Este documento descreve a riqueza arqueológica do concelho de Vila do Bispo no Algarve, que possui mais de 200 novos sítios arqueológicos identificados. O arqueólogo municipal Ricardo Soares está desenvolvendo um mapeamento de todos os sítios para contar a história do território. Vila do Bispo tem a maior concentração de monumentos megalíticos da Península Ibérica e sítios importantes como Vale Boi e Boca do Rio, mas há muito mais para descobrir.
A olaria baixo imperial do martinhal, sagres (Bernardes, Morais, Pinto e Dias...
Algarve informativo #213
1. ALGARVE INFORMATIVO #213 48
CONCELHO DE VILA DO BISPO
TEM MAIS DE 200 NOVOS
SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS
PARA SE ESTUDAR
Texto: Daniel Pina | Fotografia: Ricardo Soares/Município de Vila do Bispo
hegou ao fim mais
uma campanha de
escavações na jazida
arqueológica de Vale
Boi, mas muito mais
há para descobrir e
estudar no concelho
de Vila do Bispo, conforme ficamos a saber
durante uma conversa com Ricardo
Soares, arqueólogo ao serviço da
autarquia vila-bispense desde 2014 e
que rumou a este concelho algarvio
precisamente devido ao seu potencial
de investigação. “A arqueologia é,
essencialmente, uma ciência que
estuda o passado humano, civilizações
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extintas, no fundo, uma narrativa que se
produziu ao longo do tempo pelo
homem num determinado território.
Depois, essa informação deve ser
traduzida para a comunidade local, que
são os verdadeiros herdeiros dessa
memória coletiva. Não basta aos
arqueólogos produzir informação
científica, há que passar adiante essa
história da sequência humana”, defende.
Outra tarefa fundamental é a valorização
dos sítios e dos objetos recuperados em
contexto arqueológico, umas vezes no
local, quando tal é possível, outras vezes
em termos museológicos ou, idealmente,
ambas as vertentes em simultâneo. E Vale
Boi é um sítio extremamente significativo
a nível de todo o sul da Península Ibérica,
garantiu o entrevistado. “É a mais extensa
jazida paleolítica do sul peninsular, com
datações de 34 mil anos, mas tem pouca
monumentalidade e visibilidade no
local, pelo que a melhor opção, neste
caso, é tratar-se essa informação num
museu. A maior parte das peças serão
alvo de estudos posteriores, mas
algumas já têm condições para serem
partilhadas com a comunidade”,
refere, recordando que, em 2014, foi
celebrado um protocolo de colaboração
entre o Município de Vila do Bispo e a
Universidade do Algarve e, em 2017, foi
criado um núcleo de investigação em
Budens, onde ficava o antigo jardim-de-
infância desta vila. “No fundo, esse
equipamento, com boas condições de
acolhimento e de laboratório durante
a fase de campanha arqueológica, tem
garantido a continuidade destes
projetos plurianuais que a autarquia
tem em curso. O estudo é sempre feito
pelos investigadores da universidade,
em estreita colaboração com a Câmara
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Municipal, e compete-nos a nós criar as
tais condições de partilha sociocultural
em museu”, acrescenta.
Entretanto, cabe ao arqueólogo
municipal juntar as peças deste «puzzle»,
das várias investigações que decorrem sob
contextos e momentos específicos da
história humana, pelo que Ricardo Soares
se encontra a desenvolver, desde 2014,
a Carta Arqueológica do Concelho de
Vila do Bispo, que congrega toda a
informação produzida, até à data, por
diversos arqueólogos. “As prospeções
feitas no campo têm, numa primeira
fase, a missão de localizar sítios
conhecidos desde o final do século
XIX, desde Estácio da Veiga, mas
Nuno Bicho, João Cascalheira e Ricardo Soares em Vale Boi
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também identificar novos sítios. Neste
momento, a Carta Arqueológica tem
averbados mais de 200 novos sítios
arqueológicos que nos permitirão contar
a história deste território desde o seu
princípio até à atualidade”, revela.
Vale Boi e Boca do Rio são, então, apenas
os dois locais mais mediáticos num
território com muito para dar à
arqueologia portuguesa, algo que não
surpreende Ricardo Soares. “Uma das
razões que me fez vir para Vila do
Bispo foi a monumentalidade dos
menires, já que este concelho reúne a
maior concentração, por metro
quadrado, de monumentos
megalíticos pré-históricos de toda a
Península Ibérica e provavelmente
serão também os mais antigos. Talvez
uma primeira pedra de um fenómeno
megalítico que se propagou de sul
para norte, até contextos mais
conhecidos no Alentejo Central, na
Bretanha Francesa ou em Stonehenge,
nas ilhas britânicas”, adianta, embora
admita ter ficado surpreendido com a
densidade de materiais encontrados à
superfície. “Tudo isto tem a ver com a
próprio geografia de Vila do Bispo.
Estamos a falar da Finisterra, o antigo
Promontorium Sacrum – daí a palavra
Sagres – que já vem do Século VI A.C.,
em que geógrafos e historiadores
gregos chegaram a esta finisterra com
a sensação de terem alcançado o fim
do mundo e assim o batizaram como
Hieron akroterion, o Cabo Sagrado.
Esse respeito por um local especial é
bastante antigo”, declara, quase como
se estivéssemos numa sala de aula de
história antiga.
EMPENHO TOTAL
EM CONHECER
A HISTÓRIA DO
TERRITÓRIO
Toda esta riqueza arqueológica foi
salvaguardada porque Vila do Bispo não
foi alvo do turismo de massa que tomou
conta do Algarve Central nas últimas
décadas do século passado, mas que
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benefícios concretos podem daí advir para
um território, questionamos. “Nós,
enquanto indivíduos, temos a missão de
preservar o nosso passado. Os
municípios, as entidades públicas, têm
essa obrigação formal. Felizmente
vivemos num território que está
abrangido, desde os anos 90, por um
Parque Natural, o que permitiu preservá-
lo, de certa forma, das grandes
massificações e empreendimentos
turísticos. Ora, este património, se for
bem gerido e de forma estratégica, tem
mais-valias evidentes”, responde Ricardo
Soares, lembrando ainda que Vila do Bispo
coabita com um turismo diferente de
outras zonas do Algarve. “Somos
procurados mais por viajantes do que por
turistas tradicionais, por pessoas
sensibilizadas e que procuram
experiências, cultura, saberes. Tudo
isso nós temos para oferecer de forma
mais pura, com paisagens preservadas
e com uma riqueza imensa de
património cultural”.
Em jeito de brincadeira, Ricardo
Soares reconhece que personagens
como Indiana Jones e Lara Croft
contribuíram para que houvesse um
maior interesse da parte do cidadão
comum pela arqueologia e isso mesmo
se constata nos Dias Abertos que por
vezes são dinamizadas nas jazidas. “A
arqueologia vende, a paleontologia e
os dinossauros vendem, basta saber
fazê-lo de forma sustentada, porque o
património cultural não é finito e
renovável e uma escavação é
irrepetível, embora depois produza
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materiais cuja investigação pode ser
inesgotável”, sublinha o técnico da
Câmara Municipal de Vila do Bispo,
esclarecendo ainda que grande parte das
peças descobertas no concelho irão fazer
parte do acervo do futuro «Celeiro da
História». “Este executivo camarário teve
a grande visão de recuperar um edifício
devoluto de muito significado para as
gentes locais – os antigos celeiros dos
produtores de trigo – e assim suprir a
lacuna de um espaço museológico à
altura do concelho. O Centro de
Interpretação de Vila do Bispo tem
cumprido essa missão, mas é
manifestamente insuficiente para a
escala dos materiais e das narrativas que
queremos partilhar com o público”.
Finalizadas as escavações no «Terraço»
de Vale Boi, outras campanhas deverão
arrancar no curto prazo porque, como já se
percebeu, matéria-prima não falta em
Vila do Bispo. “Os meios essenciais
estão reunidos, há protocolos que têm
vindo a ser estabelecidos com
universidades e centros de
investigação, o potencial arqueológico
é imenso e a criação do Centro de
Acolhimento em Budens permite que
investigadores venham para o nosso
concelho com melhores condições das
que teriam noutras realidades. Ainda
agora tivemos 10 investigadores de
universidades norte-americanas em
Vale Boi e, nas férias da Páscoa e em
setembro, temos outras equipas
estrangeiras a trabalhar na Boca do
Rio, naquilo que se pode quase chamar
de «turismo científico»”, sublinha
Ricardo Soares, enaltecendo o empenho
da Câmara Municipal de Vila do Bispo
em descobrir e dar a conhecer a história
deste território. “Claro que nada se
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Placa Solutrense com 24 mil anos descoberta em Vale Boi
pode fazer sem a devida autorização dos
proprietários dos terrenos e são essas
diligências que normalmente consomem
mais tempo”.
Investigações que, conta Ricardo Soares,
não se limitam a terra firme, pois há
projetos para se estudar os fundos dos
mares, com a Universidade Nova de Lisboa
e uma equipa liderada por José
Bettencourt, nomeadamente de contextos
subaquáticos de naufrágios. “A ideia é
dotar também os sítios de melhores
condições para mergulho, para
exploração subaquática, em articulação
com as empresas marítimo-turísticas
locais. Para além disso, queremos
preservar esses locais, porque o saque
subaquático é uma realidade que
preocupa muito esta autarquia”, refere o
arqueólogo da Câmara Municipal de Vila
do Bispo. “Há aqui várias frentes, umas
que encerraram o seu ciclo no terreno
e prosseguem nos laboratórios, outras
que vão começar no terreno, de tal
forma que a taxa de ocupação no
Centro de Acolhimento à Investigação
de Budens já é difícil de gerir. Grande
parte da arqueologia que se faz em
Portugal acontece em contexto de
obras, de caráter de emergência, em
que apenas se faz o registo do que se
encontrou. A investigação académica
em contextos controlados já permite,
para além da abordagem no terreno, o
estudo em laboratório. Neste caso, o
potencial é inesgotável, porque nas
escavações até se costumam deixar
reservas para o arqueólogo do futuro,
que vai ter meios técnicos totalmente
diferentes e que permitem obter
outros resultados” .