1) O documento discute a intervenção clínica em relação à violação dos direitos humanos no Brasil nos anos 1970 no contexto da ditadura militar.
2) Apresenta o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, criado em 1985 para denunciar mortes e desaparecimentos políticos durante a ditadura e lutar contra a impunidade dos torturadores.
3) Destaca o projeto pioneiro do grupo de apoio psicológico, médico e reabilitação social para vítimas da tortura, com o objetivo de contribuir para a
1. htervenção clínica quanto à violação dos Direitos Humanos: por uma
prática desnaturalizadora na teoria, na ética, na política
Cecília Maria Bouças Coirnbra
Jorge Márcia Pel-eira de Andrade
Maria Beatl-iz Sá Leitão
Vera Vital Brasil
"Atiro-a contr:t as quinas erguidas desta madrllgada,
. contra estes edifícios enormes, parados
contra o cinza do céu sujo como o sabão que lava o piso dos botequins
ao fim da noite.
Atiro-a contra o cansaço do mundo,
contra o 'meu próprio e inenarrável cans,lço,
atiro-a em nome da utopia que é minha, a tua, a nossa utopia,
atiro-a com raiva. sem estratégia, se,m prudência,
como hcm()rra[':ia que se esvai e tinge a c:liçada
com o esguicho do seu incêndio rubl'O
Atiro-a p,lra l1é1da,para o nenhum result:tdo
do grito que precede o baque do corpo atropelado na rua,
z.tirc·;l no ,1r do m,lr, 11;1 curva corrosiva do azul, à porta dos orfar:latos e
prostíbu Ias,
atiro-a ao ch,io comobile sanglli)1(>!enta que eSC0rre,
como q:b~m cospe um dente <lrrancad0 por um mllrro na boca.
NLls atiro-a, flcch;l rurva, esperançél e nojo, vida e cólera,
atiro-a com este punho fechado, com esta sede e esta fome,
atirc-~ com a funda mais funda do meu sonho mais profundo,
atiro-a contra argentários e fundiários, opressores e ditadores,
atiro-a em meu nome e em nome dos que ainda não têm nome,
e em nome dos que em dores e cólicas acordam para o sell nome,
(: ao rés-da-chão. em plel10 pó, o desentranham."
2. 1 - Introdução: Movimentos sociais, direitos humanos e práticas psí nos
ànos 1970 no Brasil
Os agenciamentos estão interceptados: foram grampeados. É
terminantemente proibido fazer uso da língua a fim de cunhar
matéria de expressão para as intensidades atuais: o gesto
criador foi desautorizado e quem ousa esboçá-Ia não só será
taxado de traidor, o que é pior, estará correndo perigo de
vida [...]. É proibido o gesto criador, este debilita-se, transmuta-
se e é substituído pelo medo e o medo aumenta ainda mais a
timidez do gesto criador. Desencadeia-se um círculo vicioso
no qual o desejo vai enfraquecendo cada vez m~is a sua
potência de eferuação (ROLNIK, 1989, p. 194,196).
A história dos movimentos de direitos humanos no Brasil está ligada ao
crescimento e ao fortalecimento dos diversos movimentos sociais surgidos nos anos
1970 em plena vigência dos chamado's "anos ele chumbo". É no seio da ditadura
militar que começam a se gestar, subterraneamente, novas formas de resistência,
produzindo novos sujeitos políticos (SADER, 1988).
Queremos apontar que não é somente na década de 1980 - após a "distensâo
lenta, gradual e segura" de Geisel e a "abertura" de Figueiredo (últimos generais
presidentes que implementaram políticas de "redemocratização") - que os diferentes
movimentos sociais se organizam e se fortalecem. É 110 período mais repressivo da
ditadura militar que novas Rráticas vão se gestando. Pr~lticas que rechaçam os
movimentos tradicionalmente instituídos, que politizJm o cotidiano dos lugares de
trahal ho c moradia, que inventam novas formas de fazer política.
Tais processos de singularizaçãol surgem, principalmente, das crises da Igreja,
lbs esquerdas e do sindicalislpo, que a ditadura militar brasileira aprofunda e acirra.
Os movimentos de direitos bumanos fortalecem·se principalmente através das
dellúnl:Ías sobre a situação de presos políticos, sobre suas rnortes e desaparecimentos.
SmgclIl, ,l'sim, as organizações de bmiliares que, posteriormente, irão dar origem
;::-.,5 CO:llir(;s Br;lsileiros pela Anistia e ao Movimento Feminino pela Anistia:
f,Jrta!cccm-se ulll1bém, ligadas à Igreja, as Comissões de Justiça e Paz.
/lpes:1r d,] massiva produção de subjetividade dominante2 nos anos· 1960 e
J970, que concorreu ativamente para que o terrorismo de Estado se sustentasse e se
expandisse, esses movimentos singulares conseguem se afirmar.
Se os anos 1960 preparara'il1, os 1970 consolidar:llll uma de'terminada forma
de penS:lr, sent'ir e agir, principalmente nas classes médias urbanas brasileiras, e estas
serãb ávidas consumidoras das práticas psi em curso.
As subjetividades então produzidas e fortalccidas traduzem-se pela importânci;:)
que é dada ao consumismo, à necessidade de se :lscender socialmente. Acredita-se l}a
ex~clência do sistema e dissemina-se a crença de que "subir na vida" depende das
Virtudes pesso::is, dos méritos de cada um. Há uma aceitação quase unânime das
regras d() :;istema e, principalmente a classe média, além de seus sonhos de ascensão
social, acclta passivamente que compete ao governo a resolução dos problemas. A
da cornpcte trabalhar e/ou estudar, e não se imiscllil: em política. Há, nesse momento,
3. grande preocupação com a família: fala-se da sua importância como mantenedora
de uma sociedade saudá el onde a disciplina e o controle devem estar presentes.
fortalece-se o modelo de .família que compra, investe, viaja e ascende socialm,ente,
enfatizando-se a responsabilidade individual de cada membro. A importância da
privacidade é apregoada intensamente e a culpabilização produzida massivamente.
O privado, o familiar torna-se refúgio contra os terrores da sociedade: nega-se,
portanto, o que acontece fora e volta-se para o que acontece dentro de si e de sua
família.
Essa visão intimista da sociedade1 produz pessoas interessadas apenas nas
histórias de suas próprias vidas e em suas emoções particulares. Aumentam a
preocupação e o investimento com as questões "interiores", e o auto-conhecimento
torna-se uma finaliclade. Acredita-se que a aproximação, a descoberta de si mesmo,
a liberação das represséles, a busca da autenticidade e do calor humano são essenciais
para a mel horia das relações e para uma socieebde mais saudável.
As categorias políticas são transformadas em categorias psicológicas; o
importante não é o que se faz, como se faz ou para que se faz, mas o que se senfe. Há
um esvaziamento político, há uma psicologização do cotidiano e da vida social,
produzindo-se uma oposição entre os domínios público e privado.
Investe-se permanentemente 110 domínio do priveldo, do familiar, e o
psicologismo fornece uma legitimação "científicJ" à tecnologia do ajustamento. Para
essa família em "crise" há que se ter especialistas; qualquer angústia ~u sentimento
de mal-estar existencial são imediatamente remetidos para o território da "falta",
onde os especialistas psi estão vigilantes'e atentos para resgatar suas vítimas.
Diferente do padre e do médico, estes profissionais, com sua providencial
"nel1tr~diebde" esoutam o desejo de seu cliente, buscando seu engendramento nas
. fantasias pessoais, tomelclas como universais. Enquadra-se o desejo em um mundo
fantasmático, onde se aprende que desejar é só desejar.
Dentre as pr,íticas psi, uma certa leitura da psicanálise torna-se hegemônica.
Esse modo de pensar a psicanálise produz práticas que trazem como efeitos não
somente a reprodução, mas o fortJlecimento dessas subjetividades dominantes.
Produzem-se e natur;1Iizam-se, com isso, demandas ligadas às instituições4 do
hmiliarismo, intimismo, especialismo, neutralismo e cientificismo.
Nos anos 1980 esse panorama tende a mudar: novas questões trazidas pelos
;~lOvimentos sociais, ainda na década anterior, repercutem nas classes médias urbanas
-FIe, pelo próprio processo recessivo por que passa o país, aliam-se às diferentes
:urJS nascidas nas periferias. Assim, l1:lS práticas fJsi verificaram-se também
:"ilUvimentos ele singularização. Dêsde, o final dos anos 1970, COI11) exílio da chamada
(
'cgul1(h geração de argentinos, começa a se expandir uma outra leitura da psicanálise.
Concorrem, também, as contribuições da Análise lllstitucional de origem francesa, do
:'ênsamcnto de Guattari, de Deleuze e de Foucelult, que tentarão desnaturalizar as
~~cmandas então produzi(las e pensar as subjetividades como produções histórico-sociais.
Da mesma forma que os movimentos sociais, ainda nos anos 1970, enfrentam
::11 seu coiidiano a velha polític;1 ainda dominante, essas outras práticas fJsi também
:;;,lIltêlll um embate com a ortodoxia e o autoritarismo presentes na subjetividade
:,·~letiv<id:ls demais pr;íticas psi.
Essas outras pr5ticas fJsi pretendem produzir novas questões, novas
4. problematizações, nOvOs territórios, agenciamentos e subjetividades que não sejam
meras -reproduções, mas que consigam afirmar-se no campo da singularidade,
2 - O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e o Projeto Clínico-Grupal "
"
o Grupo Tortura Nunca Mais/R] surgiu em 1985, quando o mamemo
político brasileiro evidenciava um certo esvaziamento das questões relativas ao
terrorismo de Estado dominante nos anos 1970, A Lei de Anistia, de 1979, não foi
"ampla, geral e irrestrita" como exigiam os movimentos sociais. Os Comitês
Brasileiros pela Anistia praticamente deixaram de existir, apesar de todo aparato
repressivo continuar presente. Inúmeros torturadores permaneceram - como
permanecem - em cargos públicos; diversas formas de tortura prosseguiram - e
prosseguem - sendo exe'rcidas; grupos paramilitares e de extermínio cominuam
atuando impunemente. Nos anos 1980, entretanto, é quando as pessoas começam a
falar publicamente. O destrave da lífgua se sucedia, lento e comovente, aos "anos
de chumbo". É nesse contexto que surge, inicialmente no Rio de Janeiro, o Grupo
Tortura Nunca Mais, estendendo-se, posteriormente, p'ara outros estados:
Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais e Goiás.
De um modo geral, o Grupo Tortura Nunca Mais/R] tem desenvolvido sua
IUL1 em cima de alguns. eixos:
- O esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos políticos ocorridos
durante o período da ditàdura militar, como forma necessária e cap'az de resgatar
uma parte de nossa história;
- Afastamento de torturadores de cargos públicos e punição para aqueles que,
de alguma forma, deram seu respaldo técnico para o funcionamento da repressão,
como, por exemplo, médicos, a-dvogados, etc.;
- A luta contínu3 contra a impunidade, denuncÍ;1ndo para a sociedade em geral
o que foram e o que cçmtinuam sendo os horrores da tortura e de qualquer outra
forma de violência.
Entendemos que a não punição de todos aqueies que participaram direta ou
indiretamente do massacre cometido nos anos 1970 tem contribuído decisivamente
para que novas violações de direitos humanós sejam cometidas. Acrescenta-se a isso
a m<lssiva produção de subjetividades feita através da mídia que aplaude e apóia os
extermínios, linchamentos, naturalizando, com isso, diferentes formas de violência
e/ou produzindo o que chamamos "política da indiferença".
Dentre outras atividades, desde 1990, o Grupo Tortura Nunca Mais/R] vem
desenvolvendo um projeto pioneiro de apoio psicológico, médico e de reabilitação
social para vítimas da tortura. O projeto também tem o objetivo de contribuir para
a formação de profissionais que se voltam para a temática da tortura, violência e
desrespeito aos direitos humanos.
No Brasil não há, ao que se saiba, trabalho similar e, para o Grupo Tortura
Nunca Mais/R], ele se constitui como necessário e prioritário.
Necessário e prioritário, posto que a violência do cotidiano no Brasil tem
,ocorrências assustadoras e múltiplas, configurando contínuas violações aos direitqs
humanos, Denlincias são feitas diariamente, com revelações novas e contundentes,
inclusive sobre torturas praticadas durante o período da ditadura militar. O público-
5. .iivo .remete a pessoas que experimentaram a violência, direta ou indiretamente,
como ex-presos políticos e seus familiares, familiares de mortos e desaparecidos
:lolíticos, ex-exilados, prisioneiros torturados por delitos comuns, familiares de.
:Jessoas assassinadas pela violência policial, testemunhas ameaçadas por ações de
::xtermínio, minorias sociais, vítimas da violência indiscriminada (social, racial,
'cxual), portadores do vírus HIV e familiares com questões emergenciais, vítimas de
discriminação, inclusive, por órgãos de assistência à saúde. Evidenciam-se, nessas
?essoas, graves danos e alteFações emocionais decorrentes de formas violentas de
;l1arginalização compulsória da cidadania. A maioria dessas pessoas não têm condições
mínimas para custear um tratamento, o qual só se oferece em âmbito privado. A
deterioração crescente do sistema de atendimento público, distanciado da população
:rabalhadora, a ausência de priorização nas áreas de saúde e educação, a ausênci? e
desvios de recursos complementam um quadro de violência indiscriminada. O
.::ontexto dos àtendimentos 01' outro lado remete à te tão da forma ão do
pro issionais marca da or uma dissocia - olítico-social e obre quanto
dO question o éti ectivas
i'11divídualizantes/intimistas/ rivadas.
projeto; atualmente em curso, é realizado na medida das possibilidades, já
que o Grupo Tortura Nunca Mais/R] é constituído exclusivamente de voluntários e
os recursos obtidos em órgão internacional- a ONU - para o projeto são insuficientes
para o atendimento da demanda, necessitando-se obter outros apoios e dotações
para sua ampliação e continuidade. .
O Grupo Tortura Nunca Mais/R] identifica os beneficiários a partir da história
ressoal de cada um, suas relações e testemunho de outros grupos. Essas pessoas são
encaminhadas aos profissionais que compõem o projeto - médicos, psicoterapeutas,
acompanhantes psiquiátricos e reabilitadores - com formação e experiência
profissional e, também, participantes de movimentos sociais na área de direitos
humanos. Estes têm vinculação com o Grupo Tortura Nunca Mais/R], participando
de suas reuniões, hem como trabalhando em conjunto~na discussão do processo de
trabalho, em regime contínuo.
Os atendimentos são individuais e grupais e, desde o início, O projeto enfatizou
o trabalho terapêutica grupal, entendendo que este institui um vetor privilegiado oe
.iJ1álise das produções de subjetividades e agenciamentos no campo social. Tal enfoqqe
consti tu i-se em u 111facdi tador por exce lência do trabalho, promovendo uma
intensificação da solidariedade e dos processos de transformação.
Desde os primeiros momentos do projeto, vários questionamentos se colôcaram,
tais como: trabalhar com pessoas que vivenciaram a violência se constituiria em
Uil1a especialidade? _Críticos do especialismo e da instituição do cientificismo - que
opera através de dogmas e se apresenta detentora do saber e de verdades
"inquestionávcis" e absolutas -, temos aprendido e construído o trabalho junto com
os pacientes. Entre outras aprendizagens, ressaltamos a constatação de que estes
enfrentaram a violência c são sobreviventes dela: antes de vítimas, são guerreiros da
e pela vida. Portanto, trabalhar junto com é trabalhar ao lado do guerreiro e do
6. resistente; é concorrer para a pot(;l1cializaçi1o desses devires, marcados pela
~wsitivida(k e não pela falta. Por outro bdé.', 0 conhecimentolreconhecimento eb
violência em seus corpos, suas afccçõcs c as p05sibilid;des de construção de relações
produtivas prazerosas só teriam sentido se cofltextualizados nos agenciamentos das
produções dessas violências: de onde vêm, como vêm, para que vêm, quem as porta,
quem as produz, quais o momentos em que presentificam ... Não havia, pois,
propostas de trabalho prontas, mas perguntas, elucidações, construção continua de
acontecimcntos e ações produzidas no acontecimento - atendimento. Não caberia,
no trahalho, a perspectiva da neutrafid:::de: a estreiteza do exerclcio de uma tarefa
que separJ. indivíduo e atos político-sociais, a cidadania da análise, a análise da
polífica e " política dos acontecimentos.
Estivemos desde sempre engajados, Sim, nUIT,a perspectiva em que a
subjetividade é entendida dent o do contexto dinâmico das produções sociais: não
aceit.amos () conceito de estrutura psíquica universal, mas a capacidade de não somente
agir e reagir, mas também de_buscar caminhos diferenciados. Eles podem instituir
tantü padrõc:; dominantes, desde o org;mizo.dn e estahelecido, como formas de
singubri:>.:lç50 qtic irrn:npem e inauguram formas múl:iplas de vida e ação. , Em
()pos;ç:1~) 0,; sllbjetiviebdes que uniformizam e assujeitam, sabemos que o desejo pode
ser rev'_'~u:·~ion;.írio.Nesse sentido, nossa questão não é se o desejo é o desejo da falta,
mas o que c:.:vemos <"Ir desejo. Buscamos então construir Ullla perspectiva na qual,
:Itravés do processo terapêutico, fosse possível trabalhar outras formas de
enfrentamento. Isso implica:
. A) Investigação dos agenciamentos5 que constituem modos desejantes, ·através
de diversos campos de s'lbjetivação, isto é, como as formas de perceber, pensar,
sentir, illtuir, viver e agir no mundo são construídas social e historicamente e, port;;nto,
passlveis de transformação;
B) Construção de intervençôes possíveis, isto é, a construção de dispositivos e
estratégi:1S capazes de tr.l7.er à tena outros investimentos desejantes c outras formas
de reJaçôes e prábcas. Ne~se sentido, estar ao lado e com os pacientes nesse processo
seria cst:r em busca de relações ativas e produtivas" evidenciadas pela análise das
implicaçôes(', pela utilização de analisadores7, ao invés de en!a<;armo-nos em cipós
illtirnisLas que remetem ao mundo de fantasias intr:1 e interpessoais psicologizantes.
Entendemos que a grande barreira para as inaugl'fações, pessoais e grupais,
constitui-se nos processos de naturalização. É como se as pessoas passasse!TI a ser algo
- o fragi!i/.ado, a vítima, o triste ... Cristalizam-se e perpe.:uam-se estados transitórios'
que n;'1opermitem a diversidade, mas a semelhança, a repetição e a exclusão. Naturaliza-
se tudo; é COIl1U fosse sempre assim~ intrínseco ao sujeito e não se tratasse de produções
se
ele todos historic:lmente. Em nossa prática, tentamos trahalhar com uma proposta
distinta: 3 de desnaturalização, que procura possibilidades de singularização. Entretanto,
é apenas através de uma intencionalidade político-ética e não tecnicista-neutra que é
possível, ao nosso ver, interrogar essas produções de opacidade social, produções ativas
ele invisibilidade que redundam em um suposto oculto.
Quanto maiores os índices de transversalidadex e a possibilidade de reconhecer
fluxos e atravessamentos
, , institucionais - modos de produção -, maior ' a instauração
de possibilidades. Trata-se, então, de enfocar a questão do co!etivo-em-nós em
oposição ao individualismo e ao autoritarismo.
7. As referências teóricas da Análise Institucional, as idéias de Deleuze, Guattari e
roucault, uma Psicanálise revisitada constituíram, então - ao lado de'outras
,perspectivas - o caráter transdisciplinar do trabalho, Fundamentalmente construído,
como afirmamos, no próprio acontecimento terapêutica, em cada momento do
rrabalho, posto que ali conhecimentos diversos se presentificam e, ainda, se constrói
conhecimento, se indaga e disparam-s/e possibilidades de novos acontecimentos,
Tomemos a história de um paciente que vivenciou a clandestinidade, fugindo
cios órgãos de repressão, perdendo o contato com o trabalho, amigos e atividades
culturais, o qual, preso, também vivenciou privação de sono e repouso, de alimentos,
jgua e contato com familiares; que sofreu ameaças de morte pessoal e de
companheiros; humilhações, isolamento total, convivência prolongada com sons
"ltos, ruídos, luz e animais ameaçadores; pau-de-arara; choques elétricos em várias
partes do corpo, choques térmicos; injeções de éter; surras e socos com objetos
contundúites, sufocação e afogamentos. Em conseqüência, esse paciente sofreu perda
:emporária de visão, desmaio$, esmagamento parcial de ossos das mãos, dedos, face
ç traumatismo craniano. Sugerem, ainda durante a prisão, que este tenha atendimento
médico, sem que nunca tenha se efetivado. Torturaram-no enquanto tinha febre,
decorrente de malária.
Como trabalhar com tal paciente, o qual, após essa histórià de torturas, passou
a ter manifestações epiléticas com crises convulsivas e desmaios? Já fora medicado
com pesados psicofármacos e passara por urna internação psiquiátrica. Como
cumpliciar-se com suas possibilidades de viver produtivamente, se sua angústia e
depressão, sua vontade de morrer parecem ser sua única forma de expressão? Alguém
que não consegue trabalhar, que se desencontrou de companheiros, da família, perdeu- ,
se de alguns de seus rcferencias políticos, não encontrando outros ou se permitindo
revisitá-Ios? Atribuiríamos sua vontade de morrer à pulsão' de morte, a uma forma de
masoquismo, a fantasias 'onipotentes, à imersão no mundo narcísico pela impossibilidade
de viver a falta, à negativa de entender que o desejo é o desejo do desejo?
Para nós, aprender e construir com o paCiente outras relações e práticas de
'ida tem se constituído em percorrer os agenciamentos que provocam sua
sintümarcilogia, aliar-se aos seus desejos de construçz.o, desnaturalizar um viés
"mortífero" que não era seu, mas est'ava vivo na privação da cidadania, no sistema
médico-hospitalar e nos grupos. Agregamos, aos componentes que constroem a
potência da vontade e aos devires., que instituem, a vontade de viver. Ao não nos
agenciarmos com os especialisl110s e com o distanciamenro da neutralidade, estam os
nos implicando com os direitos humanos, com a ética de plena' cidadania, com uma
política que privilegia o coleti,vo. Compartilhamos com esse paciente os espaços de
atividades do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, em seus eventos e outros
acontecimentos. Percebemos, então, que tentamos não trabalhar com conceitos
fechados, que esse proceSso de trabalho é inacabado, que a análise das implicações é
permanente e que construir é, de fato, o próprio processo de vida,
Est<l perspectiva questiona, necessariamente, a noção de vitimologja. Cremos
que a conscruçiio do lugar de vitimado fàz funcionar um movinento de
8. despotencialização política e uma rede de transformação das violências sociais em
problemáticas individuais que favorecem o isolamento, constituído no silêncio
solitário. Nessa linha de silenciamento se produzem, historicamente, o "doente
mental" e o "subversivo", que são comumente percebidos, o primeiro, desde uma
"falta de razão normal" - paradigma construído pela ordem médico-psicológica - e
o segundo, desde a "falta de uma razão política" - paradigma elaborado pela ordem
jurídico-política. A ambos se destina um tratamento moral.
A proximidade torturante entre a psiquiatrização e a tortura não é um acidente,
mas uma estratégia na construção de mundos totalitários, já que o "doente mental"
está tutelado e é considerado incapaz - neste caso, de compreender as "necessidades"
da ordem existente. De qualquer modo, os "perdedores" são sempre aqueles que
deslegitimam ou desreconhecem os meandros microscópicos do poder legalizado.
Uma nova noção de vida equivalente, somente, à sobrevida, como uma
alternativa à morte, é algo para ser questionado pelos sobreviventes e, também, por
todos nós. A violência ~ue ameaça a sobrevivência acaba por transformar a vivência
em sobrevi da. As lutéls pela vida, no entanto, apontam para muito mais: para uma
vivência absolutamente possível, potente, prazerosa e inventiva.
ROLNIK,S. C(lrtografia Sentimental: Transformações Contemporânea~ do Desejo. São
Paulo: Estação Liberdade, 1989.
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1998.
GUATTARI, E; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do desejo. Rio de Janeiro:
Vozes, 1986.
COIMBRA, C. t'1. B. Gerentes da Ordem: Algumas práticas psi nos anos 70 no Brasil.
Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
SENNETT, R. O Declíl1io do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
GUATTARI, F. Revoluções Políticas do Desejo. São Paulo: Brasi!iense, 1987.
RODRIGUES, H.li.C. Psicanálise e Análise Institucional. 111: RODRIGUES, H.E.C.;
LEITÃO, i1.P>.S.;Barros, R.D.n. Grupos e Instituições em Análise. Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos, 1990, p. 42-55.
1 P.rocesso de singu!arização é uma l:oção utilizada por Guat:ari para designar os processos
disruptores no c:llnpo c9 produção do desejo: trata-se dt movimentos de protesto do
inconsciente contra a subjetividad~ capitalística, através da :lfirmação de outras maneiras
de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc. (GUATTARI, F.; ROLNIK, S., 1986,
p.45).
2 No conceito de subjetividade dominante ou hegemônica, Guattari mostrà que " ... a
produção de subjetividades constitui· matéria-prima de toda e qualquer produção. As
forças sociais que administram 'o capitalismo hoje entendem que a produção de
subjetividades talvez seja mais importante que qualquer outro tipo de produção [...]
9. visto produzirem esquemas dominantes de percepção do mundo". (GU.TTARI;
ROLNIK, 19??, p. 40). Sobre o assuntO produção de subjetividades nos anos 1960 e
1970 no Brasil, consultar Coimbra (1995).
3 Sobre o assunto ver SENNETT (1998).
4 A Ilação de instituição para a Análise Institucional de origem francesa difere da de
organização ou estabelecimento. Instituição é onde as relações de exclusão, de dominação
e exploração estão instituídas de maneira aparentemente natural, eterna e necessária e
não onde o jurídico se manifesta.
5 Agenciamento, para Guattari e Deleuze, é uma montagem produtora de inovações
que constituem acontecimentos. Cada um de nós é uma espécie de processador-
agenciador, ao invés de indivíduos independentes das produções sociais. (GUATIARI,
1987).
6 Análise das implicações, noção advinda da An,'ílise Institucional, surge a partir da
contra transferência, opondo-se à posição neutro-positiva, e vai nos falar do intelectual
implicado, aquele que analise as implicações de suas pertenças e referências institucionais,
analisando também o lugar que ocupa na divisão social do trabalho, da qual é um dos
legitimadores. Portanto, esta noção leva a uma análise do lugar que se ocupa nas relações
sociais em geral, e não apenas no âmbito da intervenção que se está realizando.
7 Analisador, dentro da Análise Institucional, são situações espontâneas ou produzidas
que realizam G! análise, sem necessidade de "peritos" para esclarecê-Ias. São formas de
intervenção ao nível do vivido, resgatando acontecimentos que podem ser fontes
autênticas d_econhecimento e de transformações sociais. "Ou melhor dizendo, reva!orizam
a experiência direta, o 'saber das pessoas', como possíveis caminhos para a análise política,
para o inconsciente político, para o acesso ao que foi e é ativamente reprimido e para os
mecanismos sociais envoltos nesta repressão" (RODRIGUES, ] 990, p. 42-55).
8 A noção de transversalidade, criada por Guattari c muito utilizada em Análise
lnstitucional, representa a clareza que se tem dos entrecruzamentos, das pertenças e
referências de todos os tipos (político, econômico, social, cultural, sexual, libidinal, etc.)
que atravessam nossas vidas; as relações transversais são, em geral, inconscient~s, não
sabidas e descon hecidas.