O documento analisa o filme Avatar de James Cameron, descrevendo-o como um sucesso de bilheteria que constrói um mundo ficcional para reafirmar os valores do cinema americano clássico. A narrativa acompanha a jornada do herói Jack Sully em Pandora, um planeta com uma cultura nativa espiritualmente conectada à natureza, em contraste com a civilização invasora terrestre.
1. CInemA
AvAtAR:
o outRo
Sou eu
No maior sucesso de
bilheteria de todos os
tempos, James Cameron
constrói um mundo para
reafirmar o poder do cinema
clássico americano de
assumir novas caras sem
mudar sua essência
por Leandro Saraiva
A AtrAção mmaior é Pandora, espécie
de Amazônia 2.0, onde tudo e todos estão
conectados a Eywa, a divindade panteísta
de seus habitantes, os Na’vi. Apresentada
como uma realidade meio espiritual, meio
bioquímica (uma rede de conexões quase
neurais entre os seres do planeta), essa
versão sci-fi do conceito de Gaia faz uma
aproximação entre ciência e religião bem
ao estilo do pensamento contemporâneo
new age, herdeiro esotérico da contracultura,
segundo o qual estamos entrando na Era de dos interesses em conflito na Amazônia: painel de Monet, as sardas na pele azul dos
Aquário, marcada pela evolução espiritual da não há ONGs nem pirataria biológica, lutas Na’vi, a brilhante Árvore das Almas. Um
humanidade. para ocupação do solo, lideranças locais contraste brutal com o mundo da base
O herói que nos conduz por esse mundo negociando com os poderes ocidentais, terráquea, que, à imagem e semelhança de
novo é Jack Sully, ex-fuzileiro, ferido em nem coberturas jornalísticas compradas, nosso caos urbano, isola-se da natureza
combate na Terra (na Venezuela...), agora corrupções e traições (se você prefere abor- numa cápsula cinza metálica, morta, de onde
paralítico, recrutado como mercenário dagens mais realistas, veja Corumbiara, de Pandora é vista como o “inferno verde”
pela Companhia – uma versão do século Vicent Carelli, o documentário que venceu que Euclides da Cunha viu na Amazônia
XXI da antiga Companhia das Índias, mas o Festival de Gramado no ano passado). O em tempos mais positivistas. As pernas
também evidente metáfora, desimpedida objetivo, aqui, não é a mimese realista da inúteis de Jack encarnam a esterilidade dos
dos aborrecimentos da política, da força política da floresta, mas uma dicotomia que invasores, a despeito de toda a arrogância.
civilizatória do complexo industrial-militar valorize a beleza da utopia holística nativa Apesar do clichê da longa sequência déjà
americano. A motivação da empreitada – diante da feiura materialista e estéril dos vu da “batalha final”, há uma antológica
mineração – traça uma linha de continuidade terráqueos/ocidentais. cena-síntese do choque dessas civilizações: a
entre o mercantilismo das navegações e os As cores importantes e vibrantes são as destruição da majestosa árvore onde vivem
constantes conflitos com garimpeiros em que Jack (e cada espectador) experimenta os Na’vi. Momento forte de identificação
terras indígenas amazônicas. no mergulho pessoal em Pandora: a floresta entre espectadores (ocidentais e, sobretudo,
Mas essa coloração política da história que brilha à noite, os insetos luminosos, os americanos – de fato ou ideologicamente) e
é suave. Estamos longe da complexidade dragões vermelhos, o lago que parece um nativos, a cena lembra as imagens do 11 de
48 | retratodoBRASIL 32
2. Setembro, invertendo e jogando sobre o mi- e saboreando uma fruta pandoriana, é um um modo tão consumível que vai bem com
litarismo americano a pecha do terrorismo grito de libertação). Trata-se da clássica Coca e pipoca. Como em outras fantasias
(ainda que de modo abstrato, sem conexões jornada do herói, o paradigma narrativo hollywoodianas sobre os bons selvagens –
possíveis com alvos menos românticos que mítico sistematizado por Joseph Campbel, Dança com Lobos, Pocahontas e afins –,
os Na’vi, como iraquianos ou palestinos, com grande circulação em Hollywood desde os nativos são nossos retratos retocados.
por exemplo). Star Wars (George Lucas, 1977), aqui numa Tanto que a rotineira historinha de amor se
Tal como Eywa, a tecnologia futurista do versão que, sem deixar de ser de ação, é (ou adapta muito bem ao ecossistema ficcional
avatar, possibilitando a Jack entrar no corpo pretende ser), sobretudo, iniciática. Jack é de Pandora.
de um Na’vi, fica entre a ciência e a espiritu- “como um bebê”, diz Neytiri, sua guia (e, Tem seu charme a ideia da ponta das tran-
alidade. O fuzileiro paraplégico passa por um inevitavelmente, namorada), que, literalmen- ças dos Na’vi como “cabo USB” – como
renascimento, que lembra as viagens astrais te, renasce como Na’vi – ou, poderíamos a denominou Eugênio Bucci em artigo
e xamânicas. O núcleo da utopia de Avatar, dizer, como ser humano. publicado em O Estado de S. Paulo. Mas,
desejada em todo o mundo (por motivos O mérito político da narrativa de Avatar desacompanhada de outras formas de
óbvios) está aí: a esperança de romper o é afirmar, para centenas de milhões de ter- expressão da conexão holística com Pan-
pobre casulo de um corpo semimorto ráqueos sentados em cinemas de shopping dora, não deixa de ser uma reificação um
(como a cultura da qual faz parte) e renascer por todo o mundo, consumindo oceanos de tanto utilitária dessa cosmovisão. Os rituais
para uma realidade intensa, viva, transcen- Coca-Cola, o valor de uma cultura alternati- de iniciação pelos quais passa Jack (caçar,
dental (a bela primeira cena de Jack em seu va, comunitária, espiritualizada e integrada à correr e pular de árvores enormes, escalar
novo corpo, correndo por uma plantação natureza. Mas, ao mesmo tempo, o faz de rochedos – voadores, é verdade –, domar
32 retratodoBRASIL | 49
3. dragões) são também basicamente físicos. a uma cosmologia não antropocêntrica
Nada há que lembre as duras provas xamâ- quanto seu herói.
nicas (os rituais de morte e renascimento) Mas Cameron é genial – se o critério for
ou mesmo – se preferirmos não exagerar o do mercado de entretenimento (o filme
na aproximação da experiência de Jack com faturou, até o final de janeiro, mais de 2
o xamanismo – outros rituais de alteridade bilhões de dólares). O espírito ecológico,
mais profunda. new age e politicamente diet é funcional ao
Talvez para nós, brasileiros, o simplismo gancho narrativo do “avatar”, conceito de
da história pseudoiniciática seja especialmen- base dos jogos on-line, como Second Life.
te irritante. O que disse Roberto Schwarz O feito tecnológico da indiferenciação dos
sobre a cultura nacional pós-desmonte dos atores reais e dos “avatares” cinematográ-
projetos nacionais – que passam a flutuar ficos (personagens virtuais moldados pela
publicitariamente no mercado, agora como captura das expressões de atores) garante
casca vistosa, como um estilo de vida uma imersão inédita no ambiente virtual.
simpático a ser consumido – bem se aplica Se o objetivo do cinema é (é?) nos fazer
à fantasia amazônica de Avatar. Além da esquecer do mundo real e nos submergir
complexa realidade política e econômica na ficção (a clássica identificação), o que
da região, onde a trama política é tão densa pode ser mais sedutor do que um mundo
quanto a mata, há a riqueza cultural a partir completamente exótico e novo, vivenciado
da qual Cameron abstrai o que apresenta em absoluta e deslumbrante riqueza de
como arquétipos universais. Enquanto isso, detalhes, em 3D?
na Amazônia real, o antropólogo Eduardo De quebra, ninguém vai querer assistir
Viveiros de Castro (projeto AmaZone, a Avatar numa cópia pirata que passa no
http://amazone.wikia.com) descobre nas televisor da sala. Pandora foi salva, e as sa-
filosofias ameríndias uma visão de mundo las de cinema, também. Cameron – e Jack,
(chamada por ele de perspectivismo) se- seu avatar – seduzem naturalistas, adeptos
gundo a qual todos os seres compartilham da Nova Era, jogadores de videogame,
uma natureza indistintamente humana e espectadores de filmes de aventura, enfim,
não humana e cada grupo ontológico (por centenas de milhões de pessoas. Quem não
exemplo, onças ou mesmo inhames), vê a quer ter três metros, voar montado num
si mesmo como humano. Um pensamento dragão, salvar a Mãe Natureza, se apaixonar
tão complexo e distinto que põe em cheque, e transar sob uma mística árvore de luz? Até
simplesmente, o sujeito cartesiano. Pouco o mais ranzinza dos críticos...
humana seria, descobrimos com a filosofia
ameríndia, a atitude moderna de opor hu-
manidade e animalidade, natureza e cultura,
sujeito e objeto.
O xamã, aquele capaz de transitar pelas
diferentes situações ontológicas (homem,
onça, inhame, dragões, Na’vi), faz a tradução
dessas “perspectivas” ao custo de profundas
perturbações no curso da viagem transcen-
dental. Jack Sully, no entanto, transita entre
a condição terráquea e Na’vi sem qualquer
choque ou radical alteridade. Com toda a
badalada imaginação e realização plástica
de Avatar, o filme não arrisca nem uma
imagem sequer de evocação dessa conver-
são de uma cultura cartesiana a uma cultura
perspectivista.
Basta ver as fotos de Cláudia Andujar
(em especial as fotomontagens do ensaio
“Sonhos”, publicado em A vulnerabilidade
do ser, Cosac Naify, 2005) ou ler o texto de
Davi Kopenawa sobre a visão xamânica
dos ianomâmi (http://amazone.wikia.
com/wiki/A_Floresta_de_Cristal) para
ver que é possível, e poderosa, a busca de
representações artísticas dessas experiências.
Cameron, entretanto, parece tão alheio
50 | retratodoBRASIL 32