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Queridos Pais:
Cheguei aqui á 15 dias, depois de uma longa viagem de comboio, com
cerca de 2000 homens todos deles remexendo nas suas mãos, acariciando
os rostos gravados numa fotografia, talvez a pensar se conseguiriam
regressar a casa, não é assombroso ainda estar a caminho e já pensar se
conseguiríamos voltar a ver os nossos entes queridos? Por fim chegamos,
num dia chuvoso, àquele sítio que por de tantas vezes nos dizerem o quão
pavoroso e horrível era ainda ficáramos surpreendidos.
Nos primeiros 4 dias de trincheira vivi uma guerra mais defensiva do que
ofensiva, em que a expectativa sobre o que ia acontecer me dominava. Ao
6º dia aconteceu o primeiro bombardeamento. Iniciou-se o caos, não
sabia exactamente o que fazer mas via todos a correr e a gritar e assim fiz.
Corri por entre a lama e entre os mortos. Já não conseguia ver muito bem
pois o fumo ocupava todo o ar. Mas consegui, consegui fugir do grande
monstro medonho e poeirento. Juntei-me aos outros homens que
também conseguiram sobreviver e sem mais segundos de espera
começaram a ouvir-se tiros, abraçamos o chão e rastejávamos até um
ponto se segurança e pummmm…. Vi diante dos meus olhos, sobre as
minhas mãos um soldado, um homem inocente que tal como eu arriscou a
vida para salvar a pátria e o orgulho de França. Este homem, este homem
morreu… chamava-se Manuel LeDrian, tinha dezanove anos, vinha do sul
do país e morreu, morreu nos meus braços, nos meus braços sujos que
nesse momento escorriam sangue, sangue que não era meu, era de
Manuel, sangue que podia ser meu se Deus o quisesse mas escolheu
salvar-me e deixar morrer este homem, esta criança. Os tiros continuavam
mas eu tinha ordens de não sair daquele ponto e assim passei a tarde, a
noite e a manhã, apoiado num rochedo e sobre mim, um morto, um
homem, um francês.
Agora, meus pais, vou descansar, depois vou matar os piolhos com mais
um grupo de homens e voltarei á rotina horrenda, terrível e monstruosa.
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David.

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