es, dicen los economistas, la fuente de toda riqueza. Y lo es, en efecto, a la par con la naturaleza que se encarga de suministrarle la materia destinada a ser convertida en riqueza por el trabajo. Pero es infinitamente más que eso. El trabajo es la primera condición fundamental de toda la vida humana, hasta tal punto que, en cierto sentido, deberíamos afirmar que el hombre mismo ha sido creado por obra del trabajo (ENGELS, 1961: 142). Depois de acatar a enorme contribuição da economia clássica, que pela primeira vez situa as riquezas econômicas, sociais como produto da própria atividade do homem/mulher, isto é, como coisas produzidas pelo trabalho humano, Engels a ultrapassa e, inspirado no legado dialético hegeliano, aponta o trabalho como a atividade que não só cria as riquezas objetivas, mas, em certo sentido, cria o próprio homem. A contribuição de Engels através da obra citada, que reputamos de grande valor ainda nestes tempos hoje vividos, não resulta de nenhuma revelação mística, transcendental, ela se apoia basicamente nas ricas contribuições filosóficas anteriores, nas importantes descobertas das ciências naturais da época12 , especialmente as darwinianas, assim como nas próprias contribuições dos economistas clássicos. De qualquer modo, no pequeno artigo “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, Engels (1961) consegue oferecer uma análise muitíssimo importante e atual, pois resolve algumas questões cruciais a respeito do sentido que tem o trabalho para a vida humana. Fundamentalmente, Engels defende um ponto de vista antagônico às ideias criacionistas – as quais ainda hoje representam um grande entrave ao progresso do pensamento humano – e, para levar adiante sua tarefa, recolhe aportes científicos de seu tempo, mas não só, baseiam-se já nas contribuições remotas de filósofos antigos13 . Engels se 13 Especialmente no campo das reflexões sobre as ciências Engels sempre reconhecia as contribuições dos antigos sábios, particularmente o fato de o esforço de conhecer, de saber desenvolver-se sem as amarras da religião. Engels dizia que “todo lo que las ciencias naturales de la primera mitad del siglo XVIII estaban por encima de la antigüedad griega en punto al conocimiento e incluso a la clasificación de la materia, se hallaban por debajo de ella en cuanto al modo de dominarla idealmente, en cuanto a la concepción general de la 12 De acordo com Bordiga (1973: 17 (tradução nossa)) Engels “não se apoiava em nenhuma base ‘material’ certa, dada a ignorância dos ‘especialistas’ da época e as parcas indicações vindas das escavações”. É sabido que o estágio das ciências naturais nos tempos de Engels era ainda muito incipiente se considerarmos tudo o que depois se alcançou nesse campo de investigações. De qualquer maneira, as descobertas científicas do século XIX provocaram em Engels grande interesse posto que via nos avanços científicos uma maneira de fortalecer o combate às visões teológicas assim como via neles também um importante apoio às teses filosóficas do materialismo dialético. Nesse sentido, além da imensa contribuição de Darwin, Engels apoiava-se também em Lyell, naturalista inglês que influenciou àquele e que já tinha, a partir das ciências naturais, combatido o velho criacionismo; Schmerling, médico e paleontólogo belga que em 1834 publicara um trabalho sobre os fósseis de Liege; e Jacques Boucher, que descobriu em Abbeville sílex talhado e concluiu com a ideia da existência do “homem antidiluviano”. Para Engels, “estos moscosos son los patriarcas de la ciencia”. (MARX e ENGELS, 1975: 28).
  • 24. 23 encontra firmemente aportado no horizonte já esboçado por ele e Marx quando afirmavam que “la raíz, para el hombre, es el hombre mismo” e que “el hombre es el mundo de los hombres” (MARX, C. e ENGELS, F. 1987). Depois de propor e sustentar que o homem/mulher não é um mero produto da criação de forças transcendentais, nem, por outra, produto de meras metamorfoses biológicas, naturais, isto é, resultado apenas de um processo de evolução das espécies, Engels tenta descrever aquele que pode ter sido o processo original do surgimento do humano. Em linhas gerais, o que pretende Engels demonstrar é que os aspectos material e prático – e não o pensamento, a consciência, a alma humana - são a base do processo de surgimento do humano e tem prioridade ontológica nesse processo. Para Engels, aqueles aspectos antecedem, sustentam os elementos ideais, essa é uma das proposições centrais que, aliás, serão posteriormente confirmadas pelas mais importantes descobertas científicas feitas depois de Engels. Engels propõe que nossos antepassados, espécies pertencentes à ordem dos primatas, devido às circunstâncias dentre as quais a escassez de alimentos em seu habitat deve ter sido a mais decisiva, precisaram descer do alto das árvores e tentar sobreviver no solo. Esse fato obrigou os nossos ancestrais a desenvolver a postura ereta, o bipedismo e a consequente liberação das mãos. Estas transformações viriam a promover uma série de outras transformações fisiológicas e depois sociais decisivas. Engels menciona apenas algumas, aquelas que haviam sido percebidas e explicadas em seu tempo como as modificações na cabeça, que envolviam a diminuição da mandíbula e o crescimento da caixa craniana. Posteriormente, as ciências iriam demonstrar muitas outras transformações decisivas que teriam ocorrido nesse processo como o estreitamento da pélvis como consequência da posição ereta que, por sua vez, obrigou o abreviamento do tempo de gestação dos bebês e proporcionou, por consequência, modificações no âmbito dos grupos devido à necessidade de cuidados com os recém-nascidos durante um tempo considerável14 . Outra modificação 14 “El rápido crecimiento del tamaño del cerebro planteó problemas adicionales, especialmente relacionados con el parto. Mientras que un simio recién nacido tiene una capacidad cerebral algo superior a la mitad de la de un adulto de su especie, la del bebé humano es sólo la cuarta parte. La forma de la pelvis humana, adaptada para caminar en posición erguida, limita el tamaño de la abertura pélvica. Por tanto, como resultado de su cerebro grande y las restricciones impuestas por la ingeniería biológica de la bipedación, todos los bebés humanos nacen ‘prematuramente’. El desamparo total del recién nacido humano en comparación con cualquier otra especie de naturaleza” (1961: 07). Engels destacava, por exemplo, a percepção de que toda a complexidade da vida era resultado de transformações complexas a partir de uma base nuclear. Muito antes de Darwin os antigos já diziam que os seres humanos haviam evoluído dos peixes. Para Tales, por exemplo, toda a vida teria se originado da água.
  • 25. 24 decorrente da posição ereta foi a transformação do aparelho fonador a partir da nova posição da cabeça no alto da coluna vertebral, apontando para o alto, portanto, diferente da posição de nossos antepassados quando a cabeça estava inclinada para a frente. Como se sabe, aquela posição se constitui num dos entraves para o desenvolvimento da linguagem verbal, portanto, o bipedismo foi decisivo também para que se pudesse desenvolver a linguagem oral articulada com a produção de vogais e consoantes15 . As análises de Engels no seu já relativamente distante século XIX já revelavam que metamorfoses materiais e práticas estão na base do nosso desenvolvimento e que as dimensões do pensamento e da linguagem são forjadas nesse ambiente material e prático. As contribuições de Engels e de Marx nos ajudam a entender o humano como um desenvolvimento que brota da natureza e que salta para além da base natural através da práxis, fundamentalmente da práxis produtiva, isto é, do trabalho. Foi esta práxis, o trabalho, que propiciou o surgimento da condição humana. Quando Engels nos diz que o trabalho em certa medida criou o próprio homem, além de criar as riquezas objetivas, ele não só supera de modo genial toda a poderosa tradição mística, transcendental, as visões idealistas em geral, como supera também aquela que foi a grande revolução científica contra o criacionismo, isto é, o darwinismo. Engels demostra como o próprio ser da natureza, dentro de certas circunstâncias materiais e praticamente, isto é, por meio de sua práxis, elevou-se acima ou transcendeu à natureza, isto é, escapou às amarras naturais, orgânicas. Noutras palavras, foi o trabalho, como práxis fundante, que nos permitiu sair da mera condição de natureza, favorecendo a 15 Conforme aponta Kanzi (apud, WOODS y GRANT, 1995: 304-5) a produção de sons consonantais, importante para o desenvolvimento da linguagem articulada não seria possível sem o bipedismo: “una cabeza con una mandíbula grande y pesada obligaría a su poseedor a caminar con una inclinación hacia adelante y le impediría correr con rapidez. Para conseguir una postura erguida equilibrada, era essencial que la estructura de la mandíbula retrocediese y, de esta manera, el sistema vocal inclinado característico de los símios tomase el ángulo recto. Junto a la reducción de la mandíbula y el aplastamiento de la cara, la lengua, en lugar de estar situada totalmente en la boca, retrocedió parcialmente hacia dentro de la garganta para formar la parte posterior de la orofaringe. La movilidad de la lengua permite la modulación de la cavidad orofaríngea de una manera que no es posible en el simio, cuya lengua reside totalmente en la boca. De manera parecida, la curva pronunciada en la nasofaringe significa que la distancia entre el paladar blando y la parte posterior de la garganta es muy corta. Elevando el paladar blando podemos bloquear los conductos nasales, lo que nos permite formar la turbulencia necesaria para crear consonantes”. mamíferos superiores es evidente”. Esse fato gerou enormes implicações para a socialidade humana, para a organização dos coletivos humanos e para os processos educativos. Quanto a isso, “Barry Bogin, biólogo de la Universidad de Michigan, ha sugerido que la lenta tasa de crecimiento de las crías humanas, comparada con los simios, está relacionada con el largo período necesario para absorber las complejas reglas y técnicas de la sociedad humana. Incluso la diferencia en el tamaño corporal entre niños y adultos ayuda a establecer la relación maestro-alumno, en la que el joven aprende del viejo, mientras que entre los simios el rápido crecimiento lleva rápidamente a la rivalidad física” (WOODS y GRANT, 1995: 293).
  • 26. 25 superação de um estágio inferior da nossa existência. É aqui que se dá o que Lukács, recuperando de Marx, chama de salto ontológico do ser social. Esse salto ontológico não quer indicar que nós deixamos de ser natureza, mas quer dizer que estamos na natureza, somos parte dela, mas ao mesmo tempo alcançamos um estágio de desenvolvimento em que somos também aqueles que se opõem à natureza, que são capazes de se distanciar dela e de tomá-la como seu objeto. Devemos ressaltar aqui oportunamente o caráter educativo que marca e caracteriza todo o processo histórico material e prático do desenvolvimento humano que se constitui efetivamente num “afastamento das barreiras naturais”16 . A criação do humano pelo trabalho ou, dizendo de outra maneira, o destaque do trabalho como atividade prática transformadora que cria o humano é devidamente ressaltado por muitos autores, mas o caráter educativo que possui o trabalho nesse processo raras vezes é devidamente compreendido. A dimensão do educativo, como algo associado ao trabalho, de resto associado à toda práxis humana, está presente no desenvolvimento teórico lukacsiano, embora as ideias que lá se encontram não tenham exatamente a intencionalidade de propor e demonstrar essa vinculação entre trabalho e formação humana. Acreditamos, todavia, que é disso que se trata, pelo menos, é assim que interpretamos quando o autor húngaro afirma: Como já mostramos em detalhes, o trabalho modifica forçosamente também a natureza do homem que o realiza. [E continua]: a direção que assume esse processo de transformação está dada espontaneamente pelo pôr teleológico e pela sua realização prática. Como já mostramos, a questão central da transformação interna do homem consiste em chegar a um domínio consciente sobre si mesmo. Não somente o fim existe na consciência antes de realizar-se praticamente como essa estrutura dinâmica do trabalho se estende a cada movimento singular: o homem que trabalha deve planejar antecipadamente cada um dos seus movimentos e verificar continuamente, conscientemente, a realização do seu plano, se quer obter o melhor resultado concreto possível. Esse domínio da consciência do homem sobre o seu próprio corpo, que também se estende a uma parte da esfera da consciência, aos hábitos, aos instintos, aos afetos, é uma exigência elementar do trabalho mais primitivo e deve, pois, marcar profundamente as representações que o homem faz de si mesmo, uma vez que exige, para consigo mesmo, uma relação qualitativamente diferente, inteiramente heterogênea daquela que corresponde à condição animal, e uma vez que tais exigências são postas por todo tipo de trabalho (LUKÁCS, 2013: 129). Em busca de esclarecer uma questão fundamental, lançamos uma pergunta: o trabalho é uma categoria econômica, sociológica ou filosófica? Evidentemente, o trabalho é peça 16 “A tendência principal do processo que assim tem lugar é o constante crescimento, quantitativo e qualitativo, dos componentes pura ou predominantemente sociais, aquilo que Marx costumava chamar de ‘recuo da barreira natural’” (LUKÁCS, 2013: 291 no pdf).
  • 27. 26 importante em diferentes áreas de pesquisa e não precisa ser tomado como exclusivo de nenhuma área específica. Contudo, acreditamos ser um erro tratar o trabalho como categoria exclusivamente econômica. Entendemos o trabalho como uma categoria que tem caráter fundamentalmente filosófico-pedagógico e isso não é uma definição que resulte de uma mera especulação epistemológica ou de uma preferência subjetiva aleatória, mas emana da própria posição ontológica da categoria. Partindo de Engels, podemos afirmar que o trabalho cria riquezas, mas cria principalmente o homem/mulher, funda o “mundo dos homens [e mulheres]”. Para Lukács (2010: 73), nesta afirmação que segue, situação em que, não precisamos relembrar, obviamente, se inclui o trabalho, “a práxis em sua essência e em seus efeitos espontâneos é o fator decisivo da autoeducação humana”. Por isso, acreditamos que o sentido fundamental do trabalho, que se impõe para todos, inclusive para economistas e ou administradores de empresas, é a de atividade criadora de humanidade. Recordemos mais uma vez Lukács (2013) e sua reflexão segundo a qual o trabalho produz sempre mais do que aquilo que imediatamente se propõe a fazê-lo. Recordemos Marx (2008) quando, tratando do trabalho alienado e estranhado afirma que o trabalho produz muito mais que riquezas objetivas, cria e recria, reproduz as relações em que o trabalhador permanece e se afunda em cadeias opressivas sob os grilhões da capital. Não só o trabalho alienado e estranhado, mas o trabalho, em geral, produz e reproduz o conjunto das relações sociais ao seu entorno. Nesse sentido, é que se verifica a capacidade do trabalho de criar a vida social, desenvolver subjetividades, individualidades, culturas. O trabalho é, antes de tudo, a atividade prática material transformadora que cria o humano. Devemos aqui recordar a afirmação de Engels de que o trabalho cria as riquezas objetivas – coisa já então descoberta pelos economistas – mas, Engels acrescentava que, além disso, o trabalho cria o próprio homem (e a mulher por suposto). Ora, esta afirmação de Engels, se levada seriamente às últimas consequências, conforme merecimento, nos conduzirá necessariamente na direção do reconhecimento do caráter essencialmente educativo do trabalho. Afinal, a criação do homem/mulher, ou seja, a criação do humano através do metabolismo material, prático fundado pelo trabalho é diferente da criação de qualquer outro ser ou realidade material, trata-se da criação - ou autocriação - de um ser que pensa e que fala e que tem no seu processo de constituição, como dado essencial, como condição de ser, a necessidade constante, premente, perene de aprender e ensinar. A
  • 28. 27 fundação do ser humano que é – na verdade precisa ser – fundado no processo material, prático de transformação das realidades materiais e naturais e sociais, não pode se realizar sem a dimensão – também prática - do conhecer, do aprender e do ensinar. O humano é aquele que aprende a ser; o homem/mulher é aquele que se constrói pela sua própria práxis transformando as realidades materiais e forjando-se a si mesmo como ser social. Esse processo, todavia, não se consuma só como produção de coisas úteis, isso só se torna possível porque no processo de produção das coisas úteis produz-se, sobretudo, o sujeito. Essa produção, isto é, a produção do humano, do homem/mulher, como dissemos, dos sujeitos, por sua vez, não significa a simples posição de um ser pronto e acabado como um boneco de barro que num sopro divino vira gente. Essa produção é necessariamente um processo constante, ininterrupto de aprender e ensinar, que se desenvolve concomitantemente com a - e ontologicamente fundado na - transformação da natureza com a finalidade de produzir coisas úteis, necessárias. Antes de partirmos para o próximo tópico, vejamos mais de perto como o trabalho, na condição de práxis fundante do ser social, se pode converter também em atividade negadora de humanidade. Tentamos desenvolver até aqui uma noção importante para a compreensão do humano. Essa noção nos permite escapar do domínio das explicações místicas, transcendentais que ao longo da história serviram de mecanismo de dominação, de meio para acalmar, aquietar os indivíduos e fazer com que imaginassem que sua existência não depende exatamente de sua práxis e de sua vontade, mas de um ordenamento teleológico operado por forças transcendentais. Nesse sentido, os indivíduos são levados a acreditar que todo o roteiro da história já está previamente definido e que inclusive a hora da morte de cada um já está acertada. Mais ainda: que ninguém precisa se preocupar porque toda a engrenagem que envolve fatos reais da vida e pretensos fatos supostamente verdadeiros do além vida compõem um processo contínuo que persegue e obedece a princípios e valores de justiça absolutamente perfeitos os quais serão capazes de reparar todo e qualquer mal estar ou sofrimento, punindo os malfeitos e premiando as boas ações. Assim, as maiores misérias, os mais dolorosos sofrimentos pelos quais passem alguns indivíduos ou grupos, povos ou classes sociais, serão sempre explicados como algum tipo de
  • 29. 28 reparação por algo que se possa ter feito noutras vidas passadas. E assim segue o comboio em busca de uma presumível e almejada purificação da alma. Não deixa de ter nessas mirabolantes histórias uma admirável engenhosidade. A noção desenvolvida nos ajuda também a fugir de uma outra tendência muito forte na nossa tradição que é a de entender todo o metabolismo social como obra de um processo natural, biológico. Evidentemente, o darwinismo acabou dando um grande reforço a essa tendência, mas ela não é totalmente devedora dele17 . Essas duas tendências (a mística, transcendental e a naturalizante, biologizante), que algumas vezes se colocam como opostas, dado que uma tem origem na dimensão religiosa e a outra adquiriu reforço, fundamentação no campo da ciência, na verdade não são exatamente auto excludentes. Não são raros os casos de cientistas que depois de tentar compreender os fenômenos naturais terminam por encontrar na base de todo o metabolismo da vida uma transcendental e inalcançável determinação divina18 . Retomando do ponto anterior: como se converte o trabalho em base de um processo negador de humanidade? Em determinadas condições históricas o trabalho, que foi a atividade responsável pelo salto ontológico do ser social, portanto, tendo sido a razão do surgimento da humanidade, a 18 O movimento de aproximação entre a famosa teoria do big bang e o criacionismo, coisas às vezes apresentadas como necessariamente opostas, é uma boa representação do que afirmamos. Nos referimos à concepção religiosa do big bang defendida pelo cientista, depois convertido em capelão, Colin Price. Coloca-se este as indagações: “seria a teoria do big bang desconcertantemente bíblica? Ou, dizendo de outra maneira, seria a história do Génesis desconcertantemente científica?”. Depois arremata: “Foi da história do Gênesis - a explicação de tudo – que surgiu a ciência, a vontade de explicar tudo. Ninguém teria apreciado a história do big bang mais do que os autores dos dois primeiros capítulos do livro de Gênesis” (PRICE, 2020). A aproximação entre aquelas duas tendências mencionadas é uma curiosa realidade. Vejamos como entre os agraciados do Prêmio Templeton para o progresso da Religião (Templeton Prize), dado a quem contribua excepcionalmente para a afirmação da dimensão espiritual da vida, nos últimos anos se encontram, por exemplo, dois físicos. Em 1995 foi premiado Paul Davies, autor de livros como Dios y la nueva física e La mente de Dios, um físico teórico que se define como homem religioso e que sustenta a tese de que “la ciencia ofrece un camino hacia Dios más seguro que la religión” (DAVIES, apud, WOODS y GRANT, 1995: 40). Dez anos depois, em 2005 o Templeton foi concedido a Charles Hard Townes um cientista que, mais convicto que o anterior, defende – de maneira não muito diferente do senso comum – que a beleza da natureza é a confirmação da criação de Deus e que o criador teria feito o universo para que os humanos emergissem e florescessem. Townes acreditava que até mesmo suas descobertas eram, na verdade, revelações divinas. 17 Numa carta de 17 de novembro de 1875 em resposta a Piotr Lavrov (militante russo que tomou parte na Comuna de Paris), Engels recusa a ideia darwinista de luta pela vida, dentre outras coisas, porque, metodologicamente é um erro “situar la totalidad y la multiplicidad de la riqueza del desarrollo histórico bajo la pobre fórmula unilateral de ‘lucha por la vida’, fórmula que incluso en el terreno de la naturaleza sólo puede aceptarse cum grano salis” (MARX e ENGELS, 1975: 84-5). Nem na natureza, tampouco na sociedade, as relações entre os seres podem ser resumidas à “luta pela vida”. Engels defendia que, mesmo nos estágios mais remotos do processo de construção do humano se encontrava algo, ainda que inicialmente instintivo, de grupal, de comportamento colaboracionista, por isso ele respondeu a Lavrov: “no puedo estar de acuerdo con usted cuando dice que la lucha de todos contra todos fue la primera fase de la evolución humana. En mi opinión, el instinto social fue una de las palancas más esenciales del desarrollo del hombre a partir del mono” (MARX e ENGELS, 1975: 88).
  • 30. 29 atividade que funda a liberdade humana no sentido da afirmação do humano como condição capaz de tomar a natureza como seu objeto, conforme já expusemos antes, vira pelo avesso e passa a ser uma atividade negadora do humano, isto é, passa a representar o oposto daquilo que já representou: o trabalho deixa de ser uma atividade em que o humano se forja, se desenvolve e se fortalece. Em todas as sociedades baseadas no antagonismo de classes, quer dizer, nas sociedades que se originam do processo histórico em que o trabalho virou atribuição de grupos humanos aprisionados, tornados escravos ou servos, o trabalho perde seu sentido original. Isso se dá justamente porque as condições de trabalho já se encontram dominadas como propriedade de uma classe específica que passa a impor através da violência o trabalho como atividade da classe tornada subalterna e que vira classe oprimida. Essa relação adquire sua forma mais elevada na sociedade capitalista na qual os produtores diretos das riquezas se encontram totalmente separados dos meios de produção. Por sua vez, as classes proprietárias passam a ter o monopólio do controle não só dos meios de produção como também de coerção e do controle ideológico. Nessas condições históricas, o trabalho deixa de ser a produção da vida e passa a ser meio de produção de mais valor à custa da vida. Na sociedade baseada no modo de produção capitalista, as relações sociais são configuradas a partir da produção de mercadorias, da posse do valor de troca; a produção material está assentada na separação entre o produtor direto e as condições de produção que se opõem a ele como capital; na concentração da propriedade privada dos meios de produção; na oposição entre capital e trabalho, trabalho intelectual e trabalho manual; aqui o movimento de valorização do capital se sobrepõe a toda a sociedade como um movimento independente e autônomo, submetendo todo o conjunto da sociedade – embora explorando e oprimindo os/as trabalhadores/ras - e, em tal medida, se constituindo naquilo que Marx denominou como alienação/estranhamento universal. A alienação / estranhamento tem suas raízes no trabalho e consiste justamente no fato de que o/a trabalhador/ra cria as riquezas, mas essas riquezas vão se constituir num mundo objetivo autônomo, independente do/da trabalhador/ra e que contra este/a se volta oprimindo-o/a e negando o acesso e a possibilidade do usufruto das riquezas que ele/a mesmo produziu. Como aponta Marx (2008: 80),
  • 31. 30 o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. (Grifos do autor). Continuando com Marx, ele afirma ainda que “a efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome” (idem, ibidem) e, comparando com a alienação religiosa, que era tema comum entre outros filósofos de seu tempo de juventude, Marx afirma que quanto mais trabalha, mais o trabalhador se desgasta, se cansa, se exaure, se esvazia de energia e empobrece ao mesmo tempo em que enche os cofres dos burgueses, abarrota os bancos de dinheiro, enche de riquezas e propriedade os capitalistas – “é do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo” (idem, ibidem, p. 81). Nesse contexto da produção capitalista, o trabalho deixa de ser a maneira pela qual o humano se revela e passa a ser encargo doloroso, verdadeira tortura daqueles que, não possuindo nada mais além de sua força de trabalho são obrigados a oferece-la no mercado conforme as circunstâncias econômicas e as condições históricas e sociais que nunca lhes são favoráveis. Essa é a única maneira que tem o trabalhador de sobreviver dentro das relações capitalistas de produção. A alienação/estranhamento que conforme já colocamos se enraíza no trabalho, tem duas relações principais: aquela que se estabelece entre o trabalhador e o produto do seu trabalho; e a relação do trabalhador com sua própria atividade. Na primeira relação, dá-se uma ruptura no sentido de que o produto não pertence ao seu criador. O produto do trabalho, na forma de riqueza capitalista, não só é retirado do trabalhador como vira poder estranho que o domina e oprime. Na segunda relação, verifica-se que o trabalhador comparece como aquele que é totalmente submetido aos comandos de terceiros. Ele não detém nenhum controle sobre a atividade, não determina nada em relação a ela, nem o como, nem o porquê, nem o para quê nada na atividade é determinado pelo trabalhador. Dentro do processo de trabalho alienado/estranhado, o trabalhador vira uma peça totalmente submetida e controlada pelo capital. Mas, além dessas duas relações apontadas, há ainda dois outros fatores a se destacar. O primeiro é a alienação/estranhamento do trabalhador em relação ao gênero humano a que
  • 32. 31 pertence. A afirmação humana, a constituição do gênero humano, conforme elaboração marxiana, depende do metabolismo prático com a natureza, isto é, o homem/mulher se faz humano genericamente pela atividade prática transformadora que toma a natureza como seu “corpo inorgânico”: “é na elaboração do mundo objetivo que o homem se confirma em primeiro lugar e efetivamente como ser genérico” (MARX, 2008; 85). Este metabolismo prático é que produz a vida genérica ao mesmo tempo em que é a própria vida genérica na sua efetivação dinâmica. Diferentemente dos demais seres da natureza, o homem/mulher não se confunde com sua atividade, quer dizer, sua atividade não é uma determinação natural, como é, por exemplo, no caso da aranha e sua atividade de fazer teia: a atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser genérico. Eis por que a sua atividade é atividade livre (MARX, 2008: 8). A generidade humana, portanto, se realiza e só pode se realizar praticamente através da relação entre o homem/mulher e a natureza, porém, como a natureza, que é do homem/mulher, seu corpo inorgânico vira propriedade privada inacessível ao trabalhador e a atividade prática de transformação da natureza passa a se realizar sob circunstâncias totalmente alienadas e estranhadas, tem-se então assim, uma relação de alienação e estranhamento do trabalhador com o gênero humano, isto é, o trabalhador não se reconhece no gênero e não reconhece nas conquistas do genro a sua marca de sujeito produtor. Conforme indica Marx (2008: 84), a vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo (Art) da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma espécie, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. A vida mesma aparece só como meio de vida”. Isto é, no contexto da alienação/estranhamento, o trabalho se transforma de atividade vital fundadora da generidade humana em “mero meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física” (idem, ibidem, 84). Por meio da atividade trabalho, no objeto do trabalho, assim como no seu produto, se objetiva a vida humana, por isso quando arranca do homem o objeto de sua produção [assim como quando aliena do trabalhador o produto do seu trabalho] o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida genérica, sua efetiva objetividade genérica e transforma a sua vantagem em relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inorgânico, a natureza (idem, ibidem, p. 85).
  • 33. 32 O trabalho alienado/estranhado representa a redução da atividade vital, livre a simples meio de satisfação de carências orgânicas imediatas, dessa forma “ele faz da vida genérica do homem [apenas] um meio de sua existência física” (idem, ibidem, p. 85). Dessa forma, “a consciência que o homem tem do seu gênero se transforma, portanto, mediante o estranhamento, de forma que a vida genérica se torna para ele um [simples] meio” (idem, ibidem, p. 85). Além da relação de alienação/estranhamento entre o trabalhador e o produto do seu trabalho; do trabalhador em relação à sua atividade; e da relação do trabalhador com o gênero humano; encontramos um quarto aspecto da relação de alienação/estranhamento que é justamente entre os indivíduos uns com os outros todos mergulhados nas cadeias do estranhamento e cada um enxergando no outro apenas um ser estranho com o qual está em constante estado de concorrência e oposição. Quando “o homem está estranhado de seu ser genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles [está estranhado] da essência humana” (idem, ibidem, p. 86). 4 TRABALHO, ANTAGONISMOS SOCIAIS E FORMAÇÃO HUMANA Este tópico tem como objetivo principal abordar, ainda que em linhas gerais, o modo como em torno do trabalho no contexto das condições econômicas sociais contemporâneas se estruturam e se reproduzem os antagonismos classistas. Diferentemente das abordagens que costumam enxergar nas grandes mudanças pelas quais a sociedade humana tem passado sinais de apagamento dos antagonismo classistas, o fim do trabalho ou da importância deste para se compreender as relações sociais; diferentemente dessas abordagens de teor conservador e simpático ao estado de coisas vigente, a análise que aqui se desenvolve acredita que as profundas mudanças que estão em curso nas últimas décadas não apagam o caráter essencial do sistema do capital, mas, ao contrário, aprofundam-no. A análise que ora se desenvolve entende que esse sistema continua perseguindo o mesmo rumo fundamental de sempre: criar cada vez mais riquezas, promovendo uma apropriação destas cada vez mais restringida, ao mesmo tempo e consequentemente produzindo e reproduzindo pobreza e miséria em escala crescente. Resumidamente, acreditamos que o sistema do capital não aboliu aquelas que são suas principais contradições – nem poderia e nem poderá nunca ele próprio fazê-lo, evidentemente -, muito ao contrário, acreditamos que aquelas contradições foram aprofundadas e que os
  • 34. 33 problemas advindos delas foram aguçados e ampliados. Isso se verifica com a constatação de que a dinâmica da acumulação passou a realizar-se agora sem mais vestígios do sentido progressista que outrora possuiu, isto é, realizando-se agora como uma dinâmica de caráter exacerbadamente regressivo e destrutivo. Antes de desenvolvermos a questão nuclear desse tópico, vejamos mais de perto como se coloca a relação trabalho e educação dentro do processo de desenvolvimento dos antagonismos classistas até a plena consolidação da forma capitalista. Sabemos que um dos momentos cruciais do desenvolvimento da sociedade humana foi aquele em que nossos antepassados remotos se depararam com a produção de riqueza excedente. Pela primeira vez em toda a história, os grupos humanos conseguiam graças fundamentalmente ao descobrimento da agricultura produzir bens para além das suas necessidades imediatas. Esse foi um fato objetivo que provocou mudanças muito profundas, inclusive no campo das percepções sobre o trabalho, gerando forte impacto histórico social. Essa percepção alterou para sempre as relações de trabalho e inaugurou uma nova fase do desenvolvimento social instituindo a sociedade de classes e abrindo a era das relações humanas baseadas em regimes de opressão sistemática19 . Até então, antes dessa nova realidade que foi o surgimento da produção de riqueza excedente, trabalho e educação não eram atividades totalmente separadas20 , apartadas, realizadas por grupos de indivíduos diferentes, de maneira tal que constituísse uma rigorosa divisão do trabalho como depois passou a existir. Antes do excedente de produção os grupos humanos não conheciam antagonismos internos, regimes de exploração e opressão sistemáticos. Naquela altura do desenvolvimento humano, social em que a humanização se encontrava em estágios inferiores de sua marcha 20 Vale anotar que, segundo a compreensão que defendemos, trabalho e educação de fato são duas formas de ser da práxis humana, que têm suas particularidades, contudo, compreendemos o trabalho não como uma seca e árida atividade produtora de coisas úteis, como já tivemos oportunidade de colocar. O trabalho é atividade prática, material produtora de coisas úteis, mas é também ao mesmo tempo, essencialmente, atividade formadora em si mesma, na medida em que altera realidades objetivas e subjetivas. Se, por um lado, o papel do trabalho – produzir coisas úteis e praticamente sustentar a existência humana material – só o trabalho pode realizar, por outro, quanto à educação, esta já se encontra de algum modo, enquanto formação humana, amalgamada à própria atividade trabalho, faz parte dele antes de ser uma práxis em si mesma. 19 “Inútil decir que el trabajo con esclavos aumentó el excedente de productos de que la colectividad disponía y que los “administradores”, como representantes de ella, intercambiaban con tribus vecinas o lejanas. Las cosas continuaron así hasta que las funciones de los “organizadores” se volvieron hereditarias y la propiedad común de la tribu –tierras y ganados- pasó a ser propiedad privada de las familias que la administraban y defendían. Dueñas de los productos a partir de ese momento, las familias dirigentes se encontraron al mismo tiempo, dueñas de los hombres” (PONCE, s/d, p. 16) (Grifos do autor).
  • 35. 34 histórica, os indivíduos pertencentes a uma tribo formavam uma só coletividade e tomavam parte em todas as atividades realizadas, conhecidas e necessárias conforme sua condição fisiológica, conforme suas capacidades. Isso porque, em primeiro lugar, o trabalho ainda não tinha adquirido o sentido negativo que conhecemos tão bem. O trabalho, embora fosse atividade física que exigia muito esforço e fosse muito arriscada, significava crescimento humano, significava vitória dos coletivos humanos, representava conquista, evolução, superação de obstáculos – lembrando Marx, desenvolvimento da generidade humana - cada ação realizada exitosamente representava um crescimento dos coletivos humanos. Nesse sentido é que se pode falar de trabalho como libertação, ou seja, libertação em relação às barreiras naturais que obstaculizavam o desenvolvimento humano. Dessa forma, o trabalho se revela como a atividade que nos propiciou o desenvolvimento da capacidade de pautar a vida não mais nas determinações orgânicas, mas na construção de alternativas. O trabalho propiciou a superação da mera condição de natureza, isto é, forçou o afastamento das barreiras naturais e promoveu o desencadeamento da formação humana. É, portanto, com o surgimento do excedente de produção que surgem novas percepções sobre o trabalho e sobre suas possibilidades – as percepções da realidade não podem existir sem que antes exista a realidade material. Como nos ensinam Marx e Engels num duro golpe ao idealismo “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX e ENGELS, 2007: 94), desse modo, o entendimento do excedente de produção, bem como as ideias sobre o que fazer com ele só puderam surgir depois do surgimento do excedente de produção como dado objetivo. A percepção fundamental gerada a partir da existência material daquele dado novo foi que se poderia dispor do trabalho alheio, isto é, de que o trabalho de outros homens/mulheres poderia ser explorado em favor daqueles que reunissem condições para exercer sobre os dominados o poder necessário para tal. É assim que com o surgimento do excedente de produção se abre a possibilidade de uma nova percepção sobre o trabalho e sobre as relações humanas. A partir daí, os grupos humanos vencedores de conflitos passam a incorporar os indivíduos vencidos por perceberem que eles eram portadores de capacidade de trabalho e que essa capacidade poderia ser utilizada produtivamente segundo os interesses e sob o comando dos grupos vencedores. É,