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Licença para entrar na sua mente
Raphael Vaz

Um programa de TV exibe um casal que atravessa um impasse. Há algum tempo a moça quer se casar, mas o
rapaz não toma a decisão. Depois de a apresentadora criar um suspense sobre o desenrolar da trama, entre
comerciais, inserções publicitárias e outros casos de relacionamentos humanos, o rapaz dá o veredicto final. Vai
se casar. Para que não existam mais prolongamentos ou chances de o rapaz novamente adiar o ato, a troca de
alianças é feita ali mesmo, ao vivo e no palco. A moça de véu e grinalda presencia com êxtase o que parece ser
o dia mais feliz da sua vida. O espectador se consterna e afinal consente consigo mesmo que ainda existem pes-
soas dispostas a interceder pelo bem-estar e felicidade alheias.

A apresentadora se despede dando “introdução” à próxima atração. De súbito, um senhor de olhos apertados
e fisionomia robusta invade a tela. De bom humor, agradece e pede a licença dos espectadores para “entrar na
sua tela”. A julgar pelo final feliz do último programa e a calorosa recepção do apresentador, pode se julgar que
teremos uma continuidade de casos aonde o velho bordão de “felizes para sempre” virá no fim. Mero engano.
Bastam alguns minutos e o desenrolar de um caso para que o mesmo senhor simpático transforme-se num algoz
enraivecido em busca de responsáveis pelos fatos do dia.

Bem-vindos ao Brasil Urgente .

Personagem Datena

José Luiz Datena quer ser o justiceiro do povo. Aquele que ameaça e os acusados ouvem, tremem e se esgueiram
por entre as vielas dos poderes ou das ruas. Segundo o próprio afirma, ele e seu programa darão “voz pra quem
não tem voz neste País”. Para se identificar ainda mais com o “povo”, Datena mudou seus trajes. Nos últimos
dias, a camisa e gravata foram substituídas por camisetas brancas e lisas com estampas de frases que denotam
insatisfação. Ele carrega no peito exclamações como “Cadê meu emprego?”, “Corrupção mata” ou “Sou vítima!”.
Além disso, abusa de gírias e bordões populares. Declarações como “Nosso trânsito é um açougue a céu aberto”
ou “Pau que dá em Chico também dá em Francisco” fazem parte do dicionário do apresentador, além do adjetivo
“vagabundo”, usado com mais freqüência.

Datena é extremamente competente em ser um justiceiro do povo. De uma parcela de povo. Uma parcela de
sociedade que se identifica com seu linguajar, sua forma de expressar os pensamentos. São pessoas que gostam
dele e que talvez agissem da mesma forma que ele, ou por natureza ou por tê-lo como modelo. Datena sabe
exatamente como atrair essas pessoas. Elas se sentem abrigadas por alguém que no mundo da televisão, do
espetáculo, se voltou para seus problemas e dilemas e cobra tudo que elas gostariam de cobrar da forma como
elas gostariam de cobrar.

Notícia vs. Espetáculo

Além de se oferecer como um justiceiro do povo, Datena ainda permite ao seu público a interação com as ma-
térias que estão sendo abordadas no programa. Através de mensagens de celular, o espectador pode exprimir
opiniões sobre as reportagens que estão sendo exibidas. A maioria das mensagens são de apoio a Datena e de
pedidos para que ele continue “descendo o pau” em bandidos, políticos corruptos ou qualquer pessoa que tenha
ido contra os interesses do povo.

A escolha das matérias que pautam o programa não obedece a um critério rigoroso. Se uma equipe transita pela
rua e encontra um acidente, entra no programa. Se fatos sensacionalistas acontecem, e a equipe de alguma
forma descobre, viram pauta. Além é claro, dos temas em destaque na imprensa nacional como os indiciados
do mensalão, recentemente. De acidentes de trânsito à corrupção, qualquer fato vira espetáculo. Espetáculo
sim, pois Datena busca o empirismo de cada notícia. Aos berros, como um adolescente revoltado, tenta criar um
desconforto, um sentimento de injúria frente às injustiças do cotidiano.

Cenas/Imagens

A televisão é um meio apoiado primordialmente na imagem. Só falar e falar não traz ibope. No Brasil Urgente,
em meio às palavras que cobram ação de policiais e governantes, são inseridas imagens sobre a matéria em dis-
cussão. Porém, sempre que pode, o programa abusa das imagens selecionadas para retratar os fatos.
Uma forma de dramatização que busca atingir uma comoção maior, sempre jorrando os sentimentos
na revolta e indignação. Dizer que uma criança de dois anos foi atropelada e se encontra no hospital
é comovente. Exibir um berço retorcido pelo choque de um veículo já se torna questionável devido à
inclinação que o ser humano tem de proteger o mais novo, o menor, o mais fraco.

Nesta via de imagens sensacionalistas, o único risco que se corre é de tornar o fato trivial. Informar
que um motoqueiro se acidentou no trânsito paulistano é comum. As pessoas não esboçam mais rea-
ção de desconforto ou pesar com essa notícia. E estas reações à imagem de acidentes dessa natureza
aos poucos também perdem força. Tanto que já se admite a imagem de um motoqueiro estendido no
chão enquanto fios de sangue escorrem de seu corpo pelo asfalto.

Água mole em pedra dura...

Se o Brasil Urgente é de um excesso popular, exploratório de cenas fortes e diálogos de tendências
rudes, pode-se salientar que o programa exerce lampejos de conscientização de massa. Em meio às
costumeiras tentativas de acobertamento nos casos de corrupção, Datena se comporta como um cão
raivoso, esmiuçando o caso para que ele nunca se torne retrógrado ou esquecido. Obviamente não
se pode atribuir única e exclusivamente ao apresentador e seu programa a responsabilidade por esta
conscientização da população. Este tem sido um fenômeno prolongado e de certa forma contínuo. Mas
tem que se creditar também a ele parte de responsabilidade.

Raio-X

Num País que carece de idoneidade nas mais diversas profissões, José Luiz Datena faz por onde se
creditar a ele papel de confiança por uma parcela social. É um profissional munido de boas intenções,
que busca auxiliar os mais humildes da população, com um meio num veículo de massa onde estas
pessoas possam de alguma forma, expressar seus problemas e dificuldades. No entanto, trata-se de
um programa desorganizado e maçante. Como a emissora trabalha um programa leve antes do Brasil
Urgente, que desabrocha emoções no espectador e o torne mais suscetível à influência, Datena com
suas repetições usa da estratégia do posicionamento para colocar os conceitos na mente dos seus
telespectadores. Pede licença para entrar na sua tela mas se esquece de pedir permissão de invadir
sua mente. Vomita um montante de informações em seqüência, fazendo com que o telespectador se
perca e muitas vezes, ele mesmo. Não são raros os momentos em que recorre à produção para pedir
informações sobre detalhes dos casos que estão sendo apresentados.

A ânsia de tornar o telespectador um cidadão ativo, batalhador dos seus direitos, afoba a iniciativa
de entregar ao povo os fatos, para que eles mesmos tomem por si as conclusões necessárias. Brasil
Urgente é um programa de cunho popular e que não faz questão de esconder esta vertente. Esforça-
se por fazer com que seus espectadores, em sua maioria pessoas carentes, moradores de periferias,
tomem atitudes que demonstrem cidadania e intolerância com a corrupção governamental. Mas es-
barra no fato de que continua manipulando uma massa. Continua a criar pessoas suscetíveis ao que
a mídia vai noticiar, incapazes de raciocinar e manifestar por elas mesmas os conceitos que seu apre-
sentador é capaz de fluir com tamanha veracidade e ferocidade frente às câmeras. Continua formando
cidadãos que mais tarde vão sentar para assistir ao Jornal Nacional e serem incapazes de reproduzir
os mesmo sentimentos que exprimiram algumas horas atrás.

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Datena e o justiceirismo popular

  • 1. Licença para entrar na sua mente Raphael Vaz Um programa de TV exibe um casal que atravessa um impasse. Há algum tempo a moça quer se casar, mas o rapaz não toma a decisão. Depois de a apresentadora criar um suspense sobre o desenrolar da trama, entre comerciais, inserções publicitárias e outros casos de relacionamentos humanos, o rapaz dá o veredicto final. Vai se casar. Para que não existam mais prolongamentos ou chances de o rapaz novamente adiar o ato, a troca de alianças é feita ali mesmo, ao vivo e no palco. A moça de véu e grinalda presencia com êxtase o que parece ser o dia mais feliz da sua vida. O espectador se consterna e afinal consente consigo mesmo que ainda existem pes- soas dispostas a interceder pelo bem-estar e felicidade alheias. A apresentadora se despede dando “introdução” à próxima atração. De súbito, um senhor de olhos apertados e fisionomia robusta invade a tela. De bom humor, agradece e pede a licença dos espectadores para “entrar na sua tela”. A julgar pelo final feliz do último programa e a calorosa recepção do apresentador, pode se julgar que teremos uma continuidade de casos aonde o velho bordão de “felizes para sempre” virá no fim. Mero engano. Bastam alguns minutos e o desenrolar de um caso para que o mesmo senhor simpático transforme-se num algoz enraivecido em busca de responsáveis pelos fatos do dia. Bem-vindos ao Brasil Urgente . Personagem Datena José Luiz Datena quer ser o justiceiro do povo. Aquele que ameaça e os acusados ouvem, tremem e se esgueiram por entre as vielas dos poderes ou das ruas. Segundo o próprio afirma, ele e seu programa darão “voz pra quem não tem voz neste País”. Para se identificar ainda mais com o “povo”, Datena mudou seus trajes. Nos últimos dias, a camisa e gravata foram substituídas por camisetas brancas e lisas com estampas de frases que denotam insatisfação. Ele carrega no peito exclamações como “Cadê meu emprego?”, “Corrupção mata” ou “Sou vítima!”. Além disso, abusa de gírias e bordões populares. Declarações como “Nosso trânsito é um açougue a céu aberto” ou “Pau que dá em Chico também dá em Francisco” fazem parte do dicionário do apresentador, além do adjetivo “vagabundo”, usado com mais freqüência. Datena é extremamente competente em ser um justiceiro do povo. De uma parcela de povo. Uma parcela de sociedade que se identifica com seu linguajar, sua forma de expressar os pensamentos. São pessoas que gostam dele e que talvez agissem da mesma forma que ele, ou por natureza ou por tê-lo como modelo. Datena sabe exatamente como atrair essas pessoas. Elas se sentem abrigadas por alguém que no mundo da televisão, do espetáculo, se voltou para seus problemas e dilemas e cobra tudo que elas gostariam de cobrar da forma como elas gostariam de cobrar. Notícia vs. Espetáculo Além de se oferecer como um justiceiro do povo, Datena ainda permite ao seu público a interação com as ma- térias que estão sendo abordadas no programa. Através de mensagens de celular, o espectador pode exprimir opiniões sobre as reportagens que estão sendo exibidas. A maioria das mensagens são de apoio a Datena e de pedidos para que ele continue “descendo o pau” em bandidos, políticos corruptos ou qualquer pessoa que tenha ido contra os interesses do povo. A escolha das matérias que pautam o programa não obedece a um critério rigoroso. Se uma equipe transita pela rua e encontra um acidente, entra no programa. Se fatos sensacionalistas acontecem, e a equipe de alguma forma descobre, viram pauta. Além é claro, dos temas em destaque na imprensa nacional como os indiciados do mensalão, recentemente. De acidentes de trânsito à corrupção, qualquer fato vira espetáculo. Espetáculo sim, pois Datena busca o empirismo de cada notícia. Aos berros, como um adolescente revoltado, tenta criar um desconforto, um sentimento de injúria frente às injustiças do cotidiano. Cenas/Imagens A televisão é um meio apoiado primordialmente na imagem. Só falar e falar não traz ibope. No Brasil Urgente, em meio às palavras que cobram ação de policiais e governantes, são inseridas imagens sobre a matéria em dis-
  • 2. cussão. Porém, sempre que pode, o programa abusa das imagens selecionadas para retratar os fatos. Uma forma de dramatização que busca atingir uma comoção maior, sempre jorrando os sentimentos na revolta e indignação. Dizer que uma criança de dois anos foi atropelada e se encontra no hospital é comovente. Exibir um berço retorcido pelo choque de um veículo já se torna questionável devido à inclinação que o ser humano tem de proteger o mais novo, o menor, o mais fraco. Nesta via de imagens sensacionalistas, o único risco que se corre é de tornar o fato trivial. Informar que um motoqueiro se acidentou no trânsito paulistano é comum. As pessoas não esboçam mais rea- ção de desconforto ou pesar com essa notícia. E estas reações à imagem de acidentes dessa natureza aos poucos também perdem força. Tanto que já se admite a imagem de um motoqueiro estendido no chão enquanto fios de sangue escorrem de seu corpo pelo asfalto. Água mole em pedra dura... Se o Brasil Urgente é de um excesso popular, exploratório de cenas fortes e diálogos de tendências rudes, pode-se salientar que o programa exerce lampejos de conscientização de massa. Em meio às costumeiras tentativas de acobertamento nos casos de corrupção, Datena se comporta como um cão raivoso, esmiuçando o caso para que ele nunca se torne retrógrado ou esquecido. Obviamente não se pode atribuir única e exclusivamente ao apresentador e seu programa a responsabilidade por esta conscientização da população. Este tem sido um fenômeno prolongado e de certa forma contínuo. Mas tem que se creditar também a ele parte de responsabilidade. Raio-X Num País que carece de idoneidade nas mais diversas profissões, José Luiz Datena faz por onde se creditar a ele papel de confiança por uma parcela social. É um profissional munido de boas intenções, que busca auxiliar os mais humildes da população, com um meio num veículo de massa onde estas pessoas possam de alguma forma, expressar seus problemas e dificuldades. No entanto, trata-se de um programa desorganizado e maçante. Como a emissora trabalha um programa leve antes do Brasil Urgente, que desabrocha emoções no espectador e o torne mais suscetível à influência, Datena com suas repetições usa da estratégia do posicionamento para colocar os conceitos na mente dos seus telespectadores. Pede licença para entrar na sua tela mas se esquece de pedir permissão de invadir sua mente. Vomita um montante de informações em seqüência, fazendo com que o telespectador se perca e muitas vezes, ele mesmo. Não são raros os momentos em que recorre à produção para pedir informações sobre detalhes dos casos que estão sendo apresentados. A ânsia de tornar o telespectador um cidadão ativo, batalhador dos seus direitos, afoba a iniciativa de entregar ao povo os fatos, para que eles mesmos tomem por si as conclusões necessárias. Brasil Urgente é um programa de cunho popular e que não faz questão de esconder esta vertente. Esforça- se por fazer com que seus espectadores, em sua maioria pessoas carentes, moradores de periferias, tomem atitudes que demonstrem cidadania e intolerância com a corrupção governamental. Mas es- barra no fato de que continua manipulando uma massa. Continua a criar pessoas suscetíveis ao que a mídia vai noticiar, incapazes de raciocinar e manifestar por elas mesmas os conceitos que seu apre- sentador é capaz de fluir com tamanha veracidade e ferocidade frente às câmeras. Continua formando cidadãos que mais tarde vão sentar para assistir ao Jornal Nacional e serem incapazes de reproduzir os mesmo sentimentos que exprimiram algumas horas atrás.