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Poema
«Ela canta,
pobre ceifeira»
Pessoa ortónimo
2
Frederick Morgan,
As respigadoras (1880).
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.
3
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
4
I. A ceifeira e o canto
CARACTERIZAÇÃO DA CEIFEIRA

— A sua felicidade é aparente
(«julga-se feliz»)
— A sua vida é insignificante
e marcada pela perda («viuvez»)
Ela canta

O seu canto é comparado
ao canto de uma ave
A comparação sugere
duas ideias: naturalidade
e harmonia com a Natureza
Efeitos do canto da ceifeira
no sujeito poético

Contraditórios

Antítese: «alegra e entristece»
O canto
transmite
serenidade
e harmonia
— A felicidade
da ceifeira não
é verdadeira
+
— O sujeito
poético é
atormentado
pela dor de
pensar
5
II. A dor de pensar
PENSAMENTO/CONSCIÊNCIA

DOR
O sujeito poético
intelectualiza
as suas emoções:
é incapaz de sentir
de forma pura

«O que em mim sente
stá pensando»
«Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso!»
Desejo impossível =
Contradição profunda
O sujeito poético só seria feliz
tendo consciência da sua
«alegre inconsciência»
OMNIPRESENÇA DA RAZÃO  DOR
6
George Clausen,
A rapariga no portão
(c. 1900).

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fernando pessoa Ela canta pobre ceifeira

  • 3. Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões p’ra cantar que a vida. 3 Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente stá pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai!
  • 4. 4 I. A ceifeira e o canto CARACTERIZAÇÃO DA CEIFEIRA  — A sua felicidade é aparente («julga-se feliz») — A sua vida é insignificante e marcada pela perda («viuvez») Ela canta  O seu canto é comparado ao canto de uma ave A comparação sugere duas ideias: naturalidade e harmonia com a Natureza Efeitos do canto da ceifeira no sujeito poético  Contraditórios  Antítese: «alegra e entristece» O canto transmite serenidade e harmonia — A felicidade da ceifeira não é verdadeira + — O sujeito poético é atormentado pela dor de pensar
  • 5. 5 II. A dor de pensar PENSAMENTO/CONSCIÊNCIA  DOR O sujeito poético intelectualiza as suas emoções: é incapaz de sentir de forma pura  «O que em mim sente stá pensando» «Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso!» Desejo impossível = Contradição profunda O sujeito poético só seria feliz tendo consciência da sua «alegre inconsciência» OMNIPRESENÇA DA RAZÃO  DOR
  • 6. 6 George Clausen, A rapariga no portão (c. 1900).