Escavações arqueológicas na jazida de Vale Boi, no Algarve, estão perto do fim após duas décadas, tendo encontrado artefatos que datam de há mais de 30 mil anos. Os arqueólogos encontraram milhares de ossos e ferramentas de pedra que fornecem informações sobre as primeiras comunidades humanas na região. Embora as escavações devem terminar em breve, os pesquisadores ainda têm material suficiente para estudar por mais 20 anos.
Colmeias e outras produções de cerâmica comum do martinhal (bernardes, mor...
Algarve informativo #211
1. ALGARVE INFORMATIVO #211 40
AO FIM DE DUAS DÉCADAS, ESCAVAÇÕES
ARQUEOLÓGICAS NO «TERRAÇO»
DE VALE BOI APROXIMAM-SE DO FIM,
MAS HÁ MATERIAL PARA ESTUDAR
DURANTE MAIS 20 ANOS
Texto: Daniel Pina | Fotografia: Daniel Pina
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o dia 20 de julho, o
Centro
Interdisciplinar de
Arqueologia e
Evolução do
Comportamento
Humano (ICArEHB)
da Universidade do Algarve dinamizou, em
colaboração com a Câmara Municipal de
Vila do Bispo, mais um Dia Aberto na
Jazida Arqueológica Paleolítica de Vale
Boi. O sítio arqueológico foi descoberto,
em 1998, como resultado dos trabalhos de
prospeção nos vales fluviais da Costa
Vicentina.
Situada a leste da Ribeira de Vale Boi
(concelho de Vila do Bispo), em frente
da pequena localidade com o mesmo
nome, a jazida paleolítica localiza-se a
cerca de dois quilómetros da atual linha
de costa. Os vestígios arqueológicos
apresentam uma dispersão superior a 10
mil metros quadrados, ocupando toda a
vertente, que é limitada a Este por um
afloramento calcário com 10 metros de
altura e a Oeste pelo aluvião da Ribeira.
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Os trabalhos arqueológicos tiveram início
em 2000 e têm-se pautado pela
intervenção em três áreas distintas da
jazida, que revelaram uma longa sequência
cronológica, iniciada há mais de 30 mil
anos com os mais antigos elementos da
nossa espécie em Portugal.
Para além de inúmeros artefactos de
caça e de atividades diárias, foram
também exumados milhares de ossos de
animais caçados, incluindo veado,
auroque, cavalo, javali e coelho, que terão
servido para a alimentação desses
caçadores-recolectores, bem como leão,
lobo, raposa e lince, provavelmente
caçados devido às suas peles. O
marisqueiro fazia também parte da vida
diária dessas primeiras comunidades
humanas no Algarve. De realçar ainda, no
sítio arqueológico de Vale Boi, a presença
de elementos de arte móvel, característica
do período paleolítico na Península
Ibérica, conforme explicaram Nuno
Bicho e João Cascalheira, professores da
Universidade do Algarve e os
responsáveis científicos pela escavação,
durante a visita do Algarve Informativo.
“É um dos locais mais importantes de
Portugal em termos do Paleolítico, e
talvez de todo o sul da Península
Ibérica, devido à grande duração de
ocupações e sua extensão. Começam
há 33 ou 34 mil anos e vêm até perto
dos sete mil anos, com as últimas
ocupações a serem do Neolítico”,
referiu Nuno Bicho.
A aventura com mais de duas décadas
começou, de facto, com um projeto de
prospeção para sítios arqueológicos da
pré-história desenvolvido em toda a
região, mas que incidiu particularmente
nesta parte do barlavento, e que
Os arqueólogos Nuno Bicho e João Cascalheira, da Universidade do Algarve
5. ALGARVE INFORMATIVO #211 44
consiste, segundo João Cascalheira, “em
percorrer a paisagem à procura de
indícios na superfície”. “Em Vale Boi
depressa se encontraram vários
materiais à superfície que indicavam uma
cronologia do Paleolítico, de uma pré-
história antiga. Naturalmente que este
local foi escolhido, no passado, por essas
comunidades porque existia uma linha
de água doce e porque a escarpa de
calcário servia como forma de proteção.
Estamos relativamente perto da costa,
portanto, os recursos aquáticos foram
sendo utilizados ao longo do tempo, e
esta região é bastante rica em recursos
minerais, nas rochas que eram usadas
para se fazerem os utensílios da época”,
esclarece o arqueólogo.
E as descobertas foram imediatas, logo
no primeiro ano de sondagens e
escavações, o que originou vários
financiamentos da FCT – Fundação para
a Ciência e para a Tecnologia, da
Wenner-Gren Foundation e da National
Geographic Society, entre outras
entidades. As primeiras sondagens
foram realizadas a meio da vertente,
seguindo-se outras na base e no topo,
algumas delas depois ampliadas para
áreas de escavação, como aquela em
que nos encontrávamos, comummente
designado por «Terraço», ou o
«Abrigo», situado no topo da vertente.
“Era efetivamente um abrigo sobre
rocha que colapsou há cerca de 20 mil
anos, pelo que as ocupações que
estavam por baixo se encontravam
completamente seladas e
conseguimos obter toda a informação
que precisávamos. O «Terraço» é a que
tem a sequência cronológica mais
longa de todo o sítio arqueológico,
com uma grande diversidade de
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materiais e de ocupações”, refere João
Cascalheira.
«Terraço» que começou a ser escavado
em 2004 e que, 15 anos depois, para o
cidadão comum, se assemelha a um
simples buraco no chão, descrição que
gera um sorriso em Nuno Bicho. “Há
sempre uma equipa de campo que ronda
as 10 pessoas, mas a quantidade e
fragilidade dos materiais implica que o
trabalho seja muito lento, preciso e
minucioso”, justifica, com João
Cascalheira a confirmar tratar-se de um
trabalho de imensa paciência, “por causa
dos métodos que aplicamos e porque o
contexto arqueológico pode ser muito
rico ou bastante pobre”. “Neste
momento, como estamos já muito
próximos da base do «Terraço», não há
uma grande riqueza de materiais
arqueológicos, mas há sempre
esperança que apareça alguma coisa”.
A maioria dos artefactos encontrados
ao longo destes 20 anos são, segundo
Nuno Bicho, utensílios em pedra lascada
e osso, muitos restos de fauna e
conchas, conchas perfuradas que
poderão ter sido usadas como adornos
corporais e pessoais, materiais de arte,
pequenas pedras gravadas com
simbologia abstrata ou figuras de
animais. “Na fauna, encontramos
animais que conhecemos bem como o
veado, o javali, o cavalo ou o coelho,
mas outros que já estão extintos na
Península Ibérica, como o rinoceronte
ou o leão. Foram encontrados
elementos que indicavam que, há 20
ou 25 mil anos, a paisagem seria
ligeiramente diferente”, assume o
entrevistado.
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PACIÊNCIA, MINÚCIA
E MUITO ESTUDO
Encontrados os vestígios, a primeira
preocupação é, claro, não danificar os
materiais ao retirá-los da terra. Depois, há
que obter o máximo de informação
possível do contexto onde o material está,
daí utilizar-se uma estação total para
gravar coordenadas tridimensionais de
tudo o que é descoberto. Após isso, os
materiais são etiquetados, seguem para o
laboratório, onde são lavados e estudados.
“Com o apoio da Câmara Municipal de
Vila do Bispo temos um espaço em
Budens que utilizamos como laboratório
de campo, onde é realizado o
processamento dos materiais. Só depois
é que vão para a Universidade do Algarve
para mais análises. Algumas amostras de
carvões ou de faunas são enviadas
para datação por radiocarbono, que
nos dá informação cronológica precisa
de cada uma das ocupações que aqui
ocorreram”, conta João Cascalheira.
A arqueologia não se compadece com
ritmos acelerados nem pressas, e exige,
acima de tudo, um conhecimento amplo
e especializado, numa atividade que
raramente está sob a luz dos holofotes.
Isso não significa, felizmente, que não
existam profissionais bastante
competentes, garante Nuno Bicho. “A
Universidade do Algarve tem uma
licenciatura, um mestrado e um
doutoramento nesta área, pelo que há
recursos humanos em permanente
formação, o que permite avançar-se
para as análises dos materiais
provenientes dos sítios arqueológicos
que temos escavado. É um processo
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que nunca termina, porque a quantidade
de artefactos é imensa e muito variada, e
há várias teses de mestrado e
doutoramento que incidem
precisamente sobre achados de Vale
Boi”, declara, adiantando que,
normalmente, as escavações acontecem
ao longo de quatro a oito semanas por
ano, durante o Verão e Páscoa, até com
estudantes que chegam de universidades
dos Estados Unidos, Brasil, Inglaterra e
Canadá. “Nos últimos dois anos
implementamos um projeto que traz
alunos estrangeiros, em parceria com o
Institute for Field Research, dos Estados
Unidos. Funciona como uma escola de
campo em que têm oportunidade de
aprender novas técnicas e métodos e,
para além disso, recebem créditos que
podem utilizar nas universidades norte-
americanas”, esclarece João Cascalheira.
Quanto ao Dia Aberto, confere à
comunidade local, e a todos os
interessados, a possibilidade de se
conhecer uma jazida arqueológica e
perceber o porquê de se conduzir este
género de investigação. “Temos
sempre, não só pessoas locais, mas
muitos estrangeiros que estão cá de
férias, dos 7 aos 77 anos, algumas até
vêm todos os anos para ficar a par das
novidades”, comenta Nuno Bicho. “Os
Dias Abertos não são muito comuns e
a verdade é que as pessoas depressa
ficam seduzidas por aquilo que
fazemos. Às vezes dão-nos ideias para
resolvermos problemas práticos que
encontramos no terreno e até nos
convidam para comer e ficar em casa
delas”, acrescenta.
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A finalizar a conversa, que decorreu num
dia de trabalho normal, questionamos qual
o destino das peças depois de terem sido
realizados todos os estudos e análises. “Há
um projeto museológico em
desenvolvimento no concelho de Vila do
Bispo e parte dos achados de Vale Boi
irão para lá. Os restantes materiais
ficarão em reserva, por enquanto, na
Universidade do Algarve, o que dará
oportunidade a outros investigadores
para os estudar. O ano passado veio uma
jovem do Canadá que estava a fazer o
seu mestrado para estudar os achados de
Vale Boi. Uma colega alemã também fez
parte do seu doutoramento com estes
materiais”, indica Nuno Bicho. Quanto a
Vale Boi, há muito ainda por fazer, mas o
ciclo de escavações desta dupla de
arqueólogos da Universidade do Algarve
deve conhecer este ano o seu término.
“Acho que já deixámos a nossa marca
e temos material suficiente para
estudar durante mais 20 anos. O nosso
objetivo para 2019 é concluir esta área
do «Terraço» e dedicarmo-nos
exclusivamente ao trabalho de
laboratório. Claro que outra zona de
escavação é possível, se os objetivos
científicos forem bons, porque a
vantagem da arqueologia é que, daqui
a 10 anos, podem haver métodos e
técnicas mais avançadas e que
permitam extrair mais informações
daquele que conseguimos obter neste
momento”, rematou João Cascalheira,
antes de regressarem ao «buraco» do
«Terraço» onde se encontravam vários
estudantes norte-americanos .