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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
EXPLICAÇÃO
Estas “Cartas aos meus amigos”, que hoje se apresentam como livro, foram publicadas
separadamente à medida que o autor as foi produzindo. Desde a primeira, escrita a 21/02/91, até
à décima e última, redigida a 15/12/93, passaram quase três anos. Nesse lapso de tempo,
ocorreram transformações globais importantes em quase todos os campos da actividade humana.
Se a velocidade de mudança continua a incrementar-se, como sucedeu nesse período, um leitor
das próximas décadas dificilmente entenderá o contexto mundial a que o autor faz continuamente
referência e, por conseguinte, não apreenderá muitas das ideias que se expressam nestes
escritos. Por isso, haveria que recomendar aos hipotéticos leitores do futuro que tivessem à mão
uma resenha dos acontecimentos verificados entre 1991 e 1994; haveria que sugerir-lhes que
obtivessem uma compreensão ampla do desenvolvimento económico e tecnológico da época, das
fomes e dos conflitos, da publicidade e da moda. Seria necessário pedir-lhes que escutassem a
música; vissem as imagens arquitectónicas e urbanísticas; observassem as concentrações
populacionais das grandes cidades, as migrações, a decomposição ecológica e o modo de vida
daquele curioso momento histórico. Sobretudo haveria que rogar-lhes que tentassem penetrar nos
ditos e dizeres daqueles formadores de opinião: dos filósofos, sociólogos e psicólogos dessa
etapa cruel e estúpida. Ainda que nestas Cartas se fale de certo presente, é indubitável que foram
redigidas com o olhar posto no futuro e creio que somente dali poderão ser confirmadas ou
refutadas.
Nesta obra não existe um plano geral, mas antes uma série de exposições ocasionais que
admitem uma leitura sem sequência. No entanto, poder-se-ia tentar a seguinte classificação: A. -
As três primeiras cartas põem ênfase nas experiências que cabem ao indivíduo viver no meio de
uma situação global cada dia mais complicada. B. - Na quarta, apresenta-se a estrutura geral das
ideias em que se baseiam todas as cartas. C. - Nas seguintes, esboça-se o pensamento político-
social do autor. D. - A décima apresenta directrizes de acção pontual tendo em conta o processo
mundial.
Passo agora a destacar alguns temas tratados na obra. Primeira carta: a situação que nos
cabe viver. A desintegração das instituições e a crise de solidariedade. Os novos tipos de
sensibilidade e comportamento que se perfilam no mundo de hoje. Os critérios de acção.
Segunda: os factores de mudança do mundo actual e as posturas que habitualmente se assumem
perante essa mudança. Terceira: Características da mudança e da crise em relação ao meio
imediato em que vivemos. Quarta: fundamento das opiniões vertidas nas Cartas sobre as
questões mais gerais da vida humana, as suas necessidades e os seus projectos básicos. O
mundo natural e social. A concentração de poder, a violência e o Estado. Quinta: a liberdade
humana, a intenção e a acção. O sentido ético da prática social e da militância; os seus defeitos
mais habituais. Sexta: exposição do ideário do Humanismo. Sétima: a revolução social. Oitava: as
forças armadas. Nona: os direitos humanos. Décima: a desestruturação geral. A aplicação da
compreensão global à acção mínima concreta.
A quarta carta, de capital importância na justificação ideológica de toda a obra, pode ser
aprofundada com a leitura de outro trabalho do autor, Contribuições ao Pensamento
(particularmente no ensaio titulado Discussões Historiológicas) e, desde logo, com a conferência
A Crise da Civilização e do Humanismo (Academia de Administração de Moscovo, 18/06/92).
Na sexta carta, expõem-se as ideias do humanismo contemporâneo. A condensação
conceitual deste escrito faz recordar certas produções políticas e culturais das quais temos
exemplo nos “manifestos” de meados do século XIX e XX, como acontece com o Manifesto
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Comunista e o Manifesto Surrealista. O uso da palavra “Documento” em vez de “Manifesto” deve-
se a uma cuidadosa escolha para se pôr à distância do naturalismo expresso no Humanist
Manifesto de 1933, inspirado por Dewey, e também do social-liberalismo do Humanist Manifesto II
de 1974, subscrito por Sakharov e impregnado fortemente pelo pensamento de Lamont. Ainda
que se notem coincidências com este segundo manifesto no que respeita à necessidade de uma
planificação económica e ecológica que não destrua as liberdades pessoais, as diferenças quanto
a visão política e concepção do ser humano são radicais. Esta carta, extremamente breve em
relação à quantidade de matérias que trata, exige algumas considerações. O autor reconhece os
contributos das diferentes culturas na trajectória do humanismo, como claramente se observa no
pensamento judeu, árabe e oriental. Nesse sentido, o Documento não pode ser encerrado na
tradição “ciceroniana” como amiúde aconteceu com os humanistas ocidentais. No seu
reconhecimento ao “humanismo histórico”, o autor resgata temas já expressos no século XII.
Refiro-me aos poetas goliardos que, como Hugo de Orleães e Pedro de Blois, acabaram por
compôr o célebre In terra sumus, do Codex Buranus (o código de Beuern, conhecido em latim
como Carmina Burana). Silo não os cita directamente, mas volta às suas palavras. “Eis a grande
verdade universal: o dinheiro é tudo. O dinheiro é governo, é lei, é poder. É basicamente
subsistência. Mas, além disso, é a Arte, é a Filosofia e é a Religião. Nada se faz sem dinheiro;
nada se pode sem dinheiro. Não há relações pessoais sem dinheiro. Não há intimidade sem
dinheiro e mesmo a solidão repousada depende do dinheiro”. Como não reconhecer a reflexão do
In Terra sumus, “mantém o abade o Dinheiro na sua cela prisioneiro”, quando se diz: “... e mesmo
a solidão repousada depende do dinheiro”. Ou então, “O Dinheiro honra recebe e sem ele
ninguém é amado”, e aqui: “Não há relações pessoais sem dinheiro. Não há intimidade sem
dinheiro”. A generalização do poeta goliardo: “O Dinheiro, e isto é certo, faz com que o tonto
pareça eloquente”, aparece na carta como: “Mas, além disso, é a Arte, é a Filsofia e é a Religião”.
E sobre esta última diz-se no poema: “O Dinheiro é adorado porque faz milagres... faz o surdo
ouvir e o coxo saltar”, etc. Nesse poema do Codex Buranus, que Silo dá por conhecido, ficam
implícitos os antecedentes que depois vão inspirar os humanistas do século XVI, particularmente
Erasmo e Rabelais.
A carta que estamos a comentar apresenta o ideário do humanismo contemporâneo, mas
para dar uma ideia mais acabada do tema nada melhor do que citar aqui alguns parágrafos que o
autor expôs na sua conferência Visão Actual do Humanismo (Universidade Autónoma de Madrid,
16/04/93). “... Duas são as acepções que se costumam atribuír à palavra “Humanismo”. Fala-se
de “Humanismo” para indicar qualquer tendência de pensamento que afirme o valor e a dignidade
do ser humano. Com este significado, pode-se interpretar o Humanismo dos modos mais diversos
e contrastantes. No seu significado mais limitado, mas colocando-o numa perspectiva histórica
precisa, o conceito de Humanismo é usado para indicar esse processo de transformação que se
iniciou entre o final do século XIV e o começo do XV e que, no século seguinte, com o nome de
“Renascimento”, dominou a vida intelectual da Europa. Basta mencionar Erasmo; Giordano Bruno;
Galileu; Nicolau de Cusa; Thomas More; Juan Vives e Bouillé para compreender a diversidade e
extensão do humanismo histórico. A sua influência prolongou-se a todo o século XVII e grande
parte do XVIII, desembocando nas revoluções que abriram as portas da Idade Contemporânea.
Esta corrente pareceu apagar-se lentamente até que a meados deste século pôs-se novamente
em movimento no debate entre pensadores preocupados com as questões sociais e políticas.
Os aspectos fundamentais do humanismo histórico foram, aproximadamente, os seguintes:
1 - A reacção contra o modo de vida e os valores medievais. Assim começou um forte
reconhecimento de outras culturas, particularmente da greco-romana na arte, na ciência e na
filosofia. 2 - A proposta de uma nova imagem do ser humano, do qual se exaltam a sua
personalidade e a sua acção transformadora. 3 - Uma nova atitude relativamente à natureza, à
qual se aceita como ambiente do Homem e já não como um sub-mundo cheio de tentações e
castigos. 4 - O interesse pela experimentação e investigação do mundo circundante, como uma
tendência a procurar explicações naturais sem necessidade de referências ao sobrenatural. Estes
quatro aspectos do humanismo histórico convergem para um mesmo objectivo: fazer surgir a
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
confiança no ser humano e na sua criatividade e considerar o mundo como reino do Homem,
reino que este pode dominar mediante o conhecimento das ciências. A partir desta nova
perspectiva expressa-se a necessidade de construir uma nova visão do universo e da História. De
igual maneira, as novas concepções do movimento humanista levam à redefinição da questão
religiosa tanto nas suas estruturas dogmáticas e litúrgicas como nas organizativas, que, naquele
tempo, impregnam as estruturas sociais medievais. O Humanismo, em correlação com a
modificação das forças económicas e sociais da época, representa um revolucionarismo cada vez
mais consciente e cada vez mais orientado para a discussão da ordem estabelecida. Mas a
Reforma no mundo alemão e a Contra-reforma no mundo latino tratam de travar as novas ideias
repropondo autoritariamente a visão cristã tradicional. A crise passa da Igreja às estruturas
estatais. Finalmente, o império e a monarquia por direito divino são eliminados mercê das
revoluções dos finais do século XVIII e XIX. Porém, depois da Revolução francesa e das guerras
da independência americanas, o Humanismo praticamente desapareceu pese embora continuar
como pano de fundo social de ideais e aspirações que alentam transformações económicas,
políticas e científicas. O Humanismo retrocedeu perante concepções e práticas que se instalam
até terminar o Colonialismo, a Segunda Guerra Mundial e o alinhamento bipolar do planeta. Nesta
situação, reabre-se o debate sobre o significado do ser humano e da natureza, sobre a justificação
das estruturas económicas e políticas, sobre a orientação da Ciência e da tecnologia e, em geral,
sobre a direcção dos acontecimentos históricos. São os filósofos da Existência que dão os
primeiros sinais: Heidegger, para desqualificar o Humanismo como uma metafísica mais (na sua
Carta sobre o Humanismo); Sartre, para defendê-lo (na sua conferência O Existencialismo é um
Humanismo); Luypen, para precisar o enquadramento teórico (em A Fenomenologia é um
Humanismo). Por outro lado, Althusser, para erguer uma postura Antihumanista (em Para Marx) e
Maritain, para apropriar-se da sua antítese a partir do Cristianismo (no seu Humanismo Integral),
fazem alguns esforços meritórios”.
“Depois de percorrido este longo caminho e das últimas discussões no campo das ideias,
fica claro que o Humanismo deve definir a sua posição actual não só enquanto concepção teórica
como também enquanto actividade e prática social. O estado da questão humanista deve ser
perspectivado com referência às condições em que o ser humano vive. Essas condições não são
abstractas”
“Por conseguinte, não é legítimo derivar o Humanismo de uma teoria sobre a Natureza, ou
uma teoria sobre a História, ou uma fé sobre Deus. A condição humana é tal que o encontro
imediato com a dor e com a necessidade de superá-la é ineludível. Tal condição, comum a tantas
outras espécies, encontra na humana a necessidade adicional de prever no futuro como superar a
dor e conseguir o prazer. A sua previsão do futuro apoia-se na experiência passada e na intenção
de melhorar a sua situação actual. O seu trabalho, acumulado em produções sociais, passa e
transforma-se de geração em geração em luta contínua pela superação das condições naturais e
sociais em que vive. Por isso, o Humanismo define o ser humano como ser histórico e com
um modo de acção social capaz de transformar o mundo e a sua própria natureza. Este
ponto é de capital importância porque, ao aceitá-lo, não se poderá depois afirmar um
direito natural, uma propriedade natural, instituições naturais ou, por último, um tipo de ser
humano no futuro tal qual é hoje, como se estivesse terminado para sempre. O antigo tema
da relação do homem com a Natureza ganha novamente importância. Ao retomá-lo, descobrimos
esse grande paradoxo em que o ser humano aparece sem fixidez, sem natureza, ao mesmo
tempo que notamos nele uma constante: a sua historicidade. É por isso que, esticando os termos,
pode dizer-se que a natureza do Homem é a sua História, a sua História social. Por
conseguinte, cada ser humano que nasce não é um primeiro exemplar equipado geneticamente
para responder ao seu meio, mas sim um ser histórico que desenvolve a sua experiência pessoal
numa paisagem social, numa paisagem humana”.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
“Eis que neste mundo social, a intenção comum de superar a dor é negada pela intenção de
outros seres humanos. Estamos a dizer que uns homens naturalizam outros ao negar a sua
intenção, convertem-nos em objectos de uso. Assim, a tragédia de estar submetido a condições
físicas naturais estimula o trabalho social e a ciência para novas realizações que superem essas
condições, mas a tragédia de estar submetido a condições sociais de desigualdade e injustiça
estimula o ser humano à rebelião contra essa situação em que se nota não o jogo de forças
cegas, mas sim o jogo de outras intenções humanas. Essas intenções humanas, que discriminam
uns e outros, são questionadas num campo muito diferente ao da tragédia natural em que não
existe uma intenção. É por isso que existe sempre em toda a discriminação um esforço
monstruoso para estabelecer que as diferenças entre os seres humanos se devem à natureza,
seja ela física ou social, a qual define o seu jogo de forças sem que intervenha a intenção.
Estabelecer-se-ão diferenças raciais, sexuais e económicas, justificando-as com leis genéticas ou
de mercado, mas em todos os casos estar-se-á a operar com a distorsão, a falsidade e a má fé.
As duas ideias básicas expostas anteriormente: em primeiro lugar, a da condição humana
submetida à dor com o seu impulso por superá-la e, em segundo lugar, a definição do ser
humano histórico e social, centram o estado da questão para os humanistas de hoje”.
“No Documento fundacional do Movimento Humanista declara-se que há-de passar-se da
Pré-História à verdadeira História humana logo que se elimine a violenta apropriação animal de
uns seres humanos por outros. Entretanto, não se poderá partir de outro valor central senão do
ser humano pleno nas suas realizações e na sua liberdade. A proclamação “Nada por cima do ser
humano e nenhum ser humano por debaixo de outro”, sintetiza tudo isto. Se se põe como valor
central Deus, o Estado, o Dinheiro ou qualquer outra entidade subordina-se o ser humano, criando
condições para o seu ulterior controlo ou sacrifício. Os humanistas têm claro este ponto. Os
humanistas são ateus ou crentes, mas não partem do ateísmo ou da fé para fundamentar a sua
visão do mundo e a sua acção; partem do ser humano e das suas necessidades imediatas. Os
humanistas questionam o problema de fundo: saber se queremos viver e decidir em que
condições queremos fazê-lo. Todas as formas de violência física, económica, racial, religiosa,
sexual e ideológica, mercê das quais se tem travado o progresso humano, repugnam aos
humanistas. Toda a forma de discriminação, manifesta ou larvar, é motivo de denúncia para os
humanistas”.
“Assim está traçada a linha divisória entre o Humanismo e o Antihumanismo. O Humanismo
põe à frente a questão do trabalho face ao grande capital; a questão da democracia real face à
democracia formal; a questão da descentralização face à centralização; a questão da
antidiscriminação face à discriminação; a questão da liberdade face à opressão; a questão do
sentido da vida face à resignação, a cumplicidade e o absurdo. Porque o Humanismo crê na
liberdade de escolha possui uma ética válida, porque crê na intenção distingue entre o erro e a má
fé. Deste modo, os humanistas definem posições. Não nos sentimos saídos do nada, mas sim
tributários de um longo processo e esforço colectivo. Comprometemo-nos com o momento actual
e concebemos uma longa luta rumo ao futuro. Afirmamos a diversidade em franca oposição à
regimentação que até agora tem sido imposta e apoiada com explicações de que o diverso põe
em dialéctica os elementos de um sistema, de maneira que ao respeitar-se toda a particularidade
dá-se via livre a forças centrífugas e desintegradoras. Os humanistas pensam o contrário e
destacam que, precisamente neste momento, o avassalamento da diversidade leva à explosão
das estruturas rígidas. É por isso que enfatizamos na direcção convergente, na intenção
convergente e opomo-nos à ideia e à prática de eliminação de supostas condições
dialécticas num conjunto dado”. Termina aqui a citação da conferência de Silo.
A décima e última carta estabelece os limites da desestruturação e destaca três campos,
entre tantos outros possíveis, nos quais esse fenómeno ganha especial importância: o político, o
religioso e o geracional, advertindo sobre o surgimento de neo-irracionalismos fascistas,
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
autoritários e violentistas. Para ilustrar o tema da compreensão global e da aplicação da acção ao
ponto mínimo do “meio imediato”, o autor dá esse fenomenal salto de escala com o qual nos faz
encontrar o “vizinho”, o companheiro de trabalho, o amigo... Fica clara a proposta de que todo o
militante deve esquecer a miragem do poder político superestrutural porque esse poder está ferido
de morte às mãos da desestruturação. De nada valerá futuramente o Presidente, o Primeiro-
Ministro, o Senador, o Deputado. Os partidos políticos, os grémios e os sindicatos irão afastando-
se gradualmente das suas bases humanas. O Estado sofrerá mil transformações e unicamente as
grandes corporações e o capital financeiro internacional irão concentrando a capacidade decisória
mundial até sobrevir o colapso do Paraestado. De que poderia valer uma militância que tratasse
de ocupar as cascas vazias da democracia formal? Decididamente, a acção deve delinear-se no
meio mínimo imediato e unicamente a partir daí, com base no conflito concreto, deve ser
construída a representatividade real. Porém, os problemas existenciais da base social não se
expressam exclusivamente como dificuldades económicas e políticas, portanto, um partido que
leve adiante o ideário humanista e que instrumentalmente ocupe espaços parlamentares, tem
significação institucional mas não pode dar resposta às necessidades das pessoas. O novo poder
construir-se-á a partir da base social como um Movimento amplo, descentralizado e federativo. A
pergunta que todo o militante se deve fazer não é “quem será primeiro-ministro ou deputado”, mas
sim “como formaremos os nossos centros de comunicação directa, as nossas redes de conselhos
vicinais; como daremos participação a todas as organizações mínimas de base nas quais se
expressa o trabalho, o desporto, a arte, a cultura e a religiosidade popular?” Esse Movimento não
pode ser pensado em termos políticos formais, mas sim em termos de diversidade convergente.
Também não se deve conceber o crescimento desse Movimento dentro dos moldes de um
gradualismo que vá ganhando progressivamente espaço e estratos sociais. Deve ser delineado
em termos de “efeito demonstração”, típico de uma sociedade planetária multiconectada apta para
reproduzir e adaptar o êxito de um modelo em colectividades afastadas e diferentes entre si. Esta
última carta, em suma, esboça um tipo de organização mínima e uma estratégia de acção
conforme à situação actual.
Detive-me somente nas cartas quatro, seis e dez. Creio que, à diferença das restantes,
estas requeriam alguma recomendação, alguma citação e algum comentário complementar.
J. Valinsky
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
CARTA AOS MEUS AMIGOS
Estimados amigos:
Desde há bastante tempo recebo correspondência de diferentes países pedindo explicação ou
ampliações sobre temas que aparecem nos meus livros. Em geral, o que se reclama é clarificação
sobre assuntos tão concretos como a violência, a política, a economia, a ecologia, as relações
sociais e as inter-pessoais. Como se vê as preocupações são muitas e diversas e é claro que
nesses campos terão que ser os especialistas a dar resposta. É evidente que esse não é o meu
caso.
Até onde seja possível, tratarei de não repetir o já escrito noutros lugares e oxalá possa
esboçar em poucas linhas a situação geral em que nos cabe viver e as tendências mais imediatas
que se perfilam. Noutras épocas, ter-se-ia tomado como fio condutor deste tipo de descrição uma
certa ideia do "mau estar da cultura", mas hoje, diversamente, falaremos da veloz mudança que
se está a produzir nas economias, nos costumes, nas ideologias e nas crenças, tratando de
rastrear uma certa desorientação que parece asfixiar os indivíduos e os povos.
Antes de entrar no tema, gostaria de fazer duas advertências: uma referida ao mundo que já
era e que parece ser considerado neste escrito com uma certa nostalgia, e outra que aponta ao
modo de expôr, no qual se poderia ver uma total ausência de matizes, levando as coisas a um
primitivismo de questionamento que não é o modo como, na realidade, formulam aqueles que nós
criticamos. Direi que quem como nós crê na evolução humana não está deprimido pelas
mudanças, antes deseja, na verdade, um incremento na aceleração dos acontecimentos,
enquanto trata de adaptar-se crescentemente aos novos tempos. Quanto ao modo de expressar a
argumentação dos defensores da "nova ordem", posso comentar o seguinte: ao falar deles não
deixaram de ressoar em mim os acordes daquelas diametrais ficções literárias, “1984” de Orwell e
“O Admirável Mundo Novo” de Huxley. Esses magníficos escritores vaticinaram um mundo futuro
no qual por meios violentos ou persuasivos, o ser humano acabava submergido e robotizado.
Creio que ambos atribuíram demasiada inteligência aos "maus" e demasiada estupidez aos "bons"
dos seus romances, movidos talvez por um pessimismo de fundo que não cabe interpretar agora.
Os "maus" de hoje são pessoas com muitos problemas e uma grande avidez, mas, em todo o
caso, incompetentes para orientar processos históricos que claramente escapam à sua vontade e
capacidade de planificação. Em geral, trata-se de gente pouco estudiosa e de técnicos ao seu
serviço que dispõem de recursos parcelados e pateticamente insuficientes. Assim, pedirei que não
tomem muito a sério alguns parágrafos, que são, na realidade, como um divertimento, quando
pomos algumas palavras nas suas bocas que não dizem, mesmo que as suas intenções vão
nessa direcção. Creio que há que considerar estas coisas excluindo toda a solenidade (afim à
época que morre) e, ao invés, questioná-las com o bom humor e o espírito de brincadeira que
campeia nas cartas intercambiadas pelas pessoas verdadeiramente amigas.
1. A situação actual
Desde o começo da sua História a humanidade evolui trabalhando para conseguir uma vida
melhor. Apesar dos avanços, hoje utiliza-se o poder e a força económica e tecnológica para
assassinar, empobrecer e oprimir diversas regiões do mundo, destruindo, além do mais, o futuro
das novas gerações e o equilíbrio geral da vida no planeta. Uma pequena percentagem da
humanidade possui grandes riquezas, enquanto as maiorias padecem de sérias necessidades.
Nalguns lugares, há trabalho e remuneração suficiente, mas noutros a situação é desastrosa. Em
todas os lados, os sectores mais humildes sofrem horrores para não morrer de fome. Hoje,
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
minimamente, e pelo simples facto de ter nascido num meio social, todo o ser humano requer
adequada alimentação, saúde, habitação, educação, vestuário, serviços... e chegando a certa
idade necessita assegurar o seu futuro pelo tempo de vida que lhe reste. Com todo o direito as
pessoas querem isso para elas e para os seus filhos, ambicionando que estes possam viver
melhor. No entanto, hoje essas aspirações de milhares de milhões de pessoas não são satisfeitas.
2. A alternativa de um mundo melhor
Tratando de moderar os problemas comentados fizeram-se diferentes experiências
económicas com resultados díspares. Actualmente, tende-se a aplicar um sistema em que
supostas leis de mercado regularão automaticamente o progresso social, superando o desastre
produzido pelas anteriores economias dirigistas. Segundo este esquema, as guerras, a violência,
a opressão, a desigualdade, a pobreza e a ignorância, irão retrocedendo sem se produzirem
sobressaltos de maior. Os países integrar-se-ão em mercados regionais até se chegar a uma
sociedade mundial, sem nenhum tipo de barreiras. E assim como os sectores mais pobres dos
pontos desenvolvidos irão elevando o seu nível de vida, as regiões menos avançadas receberão a
influência do progresso. As maiorias adaptar-se-ão ao novo esquema que técnicos capacitados,
ou homens de negócios, estarão em condições de pôr a funcionar. Se algo falha, não será pelas
naturais leis económicas, mas sim por deficiências desses especialistas que, como sucede numa
empresa, terão de ser substituídos todas as vezes que seja necessário. Por outro lado, nessa
sociedade "livre", será o público que decidirá democraticamente entre diferentes opções de um
mesmo sistema.
3. A evolução social
Dada a situação actual e a alternativa que se apresenta para a consecução de um mundo
melhor, cabe reflectir brevemente em torno dessa possibilidade. Com efeito, realizaram-se
numerosas provas económicas que trouxeram resultados díspares e, face a isso, diz-se-nos que a
nova experiência é a única solução para os problemas fundamentais. No entanto, não chegamos
a compreender alguns aspectos dessa proposta. Em primeiro lugar, aparece o tema das leis
económicas. Ao que parece, existiriam certos mecanismos, como na natureza, que ao jogar
livremente regulariam a evolução social. Temos dificuldades em aceitar que qualquer processo
humano e, desde logo o processo económico, seja da mesma ordem que os fenómenos naturais.
Cremos, ao invés, que as actividades humanas são não-naturais, são intencionais, sociais e
históricas; fenómenos estes que não existem nem na natureza em geral nem nas espécies
animais. Tratando-se, pois, de intenções e de interesses, também não temos razão para supôr
que os sectores que detêm o bem-estar, estejam preocupados com a superação das dificuldades
de outros menos favorecidos. Em segundo lugar, a explicação que se nos dá relativamente a que
sempre houve grandes diferenças económicas entre uns poucos e as maiorias e que, não
obstante isto, as sociedades progrediram, parece-nos insuficiente. A História mostra-nos que os
povos avançaram, reclamando os seus direitos frente aos poderes estabelecidos. O progresso
social não se produziu porque a riqueza acumulada por um sector tenha depois transbordado
automaticamente "para baixo". Em terceiro lugar, apresentar como modelo determinados países
que, operando com essa suposta economia livre, hoje têm um bom nível de vida, parece um
excesso. Esses países realizaram guerras de expansão sobre outros, impuseram o colonialismo,
o neo-colonialismo e a partição de nações e regiões; arrecadaram com base na discriminação e a
violência e, finalmente, absorveram mão-de-obra barata, ao mesmo tempo que impuseram termos
de intercâmbio desfavoráveis para as economias mais débeis. Poderá argumentar-se que aqueles
eram os procedimentos que se entendiam como "bons negócios". Mas se se afirma isso, não se
poderá sustentar que o desenvolvimento comentado seja independente de um tipo especial de
relação com outros povos. Em quarto lugar, fala-se-nos do avanço científico e técnico e da
iniciativa que se desenvolve numa economia "livre". Quanto ao avanço científico e técnico, é de
7
Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
saber que este opera desde que o homem inventou a moca, a alavanca, o fogo e assim seguindo,
numa acumulação histórica que não parece ter-se ocupado muito das leis de mercado. Se, ao
invés, se quer dizer que as economias abundantes sugam talentos, pagam equipamento e
investigação e que, por último, são motivadoras porque dão uma melhor remuneração, diremos
que isto é assim desde épocas milenares e que tão-pouco se deve a um tipo especial de
economia, mas sim, simplesmente, a que nesse lugar existem recursos suficientes
independentemente da origem de tal potencialidade económica. Em quinto lugar, falta o
expediente de explicar o progresso dessas comunidades pelo intangível "dom" natural de
especiais talentos, virtudes cívicas, laboriosidade, organização e coisas semelhantes. Este já não
é um argumento, mas sim uma declaração devocional em que se escamoteia a realidade social e
histórica que explica como se formaram esses povos.
Desde logo, temos muito desconhecimento para compreender como é que com semelhantes
antecedentes históricos se poderá sustentar este esquema no futuro imediato, mas isso faz parte
de outra discussão: a discussão em torno de se existe realmente tal economia livre de mercado ou
se se trata antes de proteccionismos e dirigismos encobertos que, de repente, abrem
determinadas válvulas, ali onde se sentem a dominar uma situação, e fecham outras em caso
contrário. Se isto é assim, tudo o que se acrescente como uma promessa de avanço ficará
somente reservado à explosão e difusão da ciência e da tecnologia, independentemente do
suposto automatismo das leis económicas.
4. As futuras experiências
Como aconteceu até hoje, quando seja necessário, substituir-se-á o esquema vigente por outro
que "corrija" os defeitos do modelo anterior. Desse modo e passo a passo, continuará a
concentrar-se a riqueza nas mãos de uma minoria cada vez mais poderosa. É claro que a
evolução não se deterá, nem tão-pouco as legítimas aspirações dos povos. Assim sendo, em
pouco tempo serão varridas as últimas ingenuidades que asseguram o fim das ideologias, as
confrontações, as guerras, as crises económicas e as desordens sociais. Desde logo, tanto as
soluções como os conflitos se mundializarão, porque já não restarão pontos desconectados entre
si. Também há algo certo: nem os esquemas de dominação actual poderão sustentar-se nem tão-
pouco as fórmulas de luta que tiveram vigência até ao momento actual.
5. A mudança e as relações entre as pessoas
Tanto a regionalização dos mercados como a reivindicação localista e das etnias apontam à
desintegração do Estado nacional. A explosão demográfica nas regiões pobres leva a migração ao
limite do controlo. A grande família camponesa desagrega-se, deslocando a geração jovem para a
aglomeração urbana. A familia urbana industrial e pós-industrial reduz-se ao mínimo, enquanto as
macro-cidades absorvem contigentes humanos formados noutras paisagens culturais. As crises
económicas e as reconversões dos modelos produtivos fazem com que a discriminação irrompa
novamente. Entretanto, a aceleração tecnológica e a produção massiva deixam obsoletos os
produtos no instante de entrar no circuito de consumo. A substituição de objectos corresponde-se
com a instabilidade e a desregulação na relação humana. A antiga solidariedade, herdeira do que
em algum momento se chamou "fraternidade", acabou por perder significado. Os companheiros
de trabalho, de estudo e de desporto, e as amizades de outras épocas, tomam o carácter de
competidores; os membros do casal lutam pelo domínio, calculando, desde o começo dessa
relação, como será a quota de benefício mantendo-se unidos, ou como será essa quota se se
separarem. Nunca antes o mundo esteve tão comunicado, porém os indivíduos padecem cada dia
mais de uma angustiosa incomunicação. Nunca os centros urbanos estiveram mais povoados,
contudo as pessoas falam de "solidão". Nunca as pessoas necessitaram mais do que agora do
calor humano, no entanto qualquer aproximação converte em suspeita a amabilidade e a ajuda.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Assim deixaram a nossa pobre gente: fazendo crer a todo o infeliz que tem algo importante a
perder e que esse "algo" etéreo é cobiçado pelo resto da humanidade! Nessas condições, pode-
se-lhe contar este conto como se se tratasse da mais autêntica realidade...
6. Um conto para aspirantes a executivos
"A sociedade que se está a pôr em marcha trará finalmente a abundância. Mas, à parte os
grandes benefícios objectivos, ocorrerá uma libertação subjectiva da humanidade. A antiga
solidariedade, própria da pobreza, não será necessária. Já muitos concordam que com dinheiro,
ou algo equivalente, se solucionarão quase todos os problemas; por conseguinte, os esforços,
pensamentos e sonhos, estarão lançados nessa direcção. Com o dinheiro comprar-se-á boa
comida, boa habitação, viagens, diversões, brinquedos tecnológicos e pessoas que façam o que
se quiser. Haverá um amor eficiente, uma arte eficiente e uns psicólogos eficientes que repararão
os problemas pessoais que pudessem restar, os quais, mais adiante, a nova química cerebral e a
engenharia genética acabarão por resolver.
"Nessa sociedade de abundância, diminuirá o suicídio, o alcoolismo, a toxicodependência, a
insegurança citadina e a delinquência, como hoje já mostram os países economicamente mais
desenvolvidos (?). Também desaparecerá a discriminação e aumentará a comunicação entre as
pessoas. Ninguém estará pungido por pensar desnecessariamente no sentido da vida, na solidão,
na doença, na velhice e na morte, porque com adequados cursos e alguma ajuda terapêutica
conseguir-se-á bloquear esses reflexos que tanto detiveram o rendimento e a eficiência das
sociedades. Todos confiarão em todos porque a concorrência no trabalho, nos estudos e no casal,
acabará por estabelecer relações maduras.
"Finalmente, as ideologias terão desaparecido e já não se utilizarão para lavar o cérebro das
pessoas. Certamente que ninguém impedirá o protesto ou inconformidade com temas menores,
sempre que para se expressarem paguem aos canais adequados. Sem confundir a liberdade com
a libertinagem, os cidadãos reunir-se-ão em números pequenos (por razões sanitárias) e poderão
expressar-se em lugares abertos (sem perturbar com sons contaminantes ou com publicidade que
deslustre o "município", ou como se chame mais adiante ).
"Mas o mais extraordinário ocorrerá quando já não se requeira controlo policial, pois cada
cidadão será alguém decidido que cuidará os outros das mentiras que algum terrorista ideológico
pudesse tratar de inculcar. Esses defensores terão tanta responsabilidade que acudirão
pressurosos aos meios de comunicação, nos quais encontrarão imediato acolhimento para alertar
a população; escreverão estudos brilhantes que serão publicados imediatamente e organizarão
fóruns, nos quais formadores de opinião de grande cultura esclarecerão algum desprevenido que
poderia ainda estar à mercê das forças obscuras do dirigismo económico, do autoritarismo, da
antidemocracia e do fanatismo religioso. Nem sequer será necessário perseguir os perturbadores,
porque num sistema de difusão tão eficiente ninguém quererá aproximar-se deles para não se
contaminar. No pior dos casos, "desprogramar-se-ão" com eficácia e eles agradecerão
publicamente a sua reinserção e o benefício que lhes produzirá reconhecer as bondades da
liberdade. Por seu lado, aqueles esforçados defensores, se é que não estão enviados
especificamente para cumprir essa importante missão, serão gente comum que poderá sair assim
do anonimato, ser reconhecida socialmente pela sua qualidade moral, assinar autógrafos e, como
é lógico, receber uma merecida retribuição.
"A Empresa será a grande família que favorecerá a qualificação, as relações e o lazer. A
robótica terá suplantado o esforço físico de outras épocas e trabalhar para a Empresa na própria
casa será uma verdadeira realização pessoal.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
"Assim, a sociedade não necessitará de organizações que não estejam incluidas na Empresa.
O ser humano, que tanto lutou pelo seu bem-estar, terá finalmente chegado aos céus. Saltando de
planeta em planeta terá descoberto a felicidade. Instalado aí, será um jovem competitivo, sedutor,
aquisitivo, tiunfador, e pragmático (sobretudo pragmático)... executivo da Empresa!"
7. A Mudança Humana
O mundo está a variar a grande velocidade e muitas coisas que até há pouco eram cridas
cegamente já não se podem sustentar. A aceleração está a gerar instabilidade e desorientação em
todas as sociedades, sejam estas pobres ou opulentas. Nesta mudança de situação, tanto as
lideranças tradicionais e seus "formadores de opinião" como os antigos lutadores políticos e
sociais deixam de ser referência para as pessoas. No entanto, está a nascer uma sensibilidade
que se corresponde com os novos tempos. É uma sensibilidade que capta o mundo como uma
globalidade e que se dá conta de que as dificuldades das pessoas em qualquer lugar acabam por
implicar outras, ainda que se encontrem a muita distância. As comunicações, o intercâmbio de
bens e a veloz deslocação de grandes contingentes humanos de um ponto para outro, mostram
esse processo de mundialização crescente. Também estão a surgir novos critérios de acção ao
compreender-se a globalidade de muitos problemas, percebendo-se que a tarefa daqueles que
querem um mundo melhor será efectiva se se a faz crescer a partir do meio em que se tem
alguma influência. Ao contrário de outras épocas, cheias de frases ocas com as quais se
procurava reconhecimento externo, hoje começa-se a valorizar o trabalho humilde e sentido,
mediante o qual não se pretende engrandecer a própria figura, mas sim mudar-se a si mesmo e
ajudar o meio imediato familiar, laboral e de relação a fazê-lo. Os que gostam realmente das
pessoas não desprezam essa tarefa sem estridências, incompreensível, ao invés, para qualquer
oportunista formado na antiga paisagem dos líderes e da massa, paisagem na qual ele aprendeu
a usar outros para ser catapultado para a cúpula social. Quando alguém comprova que o
individualismo esquizofrénico já não tem saída e comunica abertamente a todos os seus
conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o ridículo temor de não ser compreendido;
quando se aproxima de outros; quando se interessa por cada um e não por uma massa anónima;
quando promove o intercâmbio de ideias e a realização de trabalhos em conjunto; quando
claramente expõe a necessidade de multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social
destruido por outros; quando sente que mesmo a pessoa mais "insignificante" é de superior
qualidade humana que qualquer desalmado posto no cume da conjuntura epocal... Quando
sucede tudo isto, é porque no interior desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem
movido os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse Destino tantas vezes desviado e tantas
vezes esquecido, mas sempre reencontrado nas encruzilhadas da história. Não só se vislumbra
uma nova sensibilidade, um novo modo de acção, como também, além disso, uma nova atitude
moral e uma nova disposição táctica perante a vida. Se me fizessem precisar o enunciado acima,
diria que as pessoas, ainda que isto se tenha repetido desde há três milénios atrás, hoje
experimentam como uma novidade a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como
cada um quer ser tratado. Acrescentaria que, quase como leis gerais de comportamento, hoje se
aspira a: 1.- uma certa proporção, tratando de ordenar as coisas importantes da vida, levando-as
em conjunto e evitando que algumas se adiantem e outras se atrasem excessivamente; 2.- uma
certa adaptação crescente, actuando a favor da evolução (não simplesmente da curta conjuntura)
e não cooperando com as diferentes formas de involução humana; 3.- uma certa oportunidade,
retrocedendo diante de uma grande força (não perante qualquer inconveniente) e avançando na
sua declinação; 4.- uma certa coerência, acumulando acções que dão a sensação de unidade e
acordo consigo mesmo, e pondo de lado aquelas que produzem contradição e que se registam
como desacordo entre o que se pensa, sente e faz. Não creio que seja preciso explicar por que
digo que se está "a sentir a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como cada um
quer ser tratado", face à objecção que levanta o facto de que assim não se actua nestes
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
momentos. Também não creio que me deva alongar em explicações acerca do que entendo por
"evolução" ou por "adaptação crescente" e não simplesmente por adaptação de permanência.
Quanto aos parâmetros do retroceder ou avançar diante de grandes ou declinantes forças, sem
dúvida que haveria que contar com indicadores ajustados que não mencionei. Por último, isto de
acumular acções unitivas perante as situações contraditórias imediatas que nos cabe viver ou, em
sentido oposto pôr de lado a contradição, a olhos vistos aparece como uma dificuldade. Isso é
certo, mas se revemos o comentado mais acima, ver-se-á que mencionei todas estas coisas
dentro do contexto de um tipo de comportamento ao qual hoje se começa a aspirar, bastante
diferente do que se pretendia noutras épocas.
Tratei de anotar algumas características especiais que se estão a apresentar, correspondentes
a uma nova sensibilidade, uma nova forma de acção interpessoal e um novo tipo de
comportamento pessoal que, parece-me, ultrapassaram a simples crítica de situação. Sabemos
que a crítica é sempre necessária, mas quanto mais necessário é fazer algo diferente daquilo que
criticamos!
Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos.
Silo.
21/02/91.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
SEGUNDA CARTA AOS MEUS AMIGOS
Estimados amigos:
Em carta anterior, referi-me à situação que nos cabe viver e a certas tendências que os
acontecimentos mostram. Aproveitei para discutir algumas propostas que os defensores da
economia de mercado anunciam como se se tratassem de condições ineludíveis para todo o
progresso social. Também destaquei a crescente deterioração da solidariedade e a crise de
referências que se verifica neste momento. Por último, esbocei algumas características positivas
que se começam a observar naquilo que chamei "uma nova sensibilidade, uma nova atitude moral
e uma nova disposição táctica perante a vida".
Alguns dos meus correspondentes fizeram-me notar o seu desacordo com o tom da carta, já
que, segundo lhes pareceu, havia nela muitas coisas demasiado graves para uma pessoa se
permitir ironizar. Mas não dramatizemos! É tão inconsistente o sistema de provas que apresenta a
ideologia do neoliberalismo, da economia social de mercado e da Nova Ordem Mundial, que a
coisa não é de modo a franzir o sobrolho. O que quero dizer é que tal ideologia está morta nos
seus fundamentos desde há muito tempo e que em breve sobrevirá a crise prática, de superfície,
que é a que finalmente percebem aqueles que confundem significado com expressão; conteúdo
com forma; processo com conjuntura. Tal como as ideologias do fascismo e do socialismo real
tinham morrido muito tempo antes de se ter produzido o seu descalabro prático posterior, também
o desastre do actual sistema só mais adiante surpreenderá os bem-pensantes. Não é isto muito
ridículo? É como ver muitas vezes um filme muito mau. Depois de tanta repetição, dedicamo-nos
a esquadrinhar nas paredes de alvenaria, nas maquilhagens dos actores e nos efeitos especiais,
enquanto, ao nosso lado, uma senhora se emociona por aquilo que vê e que, para ela, é a própria
realidade. Assim, digo em meu descargo que não zombei da enorme tragédia que a imposição
deste sistema significa, mas sim das suas monstruosas pretensões e do seu grotesco final, final
que já presenciámos em muitos casos anteriores.
Também recebi correspondência a reclamar maior precisão na definição de atitudes que se
deveria assumir perante o processo de mudança actual. Sobre isto, creio que será melhor tratar
de entender as posições que tomam distintos grupos e pessoas isoladas, antes de fazer
recomendações de qualquer tipo. Limitar-me-ei, pois, a apresentar as posturas mais populares,
dando a minha opinião nos casos que me pareçam de maior interesse.
1. Algumas posturas face ao processo de mudança actual
No lento progresso da humanidade foram-se acumulando factores até ao momento actual,
em que a velocidade de mudança tecnológica e económica não coincide com a velocidade de
mudança nas estruturas sociais e no comportamento humano. Este desfasamento tende a
incrementar-se e a gerar crises pogressivas. Esse problema é encarado de diferentes pontos de
vista. Há quem suponha que o desajuste se regulará automaticamente e, portanto, recomenda
que não se trate de orientar esse processo, que, além do mais, seria impossível de dirigir. Trata-se
de uma tese mecanicista optimista. Há outros que supõem que se caminha para um ponto de
explosão irremediável. É o caso dos mecanicistas pessimistas. Também aparecem as correntes
morais que pretendem deter a mudança e, dentro do possível, voltar a supostas fontes
reconfortantes. Elas representam uma atitude anti-histórica. Mas também os cínicos, os estóicos e
os epicuristas contemporâneos começam a elevar as suas vozes. Uns, negando importância e
sentido a toda a acção; outros, enfrentando os factos com firmeza ainda que tudo saia mal.
Finalmente, os terceiros, tratando de tirar partido da situação e pensando simplesmente no seu
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
hipotético bem-estar, que estendem, quando muito, aos seus filhos. Como nas épocas finais de
civilizações passadas, muita gente assume atitudes de salvação individual, supondo que não tem
sentido nem possibilidade de êxito qualquer tarefa que se empreenda em conjunto. Em todo o
caso, o conjunto tem utilidade para a especulação estritamente pessoal e, por isso, os líderes
empresariais, culturais ou políticos necessitam de manipular e melhorar a sua imagem tornando-
se credíveis, fazendo outros crer que eles pensam e actuam em função dos demais. Claro que tal
ocupação tem os seus dissabores, porque toda a gente conhece o truque e ninguém acredita em
ninguém. Os antigos valores religiosos, patrióticos, culturais, políticos e gremiais ficam submetidos
ao dinheiro, num campo em que a solidariedade e, portanto, a oposição colectiva a esse esquema
são varridas, ao mesmo tempo que o tecido social se descompõe gradualmente. Depois, sobrevirá
outra etapa na qual o individualismo radical será superado... mas esse é um tema para mais
adiante. Com a nossa paisagem de formação às costas e com as nossas crenças em crise, não
estamos ainda em condições de admitir que se aproxima esse novo momento histórico. Hoje,
detendo uma pequena parcela de poder ou dependendo absolutamente do poder de outros, todos
nos encontramos tocados pelo individualismo, no qual tem claramente vantagem quem melhor
está instalado no sistema.
2. O individualismo, a fragmentação social
e a concentração de poder nas minorias
Porém, o individualismo leva necessariamente à luta pela supremacia do mais forte e à
procura do êxito a qualquer preço. Tal postura começou com uns poucos que respeitaram certas
regras de jogo entre si face à obediência dos muitos. De qualquer maneira, essa etapa esgotar-
se-á num "todos contra todos" porque mais tarde ou mais cedo desequilibrar-se-á o poder a favor
do mais forte e o resto, apoiando-se entre si ou noutras facções, terminará por desarticular um
sistema tão frágil. Mas as minorias foram mudando com o desenvolvimento económico e
tecnológico, aperfeiçoando os seus métodos a tal ponto que, nalguns lugares em situação de
abundância, as grandes maiorias transferem o seu descontentamento para aspectos secundários
da situação em que têm de viver. E insinua-se que, mesmo crescendo o nível de vida global, as
massas postergadas contentar-se-ão esperando uma melhor situação no futuro, porque já não
parece que venham a questionar o sistema, mas sim certos aspectos de urgência. Tudo isso
mostra uma viragem importante no comportamento social. Se isto é assim, a militância pela
mudança ver-se-á progressivamente afectada e as antigas forças políticas e sociais ficarão vazias
de propostas; propagar-se-á a fragmentação grupal e interpessoal e o isolamento individual será
medianamente suprido pelas estruturas produtoras de bens e lazer colectivo concentradas sob
uma mesma direcção. Nesse mundo paradoxal, terminar-se-á de erradicar toda a centralização e
burocratismo, rompendo-se as anteriores estruturas de direcção e decisão, mas a mencionada
desregulação, descentralização, liberalização de mercados e actividades será o campo mais
adequado para que floresça uma concentração como não houve em nenhuma época anterior,
porque a absorção do capital financeiro internacional continuará a crescer nas mãos de uma
banca cada vez mais poderosa. Similar paradoxo sofrerá a classe política, ao ter que proclamar os
novos valores que fazem o Estado perder poder, com o que o seu protagonismo se verá cada vez
mais comprometido. Por alguma razão se vão substituindo desde há algum tempo palavras como
"governo" por outras como "administração", fazendo os "públicos" (não os "povos") compreender
que um país é uma empresa.
Por outro lado, e até que se consolide um poder imperial mundial, poderão ocorrer conflitos
regionais como noutro tempo aconteceu entre países. Que tais confrontações se produzam no
campo económico ou se trasladem à arena da guerra em áreas restritas; que como consequência
aconteçam desordens incoerentes e massivas; que caiam governos completos e acabem por se
desintegrar países e zonas, isso em nada afectará o processo de concentração a que parece
apontar este momento histórico. Localismos, lutas interétnicas, migrações e crises continuadas
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
não alterarão o quadro geral de concentração de poder. E quando a recessão e o desemprego
afectem também as populações dos países ricos, já terá passado a etapa de liquidação liberal e
começarão as políticas de controlo, coacção e emergência ao melhor estilo imperial... quem
poderá então falar de economia de livre mercado e que importância terá manter posturas
baseadas no individualismo radical?
Mas devo responder a outras inquietudes que se me fizeram chegar relativamente à
caracterização da crise actual e das suas tendências.
3. Características da crise
Comentaremos a crise do Estado nacional, a crise de regionalização e mundialização, e a
crise da sociedade, do grupo e do individuo.
No contexto de um processo de mundialização crescente acelera-se a informação e
aumenta a deslocação de pessoas e bens. A tecnologia e o poder económico em aumento
concentram-se em empresas cada vez mais importantes. O mesmo fenómeno de aceleração no
intercâmbio choca com as limitações e a lentidão que impõem antigas estruturas como o Estado
nacional. O resultado é que se tendem a apagar as fronteiras nacionais dentro de cada região.
Isto leva a que se deva homogeneizar a legislação dos países, não só em matéria de taxas
aduaneiras e documentação pessoal como também naquilo que tem a ver com a adaptação dos
seus sistemas produtivos. O regime laboral e de segurança social seguem na mesma direcção.
Contínuos acordos entre esses países mostram que um Parlamento, um sistema judicial e um
executivo comum, darão maior eficácia e velocidade à gestão dessa região. A primitiva moeda
nacional vai cedendo lugar a um tipo de signo de intercâmbio regional que evita perdas e demoras
em cada operação de conversão. A crise do Estado nacional é um facto observável não só
naqueles países que tendem a incluir-se num mercado regional, mas também noutros cujas
maltratadas economias mostram uma estagnação relativa importante. Por todos os lados,
levantam-se vozes contra as burocracias anquilosadas e pede-se a reforma desses esquemas.
Em pontos onde um país se configurou como resultado recente de partições e anexações, ou
como federação artificial, avivam-se antigos rancores e diferenças localistas, étnicas e religiosas.
O Estado tradicional tem que enfrentar essa situação centrífuga por entre crescentes dificuldades
económicas que questionam precisamente a sua eficácia e legitimidade. Fenómenos desse tipo
tendem a crescer no centro da Europa, no Leste e nos Balcãs. Estas dificuldades também se
agudizam no Médio Oriente, Levante e Asia Menor. Na Africa, em vários países delimitados
artificialmente, começam a ser observados os mesmos sintomas. Acompanhando essa
descomposição, começam as migrações de povos em direcção às fronteiras, pondo em perigo o
equilíbrio zonal. Bastará que aconteça um desequilíbrio importante na China para que mais de
uma região seja afectada directamente pelo fenómeno, considerando, além disso a instabilidade
actual da antiga União Soviética e dos países asiáticos continentais.
Entretanto, configuraram-se centros económica e tecnológicamente poderosos que
assumem carácter regional: o Extremo Oriente liderado pelo Japão, Europa e Estados Unidos. A
descolagem e a influência dessas zonas mostra um aparente policentrismo, mas o desenrolar dos
acontecimentos assinala que os Estados Unidos somam ao seu poder tecnológico, económico e
político a sua força militar, em condições de controlar as mais importantes áreas de
abastecimento. No processo de mundialização crescente, tende a levantar-se esta superpotência
como regedora do processo actual, em acordo ou desacordo com os poderes regionais. Este é,
no fundo, o significado da Nova Ordem Mundial. Ao que parece, não chegou ainda a época da
paz, ainda que se tenha dissipado, de momento, a ameaça de guerra mundial. Explosões
localistas, étnicas e religiosas; desordens sociais; migrações e conflitos bélicos em áreas restritas,
parecem ameaçar a suposta estabilidade actual. Por outro lado, as áreas postergadas afastam-se
cada vez mais do crescimento das zonas tecnológica e economicamente aceleradas e este
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
desfasamento relativo agrega ao esquema dificuldades adicionais. O caso da América Latina é
exemplar neste aspecto, porque ainda que a economia de vários dos seus países experimente um
crescimento importante nos próximos anos, a dependência relativamente aos centros de poder
tornar-se-á cada vez mais notória.
Enquanto cresce o poder regional e mundial das companhias multinacionais, enquanto se
concentra o capital financeiro internacional, os sistemas políticos perdem autonomia e a legislação
adequa-se aos ditames dos novos poderes. Numerosas instituições podem hoje ser supridas,
directa ou indirectamente, pelos departamentos ou as fundações da Empresa, que está em
condições em alguns pontos de prestar assistência ao nascimento, qualificação, colocação
laboral, casamento, lazer, informação, segurança social, reforma e morte dos seus empregados e
seus filhos. O cidadão já pode, em certos lugares, tornear aqueles velhos trâmites burocráticos,
tendendo a utilizar um cartão de crédito e, pouco a pouco, uma moeda electrónica onde
constarão, não só os seus gastos e depósitos, mas também todo o tipo de antecedentes
significativos e situação actual devidamente computada. Claro que tudo isto já liberta uns poucos
de lentidões e preocupações secundárias, mas estas vantagens pessoais servirão também um
sistema de controlo embuçado. Ao lado do crescimento tecnológico e da aceleração do ritmo de
vida, a participação política diminui; o poder de decisão torna-se remoto e cada vez mais
intermediado; a família reduz-se e fragmenta-se em casais cada vez mais móveis e em constante
mudança; a comunicação interpessoal bloqueia-se; a amizade desaparece e a concorrência
envenena todas as relações humanas ao ponto de, desconfiando todos de todos, a sensação de
insegurança já não se basear no facto objectivo do aumento da criminalidade, mas sim sobretudo
num estado de ânimo. Deve acrescentar-se que a solidariedade social, grupal e interpessoal
desaparece velozmente; que a toxicodependência e o alcoolismo fazem estragos; que o suicídio e
a doença mental tendem a incrementar-se perigosamente. Claro que em todos os lados existe
uma maioria saudável e razoável, mas os sintomas de tanto desajuste já não nos permitem falar
de uma sociedade sã. A paisagem de formação das novas gerações conta com todos os
elementos de crise que citámos acima e não fazem só parte da sua vida a sua qualificação técnica
e laboral, as telenovelas, as recomendações dos opinadores dos meios massivos, as
declamações sobre a perfeição do mundo em que vivemos ou, para a juventude mais favorecida,
o lazer da mota, as viagens, a roupa, o desporto, a música e os artefactos electrónicos. Este
problema da paisagem de formação nas novas gerações ameaça abrir enormes brechas entre
grupos de distintas idades, pondo sobre a mesa uma dialéctica geracional virulenta de grande
profundidade e de enorme extensão geográfica. Está claro que se instalou na cúpula da escala de
valores o mito do dinheiro e a ele, crescentemente, subordina-se tudo. Um contingente importante
da sociedade não quer ouvir nada daquilo que lhe recorde o envelhecimento e a morte,
desqualificando qualquer tema que se relacione com o sentido e significado da vida. E nisto
devemos reconhecer uma certa razoabilidade, porquanto a reflexão sobre esses pontos não
coincide com a escala de valores estabelecida no sistema. São demasiado graves os sintomas da
crise para não os ver e, no entanto, uns dirão que é o preço a pagar para existir no final do século
XX. Outros afirmarão que estamos a entrar no melhor dos mundos. O pano de fundo que opera
nessas afirmações está posto pelo momento histórico, no qual o esquema global de situação não
entrou ainda em crise ainda que as crises particulares se propaguem por todo o lado, mas à
medida que os sintomas da descomposição se acelerem mudará de igual modo a apreciação dos
acontecimentos, porque se sentirá a necessidade de estabelecer novas prioridades e novos
projectos de vida.
4. Os factores positivos da mudança
O desenvolvimento científico e tecnológico não pode ser posto em causa pelo facto de
alguns avanços terem sido ou serem utilizados contra a vida e o bem-estar. Nos casos em que se
questiona a tecnologia dever-se-ia fazer uma prévia reflexão com respeito às características do
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
sistema que utiliza o avanço do saber com fins espúrios. Claro que o progresso na medicina,
comunicações, robótica, engenharia genética e tantos outros campos, pode ser aproveitado em
direcção destrutiva. O mesmo se pode dizer relativamente à utilização da técnica na exploração
irracional de recursos, poluição industrial, contaminação e degradação ambiental. Mas tudo isso
denuncia o signo negativo que comanda a economia e os sistemas sociais. Assim, bem sabemos
que hoje se está em condições de solucionar os problemas de alimentação de toda a humanidade
e, contudo, comprovamos diariamente que existe fome, desnutrição e padecimentos infra-
humanos, porque o sistema não está na disposição de se dedicar a esses problemas, resignando
aos seus fabulosos ganhos em troca de uma melhoria global do nível humano. Também notamos
que as tendências para as regionalizações e, finalmente, para a mundialização estão a ser
manipuladas por interesses particulares em detrimento dos grandes conjuntos. Mas está claro
que, mesmo nessa distorsão, o processo em direcção a uma nação humana universal abre
passagem. A mudança acelerada que se está a apresentar no mundo leva a uma crise global do
sistema e a um consequente reordenamento de factores. Tudo isso será a condição necessária
para conseguir uma estabilidade aceitável e um desenvolvimento harmónico do planeta. Por
conseguinte, apesar das tragédias que se podem avistar na descomposição deste sistema global
actual, a espécie humana prevalecerá sobre todo o interesse particular. Na compreensão da
direcção da História, que começou nos nossos antepassados hominídios, radica a nossa fé no
futuro. Esta espécie que trabalhou e lutou durante milhões de anos para vencer a dor e o
sofrimento não sucumbirá no absurdo. Por isso, é necessário compreender processos mais
amplos do que simples conjunturas e apoiar tudo o que vá em direcção evolutiva, ainda que não
se vejam os seus resultados imediatos. O desalento dos seres humanos valorosos e solidários
atrasa o passo da História. Mas é difícil compreender esse sentido se a vida pessoal não se
organiza e orienta também em direcção positiva. Aqui não estão em jogo factores mecânicos ou
determinismos históricos, está em jogo a intenção humana que tende a abrir caminho diante de
todas as dificuldades.
Espero, meus amigos, passar a temas mais reconfortantes na próxima carta, deixando de
lado a observação de factores negativos para esboçar propostas concordantes com a nossa fé
num futuro melhor para todos.
Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos.
Silo.
05/12/91.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
TERCEIRA CARTA AOS MEUS AMIGOS
Estimados amigos:
Espero que a presente carta sirva para ordenar e simplificar as minhas opiniões a respeito
da situação actual. Também queria considerar certos aspectos da relação entre os indivíduos e
entre eles e o meio social em que vivem.
1. A mudança e a crise
Nesta época de grande mudança estão em crise os indivíduos, as instituições e a
sociedade. A mudança será cada vez mais rápida tal como as crises individuais, institucionais e
sociais. Isto anuncia perturbações que talvez não sejam assimiladas por amplos sectores
humanos.
2. Desorientação
As tranformações que estão a ocorrer tomam direcções inesperadas, produzindo uma
desorientação geral em relação ao futuro e ao que se deve fazer no presente. Na realidade, não é
a mudança que nos perturba, já que nela observamos muitos aspectos positivos. O que nos
inquieta é não saber em que direcção vai a mudança e para onde orientar a nossa actividade.
3. Crise na vida das pessoas
A mudança está a ocorrer na economia, na tecnologia e na sociedade; sobretudo está a
operar-se nas nossas vidas: no nosso meio familiar e laboral, nas nossas relações de amizade.
Estão a modificar-se as nossas ideias e o que acreditávamos sobre o mundo, sobre as outras
pessoas e sobre nós mesmos. Muitas coisas estimulam-nos, mas outras confundem-nos e
paralisam-nos. O comportamento dos demais e o nosso parece-nos incoerente, contraditório e
sem direcção clara, tal como sucede com os acontecimentos que nos rodeiam.
4. Necessidade de dar orientação à própria vida
Portanto, é fundamental dar direcção a essa mudança inevitável e não há outra forma de
fazê-lo senão começando por si mesmo. Em cada um deve dar-se direcção a estas mudanças
desordenadas cujo rumo desconhecemos.
5. Direcção e mudança de situação
Como os indivíduos não existem isolados, se realmente direccionam a sua vida, modificarão
a relação com os outros na sua familia, no seu trabalho e onde lhes caiba actuar. Este não é um
problema psicológico que se resolve dentro da cabeça de indivíduos isolados, mas sim mudando
a situação em que se vive com outros mediante um comportamento coerente. Quando
celebramos êxitos ou nos deprimimos por causa dos nossos fracassos, quando fazemos planos
para o futuro ou nos propomos introduzir mudanças na nossa vida, esquecemos o ponto
fundamental: estamos em situação de relacção com outros. Não podemos explicar o que nos
acontece, nem escolher, sem referência a certas pessoas e a certos âmbitos sociais concretos.
Essas pessoas que têm especial importância para nós e esses âmbitos sociais em que vivemos
põem-nos numa situação precisa, a partir da qual pensamos, sentimos e actuamos. Negar isto ou
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
não tê-lo em conta cria enormes dificuldades. A nossa liberdade de escolha e acção está
delimitada pela situação em que vivemos. Qualquer mudança que desejemos operar não pode ser
traçada em abstracto, mas sim em referência à situação em que vivemos.
6. O comportamento coerente
Se pudéssemos pensar, sentir e actuar na mesma direcção, se o que fazemos não nos
criasse contradição com o que sentimos, diríamos que a nossa vida tem coerência. Seríamos
fiáveis para nós mesmos, ainda que não necessariamente fiáveis para o nosso meio imediato.
Deveríamos conseguir essa mesma coerência na relação com outros, tratando os demais como
queremos ser tratados. Sabemos que pode existir uma espécie de coerência destrutiva, como
observamos nos racistas, nos exploradores, nos fanáticos e nos violentos, mas está clara a sua
incoerência na relação porque tratam os outros de um modo muito diferente daquele que
desejam para si mesmos. Essa unidade de pensamento, sentimento e acção, essa unidade entre
o trato que se pede e o trato que se dá, são ideais que não se realizam na vida diária. Este é o
ponto. Trata-se de um ajuste de condutas a essas propostas; trata-se de valores que, tomados
com seriedade, direccionam a vida, independentemente das dificuldades que se enfrentem para
realizá-los. Se observarmos bem as coisas, não estaticamente mas sim em dinâmica,
compreenderemos isto como uma estratégia que deve ir ganhando terreno à medida que passe o
tempo. Aqui sim valem as intenções, ainda que as acções não coincidam no princípio com elas,
sobretudo se aquelas intenções são mantidas, aperfeiçoadas e ampliadas. Essas imagens do que
se deseja conseguir são referências firmes que dão direcção em todas as situações. E isto que
dizemos não é tão complicado. Não nos surpreende, por exemplo, que uma pessoa oriente a sua
vida para conseguir uma grande fortuna, no entanto, essa pessoa pode saber antecipadamente
que não a conseguirá. De qualquer maneira, o seu ideal impulsiona-a ainda que não tenha
resultados relevantes. Então, por que razão não se pode entender que mesmo sendo a época
adversa ao trato que se pede com o trato que se dá, mesmo sendo adversa a pensar, sentir e
actuar na mesma direcção, esses ideais de vida possam dar direcção às acções humanas?
7. As duas propostas
Pensar, sentir e actuar na mesma direcção e tratar os outros como se deseja ser tratado,
são duas propostas tão singelas que podem ser entendidas como simples ingenuidades pela
gente habituada às complicações. No entanto, atrás dessa aparente candura, há uma nova escala
de valores em cujo ponto mais alto se põe a coerência, uma nova moral para a qual não é
indiferente qualquer tipo de acção, uma nova aspiração que implica ser consequente no esforço
para dar direcção aos acontecimentos humanos. Por trás dessa aparente candura, aposta-se no
sentido da vida pessoal e social que será verdadeiramente evolutivo ou caminhará para a
desintegração. Já não podemos confiar que velhos valores dêem coesão às pessoas num tecido
social deteriorado dia-a-dia pela desconfiança, o isolamento e o individualismo crescente. A antiga
solidariedade entre os membros das classes, associações, instituções e grupos vai sendo
substituída pela concorrência selvagem a que não escapa o casal nem a irmandade familiar.
Neste processo de demolição, não se elevará uma nova solidariedade com base em ideias
e comportamentos de um mundo que já era, mas sim graças à necessidade concreta de
cada um de direccionar a sua vida, para o que terá de modificar o seu próprio meio. Essa
modificação, se é verdadeira e profunda, não se pode pôr em andamento por acção de
imposições, por leis externas ou por fanatismos de qualquer tipo, mas sim pelo poder da opinião e
da acção mínima conjunta entre as pessoas que fazem parte do meio em que se vive.
8. Chegar a toda a sociedade a partir do meio imediato.
18
Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Sabemos que ao mudar positivamente a nossa situação estaremos a influir no nosso meio e
outras pessoas compartilharão este ponto de vista, dando lugar a um sistema de relações
humanas em crescimento. Teremos que perguntar-nos: Por que razão deveríamos ir mais além de
onde começamos? Simplesmente por coerência com a proposta de tratar os outros como
queremos que nos tratem. Ou não levaríamos aos outros algo que se mostrou fundamental para a
nossa vida? Se a influência começa a desenvolver-se é porque as relações, e portanto os
componentes do nosso meio, se ampliaram. Esta é uma questão que deveríamos ter em conta
desde o começo, porque mesmo quando a nossa acção começa a aplicar-se num ponto reduzido,
a projecção dessa influência pode chegar muito longe. Não tem nada de estranho pensar que
outras pessoas decidam juntar-se na mesma direcção. Afinal de contas, os grandes movimentos
históricos seguiram o mesmo caminho: começaram pequenos, como é lógico, e desenvolveram-
se graças a que as pessoas os consideraram intérpretes das suas necessidades e inquietudes.
Actuar no meio imediato, mas com o olhar posto no progresso da sociedade é coerente com tudo
o que se disse. De outro modo, para que faríamos referência a uma crise global que deve ser
enfrentada resolutamente, se tudo terminasse em indivíduos isolados para quem os outros não
têm importância? Por necessidade das pessoas que coincidam em dar uma nova direcção à sua
vida e aos acontecimentos, surgirão âmbitos de discussão e comunicação directa. Depois, a
difusão através de todos os meios permitirá ampliar a superfície de contacto. O mesmo
acontecerá com a criação de organismos e instituições compatíveis com este projecto.
9. O meio em que se vive.
Já comentámos que é tão veloz e tão inesperada a mudança, que este impacto se está a
receber como crise na qual se debatem sociedades inteiras, instituições e indivíduos. Por isso, é
imprescindível dar direcção aos acontecimentos. No entanto, como poderia uma pessoa fazê-lo,
submetida como está à acção de eventos maiores? É evidente que só se pode direccionar
aspectos imediatos da vida e não o funcionamento das instituições nem da sociedade. Por outro
lado, pretender dar direcção à própria vida não é coisa fácil, já que cada um vive em situação, não
vive isolado, vive num meio. Este meio, podemos vê-lo tão amplo como o Universo, a Terra, o
país, o Estado, a província, etc. Contudo, há um meio imediato que é onde desenvolvemos as
nossas actividades. Esse meio é familiar, laboral, de amizades, etc. Vivemos em situação com
referência a outras pessoas e esse é o nosso mundo particular do qual não podemos prescindir.
Ele actua sobre nós e nós sobre ele de um modo directo. Se temos alguma influência, é sobre
esse meio imediato. Mas acontece que tanto a influência que exercemos como a que recebemos
estão afectadas, por sua vez, por situações mais gerais, pela crise e a desorientação.
10. A coerência como direcção de vida
Se se quisesse dar alguma direcção aos acontecimentos, haveria que começar pela própria
vida e, para fazê-lo, teríamos de ter em conta o meio em que actuamos. Ora bem, a que direcção
podemos aspirar? Sem dúvida, àquela que nos proporcione coerência e apoio num meio tão
variável e imprevisível. Pensar, sentir e actuar na mesma direcção é uma proposta de coerência
na vida. No entanto, isto não é fácil porque nos encontramos numa situação que não escolhemos
completamente. Estamos a fazer coisas que necessitamos, mesmo que em grande desacordo
com o que pensamos e sentimos. Estamos metidos em situações que não governamos. Actuar
com coerência, mais que um facto, é uma intenção, uma tendência que podemos ter presente, de
maneira que a nossa vida se vá direccionando para esse tipo de comportamento. É claro que
unicamente influindo nesse meio, poderemos mudar parte da nossa situação. Ao fazê-lo,
estaremos direccionando a relação com outros e outros partilharão essa conduta. Se a isso se
objecta que algumas pessoas mudam de meio com certa frequência, por causa do seu trabalho
ou por outros motivos, responderemos que isso não modifica nada o exposto, já que sempre se
estará em situação, sempre se estará num dado meio. Se pretendemos coerência, o trato que
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
dermos aos outros terá de ser do mesmo género que o trato que exigimos para nós. Assim,
nestas duas propostas encontramos os elementos básicos de direcção até onde chegam as
nossas forças. A coerência avança contanto avance o pensar, o sentir e o actuar na mesma
direcção. Esta coerência estende-se a outros, porque não há outra maneira de fazê-lo, e, ao
estender-se a outros, começamos a tratá-los do modo que gostaríamos de ser tratados.
Coerência e solidariedade são direcções, aspirações de condutas a conseguir.
11. A proporção nas acções como avanço em direcção à coerência.
Como avançar em direcção coerente? Em primeiro lugar, necessitaremos de uma certa
proporção no que fazemos quotidianamente. É necessário estabelecer quais são as questões
mais importantes na nossa actividade. Devemos priorizar o fundamental para que as coisas
funcionem, depois o secundário e assim seguindo. Possivelmente atendendo a duas ou três
prioridades, teremos um bom quadro de situação. As prioridades não podem inverter-se, também
não podem separar-se tanto que se desequilibre a nossa situação. As coisas devem ir em
conjunto, não isoladamente, evitando que umas se adiantem e outras se atrasem.
Frequentemente, cegamo-nos pela importância de uma actividade e, desta maneira, desequilibra-
se-nos o conjunto... no final, o que considerávamos tão importante também não se pode realizar,
porque a nossa situação geral ficou afectada. Também é certo que às vezes se apresentam
assuntos de urgência a que devemos dedicar-nos, mas é claro que não se pode viver postergando
outros que são importantes para a situação geral em que vivemos. Estabelecer prioridades e levar
a actividade em proporção adequada, é um avanço evidente em direcção à coerência.
12. A oportunidade das acções como avanço em direcção à coerência.
Existe uma rotina quotidiana dada pelos horários, os cuidados pessoais e o funcionamento
do nosso meio. No entanto, dentro dessas pautas há uma dinâmica e riqueza de acontecimentos
que as pessoas superficiais não sabem apreciar. Há aqueles que confundem a sua vida com as
suas rotinas, mas isto não é assim de todo, já que muito frequentemente têm que escolher dentro
das condições que lhes impõe o meio. Na verdade, vivemos entre inconvenientes e contradições,
mas convirá não confundir ambos os termos. Entendemos por "inconvenientes" as moléstias e
impedimentos que enfrentamos. Não são enormemente graves, mas claro que se são numerosos
e repetidos aumentam a nossa irritação e fadiga. Certamente, estamos em condições de superá-
los: não determinam a direcção da nossa vida, não impedem que levemos adiante um projecto.
São obstáculos no caminho, que vão desde a menor dificuldade física a problemas em que
estamos a ponto de perder o rumo. Os inconvenientes admitem uma gradação importante, mas
mantêm-se num limite que não impede de avançar. Coisa diferente acontece com o que
chamamos "contradições". Quando o nosso projecto não pode ser realizado, quando os
acontecimentos nos lançam numa direcção oposta à desejada, quando nos encontramos num
círculo vicioso que não podemos romper, quando não podemos direccionar minimamente a nossa
vida, estamos tomados pela contradição. A contradição é uma espécie de inversão na corrente da
vida que nos leva a retroceder sem esperança. Estamos a descrever o caso em que a incoerência
se apresenta com maior crueza. Na contradição, opõe-se o que pensamos, o que sentimos e
fazemos. Apesar de tudo, sempre há possibilidade de direccionar a vida, mas é necessário saber
quando fazê-lo. A oportunidade das acções é algo que não temos em conta na rotina quotidiana e
isto é assim porque muitas coisas estão codificadas. Mas, no que se refere aos inconvenientes
importantes e às contradições, as decisões que tomamos não podem estar expostas à catástrofe.
Em termos gerais, devemos retroceder diante de uma grande força e avançar com resolução
quando essa força se debilite. Há uma grande diferença entre o temeroso que retrocede ou se
imobiliza ante qualquer inconveniente e aquele que actua sobrepondo-se às dificuldades, sabendo
que, precisamente, avançando pode torneá-las. Acontece que, às vezes, não é possível avançar,
porque se levanta um problema superior às nossas forças e arremeter sem cálculo leva-nos ao
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
desastre. O grande problema que enfrentemos será também dinâmico e a relação de forças
mudará, ou porque vamos crescendo em influência ou porque a sua influência diminui. Quebrada
a relação anterior, é o momento de proceder com resolução, já que uma indecisão ou uma
postergação fará com que novamente se modifiquem os factores. A execução da acção oportuna
é a melhor ferramenta para produzir mudanças de direcção.
13. A adaptação crescente como avanço em direcção à coerência.
Consideremos o tema da direcção, da coerência que queremos conseguir. Adaptar-nos a
certas situações terá a ver com essa proposta, porque adaptar-nos ao que nos leva em direcção
oposta à coerência é uma grande incoerência. Os oportunistas padecem de uma grande miopia
com respeito a este tema. Eles consideram que a melhor forma de viver é a aceitação de tudo, é a
adaptação a tudo; pensam que aceitar tudo, sempre que provenha de quem tem poder, é uma
grande adaptação, mas é claro que a sua vida dependente está muito longe do que entendemos
por coerência. Distinguimos entre a desadaptação, que nos impede de ampliar a nossa influência;
a adaptação decrescente, que nos deixa na aceitação das condições estabelecidas; e a
adaptação crescente, que faz crescer a nossa influência em direcção às propostas que temos
vindo a comentar.
Sintetizando:
1. - Há uma mudança veloz no mundo, motorizada pela revolução tecnológica, que está a
chocar com as estruturas estabelecidas e com a formação e os hábitos de vida das sociedades e
dos indivíduos.
2. - Este desfasamento gera crises progressivas em todos os campos e não há razão para
supôr que se vai deter, antes pelo contrário, tenderá a incrementar-se.
3. - O inesperado dos acontecimentos impede prever que direcção tomarão os factos, as
pessoas que nos rodeiam e, em suma, a nossa própria vida.
4. - Muitas das coisas que pensávamos e acreditávamos já não nos servem. Também não
estão à vista soluções que provenham de uma sociedade, instituições e indivíduos que padecem
do mesmo mal.
5. - Se decidirmos trabalhar para fazer face a estes problemas, teremos que dar direcção à
nossa vida, buscando coerência entre o que pensamos, sentimos e fazemos. Como não estamos
isolados, essa coerência terá que chegar à relação com os outros, tratando-os do mesmo modo
que queremos para nós mesmos. Estas duas propostas não podem ser cumpridas rigorosamente,
mas constituem a direcção de que necessitamos, sobretudo se as tomarmos como referências
permamentes e as aprofundarmos.
6. - Vivemos em relação imediata com outros e é nesse meio onde temos que actuar para
dar direcção favorável à nossa situação. Esta não é uma questão psicológica, uma questão que
se possa resolver na cabeça isolada dos indivíduos: é um tema relacionado com a situação que
se vive.
7. - Sendo consequentes com as propostas que tratamos de levar adiante, chegamos à
conclusão que o que é positivo para nós e para o nosso meio imediato, deve ser alargado a toda a
sociedade. Junto a outros que coincidem na mesma direcção, implementaremos os meios mais
adequados para que uma nova solidariedade encontre o seu rumo. Por isso, apesar de actuar tão
especificamente no nosso meio imediato não perderemos de vista uma situação global que afecta
todos os seres humanos e que requer a nossa ajuda, assim como nós necessitamos da ajuda dos
outros.
8. - As mudanças inesperadas levam-nos a pensar seriamente na necessidade de
direccionar a nossa vida.
9. - A coerência não começa e termina em cada um, está antes relacionada com um meio,
com outras pessoas. A solidariedade é um aspecto da coerência pessoal.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
10. - A proporção nas acções consiste em estabelecer prioridades de vida e operar com
base nelas, evitando que se desequilibrem.
11. - A oportunidade do actuar tem em conta retroceder perante uma grande força e avançar
com resolução quando esta se debilita. Esta ideia é importante para efeitos de produzir mudanças
na direcção da vida, se estamos submetidos à contradição.
12. - É tão inconveniente a desadaptação num meio em que não podemos mudar nada,
como a adaptação decrescente, na qual nos limitamos a aceitar as condições estabelecidas. A
adaptação crescente consiste num aumento da nossa influência no meio e em direcção coerente.
Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos.
Silo.
17/12/91.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
QUARTA CARTA AOS MEUS AMIGOS
Estimados amigos:
Em cartas anteriores dei a minha opinião sobre a sociedade, os grupos humanos e os
indivíduos em relação a este momento de mudança e perda de referências que nos cabe viver;
critiquei certas tendências negativas no desenvolvimento dos acontecimentos e destaquei as
posturas mais conhecidas de quem pretende dar resposta às urgências do momento. É claro
que todas as apreciações, bem ou mal formuladas, correspondem ao meu particular ponto de
vista e este, por sua vez, situa-se num conjunto de ideias que lhe servem de base. Certamente
por isto, recebi sugestões a animar-me a explicitar a partir de "onde" faço as minhas críticas ou
desenvolvo as minhas propostas. Ao fim e ao cabo, pode-se dizer qualquer coisa com muita ou
pouca originalidade, como sucede com as ideias que diariamente nos passam pela cabeça e
que não pretendemos justificar. Essas ideias hoje podem ser de um tipo e amanhã do tipo
oposto, não passando da frivolidade da apreciação quotidiana. Por isso, em geral, cada dia
acreditamos menos nas opiniões dos outros e de nós próprios, dando por assente que se
tratam de apreciações de conjuntura que podem mudar em poucas horas, como acontece com
as oportunidades da Bolsa. E se nas opiniões há algo com maior permanência é, na melhor
das hipóteses, o consagrado pela moda, que depois é substituído pela moda seguinte. Não
estou a fazer uma defesa do imobilismo no campo das opiniões, mas sim a destacar a falta de
consistência nas mesmas, porque, na verdade, seria muito interessante que a mudança se
desse com base numa lógica interna e não de acordo com o sopro de ventos erráticos. Mas
quem é que está disposto a aguentar lógicas internas numa época de palmadas de afogado!
Agora mesmo, enquanto escrevo, noto que o que se disse não pode entrar na cabeça de
certos leitores porque, nesta altura, não terão encontrado três possíveis códigos exigidos por
eles: 1.- que o que se está a explicar lhes sirva de passatempo, ou 2.- que lhes mostre de
seguida como podem utilizá-lo no seu negócio, ou 3.- que coincida com o consagrado pela
moda. Tenho a certeza de que esta conversa que começa com "Estimados amigos:" e que
chega até aqui, deixa-os totalmente desorientados como se estivéssemos a escrever em
sânscrito. No entanto, é de registar como essas mesmas pessoas compreendem coisas
difíceis que vão desde as operações bancárias mais sofisticadas até às delícias da técnica
administrativa computada. A esses, torna-se-lhes impossível compreender que estamos a falar
das opiniões, dos pontos de vista e das ideias que lhes servem de base; que estamos a falar
da impossibilidade de sermos entendidos nas coisas mais simples se não têm
correspondência com a paisagem que têm armada pela sua educação e pelas suas
compulsões. Assim estão as coisas!
Esclarecido o anterior, tratarei de resumir nesta carta as ideias que fundamentam as
minhas opiniões, críticas e propostas, tendo especial cuidado de não ir muito além do slogan
publicitário, porque, como explica o sábio jornalismo especializado, as ideias organizadas são
"ideologias" e estas, como as doutrinas, são ferramentas de lavagem ao cérebro daqueles que
se opõem à liberdade de comércio e economia social de mercado das opiniões. Hoje,
respondendo às exigências do Pós-modernismo, quer dizer, às exigências da haute-couture
(roupa de noite, gravata tipo laço, ombreiras, sapatilhas e casaco arregaçado); da arquitectura
desconstrutivista e da decoração desestruturada, estamos compelidos a que não encaixem as
peças do discurso. E a não esquecer que a crítica da linguagem também repudia o
sistemático, estrutural e processual!... É claro que tudo isto tem correspondência com a
ideologia dominante da Empresa que sente horror pela História e pelas ideias em cuja
formação não participou e entre as quais não pôde colocar uma substancial percentagem de
acções.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Brincadeiras à parte, comecemos já o inventário das nossas ideias, pelo menos das que
consideramos mais importantes. Devo realçar que boa parte delas foram apresentadas na
conferência que dei em Santiago de Chile em 23/05/91.
1. Arranque das nossas ideias.
A nossa concepção não se inicia admitindo generalidades, mas sim estudando o
particular da vida humana; o particular da existência; o particular do registo pessoal do pensar,
do sentir e do actuar. Esta postura inicial torna-a incompatível com todo o sistema que
arranque da "ideia", da "matéria", do "inconsciente", da "vontade", da "sociedade", etc. Se
alguém admite ou rejeita qualquer concepção, por lógica ou extravagante que esta seja,
sempre será ele próprio que está em jogo, admitindo ou rejeitando: ele estará em jogo, não a
sociedade, ou o inconsciente ou a matéria.
Falemos, pois, da vida humana. Quando me observo, não do ponto de vista fisiológico,
mas sim existencial, encontro-me posto num mundo dado, não construído nem escolhido por
mim. Encontro-me em situação relativamente a fenómenos que, começando pelo meu próprio
corpo, são ineludíveis. O corpo, como constituinte fundamental da minha existência, é, além do
mais, um fenómeno homogéneo com o mundo natural em que actua e sobre o qual actua o
mundo. Mas a naturalidade do corpo tem para mim diferenças importantes relativamente ao
resto dos fenómenos, a saber: 1.- o registo imediato que dele possuo; 2.- o registo que através
dele tenho dos fenómenos externos; e 3.- a disponibilidade de alguma das suas operações
mercê da minha intenção imediata.
2. Natureza, intenção e abertura do ser humano.
Porém, acontece que o mundo me aparece não só como um aglomerado de objectos
naturais, mas sobretudo como uma articulação de outros seres humanos e de objectos e
signos produzidos ou modificados por eles. A intenção que noto em mim, aparece como um
elemento interpretativo fundamental do comportamento dos outros e assim como constituo o
mundo social por compreensão de intenções, sou constituído por ele. Desde logo, estamos a
falar de intenções que se manifestam na acção corporal. É graças às expressões corporais ou
à percepção da situação em que se encontra o outro, que posso compreender os seus
significados, a sua intenção. Por outro lado, os objectos naturais e humanos aparecem-me
como sendo prazenteiros ou dolorosos e trato de colocar-me face a eles modificando a minha
situação.
Deste modo, não estou fechado ao mundo do natural e dos outros seres humanos, antes
pelo contrário, a minha característica é precisamente a "abertura". A minha consciência
configurou-se intersubjectivamente já que usa códigos de raciocínio, modelos emotivos,
esquemas de acção que registo como sendo "meus", mas que também reconheço noutros. E,
desde logo, está o meu corpo aberto ao mundo enquanto o percepciono e sobre ele actuo. O
mundo natural, à diferença do humano, aparece-me sem intenção. Claro que posso imaginar
que as pedras, as plantas e as estrelas possuem intenção, mas não vejo como chegar a um
efectivo diálogo com elas. Mesmo os animais em que, às vezes, capto a chispa da inteligência,
aparecem-me impenetráveis e em lenta modificação de dentro da sua natureza. Vejo
sociedades de insectos totalmente estruturadas, mamíferos superiores a usar rudimentos
técnicos, mas repetindo os seus códigos em lenta modificação genética, como se fossem
sempre os primeiros representantes das suas respectivas espécies. E quando comprovo as
virtudes dos vegetais e dos animais modificados e domesticados pelo Homem, observo a
intenção deste a abrir-se caminho e a humanizar o mundo.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
3. A abertura social e histórica do ser humano.
É-me insuficiente a definição do Homem pela sua sociabilidade, já que isto não contribui
para a distinção em relação a numerosas espécies; a sua força de trabalho também não é o
característico, comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a linguagem o
define na sua essência, porque sabemos de códigos e formas de comunicação entre diversos
animais. Ao invés, ao encontrar-se cada novo ser humano com um mundo modificado por
outros e ao ser constituído por esse mundo intencionado, descubro a sua capacidade de
acumulação e incorporação no temporal; descubro a sua dimensão histórico-social, não
simplesmente social. Vistas assim as coisas, posso tentar uma definição, dizendo: o Homem é
o ser histórico cujo modo de acção social transforma a sua própria natureza. Se admito isto,
terei de aceitar que esse ser pode transformar intencionalmente a sua constituição física. E
assim está a acontecer. Começou com a utilização de instrumentos que, postos adiante do seu
corpo como "próteses" externas, lhe permitiram alongar a sua mão, aperfeiçoar os seus
sentidos e aumentar a sua força e qualidade de trabalho. Naturalmente não estava dotado
para os meios líquido e aéreo e, no entanto, criou condições para se deslocar neles, até
começar a emigrar do seu meio natural, o planeta Terra. Hoje, além disso, está a internar-se no
seu próprio corpo mudando os seus órgãos; intervindo na sua química cerebral; fecundando in
vitro e manipulando os seus genes. Se, com a ideia de "natureza", se quis assinalar o
permanente, tal ideia é hoje inadequada, ainda que se queira aplicá-la ao mais objectal do ser
humano, isto é, ao seu corpo. E no que se refere a uma "moral natural", a um "direito natural"
ou a "instituições naturais", encontramos, opostamente, que nesse campo tudo é histórico-
social e nada aí existe por natureza.
4. A acção transformadora do ser humano.
Contígua à concepção da natureza humana tem estado a operar outra que nos falou da
passividade da consciência. Esta ideologia considerou o Homem como uma entidade que
operava em resposta aos estímulos do mundo natural. O que começou em tosco sensualismo,
pouco a pouco foi afastado por correntes historicistas que conservaram no seu seio a mesma
ideia em torno da passividade. E ainda quando privilegiaram a actividade e a transformação do
mundo em relação à interpretação dos seus factos, conceberam a referida actividade como
resultante de condições externas à consciência. Porém, aqueles antigos preconceitos em torno
da natureza humana e da passividade da consciência hoje impõem-se, transformados em neo-
evolucionismo, com critérios tais como a selecção natural que se estabelece na luta pela
sobrevivência do mais apto. Tal concepção zoológica, na sua versão mais recente, ao ser
transplantada para o mundo humano, tratará de superar as anteriores dialécticas de raças ou
de classes com uma dialéctica estabelecida segundo leis económicas "naturais" que auto-
regulam toda a actividade social. Assim, uma vez mais, o ser humano concreto fica
submergido e objectivizado.
Mencionámos as concepções que para explicar o Homem começam de generalidades
teóricas e sustentam a existência de uma natureza humana e de uma consciência passiva. Em
sentido oposto, nós sustentamos a necessidade de arranque a partir da particularidade
humana; sustentamos o fenómeno histórico-social e não natural do ser humano e também
afirmamos a actividade da sua consciência transformadora do mundo de acordo com a sua
intenção. Vimos a sua vida em situação e o seu corpo como objecto natural percebido
imediatamente e submetido, também imediatamente, a numerosos ditames da sua intenção.
Por conseguinte, impõem-se as seguintes perguntas: como é que a consciência é activa, quer
dizer, como é que pode intencionar sobre o corpo e através dele transformar o mundo? Em
segundo lugar, como é que a constituição humana é histórico-social? Estas perguntas devem
ser respondidas a partir da existência particular, para não recair em generalidades teóricas a
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
partir das quais se desprende depois um sistema de interpretação. Desta maneira, para
responder à primeira pergunta, ter-se-á que apreender com evidência imediata como é que a
intenção actua sobre o corpo e, para responder à segunda, haverá que partir da evidência da
temporalidade e da intersubjectividade no ser humano e não de leis gerais da História e da
sociedade. No nosso trabalho, Contribuições ao Pensamento, trata-se de dar resposta
precisamente a essas duas perguntas. No primeiro ensaio de Contribuições, estuda-se a
função que cumpre a imagem na consciência, destacando a sua aptidão para mover o corpo
no espaço. No segundo ensaio do mesmo livro, estuda-se o tema da historicidade e
sociabilidade. A especificidade destes temas afasta-nos em demasia da presente carta, por
isso remetemos para o material citado.
5. A superação da dor e do sofrimento como projectos vitais básicos.
Dissemos em Contribuições que o destino natural do corpo humano é o mundo e basta
ver a sua conformação para verificar esta asserção. Os seus sentidos e os seus aparelhos de
nutrição, locomoção, reprodução, etc., estão naturalmente conformados para estar no mundo,
mas, além disso, a imagem lança através do corpo a sua carga transformadora; não o faz para
copiar o mundo, para ser reflexo da situação dada, mas sim, pelo contrário, para modificar a
situação previamente dada. Neste acontecer, os objectos são limitações ou ampliações das
possibilidades corporais e os corpos alheios aparecem como multiplicações dessas
possibilidades, já que são governados por intenções que se reconhecem similares às que
manejam o próprio corpo. Por que razão necessitaria o ser humano de transformar o mundo e
transformar-se a si mesmo? Pela situação de finitude e carência espacio-temporal em que se
encontra e que regista como dor física e sofrimento mental. Assim, a superação da dor não é
simplesmente uma resposta animal, mas sim uma configuração temporal em que prima o
futuro e que se converte em impulso fundamental da vida, ainda que esta não se encontre
urgida num momento dado. Por isso, à parte a resposta imediata, reflexa e natural, a resposta
diferida para evitar a dor está impulsionada pelo sofrimento psicológico ante o perigo e está re-
presentada como possibilidade futura ou facto actual, em que a dor está presente noutros
seres humanos. A superação da dor aparece, pois, como um projecto básico que guia a acção.
Isso é o que possibilitou a comunicação entre corpos e intenções diversas, no que chamamos
a "constituição social". A constituição social é tão histórica como a vida humana, é configurante
da vida humana. A sua transformação é contínua, mas de um modo diferente à da natureza,
porque nesta as mudanças não se dão mercê de intenções.
6. Imagem, crença, olhar e paisagem.
Um dia qualquer, entro no meu quarto e percepciono a janela, reconheço-a, é-me
conhecida. Tenho uma nova percepção dela, mas, além disso, actuam antigas percepções que
convertidas em imagens estão retidas em mim. No entanto, observo que num ângulo do vidro
há uma rachadela... "isso não estava aí", digo-me, ao comparar a nova percepção com o que
retenho de percepções anteriores; além disso, experimento uma espécie de surpresa. A janela
de actos anteriores ficou retida em mim, não passivamente como uma fotografia, mas sim
actuante como são actuantes as imagens. O retido actua face ao que percepciono, ainda que
a sua formação pertença ao passado. Trata-se de um passado sempre actualizado, sempre
presente. Antes de entrar no meu quarto, dava por assente, dava como suposto, que a janela
devia estar ali em perfeitas condições; não é que o estivesse a pensar, simplesmente que
contava com isso. A janela em particular não estava presente nos meus pensamentos desse
momento, mas estava co-presente, estava dentro do horizonte de objectos contidos no meu
quarto. É graças à co-presença, à retenção actualizada e sobreposta à percepção, que a
consciência infere mais do que percepciona. Nesse fenómeno, encontramos o funcionamento
mais elementar da crença. No exemplo, é como se me dissesse: "eu cria que a janela estava
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Cartas aos meus amigos

  • 1. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual EXPLICAÇÃO Estas “Cartas aos meus amigos”, que hoje se apresentam como livro, foram publicadas separadamente à medida que o autor as foi produzindo. Desde a primeira, escrita a 21/02/91, até à décima e última, redigida a 15/12/93, passaram quase três anos. Nesse lapso de tempo, ocorreram transformações globais importantes em quase todos os campos da actividade humana. Se a velocidade de mudança continua a incrementar-se, como sucedeu nesse período, um leitor das próximas décadas dificilmente entenderá o contexto mundial a que o autor faz continuamente referência e, por conseguinte, não apreenderá muitas das ideias que se expressam nestes escritos. Por isso, haveria que recomendar aos hipotéticos leitores do futuro que tivessem à mão uma resenha dos acontecimentos verificados entre 1991 e 1994; haveria que sugerir-lhes que obtivessem uma compreensão ampla do desenvolvimento económico e tecnológico da época, das fomes e dos conflitos, da publicidade e da moda. Seria necessário pedir-lhes que escutassem a música; vissem as imagens arquitectónicas e urbanísticas; observassem as concentrações populacionais das grandes cidades, as migrações, a decomposição ecológica e o modo de vida daquele curioso momento histórico. Sobretudo haveria que rogar-lhes que tentassem penetrar nos ditos e dizeres daqueles formadores de opinião: dos filósofos, sociólogos e psicólogos dessa etapa cruel e estúpida. Ainda que nestas Cartas se fale de certo presente, é indubitável que foram redigidas com o olhar posto no futuro e creio que somente dali poderão ser confirmadas ou refutadas. Nesta obra não existe um plano geral, mas antes uma série de exposições ocasionais que admitem uma leitura sem sequência. No entanto, poder-se-ia tentar a seguinte classificação: A. - As três primeiras cartas põem ênfase nas experiências que cabem ao indivíduo viver no meio de uma situação global cada dia mais complicada. B. - Na quarta, apresenta-se a estrutura geral das ideias em que se baseiam todas as cartas. C. - Nas seguintes, esboça-se o pensamento político- social do autor. D. - A décima apresenta directrizes de acção pontual tendo em conta o processo mundial. Passo agora a destacar alguns temas tratados na obra. Primeira carta: a situação que nos cabe viver. A desintegração das instituições e a crise de solidariedade. Os novos tipos de sensibilidade e comportamento que se perfilam no mundo de hoje. Os critérios de acção. Segunda: os factores de mudança do mundo actual e as posturas que habitualmente se assumem perante essa mudança. Terceira: Características da mudança e da crise em relação ao meio imediato em que vivemos. Quarta: fundamento das opiniões vertidas nas Cartas sobre as questões mais gerais da vida humana, as suas necessidades e os seus projectos básicos. O mundo natural e social. A concentração de poder, a violência e o Estado. Quinta: a liberdade humana, a intenção e a acção. O sentido ético da prática social e da militância; os seus defeitos mais habituais. Sexta: exposição do ideário do Humanismo. Sétima: a revolução social. Oitava: as forças armadas. Nona: os direitos humanos. Décima: a desestruturação geral. A aplicação da compreensão global à acção mínima concreta. A quarta carta, de capital importância na justificação ideológica de toda a obra, pode ser aprofundada com a leitura de outro trabalho do autor, Contribuições ao Pensamento (particularmente no ensaio titulado Discussões Historiológicas) e, desde logo, com a conferência A Crise da Civilização e do Humanismo (Academia de Administração de Moscovo, 18/06/92). Na sexta carta, expõem-se as ideias do humanismo contemporâneo. A condensação conceitual deste escrito faz recordar certas produções políticas e culturais das quais temos exemplo nos “manifestos” de meados do século XIX e XX, como acontece com o Manifesto 1
  • 2. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Comunista e o Manifesto Surrealista. O uso da palavra “Documento” em vez de “Manifesto” deve- se a uma cuidadosa escolha para se pôr à distância do naturalismo expresso no Humanist Manifesto de 1933, inspirado por Dewey, e também do social-liberalismo do Humanist Manifesto II de 1974, subscrito por Sakharov e impregnado fortemente pelo pensamento de Lamont. Ainda que se notem coincidências com este segundo manifesto no que respeita à necessidade de uma planificação económica e ecológica que não destrua as liberdades pessoais, as diferenças quanto a visão política e concepção do ser humano são radicais. Esta carta, extremamente breve em relação à quantidade de matérias que trata, exige algumas considerações. O autor reconhece os contributos das diferentes culturas na trajectória do humanismo, como claramente se observa no pensamento judeu, árabe e oriental. Nesse sentido, o Documento não pode ser encerrado na tradição “ciceroniana” como amiúde aconteceu com os humanistas ocidentais. No seu reconhecimento ao “humanismo histórico”, o autor resgata temas já expressos no século XII. Refiro-me aos poetas goliardos que, como Hugo de Orleães e Pedro de Blois, acabaram por compôr o célebre In terra sumus, do Codex Buranus (o código de Beuern, conhecido em latim como Carmina Burana). Silo não os cita directamente, mas volta às suas palavras. “Eis a grande verdade universal: o dinheiro é tudo. O dinheiro é governo, é lei, é poder. É basicamente subsistência. Mas, além disso, é a Arte, é a Filosofia e é a Religião. Nada se faz sem dinheiro; nada se pode sem dinheiro. Não há relações pessoais sem dinheiro. Não há intimidade sem dinheiro e mesmo a solidão repousada depende do dinheiro”. Como não reconhecer a reflexão do In Terra sumus, “mantém o abade o Dinheiro na sua cela prisioneiro”, quando se diz: “... e mesmo a solidão repousada depende do dinheiro”. Ou então, “O Dinheiro honra recebe e sem ele ninguém é amado”, e aqui: “Não há relações pessoais sem dinheiro. Não há intimidade sem dinheiro”. A generalização do poeta goliardo: “O Dinheiro, e isto é certo, faz com que o tonto pareça eloquente”, aparece na carta como: “Mas, além disso, é a Arte, é a Filsofia e é a Religião”. E sobre esta última diz-se no poema: “O Dinheiro é adorado porque faz milagres... faz o surdo ouvir e o coxo saltar”, etc. Nesse poema do Codex Buranus, que Silo dá por conhecido, ficam implícitos os antecedentes que depois vão inspirar os humanistas do século XVI, particularmente Erasmo e Rabelais. A carta que estamos a comentar apresenta o ideário do humanismo contemporâneo, mas para dar uma ideia mais acabada do tema nada melhor do que citar aqui alguns parágrafos que o autor expôs na sua conferência Visão Actual do Humanismo (Universidade Autónoma de Madrid, 16/04/93). “... Duas são as acepções que se costumam atribuír à palavra “Humanismo”. Fala-se de “Humanismo” para indicar qualquer tendência de pensamento que afirme o valor e a dignidade do ser humano. Com este significado, pode-se interpretar o Humanismo dos modos mais diversos e contrastantes. No seu significado mais limitado, mas colocando-o numa perspectiva histórica precisa, o conceito de Humanismo é usado para indicar esse processo de transformação que se iniciou entre o final do século XIV e o começo do XV e que, no século seguinte, com o nome de “Renascimento”, dominou a vida intelectual da Europa. Basta mencionar Erasmo; Giordano Bruno; Galileu; Nicolau de Cusa; Thomas More; Juan Vives e Bouillé para compreender a diversidade e extensão do humanismo histórico. A sua influência prolongou-se a todo o século XVII e grande parte do XVIII, desembocando nas revoluções que abriram as portas da Idade Contemporânea. Esta corrente pareceu apagar-se lentamente até que a meados deste século pôs-se novamente em movimento no debate entre pensadores preocupados com as questões sociais e políticas. Os aspectos fundamentais do humanismo histórico foram, aproximadamente, os seguintes: 1 - A reacção contra o modo de vida e os valores medievais. Assim começou um forte reconhecimento de outras culturas, particularmente da greco-romana na arte, na ciência e na filosofia. 2 - A proposta de uma nova imagem do ser humano, do qual se exaltam a sua personalidade e a sua acção transformadora. 3 - Uma nova atitude relativamente à natureza, à qual se aceita como ambiente do Homem e já não como um sub-mundo cheio de tentações e castigos. 4 - O interesse pela experimentação e investigação do mundo circundante, como uma tendência a procurar explicações naturais sem necessidade de referências ao sobrenatural. Estes quatro aspectos do humanismo histórico convergem para um mesmo objectivo: fazer surgir a 2
  • 3. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual confiança no ser humano e na sua criatividade e considerar o mundo como reino do Homem, reino que este pode dominar mediante o conhecimento das ciências. A partir desta nova perspectiva expressa-se a necessidade de construir uma nova visão do universo e da História. De igual maneira, as novas concepções do movimento humanista levam à redefinição da questão religiosa tanto nas suas estruturas dogmáticas e litúrgicas como nas organizativas, que, naquele tempo, impregnam as estruturas sociais medievais. O Humanismo, em correlação com a modificação das forças económicas e sociais da época, representa um revolucionarismo cada vez mais consciente e cada vez mais orientado para a discussão da ordem estabelecida. Mas a Reforma no mundo alemão e a Contra-reforma no mundo latino tratam de travar as novas ideias repropondo autoritariamente a visão cristã tradicional. A crise passa da Igreja às estruturas estatais. Finalmente, o império e a monarquia por direito divino são eliminados mercê das revoluções dos finais do século XVIII e XIX. Porém, depois da Revolução francesa e das guerras da independência americanas, o Humanismo praticamente desapareceu pese embora continuar como pano de fundo social de ideais e aspirações que alentam transformações económicas, políticas e científicas. O Humanismo retrocedeu perante concepções e práticas que se instalam até terminar o Colonialismo, a Segunda Guerra Mundial e o alinhamento bipolar do planeta. Nesta situação, reabre-se o debate sobre o significado do ser humano e da natureza, sobre a justificação das estruturas económicas e políticas, sobre a orientação da Ciência e da tecnologia e, em geral, sobre a direcção dos acontecimentos históricos. São os filósofos da Existência que dão os primeiros sinais: Heidegger, para desqualificar o Humanismo como uma metafísica mais (na sua Carta sobre o Humanismo); Sartre, para defendê-lo (na sua conferência O Existencialismo é um Humanismo); Luypen, para precisar o enquadramento teórico (em A Fenomenologia é um Humanismo). Por outro lado, Althusser, para erguer uma postura Antihumanista (em Para Marx) e Maritain, para apropriar-se da sua antítese a partir do Cristianismo (no seu Humanismo Integral), fazem alguns esforços meritórios”. “Depois de percorrido este longo caminho e das últimas discussões no campo das ideias, fica claro que o Humanismo deve definir a sua posição actual não só enquanto concepção teórica como também enquanto actividade e prática social. O estado da questão humanista deve ser perspectivado com referência às condições em que o ser humano vive. Essas condições não são abstractas” “Por conseguinte, não é legítimo derivar o Humanismo de uma teoria sobre a Natureza, ou uma teoria sobre a História, ou uma fé sobre Deus. A condição humana é tal que o encontro imediato com a dor e com a necessidade de superá-la é ineludível. Tal condição, comum a tantas outras espécies, encontra na humana a necessidade adicional de prever no futuro como superar a dor e conseguir o prazer. A sua previsão do futuro apoia-se na experiência passada e na intenção de melhorar a sua situação actual. O seu trabalho, acumulado em produções sociais, passa e transforma-se de geração em geração em luta contínua pela superação das condições naturais e sociais em que vive. Por isso, o Humanismo define o ser humano como ser histórico e com um modo de acção social capaz de transformar o mundo e a sua própria natureza. Este ponto é de capital importância porque, ao aceitá-lo, não se poderá depois afirmar um direito natural, uma propriedade natural, instituições naturais ou, por último, um tipo de ser humano no futuro tal qual é hoje, como se estivesse terminado para sempre. O antigo tema da relação do homem com a Natureza ganha novamente importância. Ao retomá-lo, descobrimos esse grande paradoxo em que o ser humano aparece sem fixidez, sem natureza, ao mesmo tempo que notamos nele uma constante: a sua historicidade. É por isso que, esticando os termos, pode dizer-se que a natureza do Homem é a sua História, a sua História social. Por conseguinte, cada ser humano que nasce não é um primeiro exemplar equipado geneticamente para responder ao seu meio, mas sim um ser histórico que desenvolve a sua experiência pessoal numa paisagem social, numa paisagem humana”. 3
  • 4. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual “Eis que neste mundo social, a intenção comum de superar a dor é negada pela intenção de outros seres humanos. Estamos a dizer que uns homens naturalizam outros ao negar a sua intenção, convertem-nos em objectos de uso. Assim, a tragédia de estar submetido a condições físicas naturais estimula o trabalho social e a ciência para novas realizações que superem essas condições, mas a tragédia de estar submetido a condições sociais de desigualdade e injustiça estimula o ser humano à rebelião contra essa situação em que se nota não o jogo de forças cegas, mas sim o jogo de outras intenções humanas. Essas intenções humanas, que discriminam uns e outros, são questionadas num campo muito diferente ao da tragédia natural em que não existe uma intenção. É por isso que existe sempre em toda a discriminação um esforço monstruoso para estabelecer que as diferenças entre os seres humanos se devem à natureza, seja ela física ou social, a qual define o seu jogo de forças sem que intervenha a intenção. Estabelecer-se-ão diferenças raciais, sexuais e económicas, justificando-as com leis genéticas ou de mercado, mas em todos os casos estar-se-á a operar com a distorsão, a falsidade e a má fé. As duas ideias básicas expostas anteriormente: em primeiro lugar, a da condição humana submetida à dor com o seu impulso por superá-la e, em segundo lugar, a definição do ser humano histórico e social, centram o estado da questão para os humanistas de hoje”. “No Documento fundacional do Movimento Humanista declara-se que há-de passar-se da Pré-História à verdadeira História humana logo que se elimine a violenta apropriação animal de uns seres humanos por outros. Entretanto, não se poderá partir de outro valor central senão do ser humano pleno nas suas realizações e na sua liberdade. A proclamação “Nada por cima do ser humano e nenhum ser humano por debaixo de outro”, sintetiza tudo isto. Se se põe como valor central Deus, o Estado, o Dinheiro ou qualquer outra entidade subordina-se o ser humano, criando condições para o seu ulterior controlo ou sacrifício. Os humanistas têm claro este ponto. Os humanistas são ateus ou crentes, mas não partem do ateísmo ou da fé para fundamentar a sua visão do mundo e a sua acção; partem do ser humano e das suas necessidades imediatas. Os humanistas questionam o problema de fundo: saber se queremos viver e decidir em que condições queremos fazê-lo. Todas as formas de violência física, económica, racial, religiosa, sexual e ideológica, mercê das quais se tem travado o progresso humano, repugnam aos humanistas. Toda a forma de discriminação, manifesta ou larvar, é motivo de denúncia para os humanistas”. “Assim está traçada a linha divisória entre o Humanismo e o Antihumanismo. O Humanismo põe à frente a questão do trabalho face ao grande capital; a questão da democracia real face à democracia formal; a questão da descentralização face à centralização; a questão da antidiscriminação face à discriminação; a questão da liberdade face à opressão; a questão do sentido da vida face à resignação, a cumplicidade e o absurdo. Porque o Humanismo crê na liberdade de escolha possui uma ética válida, porque crê na intenção distingue entre o erro e a má fé. Deste modo, os humanistas definem posições. Não nos sentimos saídos do nada, mas sim tributários de um longo processo e esforço colectivo. Comprometemo-nos com o momento actual e concebemos uma longa luta rumo ao futuro. Afirmamos a diversidade em franca oposição à regimentação que até agora tem sido imposta e apoiada com explicações de que o diverso põe em dialéctica os elementos de um sistema, de maneira que ao respeitar-se toda a particularidade dá-se via livre a forças centrífugas e desintegradoras. Os humanistas pensam o contrário e destacam que, precisamente neste momento, o avassalamento da diversidade leva à explosão das estruturas rígidas. É por isso que enfatizamos na direcção convergente, na intenção convergente e opomo-nos à ideia e à prática de eliminação de supostas condições dialécticas num conjunto dado”. Termina aqui a citação da conferência de Silo. A décima e última carta estabelece os limites da desestruturação e destaca três campos, entre tantos outros possíveis, nos quais esse fenómeno ganha especial importância: o político, o religioso e o geracional, advertindo sobre o surgimento de neo-irracionalismos fascistas, 4
  • 5. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual autoritários e violentistas. Para ilustrar o tema da compreensão global e da aplicação da acção ao ponto mínimo do “meio imediato”, o autor dá esse fenomenal salto de escala com o qual nos faz encontrar o “vizinho”, o companheiro de trabalho, o amigo... Fica clara a proposta de que todo o militante deve esquecer a miragem do poder político superestrutural porque esse poder está ferido de morte às mãos da desestruturação. De nada valerá futuramente o Presidente, o Primeiro- Ministro, o Senador, o Deputado. Os partidos políticos, os grémios e os sindicatos irão afastando- se gradualmente das suas bases humanas. O Estado sofrerá mil transformações e unicamente as grandes corporações e o capital financeiro internacional irão concentrando a capacidade decisória mundial até sobrevir o colapso do Paraestado. De que poderia valer uma militância que tratasse de ocupar as cascas vazias da democracia formal? Decididamente, a acção deve delinear-se no meio mínimo imediato e unicamente a partir daí, com base no conflito concreto, deve ser construída a representatividade real. Porém, os problemas existenciais da base social não se expressam exclusivamente como dificuldades económicas e políticas, portanto, um partido que leve adiante o ideário humanista e que instrumentalmente ocupe espaços parlamentares, tem significação institucional mas não pode dar resposta às necessidades das pessoas. O novo poder construir-se-á a partir da base social como um Movimento amplo, descentralizado e federativo. A pergunta que todo o militante se deve fazer não é “quem será primeiro-ministro ou deputado”, mas sim “como formaremos os nossos centros de comunicação directa, as nossas redes de conselhos vicinais; como daremos participação a todas as organizações mínimas de base nas quais se expressa o trabalho, o desporto, a arte, a cultura e a religiosidade popular?” Esse Movimento não pode ser pensado em termos políticos formais, mas sim em termos de diversidade convergente. Também não se deve conceber o crescimento desse Movimento dentro dos moldes de um gradualismo que vá ganhando progressivamente espaço e estratos sociais. Deve ser delineado em termos de “efeito demonstração”, típico de uma sociedade planetária multiconectada apta para reproduzir e adaptar o êxito de um modelo em colectividades afastadas e diferentes entre si. Esta última carta, em suma, esboça um tipo de organização mínima e uma estratégia de acção conforme à situação actual. Detive-me somente nas cartas quatro, seis e dez. Creio que, à diferença das restantes, estas requeriam alguma recomendação, alguma citação e algum comentário complementar. J. Valinsky 5
  • 6. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Desde há bastante tempo recebo correspondência de diferentes países pedindo explicação ou ampliações sobre temas que aparecem nos meus livros. Em geral, o que se reclama é clarificação sobre assuntos tão concretos como a violência, a política, a economia, a ecologia, as relações sociais e as inter-pessoais. Como se vê as preocupações são muitas e diversas e é claro que nesses campos terão que ser os especialistas a dar resposta. É evidente que esse não é o meu caso. Até onde seja possível, tratarei de não repetir o já escrito noutros lugares e oxalá possa esboçar em poucas linhas a situação geral em que nos cabe viver e as tendências mais imediatas que se perfilam. Noutras épocas, ter-se-ia tomado como fio condutor deste tipo de descrição uma certa ideia do "mau estar da cultura", mas hoje, diversamente, falaremos da veloz mudança que se está a produzir nas economias, nos costumes, nas ideologias e nas crenças, tratando de rastrear uma certa desorientação que parece asfixiar os indivíduos e os povos. Antes de entrar no tema, gostaria de fazer duas advertências: uma referida ao mundo que já era e que parece ser considerado neste escrito com uma certa nostalgia, e outra que aponta ao modo de expôr, no qual se poderia ver uma total ausência de matizes, levando as coisas a um primitivismo de questionamento que não é o modo como, na realidade, formulam aqueles que nós criticamos. Direi que quem como nós crê na evolução humana não está deprimido pelas mudanças, antes deseja, na verdade, um incremento na aceleração dos acontecimentos, enquanto trata de adaptar-se crescentemente aos novos tempos. Quanto ao modo de expressar a argumentação dos defensores da "nova ordem", posso comentar o seguinte: ao falar deles não deixaram de ressoar em mim os acordes daquelas diametrais ficções literárias, “1984” de Orwell e “O Admirável Mundo Novo” de Huxley. Esses magníficos escritores vaticinaram um mundo futuro no qual por meios violentos ou persuasivos, o ser humano acabava submergido e robotizado. Creio que ambos atribuíram demasiada inteligência aos "maus" e demasiada estupidez aos "bons" dos seus romances, movidos talvez por um pessimismo de fundo que não cabe interpretar agora. Os "maus" de hoje são pessoas com muitos problemas e uma grande avidez, mas, em todo o caso, incompetentes para orientar processos históricos que claramente escapam à sua vontade e capacidade de planificação. Em geral, trata-se de gente pouco estudiosa e de técnicos ao seu serviço que dispõem de recursos parcelados e pateticamente insuficientes. Assim, pedirei que não tomem muito a sério alguns parágrafos, que são, na realidade, como um divertimento, quando pomos algumas palavras nas suas bocas que não dizem, mesmo que as suas intenções vão nessa direcção. Creio que há que considerar estas coisas excluindo toda a solenidade (afim à época que morre) e, ao invés, questioná-las com o bom humor e o espírito de brincadeira que campeia nas cartas intercambiadas pelas pessoas verdadeiramente amigas. 1. A situação actual Desde o começo da sua História a humanidade evolui trabalhando para conseguir uma vida melhor. Apesar dos avanços, hoje utiliza-se o poder e a força económica e tecnológica para assassinar, empobrecer e oprimir diversas regiões do mundo, destruindo, além do mais, o futuro das novas gerações e o equilíbrio geral da vida no planeta. Uma pequena percentagem da humanidade possui grandes riquezas, enquanto as maiorias padecem de sérias necessidades. Nalguns lugares, há trabalho e remuneração suficiente, mas noutros a situação é desastrosa. Em todas os lados, os sectores mais humildes sofrem horrores para não morrer de fome. Hoje, 6
  • 7. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual minimamente, e pelo simples facto de ter nascido num meio social, todo o ser humano requer adequada alimentação, saúde, habitação, educação, vestuário, serviços... e chegando a certa idade necessita assegurar o seu futuro pelo tempo de vida que lhe reste. Com todo o direito as pessoas querem isso para elas e para os seus filhos, ambicionando que estes possam viver melhor. No entanto, hoje essas aspirações de milhares de milhões de pessoas não são satisfeitas. 2. A alternativa de um mundo melhor Tratando de moderar os problemas comentados fizeram-se diferentes experiências económicas com resultados díspares. Actualmente, tende-se a aplicar um sistema em que supostas leis de mercado regularão automaticamente o progresso social, superando o desastre produzido pelas anteriores economias dirigistas. Segundo este esquema, as guerras, a violência, a opressão, a desigualdade, a pobreza e a ignorância, irão retrocedendo sem se produzirem sobressaltos de maior. Os países integrar-se-ão em mercados regionais até se chegar a uma sociedade mundial, sem nenhum tipo de barreiras. E assim como os sectores mais pobres dos pontos desenvolvidos irão elevando o seu nível de vida, as regiões menos avançadas receberão a influência do progresso. As maiorias adaptar-se-ão ao novo esquema que técnicos capacitados, ou homens de negócios, estarão em condições de pôr a funcionar. Se algo falha, não será pelas naturais leis económicas, mas sim por deficiências desses especialistas que, como sucede numa empresa, terão de ser substituídos todas as vezes que seja necessário. Por outro lado, nessa sociedade "livre", será o público que decidirá democraticamente entre diferentes opções de um mesmo sistema. 3. A evolução social Dada a situação actual e a alternativa que se apresenta para a consecução de um mundo melhor, cabe reflectir brevemente em torno dessa possibilidade. Com efeito, realizaram-se numerosas provas económicas que trouxeram resultados díspares e, face a isso, diz-se-nos que a nova experiência é a única solução para os problemas fundamentais. No entanto, não chegamos a compreender alguns aspectos dessa proposta. Em primeiro lugar, aparece o tema das leis económicas. Ao que parece, existiriam certos mecanismos, como na natureza, que ao jogar livremente regulariam a evolução social. Temos dificuldades em aceitar que qualquer processo humano e, desde logo o processo económico, seja da mesma ordem que os fenómenos naturais. Cremos, ao invés, que as actividades humanas são não-naturais, são intencionais, sociais e históricas; fenómenos estes que não existem nem na natureza em geral nem nas espécies animais. Tratando-se, pois, de intenções e de interesses, também não temos razão para supôr que os sectores que detêm o bem-estar, estejam preocupados com a superação das dificuldades de outros menos favorecidos. Em segundo lugar, a explicação que se nos dá relativamente a que sempre houve grandes diferenças económicas entre uns poucos e as maiorias e que, não obstante isto, as sociedades progrediram, parece-nos insuficiente. A História mostra-nos que os povos avançaram, reclamando os seus direitos frente aos poderes estabelecidos. O progresso social não se produziu porque a riqueza acumulada por um sector tenha depois transbordado automaticamente "para baixo". Em terceiro lugar, apresentar como modelo determinados países que, operando com essa suposta economia livre, hoje têm um bom nível de vida, parece um excesso. Esses países realizaram guerras de expansão sobre outros, impuseram o colonialismo, o neo-colonialismo e a partição de nações e regiões; arrecadaram com base na discriminação e a violência e, finalmente, absorveram mão-de-obra barata, ao mesmo tempo que impuseram termos de intercâmbio desfavoráveis para as economias mais débeis. Poderá argumentar-se que aqueles eram os procedimentos que se entendiam como "bons negócios". Mas se se afirma isso, não se poderá sustentar que o desenvolvimento comentado seja independente de um tipo especial de relação com outros povos. Em quarto lugar, fala-se-nos do avanço científico e técnico e da iniciativa que se desenvolve numa economia "livre". Quanto ao avanço científico e técnico, é de 7
  • 8. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual saber que este opera desde que o homem inventou a moca, a alavanca, o fogo e assim seguindo, numa acumulação histórica que não parece ter-se ocupado muito das leis de mercado. Se, ao invés, se quer dizer que as economias abundantes sugam talentos, pagam equipamento e investigação e que, por último, são motivadoras porque dão uma melhor remuneração, diremos que isto é assim desde épocas milenares e que tão-pouco se deve a um tipo especial de economia, mas sim, simplesmente, a que nesse lugar existem recursos suficientes independentemente da origem de tal potencialidade económica. Em quinto lugar, falta o expediente de explicar o progresso dessas comunidades pelo intangível "dom" natural de especiais talentos, virtudes cívicas, laboriosidade, organização e coisas semelhantes. Este já não é um argumento, mas sim uma declaração devocional em que se escamoteia a realidade social e histórica que explica como se formaram esses povos. Desde logo, temos muito desconhecimento para compreender como é que com semelhantes antecedentes históricos se poderá sustentar este esquema no futuro imediato, mas isso faz parte de outra discussão: a discussão em torno de se existe realmente tal economia livre de mercado ou se se trata antes de proteccionismos e dirigismos encobertos que, de repente, abrem determinadas válvulas, ali onde se sentem a dominar uma situação, e fecham outras em caso contrário. Se isto é assim, tudo o que se acrescente como uma promessa de avanço ficará somente reservado à explosão e difusão da ciência e da tecnologia, independentemente do suposto automatismo das leis económicas. 4. As futuras experiências Como aconteceu até hoje, quando seja necessário, substituir-se-á o esquema vigente por outro que "corrija" os defeitos do modelo anterior. Desse modo e passo a passo, continuará a concentrar-se a riqueza nas mãos de uma minoria cada vez mais poderosa. É claro que a evolução não se deterá, nem tão-pouco as legítimas aspirações dos povos. Assim sendo, em pouco tempo serão varridas as últimas ingenuidades que asseguram o fim das ideologias, as confrontações, as guerras, as crises económicas e as desordens sociais. Desde logo, tanto as soluções como os conflitos se mundializarão, porque já não restarão pontos desconectados entre si. Também há algo certo: nem os esquemas de dominação actual poderão sustentar-se nem tão- pouco as fórmulas de luta que tiveram vigência até ao momento actual. 5. A mudança e as relações entre as pessoas Tanto a regionalização dos mercados como a reivindicação localista e das etnias apontam à desintegração do Estado nacional. A explosão demográfica nas regiões pobres leva a migração ao limite do controlo. A grande família camponesa desagrega-se, deslocando a geração jovem para a aglomeração urbana. A familia urbana industrial e pós-industrial reduz-se ao mínimo, enquanto as macro-cidades absorvem contigentes humanos formados noutras paisagens culturais. As crises económicas e as reconversões dos modelos produtivos fazem com que a discriminação irrompa novamente. Entretanto, a aceleração tecnológica e a produção massiva deixam obsoletos os produtos no instante de entrar no circuito de consumo. A substituição de objectos corresponde-se com a instabilidade e a desregulação na relação humana. A antiga solidariedade, herdeira do que em algum momento se chamou "fraternidade", acabou por perder significado. Os companheiros de trabalho, de estudo e de desporto, e as amizades de outras épocas, tomam o carácter de competidores; os membros do casal lutam pelo domínio, calculando, desde o começo dessa relação, como será a quota de benefício mantendo-se unidos, ou como será essa quota se se separarem. Nunca antes o mundo esteve tão comunicado, porém os indivíduos padecem cada dia mais de uma angustiosa incomunicação. Nunca os centros urbanos estiveram mais povoados, contudo as pessoas falam de "solidão". Nunca as pessoas necessitaram mais do que agora do calor humano, no entanto qualquer aproximação converte em suspeita a amabilidade e a ajuda. 8
  • 9. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Assim deixaram a nossa pobre gente: fazendo crer a todo o infeliz que tem algo importante a perder e que esse "algo" etéreo é cobiçado pelo resto da humanidade! Nessas condições, pode- se-lhe contar este conto como se se tratasse da mais autêntica realidade... 6. Um conto para aspirantes a executivos "A sociedade que se está a pôr em marcha trará finalmente a abundância. Mas, à parte os grandes benefícios objectivos, ocorrerá uma libertação subjectiva da humanidade. A antiga solidariedade, própria da pobreza, não será necessária. Já muitos concordam que com dinheiro, ou algo equivalente, se solucionarão quase todos os problemas; por conseguinte, os esforços, pensamentos e sonhos, estarão lançados nessa direcção. Com o dinheiro comprar-se-á boa comida, boa habitação, viagens, diversões, brinquedos tecnológicos e pessoas que façam o que se quiser. Haverá um amor eficiente, uma arte eficiente e uns psicólogos eficientes que repararão os problemas pessoais que pudessem restar, os quais, mais adiante, a nova química cerebral e a engenharia genética acabarão por resolver. "Nessa sociedade de abundância, diminuirá o suicídio, o alcoolismo, a toxicodependência, a insegurança citadina e a delinquência, como hoje já mostram os países economicamente mais desenvolvidos (?). Também desaparecerá a discriminação e aumentará a comunicação entre as pessoas. Ninguém estará pungido por pensar desnecessariamente no sentido da vida, na solidão, na doença, na velhice e na morte, porque com adequados cursos e alguma ajuda terapêutica conseguir-se-á bloquear esses reflexos que tanto detiveram o rendimento e a eficiência das sociedades. Todos confiarão em todos porque a concorrência no trabalho, nos estudos e no casal, acabará por estabelecer relações maduras. "Finalmente, as ideologias terão desaparecido e já não se utilizarão para lavar o cérebro das pessoas. Certamente que ninguém impedirá o protesto ou inconformidade com temas menores, sempre que para se expressarem paguem aos canais adequados. Sem confundir a liberdade com a libertinagem, os cidadãos reunir-se-ão em números pequenos (por razões sanitárias) e poderão expressar-se em lugares abertos (sem perturbar com sons contaminantes ou com publicidade que deslustre o "município", ou como se chame mais adiante ). "Mas o mais extraordinário ocorrerá quando já não se requeira controlo policial, pois cada cidadão será alguém decidido que cuidará os outros das mentiras que algum terrorista ideológico pudesse tratar de inculcar. Esses defensores terão tanta responsabilidade que acudirão pressurosos aos meios de comunicação, nos quais encontrarão imediato acolhimento para alertar a população; escreverão estudos brilhantes que serão publicados imediatamente e organizarão fóruns, nos quais formadores de opinião de grande cultura esclarecerão algum desprevenido que poderia ainda estar à mercê das forças obscuras do dirigismo económico, do autoritarismo, da antidemocracia e do fanatismo religioso. Nem sequer será necessário perseguir os perturbadores, porque num sistema de difusão tão eficiente ninguém quererá aproximar-se deles para não se contaminar. No pior dos casos, "desprogramar-se-ão" com eficácia e eles agradecerão publicamente a sua reinserção e o benefício que lhes produzirá reconhecer as bondades da liberdade. Por seu lado, aqueles esforçados defensores, se é que não estão enviados especificamente para cumprir essa importante missão, serão gente comum que poderá sair assim do anonimato, ser reconhecida socialmente pela sua qualidade moral, assinar autógrafos e, como é lógico, receber uma merecida retribuição. "A Empresa será a grande família que favorecerá a qualificação, as relações e o lazer. A robótica terá suplantado o esforço físico de outras épocas e trabalhar para a Empresa na própria casa será uma verdadeira realização pessoal. 9
  • 10. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual "Assim, a sociedade não necessitará de organizações que não estejam incluidas na Empresa. O ser humano, que tanto lutou pelo seu bem-estar, terá finalmente chegado aos céus. Saltando de planeta em planeta terá descoberto a felicidade. Instalado aí, será um jovem competitivo, sedutor, aquisitivo, tiunfador, e pragmático (sobretudo pragmático)... executivo da Empresa!" 7. A Mudança Humana O mundo está a variar a grande velocidade e muitas coisas que até há pouco eram cridas cegamente já não se podem sustentar. A aceleração está a gerar instabilidade e desorientação em todas as sociedades, sejam estas pobres ou opulentas. Nesta mudança de situação, tanto as lideranças tradicionais e seus "formadores de opinião" como os antigos lutadores políticos e sociais deixam de ser referência para as pessoas. No entanto, está a nascer uma sensibilidade que se corresponde com os novos tempos. É uma sensibilidade que capta o mundo como uma globalidade e que se dá conta de que as dificuldades das pessoas em qualquer lugar acabam por implicar outras, ainda que se encontrem a muita distância. As comunicações, o intercâmbio de bens e a veloz deslocação de grandes contingentes humanos de um ponto para outro, mostram esse processo de mundialização crescente. Também estão a surgir novos critérios de acção ao compreender-se a globalidade de muitos problemas, percebendo-se que a tarefa daqueles que querem um mundo melhor será efectiva se se a faz crescer a partir do meio em que se tem alguma influência. Ao contrário de outras épocas, cheias de frases ocas com as quais se procurava reconhecimento externo, hoje começa-se a valorizar o trabalho humilde e sentido, mediante o qual não se pretende engrandecer a própria figura, mas sim mudar-se a si mesmo e ajudar o meio imediato familiar, laboral e de relação a fazê-lo. Os que gostam realmente das pessoas não desprezam essa tarefa sem estridências, incompreensível, ao invés, para qualquer oportunista formado na antiga paisagem dos líderes e da massa, paisagem na qual ele aprendeu a usar outros para ser catapultado para a cúpula social. Quando alguém comprova que o individualismo esquizofrénico já não tem saída e comunica abertamente a todos os seus conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o ridículo temor de não ser compreendido; quando se aproxima de outros; quando se interessa por cada um e não por uma massa anónima; quando promove o intercâmbio de ideias e a realização de trabalhos em conjunto; quando claramente expõe a necessidade de multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social destruido por outros; quando sente que mesmo a pessoa mais "insignificante" é de superior qualidade humana que qualquer desalmado posto no cume da conjuntura epocal... Quando sucede tudo isto, é porque no interior desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem movido os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse Destino tantas vezes desviado e tantas vezes esquecido, mas sempre reencontrado nas encruzilhadas da história. Não só se vislumbra uma nova sensibilidade, um novo modo de acção, como também, além disso, uma nova atitude moral e uma nova disposição táctica perante a vida. Se me fizessem precisar o enunciado acima, diria que as pessoas, ainda que isto se tenha repetido desde há três milénios atrás, hoje experimentam como uma novidade a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como cada um quer ser tratado. Acrescentaria que, quase como leis gerais de comportamento, hoje se aspira a: 1.- uma certa proporção, tratando de ordenar as coisas importantes da vida, levando-as em conjunto e evitando que algumas se adiantem e outras se atrasem excessivamente; 2.- uma certa adaptação crescente, actuando a favor da evolução (não simplesmente da curta conjuntura) e não cooperando com as diferentes formas de involução humana; 3.- uma certa oportunidade, retrocedendo diante de uma grande força (não perante qualquer inconveniente) e avançando na sua declinação; 4.- uma certa coerência, acumulando acções que dão a sensação de unidade e acordo consigo mesmo, e pondo de lado aquelas que produzem contradição e que se registam como desacordo entre o que se pensa, sente e faz. Não creio que seja preciso explicar por que digo que se está "a sentir a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como cada um quer ser tratado", face à objecção que levanta o facto de que assim não se actua nestes 10
  • 11. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual momentos. Também não creio que me deva alongar em explicações acerca do que entendo por "evolução" ou por "adaptação crescente" e não simplesmente por adaptação de permanência. Quanto aos parâmetros do retroceder ou avançar diante de grandes ou declinantes forças, sem dúvida que haveria que contar com indicadores ajustados que não mencionei. Por último, isto de acumular acções unitivas perante as situações contraditórias imediatas que nos cabe viver ou, em sentido oposto pôr de lado a contradição, a olhos vistos aparece como uma dificuldade. Isso é certo, mas se revemos o comentado mais acima, ver-se-á que mencionei todas estas coisas dentro do contexto de um tipo de comportamento ao qual hoje se começa a aspirar, bastante diferente do que se pretendia noutras épocas. Tratei de anotar algumas características especiais que se estão a apresentar, correspondentes a uma nova sensibilidade, uma nova forma de acção interpessoal e um novo tipo de comportamento pessoal que, parece-me, ultrapassaram a simples crítica de situação. Sabemos que a crítica é sempre necessária, mas quanto mais necessário é fazer algo diferente daquilo que criticamos! Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos. Silo. 21/02/91. 11
  • 12. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual SEGUNDA CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Em carta anterior, referi-me à situação que nos cabe viver e a certas tendências que os acontecimentos mostram. Aproveitei para discutir algumas propostas que os defensores da economia de mercado anunciam como se se tratassem de condições ineludíveis para todo o progresso social. Também destaquei a crescente deterioração da solidariedade e a crise de referências que se verifica neste momento. Por último, esbocei algumas características positivas que se começam a observar naquilo que chamei "uma nova sensibilidade, uma nova atitude moral e uma nova disposição táctica perante a vida". Alguns dos meus correspondentes fizeram-me notar o seu desacordo com o tom da carta, já que, segundo lhes pareceu, havia nela muitas coisas demasiado graves para uma pessoa se permitir ironizar. Mas não dramatizemos! É tão inconsistente o sistema de provas que apresenta a ideologia do neoliberalismo, da economia social de mercado e da Nova Ordem Mundial, que a coisa não é de modo a franzir o sobrolho. O que quero dizer é que tal ideologia está morta nos seus fundamentos desde há muito tempo e que em breve sobrevirá a crise prática, de superfície, que é a que finalmente percebem aqueles que confundem significado com expressão; conteúdo com forma; processo com conjuntura. Tal como as ideologias do fascismo e do socialismo real tinham morrido muito tempo antes de se ter produzido o seu descalabro prático posterior, também o desastre do actual sistema só mais adiante surpreenderá os bem-pensantes. Não é isto muito ridículo? É como ver muitas vezes um filme muito mau. Depois de tanta repetição, dedicamo-nos a esquadrinhar nas paredes de alvenaria, nas maquilhagens dos actores e nos efeitos especiais, enquanto, ao nosso lado, uma senhora se emociona por aquilo que vê e que, para ela, é a própria realidade. Assim, digo em meu descargo que não zombei da enorme tragédia que a imposição deste sistema significa, mas sim das suas monstruosas pretensões e do seu grotesco final, final que já presenciámos em muitos casos anteriores. Também recebi correspondência a reclamar maior precisão na definição de atitudes que se deveria assumir perante o processo de mudança actual. Sobre isto, creio que será melhor tratar de entender as posições que tomam distintos grupos e pessoas isoladas, antes de fazer recomendações de qualquer tipo. Limitar-me-ei, pois, a apresentar as posturas mais populares, dando a minha opinião nos casos que me pareçam de maior interesse. 1. Algumas posturas face ao processo de mudança actual No lento progresso da humanidade foram-se acumulando factores até ao momento actual, em que a velocidade de mudança tecnológica e económica não coincide com a velocidade de mudança nas estruturas sociais e no comportamento humano. Este desfasamento tende a incrementar-se e a gerar crises pogressivas. Esse problema é encarado de diferentes pontos de vista. Há quem suponha que o desajuste se regulará automaticamente e, portanto, recomenda que não se trate de orientar esse processo, que, além do mais, seria impossível de dirigir. Trata-se de uma tese mecanicista optimista. Há outros que supõem que se caminha para um ponto de explosão irremediável. É o caso dos mecanicistas pessimistas. Também aparecem as correntes morais que pretendem deter a mudança e, dentro do possível, voltar a supostas fontes reconfortantes. Elas representam uma atitude anti-histórica. Mas também os cínicos, os estóicos e os epicuristas contemporâneos começam a elevar as suas vozes. Uns, negando importância e sentido a toda a acção; outros, enfrentando os factos com firmeza ainda que tudo saia mal. Finalmente, os terceiros, tratando de tirar partido da situação e pensando simplesmente no seu 12
  • 13. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual hipotético bem-estar, que estendem, quando muito, aos seus filhos. Como nas épocas finais de civilizações passadas, muita gente assume atitudes de salvação individual, supondo que não tem sentido nem possibilidade de êxito qualquer tarefa que se empreenda em conjunto. Em todo o caso, o conjunto tem utilidade para a especulação estritamente pessoal e, por isso, os líderes empresariais, culturais ou políticos necessitam de manipular e melhorar a sua imagem tornando- se credíveis, fazendo outros crer que eles pensam e actuam em função dos demais. Claro que tal ocupação tem os seus dissabores, porque toda a gente conhece o truque e ninguém acredita em ninguém. Os antigos valores religiosos, patrióticos, culturais, políticos e gremiais ficam submetidos ao dinheiro, num campo em que a solidariedade e, portanto, a oposição colectiva a esse esquema são varridas, ao mesmo tempo que o tecido social se descompõe gradualmente. Depois, sobrevirá outra etapa na qual o individualismo radical será superado... mas esse é um tema para mais adiante. Com a nossa paisagem de formação às costas e com as nossas crenças em crise, não estamos ainda em condições de admitir que se aproxima esse novo momento histórico. Hoje, detendo uma pequena parcela de poder ou dependendo absolutamente do poder de outros, todos nos encontramos tocados pelo individualismo, no qual tem claramente vantagem quem melhor está instalado no sistema. 2. O individualismo, a fragmentação social e a concentração de poder nas minorias Porém, o individualismo leva necessariamente à luta pela supremacia do mais forte e à procura do êxito a qualquer preço. Tal postura começou com uns poucos que respeitaram certas regras de jogo entre si face à obediência dos muitos. De qualquer maneira, essa etapa esgotar- se-á num "todos contra todos" porque mais tarde ou mais cedo desequilibrar-se-á o poder a favor do mais forte e o resto, apoiando-se entre si ou noutras facções, terminará por desarticular um sistema tão frágil. Mas as minorias foram mudando com o desenvolvimento económico e tecnológico, aperfeiçoando os seus métodos a tal ponto que, nalguns lugares em situação de abundância, as grandes maiorias transferem o seu descontentamento para aspectos secundários da situação em que têm de viver. E insinua-se que, mesmo crescendo o nível de vida global, as massas postergadas contentar-se-ão esperando uma melhor situação no futuro, porque já não parece que venham a questionar o sistema, mas sim certos aspectos de urgência. Tudo isso mostra uma viragem importante no comportamento social. Se isto é assim, a militância pela mudança ver-se-á progressivamente afectada e as antigas forças políticas e sociais ficarão vazias de propostas; propagar-se-á a fragmentação grupal e interpessoal e o isolamento individual será medianamente suprido pelas estruturas produtoras de bens e lazer colectivo concentradas sob uma mesma direcção. Nesse mundo paradoxal, terminar-se-á de erradicar toda a centralização e burocratismo, rompendo-se as anteriores estruturas de direcção e decisão, mas a mencionada desregulação, descentralização, liberalização de mercados e actividades será o campo mais adequado para que floresça uma concentração como não houve em nenhuma época anterior, porque a absorção do capital financeiro internacional continuará a crescer nas mãos de uma banca cada vez mais poderosa. Similar paradoxo sofrerá a classe política, ao ter que proclamar os novos valores que fazem o Estado perder poder, com o que o seu protagonismo se verá cada vez mais comprometido. Por alguma razão se vão substituindo desde há algum tempo palavras como "governo" por outras como "administração", fazendo os "públicos" (não os "povos") compreender que um país é uma empresa. Por outro lado, e até que se consolide um poder imperial mundial, poderão ocorrer conflitos regionais como noutro tempo aconteceu entre países. Que tais confrontações se produzam no campo económico ou se trasladem à arena da guerra em áreas restritas; que como consequência aconteçam desordens incoerentes e massivas; que caiam governos completos e acabem por se desintegrar países e zonas, isso em nada afectará o processo de concentração a que parece apontar este momento histórico. Localismos, lutas interétnicas, migrações e crises continuadas 13
  • 14. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual não alterarão o quadro geral de concentração de poder. E quando a recessão e o desemprego afectem também as populações dos países ricos, já terá passado a etapa de liquidação liberal e começarão as políticas de controlo, coacção e emergência ao melhor estilo imperial... quem poderá então falar de economia de livre mercado e que importância terá manter posturas baseadas no individualismo radical? Mas devo responder a outras inquietudes que se me fizeram chegar relativamente à caracterização da crise actual e das suas tendências. 3. Características da crise Comentaremos a crise do Estado nacional, a crise de regionalização e mundialização, e a crise da sociedade, do grupo e do individuo. No contexto de um processo de mundialização crescente acelera-se a informação e aumenta a deslocação de pessoas e bens. A tecnologia e o poder económico em aumento concentram-se em empresas cada vez mais importantes. O mesmo fenómeno de aceleração no intercâmbio choca com as limitações e a lentidão que impõem antigas estruturas como o Estado nacional. O resultado é que se tendem a apagar as fronteiras nacionais dentro de cada região. Isto leva a que se deva homogeneizar a legislação dos países, não só em matéria de taxas aduaneiras e documentação pessoal como também naquilo que tem a ver com a adaptação dos seus sistemas produtivos. O regime laboral e de segurança social seguem na mesma direcção. Contínuos acordos entre esses países mostram que um Parlamento, um sistema judicial e um executivo comum, darão maior eficácia e velocidade à gestão dessa região. A primitiva moeda nacional vai cedendo lugar a um tipo de signo de intercâmbio regional que evita perdas e demoras em cada operação de conversão. A crise do Estado nacional é um facto observável não só naqueles países que tendem a incluir-se num mercado regional, mas também noutros cujas maltratadas economias mostram uma estagnação relativa importante. Por todos os lados, levantam-se vozes contra as burocracias anquilosadas e pede-se a reforma desses esquemas. Em pontos onde um país se configurou como resultado recente de partições e anexações, ou como federação artificial, avivam-se antigos rancores e diferenças localistas, étnicas e religiosas. O Estado tradicional tem que enfrentar essa situação centrífuga por entre crescentes dificuldades económicas que questionam precisamente a sua eficácia e legitimidade. Fenómenos desse tipo tendem a crescer no centro da Europa, no Leste e nos Balcãs. Estas dificuldades também se agudizam no Médio Oriente, Levante e Asia Menor. Na Africa, em vários países delimitados artificialmente, começam a ser observados os mesmos sintomas. Acompanhando essa descomposição, começam as migrações de povos em direcção às fronteiras, pondo em perigo o equilíbrio zonal. Bastará que aconteça um desequilíbrio importante na China para que mais de uma região seja afectada directamente pelo fenómeno, considerando, além disso a instabilidade actual da antiga União Soviética e dos países asiáticos continentais. Entretanto, configuraram-se centros económica e tecnológicamente poderosos que assumem carácter regional: o Extremo Oriente liderado pelo Japão, Europa e Estados Unidos. A descolagem e a influência dessas zonas mostra um aparente policentrismo, mas o desenrolar dos acontecimentos assinala que os Estados Unidos somam ao seu poder tecnológico, económico e político a sua força militar, em condições de controlar as mais importantes áreas de abastecimento. No processo de mundialização crescente, tende a levantar-se esta superpotência como regedora do processo actual, em acordo ou desacordo com os poderes regionais. Este é, no fundo, o significado da Nova Ordem Mundial. Ao que parece, não chegou ainda a época da paz, ainda que se tenha dissipado, de momento, a ameaça de guerra mundial. Explosões localistas, étnicas e religiosas; desordens sociais; migrações e conflitos bélicos em áreas restritas, parecem ameaçar a suposta estabilidade actual. Por outro lado, as áreas postergadas afastam-se cada vez mais do crescimento das zonas tecnológica e economicamente aceleradas e este 14
  • 15. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual desfasamento relativo agrega ao esquema dificuldades adicionais. O caso da América Latina é exemplar neste aspecto, porque ainda que a economia de vários dos seus países experimente um crescimento importante nos próximos anos, a dependência relativamente aos centros de poder tornar-se-á cada vez mais notória. Enquanto cresce o poder regional e mundial das companhias multinacionais, enquanto se concentra o capital financeiro internacional, os sistemas políticos perdem autonomia e a legislação adequa-se aos ditames dos novos poderes. Numerosas instituições podem hoje ser supridas, directa ou indirectamente, pelos departamentos ou as fundações da Empresa, que está em condições em alguns pontos de prestar assistência ao nascimento, qualificação, colocação laboral, casamento, lazer, informação, segurança social, reforma e morte dos seus empregados e seus filhos. O cidadão já pode, em certos lugares, tornear aqueles velhos trâmites burocráticos, tendendo a utilizar um cartão de crédito e, pouco a pouco, uma moeda electrónica onde constarão, não só os seus gastos e depósitos, mas também todo o tipo de antecedentes significativos e situação actual devidamente computada. Claro que tudo isto já liberta uns poucos de lentidões e preocupações secundárias, mas estas vantagens pessoais servirão também um sistema de controlo embuçado. Ao lado do crescimento tecnológico e da aceleração do ritmo de vida, a participação política diminui; o poder de decisão torna-se remoto e cada vez mais intermediado; a família reduz-se e fragmenta-se em casais cada vez mais móveis e em constante mudança; a comunicação interpessoal bloqueia-se; a amizade desaparece e a concorrência envenena todas as relações humanas ao ponto de, desconfiando todos de todos, a sensação de insegurança já não se basear no facto objectivo do aumento da criminalidade, mas sim sobretudo num estado de ânimo. Deve acrescentar-se que a solidariedade social, grupal e interpessoal desaparece velozmente; que a toxicodependência e o alcoolismo fazem estragos; que o suicídio e a doença mental tendem a incrementar-se perigosamente. Claro que em todos os lados existe uma maioria saudável e razoável, mas os sintomas de tanto desajuste já não nos permitem falar de uma sociedade sã. A paisagem de formação das novas gerações conta com todos os elementos de crise que citámos acima e não fazem só parte da sua vida a sua qualificação técnica e laboral, as telenovelas, as recomendações dos opinadores dos meios massivos, as declamações sobre a perfeição do mundo em que vivemos ou, para a juventude mais favorecida, o lazer da mota, as viagens, a roupa, o desporto, a música e os artefactos electrónicos. Este problema da paisagem de formação nas novas gerações ameaça abrir enormes brechas entre grupos de distintas idades, pondo sobre a mesa uma dialéctica geracional virulenta de grande profundidade e de enorme extensão geográfica. Está claro que se instalou na cúpula da escala de valores o mito do dinheiro e a ele, crescentemente, subordina-se tudo. Um contingente importante da sociedade não quer ouvir nada daquilo que lhe recorde o envelhecimento e a morte, desqualificando qualquer tema que se relacione com o sentido e significado da vida. E nisto devemos reconhecer uma certa razoabilidade, porquanto a reflexão sobre esses pontos não coincide com a escala de valores estabelecida no sistema. São demasiado graves os sintomas da crise para não os ver e, no entanto, uns dirão que é o preço a pagar para existir no final do século XX. Outros afirmarão que estamos a entrar no melhor dos mundos. O pano de fundo que opera nessas afirmações está posto pelo momento histórico, no qual o esquema global de situação não entrou ainda em crise ainda que as crises particulares se propaguem por todo o lado, mas à medida que os sintomas da descomposição se acelerem mudará de igual modo a apreciação dos acontecimentos, porque se sentirá a necessidade de estabelecer novas prioridades e novos projectos de vida. 4. Os factores positivos da mudança O desenvolvimento científico e tecnológico não pode ser posto em causa pelo facto de alguns avanços terem sido ou serem utilizados contra a vida e o bem-estar. Nos casos em que se questiona a tecnologia dever-se-ia fazer uma prévia reflexão com respeito às características do 15
  • 16. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual sistema que utiliza o avanço do saber com fins espúrios. Claro que o progresso na medicina, comunicações, robótica, engenharia genética e tantos outros campos, pode ser aproveitado em direcção destrutiva. O mesmo se pode dizer relativamente à utilização da técnica na exploração irracional de recursos, poluição industrial, contaminação e degradação ambiental. Mas tudo isso denuncia o signo negativo que comanda a economia e os sistemas sociais. Assim, bem sabemos que hoje se está em condições de solucionar os problemas de alimentação de toda a humanidade e, contudo, comprovamos diariamente que existe fome, desnutrição e padecimentos infra- humanos, porque o sistema não está na disposição de se dedicar a esses problemas, resignando aos seus fabulosos ganhos em troca de uma melhoria global do nível humano. Também notamos que as tendências para as regionalizações e, finalmente, para a mundialização estão a ser manipuladas por interesses particulares em detrimento dos grandes conjuntos. Mas está claro que, mesmo nessa distorsão, o processo em direcção a uma nação humana universal abre passagem. A mudança acelerada que se está a apresentar no mundo leva a uma crise global do sistema e a um consequente reordenamento de factores. Tudo isso será a condição necessária para conseguir uma estabilidade aceitável e um desenvolvimento harmónico do planeta. Por conseguinte, apesar das tragédias que se podem avistar na descomposição deste sistema global actual, a espécie humana prevalecerá sobre todo o interesse particular. Na compreensão da direcção da História, que começou nos nossos antepassados hominídios, radica a nossa fé no futuro. Esta espécie que trabalhou e lutou durante milhões de anos para vencer a dor e o sofrimento não sucumbirá no absurdo. Por isso, é necessário compreender processos mais amplos do que simples conjunturas e apoiar tudo o que vá em direcção evolutiva, ainda que não se vejam os seus resultados imediatos. O desalento dos seres humanos valorosos e solidários atrasa o passo da História. Mas é difícil compreender esse sentido se a vida pessoal não se organiza e orienta também em direcção positiva. Aqui não estão em jogo factores mecânicos ou determinismos históricos, está em jogo a intenção humana que tende a abrir caminho diante de todas as dificuldades. Espero, meus amigos, passar a temas mais reconfortantes na próxima carta, deixando de lado a observação de factores negativos para esboçar propostas concordantes com a nossa fé num futuro melhor para todos. Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos. Silo. 05/12/91. 16
  • 17. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual TERCEIRA CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Espero que a presente carta sirva para ordenar e simplificar as minhas opiniões a respeito da situação actual. Também queria considerar certos aspectos da relação entre os indivíduos e entre eles e o meio social em que vivem. 1. A mudança e a crise Nesta época de grande mudança estão em crise os indivíduos, as instituições e a sociedade. A mudança será cada vez mais rápida tal como as crises individuais, institucionais e sociais. Isto anuncia perturbações que talvez não sejam assimiladas por amplos sectores humanos. 2. Desorientação As tranformações que estão a ocorrer tomam direcções inesperadas, produzindo uma desorientação geral em relação ao futuro e ao que se deve fazer no presente. Na realidade, não é a mudança que nos perturba, já que nela observamos muitos aspectos positivos. O que nos inquieta é não saber em que direcção vai a mudança e para onde orientar a nossa actividade. 3. Crise na vida das pessoas A mudança está a ocorrer na economia, na tecnologia e na sociedade; sobretudo está a operar-se nas nossas vidas: no nosso meio familiar e laboral, nas nossas relações de amizade. Estão a modificar-se as nossas ideias e o que acreditávamos sobre o mundo, sobre as outras pessoas e sobre nós mesmos. Muitas coisas estimulam-nos, mas outras confundem-nos e paralisam-nos. O comportamento dos demais e o nosso parece-nos incoerente, contraditório e sem direcção clara, tal como sucede com os acontecimentos que nos rodeiam. 4. Necessidade de dar orientação à própria vida Portanto, é fundamental dar direcção a essa mudança inevitável e não há outra forma de fazê-lo senão começando por si mesmo. Em cada um deve dar-se direcção a estas mudanças desordenadas cujo rumo desconhecemos. 5. Direcção e mudança de situação Como os indivíduos não existem isolados, se realmente direccionam a sua vida, modificarão a relação com os outros na sua familia, no seu trabalho e onde lhes caiba actuar. Este não é um problema psicológico que se resolve dentro da cabeça de indivíduos isolados, mas sim mudando a situação em que se vive com outros mediante um comportamento coerente. Quando celebramos êxitos ou nos deprimimos por causa dos nossos fracassos, quando fazemos planos para o futuro ou nos propomos introduzir mudanças na nossa vida, esquecemos o ponto fundamental: estamos em situação de relacção com outros. Não podemos explicar o que nos acontece, nem escolher, sem referência a certas pessoas e a certos âmbitos sociais concretos. Essas pessoas que têm especial importância para nós e esses âmbitos sociais em que vivemos põem-nos numa situação precisa, a partir da qual pensamos, sentimos e actuamos. Negar isto ou 17
  • 18. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual não tê-lo em conta cria enormes dificuldades. A nossa liberdade de escolha e acção está delimitada pela situação em que vivemos. Qualquer mudança que desejemos operar não pode ser traçada em abstracto, mas sim em referência à situação em que vivemos. 6. O comportamento coerente Se pudéssemos pensar, sentir e actuar na mesma direcção, se o que fazemos não nos criasse contradição com o que sentimos, diríamos que a nossa vida tem coerência. Seríamos fiáveis para nós mesmos, ainda que não necessariamente fiáveis para o nosso meio imediato. Deveríamos conseguir essa mesma coerência na relação com outros, tratando os demais como queremos ser tratados. Sabemos que pode existir uma espécie de coerência destrutiva, como observamos nos racistas, nos exploradores, nos fanáticos e nos violentos, mas está clara a sua incoerência na relação porque tratam os outros de um modo muito diferente daquele que desejam para si mesmos. Essa unidade de pensamento, sentimento e acção, essa unidade entre o trato que se pede e o trato que se dá, são ideais que não se realizam na vida diária. Este é o ponto. Trata-se de um ajuste de condutas a essas propostas; trata-se de valores que, tomados com seriedade, direccionam a vida, independentemente das dificuldades que se enfrentem para realizá-los. Se observarmos bem as coisas, não estaticamente mas sim em dinâmica, compreenderemos isto como uma estratégia que deve ir ganhando terreno à medida que passe o tempo. Aqui sim valem as intenções, ainda que as acções não coincidam no princípio com elas, sobretudo se aquelas intenções são mantidas, aperfeiçoadas e ampliadas. Essas imagens do que se deseja conseguir são referências firmes que dão direcção em todas as situações. E isto que dizemos não é tão complicado. Não nos surpreende, por exemplo, que uma pessoa oriente a sua vida para conseguir uma grande fortuna, no entanto, essa pessoa pode saber antecipadamente que não a conseguirá. De qualquer maneira, o seu ideal impulsiona-a ainda que não tenha resultados relevantes. Então, por que razão não se pode entender que mesmo sendo a época adversa ao trato que se pede com o trato que se dá, mesmo sendo adversa a pensar, sentir e actuar na mesma direcção, esses ideais de vida possam dar direcção às acções humanas? 7. As duas propostas Pensar, sentir e actuar na mesma direcção e tratar os outros como se deseja ser tratado, são duas propostas tão singelas que podem ser entendidas como simples ingenuidades pela gente habituada às complicações. No entanto, atrás dessa aparente candura, há uma nova escala de valores em cujo ponto mais alto se põe a coerência, uma nova moral para a qual não é indiferente qualquer tipo de acção, uma nova aspiração que implica ser consequente no esforço para dar direcção aos acontecimentos humanos. Por trás dessa aparente candura, aposta-se no sentido da vida pessoal e social que será verdadeiramente evolutivo ou caminhará para a desintegração. Já não podemos confiar que velhos valores dêem coesão às pessoas num tecido social deteriorado dia-a-dia pela desconfiança, o isolamento e o individualismo crescente. A antiga solidariedade entre os membros das classes, associações, instituções e grupos vai sendo substituída pela concorrência selvagem a que não escapa o casal nem a irmandade familiar. Neste processo de demolição, não se elevará uma nova solidariedade com base em ideias e comportamentos de um mundo que já era, mas sim graças à necessidade concreta de cada um de direccionar a sua vida, para o que terá de modificar o seu próprio meio. Essa modificação, se é verdadeira e profunda, não se pode pôr em andamento por acção de imposições, por leis externas ou por fanatismos de qualquer tipo, mas sim pelo poder da opinião e da acção mínima conjunta entre as pessoas que fazem parte do meio em que se vive. 8. Chegar a toda a sociedade a partir do meio imediato. 18
  • 19. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Sabemos que ao mudar positivamente a nossa situação estaremos a influir no nosso meio e outras pessoas compartilharão este ponto de vista, dando lugar a um sistema de relações humanas em crescimento. Teremos que perguntar-nos: Por que razão deveríamos ir mais além de onde começamos? Simplesmente por coerência com a proposta de tratar os outros como queremos que nos tratem. Ou não levaríamos aos outros algo que se mostrou fundamental para a nossa vida? Se a influência começa a desenvolver-se é porque as relações, e portanto os componentes do nosso meio, se ampliaram. Esta é uma questão que deveríamos ter em conta desde o começo, porque mesmo quando a nossa acção começa a aplicar-se num ponto reduzido, a projecção dessa influência pode chegar muito longe. Não tem nada de estranho pensar que outras pessoas decidam juntar-se na mesma direcção. Afinal de contas, os grandes movimentos históricos seguiram o mesmo caminho: começaram pequenos, como é lógico, e desenvolveram- se graças a que as pessoas os consideraram intérpretes das suas necessidades e inquietudes. Actuar no meio imediato, mas com o olhar posto no progresso da sociedade é coerente com tudo o que se disse. De outro modo, para que faríamos referência a uma crise global que deve ser enfrentada resolutamente, se tudo terminasse em indivíduos isolados para quem os outros não têm importância? Por necessidade das pessoas que coincidam em dar uma nova direcção à sua vida e aos acontecimentos, surgirão âmbitos de discussão e comunicação directa. Depois, a difusão através de todos os meios permitirá ampliar a superfície de contacto. O mesmo acontecerá com a criação de organismos e instituições compatíveis com este projecto. 9. O meio em que se vive. Já comentámos que é tão veloz e tão inesperada a mudança, que este impacto se está a receber como crise na qual se debatem sociedades inteiras, instituições e indivíduos. Por isso, é imprescindível dar direcção aos acontecimentos. No entanto, como poderia uma pessoa fazê-lo, submetida como está à acção de eventos maiores? É evidente que só se pode direccionar aspectos imediatos da vida e não o funcionamento das instituições nem da sociedade. Por outro lado, pretender dar direcção à própria vida não é coisa fácil, já que cada um vive em situação, não vive isolado, vive num meio. Este meio, podemos vê-lo tão amplo como o Universo, a Terra, o país, o Estado, a província, etc. Contudo, há um meio imediato que é onde desenvolvemos as nossas actividades. Esse meio é familiar, laboral, de amizades, etc. Vivemos em situação com referência a outras pessoas e esse é o nosso mundo particular do qual não podemos prescindir. Ele actua sobre nós e nós sobre ele de um modo directo. Se temos alguma influência, é sobre esse meio imediato. Mas acontece que tanto a influência que exercemos como a que recebemos estão afectadas, por sua vez, por situações mais gerais, pela crise e a desorientação. 10. A coerência como direcção de vida Se se quisesse dar alguma direcção aos acontecimentos, haveria que começar pela própria vida e, para fazê-lo, teríamos de ter em conta o meio em que actuamos. Ora bem, a que direcção podemos aspirar? Sem dúvida, àquela que nos proporcione coerência e apoio num meio tão variável e imprevisível. Pensar, sentir e actuar na mesma direcção é uma proposta de coerência na vida. No entanto, isto não é fácil porque nos encontramos numa situação que não escolhemos completamente. Estamos a fazer coisas que necessitamos, mesmo que em grande desacordo com o que pensamos e sentimos. Estamos metidos em situações que não governamos. Actuar com coerência, mais que um facto, é uma intenção, uma tendência que podemos ter presente, de maneira que a nossa vida se vá direccionando para esse tipo de comportamento. É claro que unicamente influindo nesse meio, poderemos mudar parte da nossa situação. Ao fazê-lo, estaremos direccionando a relação com outros e outros partilharão essa conduta. Se a isso se objecta que algumas pessoas mudam de meio com certa frequência, por causa do seu trabalho ou por outros motivos, responderemos que isso não modifica nada o exposto, já que sempre se estará em situação, sempre se estará num dado meio. Se pretendemos coerência, o trato que 19
  • 20. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual dermos aos outros terá de ser do mesmo género que o trato que exigimos para nós. Assim, nestas duas propostas encontramos os elementos básicos de direcção até onde chegam as nossas forças. A coerência avança contanto avance o pensar, o sentir e o actuar na mesma direcção. Esta coerência estende-se a outros, porque não há outra maneira de fazê-lo, e, ao estender-se a outros, começamos a tratá-los do modo que gostaríamos de ser tratados. Coerência e solidariedade são direcções, aspirações de condutas a conseguir. 11. A proporção nas acções como avanço em direcção à coerência. Como avançar em direcção coerente? Em primeiro lugar, necessitaremos de uma certa proporção no que fazemos quotidianamente. É necessário estabelecer quais são as questões mais importantes na nossa actividade. Devemos priorizar o fundamental para que as coisas funcionem, depois o secundário e assim seguindo. Possivelmente atendendo a duas ou três prioridades, teremos um bom quadro de situação. As prioridades não podem inverter-se, também não podem separar-se tanto que se desequilibre a nossa situação. As coisas devem ir em conjunto, não isoladamente, evitando que umas se adiantem e outras se atrasem. Frequentemente, cegamo-nos pela importância de uma actividade e, desta maneira, desequilibra- se-nos o conjunto... no final, o que considerávamos tão importante também não se pode realizar, porque a nossa situação geral ficou afectada. Também é certo que às vezes se apresentam assuntos de urgência a que devemos dedicar-nos, mas é claro que não se pode viver postergando outros que são importantes para a situação geral em que vivemos. Estabelecer prioridades e levar a actividade em proporção adequada, é um avanço evidente em direcção à coerência. 12. A oportunidade das acções como avanço em direcção à coerência. Existe uma rotina quotidiana dada pelos horários, os cuidados pessoais e o funcionamento do nosso meio. No entanto, dentro dessas pautas há uma dinâmica e riqueza de acontecimentos que as pessoas superficiais não sabem apreciar. Há aqueles que confundem a sua vida com as suas rotinas, mas isto não é assim de todo, já que muito frequentemente têm que escolher dentro das condições que lhes impõe o meio. Na verdade, vivemos entre inconvenientes e contradições, mas convirá não confundir ambos os termos. Entendemos por "inconvenientes" as moléstias e impedimentos que enfrentamos. Não são enormemente graves, mas claro que se são numerosos e repetidos aumentam a nossa irritação e fadiga. Certamente, estamos em condições de superá- los: não determinam a direcção da nossa vida, não impedem que levemos adiante um projecto. São obstáculos no caminho, que vão desde a menor dificuldade física a problemas em que estamos a ponto de perder o rumo. Os inconvenientes admitem uma gradação importante, mas mantêm-se num limite que não impede de avançar. Coisa diferente acontece com o que chamamos "contradições". Quando o nosso projecto não pode ser realizado, quando os acontecimentos nos lançam numa direcção oposta à desejada, quando nos encontramos num círculo vicioso que não podemos romper, quando não podemos direccionar minimamente a nossa vida, estamos tomados pela contradição. A contradição é uma espécie de inversão na corrente da vida que nos leva a retroceder sem esperança. Estamos a descrever o caso em que a incoerência se apresenta com maior crueza. Na contradição, opõe-se o que pensamos, o que sentimos e fazemos. Apesar de tudo, sempre há possibilidade de direccionar a vida, mas é necessário saber quando fazê-lo. A oportunidade das acções é algo que não temos em conta na rotina quotidiana e isto é assim porque muitas coisas estão codificadas. Mas, no que se refere aos inconvenientes importantes e às contradições, as decisões que tomamos não podem estar expostas à catástrofe. Em termos gerais, devemos retroceder diante de uma grande força e avançar com resolução quando essa força se debilite. Há uma grande diferença entre o temeroso que retrocede ou se imobiliza ante qualquer inconveniente e aquele que actua sobrepondo-se às dificuldades, sabendo que, precisamente, avançando pode torneá-las. Acontece que, às vezes, não é possível avançar, porque se levanta um problema superior às nossas forças e arremeter sem cálculo leva-nos ao 20
  • 21. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual desastre. O grande problema que enfrentemos será também dinâmico e a relação de forças mudará, ou porque vamos crescendo em influência ou porque a sua influência diminui. Quebrada a relação anterior, é o momento de proceder com resolução, já que uma indecisão ou uma postergação fará com que novamente se modifiquem os factores. A execução da acção oportuna é a melhor ferramenta para produzir mudanças de direcção. 13. A adaptação crescente como avanço em direcção à coerência. Consideremos o tema da direcção, da coerência que queremos conseguir. Adaptar-nos a certas situações terá a ver com essa proposta, porque adaptar-nos ao que nos leva em direcção oposta à coerência é uma grande incoerência. Os oportunistas padecem de uma grande miopia com respeito a este tema. Eles consideram que a melhor forma de viver é a aceitação de tudo, é a adaptação a tudo; pensam que aceitar tudo, sempre que provenha de quem tem poder, é uma grande adaptação, mas é claro que a sua vida dependente está muito longe do que entendemos por coerência. Distinguimos entre a desadaptação, que nos impede de ampliar a nossa influência; a adaptação decrescente, que nos deixa na aceitação das condições estabelecidas; e a adaptação crescente, que faz crescer a nossa influência em direcção às propostas que temos vindo a comentar. Sintetizando: 1. - Há uma mudança veloz no mundo, motorizada pela revolução tecnológica, que está a chocar com as estruturas estabelecidas e com a formação e os hábitos de vida das sociedades e dos indivíduos. 2. - Este desfasamento gera crises progressivas em todos os campos e não há razão para supôr que se vai deter, antes pelo contrário, tenderá a incrementar-se. 3. - O inesperado dos acontecimentos impede prever que direcção tomarão os factos, as pessoas que nos rodeiam e, em suma, a nossa própria vida. 4. - Muitas das coisas que pensávamos e acreditávamos já não nos servem. Também não estão à vista soluções que provenham de uma sociedade, instituições e indivíduos que padecem do mesmo mal. 5. - Se decidirmos trabalhar para fazer face a estes problemas, teremos que dar direcção à nossa vida, buscando coerência entre o que pensamos, sentimos e fazemos. Como não estamos isolados, essa coerência terá que chegar à relação com os outros, tratando-os do mesmo modo que queremos para nós mesmos. Estas duas propostas não podem ser cumpridas rigorosamente, mas constituem a direcção de que necessitamos, sobretudo se as tomarmos como referências permamentes e as aprofundarmos. 6. - Vivemos em relação imediata com outros e é nesse meio onde temos que actuar para dar direcção favorável à nossa situação. Esta não é uma questão psicológica, uma questão que se possa resolver na cabeça isolada dos indivíduos: é um tema relacionado com a situação que se vive. 7. - Sendo consequentes com as propostas que tratamos de levar adiante, chegamos à conclusão que o que é positivo para nós e para o nosso meio imediato, deve ser alargado a toda a sociedade. Junto a outros que coincidem na mesma direcção, implementaremos os meios mais adequados para que uma nova solidariedade encontre o seu rumo. Por isso, apesar de actuar tão especificamente no nosso meio imediato não perderemos de vista uma situação global que afecta todos os seres humanos e que requer a nossa ajuda, assim como nós necessitamos da ajuda dos outros. 8. - As mudanças inesperadas levam-nos a pensar seriamente na necessidade de direccionar a nossa vida. 9. - A coerência não começa e termina em cada um, está antes relacionada com um meio, com outras pessoas. A solidariedade é um aspecto da coerência pessoal. 21
  • 22. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual 10. - A proporção nas acções consiste em estabelecer prioridades de vida e operar com base nelas, evitando que se desequilibrem. 11. - A oportunidade do actuar tem em conta retroceder perante uma grande força e avançar com resolução quando esta se debilita. Esta ideia é importante para efeitos de produzir mudanças na direcção da vida, se estamos submetidos à contradição. 12. - É tão inconveniente a desadaptação num meio em que não podemos mudar nada, como a adaptação decrescente, na qual nos limitamos a aceitar as condições estabelecidas. A adaptação crescente consiste num aumento da nossa influência no meio e em direcção coerente. Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos. Silo. 17/12/91. 22
  • 23. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual QUARTA CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Em cartas anteriores dei a minha opinião sobre a sociedade, os grupos humanos e os indivíduos em relação a este momento de mudança e perda de referências que nos cabe viver; critiquei certas tendências negativas no desenvolvimento dos acontecimentos e destaquei as posturas mais conhecidas de quem pretende dar resposta às urgências do momento. É claro que todas as apreciações, bem ou mal formuladas, correspondem ao meu particular ponto de vista e este, por sua vez, situa-se num conjunto de ideias que lhe servem de base. Certamente por isto, recebi sugestões a animar-me a explicitar a partir de "onde" faço as minhas críticas ou desenvolvo as minhas propostas. Ao fim e ao cabo, pode-se dizer qualquer coisa com muita ou pouca originalidade, como sucede com as ideias que diariamente nos passam pela cabeça e que não pretendemos justificar. Essas ideias hoje podem ser de um tipo e amanhã do tipo oposto, não passando da frivolidade da apreciação quotidiana. Por isso, em geral, cada dia acreditamos menos nas opiniões dos outros e de nós próprios, dando por assente que se tratam de apreciações de conjuntura que podem mudar em poucas horas, como acontece com as oportunidades da Bolsa. E se nas opiniões há algo com maior permanência é, na melhor das hipóteses, o consagrado pela moda, que depois é substituído pela moda seguinte. Não estou a fazer uma defesa do imobilismo no campo das opiniões, mas sim a destacar a falta de consistência nas mesmas, porque, na verdade, seria muito interessante que a mudança se desse com base numa lógica interna e não de acordo com o sopro de ventos erráticos. Mas quem é que está disposto a aguentar lógicas internas numa época de palmadas de afogado! Agora mesmo, enquanto escrevo, noto que o que se disse não pode entrar na cabeça de certos leitores porque, nesta altura, não terão encontrado três possíveis códigos exigidos por eles: 1.- que o que se está a explicar lhes sirva de passatempo, ou 2.- que lhes mostre de seguida como podem utilizá-lo no seu negócio, ou 3.- que coincida com o consagrado pela moda. Tenho a certeza de que esta conversa que começa com "Estimados amigos:" e que chega até aqui, deixa-os totalmente desorientados como se estivéssemos a escrever em sânscrito. No entanto, é de registar como essas mesmas pessoas compreendem coisas difíceis que vão desde as operações bancárias mais sofisticadas até às delícias da técnica administrativa computada. A esses, torna-se-lhes impossível compreender que estamos a falar das opiniões, dos pontos de vista e das ideias que lhes servem de base; que estamos a falar da impossibilidade de sermos entendidos nas coisas mais simples se não têm correspondência com a paisagem que têm armada pela sua educação e pelas suas compulsões. Assim estão as coisas! Esclarecido o anterior, tratarei de resumir nesta carta as ideias que fundamentam as minhas opiniões, críticas e propostas, tendo especial cuidado de não ir muito além do slogan publicitário, porque, como explica o sábio jornalismo especializado, as ideias organizadas são "ideologias" e estas, como as doutrinas, são ferramentas de lavagem ao cérebro daqueles que se opõem à liberdade de comércio e economia social de mercado das opiniões. Hoje, respondendo às exigências do Pós-modernismo, quer dizer, às exigências da haute-couture (roupa de noite, gravata tipo laço, ombreiras, sapatilhas e casaco arregaçado); da arquitectura desconstrutivista e da decoração desestruturada, estamos compelidos a que não encaixem as peças do discurso. E a não esquecer que a crítica da linguagem também repudia o sistemático, estrutural e processual!... É claro que tudo isto tem correspondência com a ideologia dominante da Empresa que sente horror pela História e pelas ideias em cuja formação não participou e entre as quais não pôde colocar uma substancial percentagem de acções. 23
  • 24. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Brincadeiras à parte, comecemos já o inventário das nossas ideias, pelo menos das que consideramos mais importantes. Devo realçar que boa parte delas foram apresentadas na conferência que dei em Santiago de Chile em 23/05/91. 1. Arranque das nossas ideias. A nossa concepção não se inicia admitindo generalidades, mas sim estudando o particular da vida humana; o particular da existência; o particular do registo pessoal do pensar, do sentir e do actuar. Esta postura inicial torna-a incompatível com todo o sistema que arranque da "ideia", da "matéria", do "inconsciente", da "vontade", da "sociedade", etc. Se alguém admite ou rejeita qualquer concepção, por lógica ou extravagante que esta seja, sempre será ele próprio que está em jogo, admitindo ou rejeitando: ele estará em jogo, não a sociedade, ou o inconsciente ou a matéria. Falemos, pois, da vida humana. Quando me observo, não do ponto de vista fisiológico, mas sim existencial, encontro-me posto num mundo dado, não construído nem escolhido por mim. Encontro-me em situação relativamente a fenómenos que, começando pelo meu próprio corpo, são ineludíveis. O corpo, como constituinte fundamental da minha existência, é, além do mais, um fenómeno homogéneo com o mundo natural em que actua e sobre o qual actua o mundo. Mas a naturalidade do corpo tem para mim diferenças importantes relativamente ao resto dos fenómenos, a saber: 1.- o registo imediato que dele possuo; 2.- o registo que através dele tenho dos fenómenos externos; e 3.- a disponibilidade de alguma das suas operações mercê da minha intenção imediata. 2. Natureza, intenção e abertura do ser humano. Porém, acontece que o mundo me aparece não só como um aglomerado de objectos naturais, mas sobretudo como uma articulação de outros seres humanos e de objectos e signos produzidos ou modificados por eles. A intenção que noto em mim, aparece como um elemento interpretativo fundamental do comportamento dos outros e assim como constituo o mundo social por compreensão de intenções, sou constituído por ele. Desde logo, estamos a falar de intenções que se manifestam na acção corporal. É graças às expressões corporais ou à percepção da situação em que se encontra o outro, que posso compreender os seus significados, a sua intenção. Por outro lado, os objectos naturais e humanos aparecem-me como sendo prazenteiros ou dolorosos e trato de colocar-me face a eles modificando a minha situação. Deste modo, não estou fechado ao mundo do natural e dos outros seres humanos, antes pelo contrário, a minha característica é precisamente a "abertura". A minha consciência configurou-se intersubjectivamente já que usa códigos de raciocínio, modelos emotivos, esquemas de acção que registo como sendo "meus", mas que também reconheço noutros. E, desde logo, está o meu corpo aberto ao mundo enquanto o percepciono e sobre ele actuo. O mundo natural, à diferença do humano, aparece-me sem intenção. Claro que posso imaginar que as pedras, as plantas e as estrelas possuem intenção, mas não vejo como chegar a um efectivo diálogo com elas. Mesmo os animais em que, às vezes, capto a chispa da inteligência, aparecem-me impenetráveis e em lenta modificação de dentro da sua natureza. Vejo sociedades de insectos totalmente estruturadas, mamíferos superiores a usar rudimentos técnicos, mas repetindo os seus códigos em lenta modificação genética, como se fossem sempre os primeiros representantes das suas respectivas espécies. E quando comprovo as virtudes dos vegetais e dos animais modificados e domesticados pelo Homem, observo a intenção deste a abrir-se caminho e a humanizar o mundo. 24
  • 25. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual 3. A abertura social e histórica do ser humano. É-me insuficiente a definição do Homem pela sua sociabilidade, já que isto não contribui para a distinção em relação a numerosas espécies; a sua força de trabalho também não é o característico, comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a linguagem o define na sua essência, porque sabemos de códigos e formas de comunicação entre diversos animais. Ao invés, ao encontrar-se cada novo ser humano com um mundo modificado por outros e ao ser constituído por esse mundo intencionado, descubro a sua capacidade de acumulação e incorporação no temporal; descubro a sua dimensão histórico-social, não simplesmente social. Vistas assim as coisas, posso tentar uma definição, dizendo: o Homem é o ser histórico cujo modo de acção social transforma a sua própria natureza. Se admito isto, terei de aceitar que esse ser pode transformar intencionalmente a sua constituição física. E assim está a acontecer. Começou com a utilização de instrumentos que, postos adiante do seu corpo como "próteses" externas, lhe permitiram alongar a sua mão, aperfeiçoar os seus sentidos e aumentar a sua força e qualidade de trabalho. Naturalmente não estava dotado para os meios líquido e aéreo e, no entanto, criou condições para se deslocar neles, até começar a emigrar do seu meio natural, o planeta Terra. Hoje, além disso, está a internar-se no seu próprio corpo mudando os seus órgãos; intervindo na sua química cerebral; fecundando in vitro e manipulando os seus genes. Se, com a ideia de "natureza", se quis assinalar o permanente, tal ideia é hoje inadequada, ainda que se queira aplicá-la ao mais objectal do ser humano, isto é, ao seu corpo. E no que se refere a uma "moral natural", a um "direito natural" ou a "instituições naturais", encontramos, opostamente, que nesse campo tudo é histórico- social e nada aí existe por natureza. 4. A acção transformadora do ser humano. Contígua à concepção da natureza humana tem estado a operar outra que nos falou da passividade da consciência. Esta ideologia considerou o Homem como uma entidade que operava em resposta aos estímulos do mundo natural. O que começou em tosco sensualismo, pouco a pouco foi afastado por correntes historicistas que conservaram no seu seio a mesma ideia em torno da passividade. E ainda quando privilegiaram a actividade e a transformação do mundo em relação à interpretação dos seus factos, conceberam a referida actividade como resultante de condições externas à consciência. Porém, aqueles antigos preconceitos em torno da natureza humana e da passividade da consciência hoje impõem-se, transformados em neo- evolucionismo, com critérios tais como a selecção natural que se estabelece na luta pela sobrevivência do mais apto. Tal concepção zoológica, na sua versão mais recente, ao ser transplantada para o mundo humano, tratará de superar as anteriores dialécticas de raças ou de classes com uma dialéctica estabelecida segundo leis económicas "naturais" que auto- regulam toda a actividade social. Assim, uma vez mais, o ser humano concreto fica submergido e objectivizado. Mencionámos as concepções que para explicar o Homem começam de generalidades teóricas e sustentam a existência de uma natureza humana e de uma consciência passiva. Em sentido oposto, nós sustentamos a necessidade de arranque a partir da particularidade humana; sustentamos o fenómeno histórico-social e não natural do ser humano e também afirmamos a actividade da sua consciência transformadora do mundo de acordo com a sua intenção. Vimos a sua vida em situação e o seu corpo como objecto natural percebido imediatamente e submetido, também imediatamente, a numerosos ditames da sua intenção. Por conseguinte, impõem-se as seguintes perguntas: como é que a consciência é activa, quer dizer, como é que pode intencionar sobre o corpo e através dele transformar o mundo? Em segundo lugar, como é que a constituição humana é histórico-social? Estas perguntas devem ser respondidas a partir da existência particular, para não recair em generalidades teóricas a 25
  • 26. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual partir das quais se desprende depois um sistema de interpretação. Desta maneira, para responder à primeira pergunta, ter-se-á que apreender com evidência imediata como é que a intenção actua sobre o corpo e, para responder à segunda, haverá que partir da evidência da temporalidade e da intersubjectividade no ser humano e não de leis gerais da História e da sociedade. No nosso trabalho, Contribuições ao Pensamento, trata-se de dar resposta precisamente a essas duas perguntas. No primeiro ensaio de Contribuições, estuda-se a função que cumpre a imagem na consciência, destacando a sua aptidão para mover o corpo no espaço. No segundo ensaio do mesmo livro, estuda-se o tema da historicidade e sociabilidade. A especificidade destes temas afasta-nos em demasia da presente carta, por isso remetemos para o material citado. 5. A superação da dor e do sofrimento como projectos vitais básicos. Dissemos em Contribuições que o destino natural do corpo humano é o mundo e basta ver a sua conformação para verificar esta asserção. Os seus sentidos e os seus aparelhos de nutrição, locomoção, reprodução, etc., estão naturalmente conformados para estar no mundo, mas, além disso, a imagem lança através do corpo a sua carga transformadora; não o faz para copiar o mundo, para ser reflexo da situação dada, mas sim, pelo contrário, para modificar a situação previamente dada. Neste acontecer, os objectos são limitações ou ampliações das possibilidades corporais e os corpos alheios aparecem como multiplicações dessas possibilidades, já que são governados por intenções que se reconhecem similares às que manejam o próprio corpo. Por que razão necessitaria o ser humano de transformar o mundo e transformar-se a si mesmo? Pela situação de finitude e carência espacio-temporal em que se encontra e que regista como dor física e sofrimento mental. Assim, a superação da dor não é simplesmente uma resposta animal, mas sim uma configuração temporal em que prima o futuro e que se converte em impulso fundamental da vida, ainda que esta não se encontre urgida num momento dado. Por isso, à parte a resposta imediata, reflexa e natural, a resposta diferida para evitar a dor está impulsionada pelo sofrimento psicológico ante o perigo e está re- presentada como possibilidade futura ou facto actual, em que a dor está presente noutros seres humanos. A superação da dor aparece, pois, como um projecto básico que guia a acção. Isso é o que possibilitou a comunicação entre corpos e intenções diversas, no que chamamos a "constituição social". A constituição social é tão histórica como a vida humana, é configurante da vida humana. A sua transformação é contínua, mas de um modo diferente à da natureza, porque nesta as mudanças não se dão mercê de intenções. 6. Imagem, crença, olhar e paisagem. Um dia qualquer, entro no meu quarto e percepciono a janela, reconheço-a, é-me conhecida. Tenho uma nova percepção dela, mas, além disso, actuam antigas percepções que convertidas em imagens estão retidas em mim. No entanto, observo que num ângulo do vidro há uma rachadela... "isso não estava aí", digo-me, ao comparar a nova percepção com o que retenho de percepções anteriores; além disso, experimento uma espécie de surpresa. A janela de actos anteriores ficou retida em mim, não passivamente como uma fotografia, mas sim actuante como são actuantes as imagens. O retido actua face ao que percepciono, ainda que a sua formação pertença ao passado. Trata-se de um passado sempre actualizado, sempre presente. Antes de entrar no meu quarto, dava por assente, dava como suposto, que a janela devia estar ali em perfeitas condições; não é que o estivesse a pensar, simplesmente que contava com isso. A janela em particular não estava presente nos meus pensamentos desse momento, mas estava co-presente, estava dentro do horizonte de objectos contidos no meu quarto. É graças à co-presença, à retenção actualizada e sobreposta à percepção, que a consciência infere mais do que percepciona. Nesse fenómeno, encontramos o funcionamento mais elementar da crença. No exemplo, é como se me dissesse: "eu cria que a janela estava 26