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A MODERNIDADE DAS TREVAS
— ou Como a Modernidade produz seus Horrores —
De João Batista do Lagoi
CAPATAZES DO ASFALTO
De João Batista do Lago
A maravilhosa metrópole continua linda!
À beira do mar, seus machos e fêmeas
desfilam suas estéticas: tanquinhos e bundas
— todos sarados e esculturados pelo sol.
Do outro lado, no subúrbio da maravilhosa cidade,
o sol que brilha sobre a carne negra
é o luminoso raio do estanho, que explode
no corpo que dorme o pesadelo de existir.
O que diria teu poeta, Ó Princesinha!?
Certamente não aprovaria o pelotão de abutres
— assassinos vorazes e contumazes —
capatazes da velha (e eterna) capitania,
que sob o manto da ordem e do progresso
sugerem impor a Justiça sob o hino da bala…
— “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.
* * * * *
ELITE ENTERNECIDA
De João Batista do Lago
A minha enlutada alma desce o morro
crivada de balas
e o meu jovem corpo negro, agora inexistente,
é apenas o aparente símbolo
do (in)sucesso evidente
do Estado arrogante
e que me pretende somente
um número
na estatística do genocídio.
Minh’alma enlutada
e crivada de balas,
agora estirada na fria pedra,
é o troféu a ser exibido
nos salões da Vieira Souto,
onde se inspira o necrocapitalismo
mantenedor do corpo que amanhã será abatido
para ser oferecido como disfarce
às narinas da elite enternecida.
* * * * *
Caríssimas leitoras ou caríssimos leitores, já o título deste texto é uma provocação. Sim,
uma provocação ao nosso acomodado status quo — nos mais diversos aspectos ou perspectivas que
isso possa representar. É certo asseverar que vivemos dias insalutíferos, nebulosos, trevásticos
mesmo. Não à toa tomei a liberdade de epigrafar este escrito com dois poemas de minha autoria,
com os quais pretendo metadialogar1
(seja na forma direta ou indiretamente). A escolha deste
problema, ou seja, A Modernidade das Trevas, decorre das minhas inquietações político-econômico-
socioculturais mas, também e sobretudo, porque é uma das problemáticas mais referenciadas e
problematizadas pela filosofia, pela sociologia, pela psicologia, pela psicanálise e, até mesmo, pela
esquizoanálise2
, em contextos muito diversos e dispersos entre os mais diferenciados escritores que
em algum momento de suas obras se referiram ao tema.
Isto posto, permitam-me leitoras e leitores, convidá-las/los para fazer uma viagem
imaginativa. Contudo, desde sempre, sugiro a todas e todos que esvaziem suas mentes de quaisquer
conceitos, ou pre-conceitos, já instituídos ou dados, segundo a Moral (ou moralismos) imposta pela
sociedade vigente. Apenas imaginem-se! Sei que não é fácil, pois já estamos demasiadamente (de
alguma maneira, infelizmente) “convencidos” dessas pretensas verdades absolutas plenas e/ou
seculares. Sugiro pois, ainda, que sejamos passageiros solitários neste primeiro trecho desta viagem
imaginária e que apenas o “Si” que habita em cada um de nós estabeleça um diálogo com nossos
corpos e nossas mentes. Parece difícil (e é!), mas façamos como nos sugere Clarice Lispector: “Eu
te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais
porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante
em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa”3
.
1 “Um metadiálogo é uma conversa acerca dum assunto problemático. Esta conversa dever ser tal que não só o
problema seja discutido pelos participantes; mas a estrutura da conversa como um todo seja também relevante para
o mesmo problema.” (Gregory Bateson, ‘Metadiálogos”, pg 7)
2 A esquizoanálise é um campo de práticas e saberes inaugurado pela obra conjunta do filósofo Gilles Delleuze e o
psicanalista Félix Guattari e foi formulada pela primeira vez no livro O Anti-Édipo. A esquizoanálise é antes um
conjunto de filosofias que uma prática clínica; sua intenção é romper com as barreiras da estrutura linguistica dos
saberes instituídos em troca de saberes ramificados ao qual Delleuze e Guattari chamam de rizoma.
3 https://site.claricelispector.ims.com.br/2021/10/14/o-simbolo-e-a-coisa/
Apossemo-nos, então, nesta viagem imaginária, do “é da coisa” clariciano, ou seja, vejamos
A Modernidade das Trevas como
“o símbolo e a coisa. A coisa, a física e o símbolo, a metafísica; a coisa, a
imanência, e o símbolo a transcendência; a coisa, o corpo, e o símbolo, a
linguagem; a coisa, a existência, e o símbolo, o dizer; a coisa o
acontecimento, e o símbolo a forma de dar a ler a não-simbolizável coisa.
(…) o símbolo da coisa na própria coisa. (…) Símbolo é o liame que
entrelaça as coisas, e que se situa entre elas. Ele originalmente designa o
jogo de encaixe de duas metades, que os latinos chamavam de tessera. No
jogo das duas metades, uma é o símbolo e a outra, o que ele simboliza,
significado, referente, realidade, coisa. A coisa, a res, é o objeto lançado
diante (o ob-jectum), que está na raiz de realidade. (…) “Eu quero a coisa
em si”, diz ela (…)”4
.
Que seja, então, a coisa e o símbolo ou o símbolo e a coisa, nossa única bagagem intelectual.
Nosso único campo de memória. Nosso único corpo. Nossa única mente. Nosso único “é da coisa”.
* * * * *
Embarquemos agora, cara leitora ou caro leitor. Imaginemo-nos (simplesmente imagine-se!),
um Sujeito nascido em quaisquer das periferias de grandes metrópoles brasileiras. Mas não só isso:
imagine-se nascido preta ou preto (negra ou negro, se assim desejarem). Para além disso, imagine-
se crescendo sob o manto da miséria ou da pobreza estrutural, absorvendo durante todo o processo
de crescimento fisiológico, todas as mazelas inerentes à condição de classe subalterna, e por conta
dessa realidade, subjetivada no sujeito em-si, de-si e para-si, produzindo violência, desde as mais
singelas às mais hediondas. Imagine-se convivendo entre duas forças estruturadas de violência: 1)
as forças policiais; 2) as forças do tráfico. Imagine-se convivendo e vivenciando suas experiências
(de qualquer natureza) nas comunidades, mocambos, palafitas ou favelas. Imagine-se “apartado” de
benefícios ou serviços públicos como saúde e educação, por exemplo. Imagine-se sob ataque
grosseiro e violento, mas, também, estruturados das religiões neopentecostais. Imagine-se sem
trabalho… Enfim, prezada leitora ou prezado leitor, imagine tudo o mais que aqui não foi
mencionado ou relatado, ou configurado, mas que faz parte da sua visão (crítica) de mundo.
Feito isso convoco-os, leitora e leitor, para processarem tudo (isso ou aquilo!) no que vós
tendes de mais puro, sublime e sagrado: o si de-si para-si, isto é: o sui, ou seja, corpo/mente ou
4 https://site.claricelispector.ims.com.br/2021/10/14/o-simbolo-e-a-coisa/
mente/corpo. É exatamente aqui que irás encontrar “o é da coisa”. Noutras palavras: é a partir desse
entendimento ou desse ‘sujeito do conhecimento’ que terás o corpus de símbolos e coisas/coisas e
símbolos.
A partir de então descobrirás duas metades da mesmíssima cidade: i) a cidade maravilhosa5
;
ii) a cidade da miséria, da pobreza, dos deserdados e dos condenados… Como discursa o Sujeito
que perpassa o poema CAPATAZES DO ASFALTO (de João Batista do Lago):
A maravilhosa metrópole continua linda!
À beira do mar, seus machos e fêmeas
desfilam suas estéticas: tanquinhos e bundas
— todos sarados e esculturados pelo sol.
Do outro lado, no subúrbio da maravilhosa cidade,
o sol que brilha sobre a carne negra
é o luminoso raio do estanho, que explode
no corpo que dorme o pesadelo de existir.
O que diria teu poeta, Ó Princesinha!?
Certamente não aprovaria o pelotão de abutres
— assassinos vorazes e contumazes —
capatazes da velha (e eterna) capitania,
que sob o manto da ordem e do progresso
sugerem impor a Justiça sob o hino da bala…
— “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Qual a simbologia estampada no tecido ou na tessitura, ou ainda, na urdidura do poema?
A conotação primordial é que as metades são de uma mesma “coisa” mas, elas não são
sequer similares ou semelhantes. Há um buraco negro que gera uma força infinita e descomunal em
prol, ou seja, em favor da metade que é simbolizada como sendo “maravilhosa” — a minoria
branca, que deseja engolir ou beber, ou comer a outra metade, constituída pelos pretos, negros,
pobres (ainda que brancos), etc. —, para posteriormente poder excretar por intermédio das forças
reacionárias ou forças do “preconceito primordial”, como sugere e aponta o sociólogo Jessé Souza
(ao longo de sua obra: a) A Elite do Atraso, e b) A Classe Média no Espelho, por exemplo) para bem
distante do seu “maravilhosismo”. Paradoxo: esse buraco negro, esse maravilhosismo da classe
média brasileira enternecida e enternecedora.
Essa dicotomia introjetada no imaginário do maravilhosismo coletivo da classe média do
Brasil, por si só, é a mais pura e cristalina enganação intelectual, emanada ou produzida por aquelas
ou aqueles, humanos nacionais!, tanto à direita quanto à esquerda, sob um caldo de cientificidade —
5 (NA) Alusão à cidade do Rio de Janeiro (com pesar e constrangimento).
seja no locus das ciências humanas, sociais ou culturais. O mesmo se dá no métier da economia e da
política. Como diz o sujeito que fala no poema ELITE ENTERNECIDA, de João Batista do Lago:
“(...) é o troféu a ser exibido
nos salões da Vieira Souto,
onde se inspira o necrocapitalismo
mantenedor do corpo que amanhã será abatido
para ser oferecido como disfarce
às narinas da elite enternecida.”
Esse distanciamento, esse apagamento ou “cancelamento”, ou ainda, essa morte estrutural
das classes populares [entenda-se: pessoas pretas e pretos, brancos pobres, trabalhadores da
construção civil, trabalhadores avulsos, trabalhadores assalariados, trabalhadores domésticos,
agricultores familiares, micro e pequeno empresário, entre outros] manifestada numa suposta
subjetividade da classe média brasileira, tem sua origem numa espécie de “culturalismo”, conforme
o pensamento crítico do sociólogo Jessé Souza, em seu livro “A Guerra Contra o Brasil”. Aos meus
olhos é este mesmo “culturalismo” o locus, isto é, o estado psíquico e cognitivo do sujeito cuja
manifestação pode ocorrer tanto no âmbito individual quanto no coletivo, fazendo com que esse
sujeito tome conhecimento dos objetos externos a partir de referenciais próprios. E digo mais: o
sujeito coletivo (ou a elite adestrada, servil e dócil) é o mais perigoso por razões óbvias…
[Finda-se aqui a primeira parte deste artigo. A segunda e última parte será publicada na
próxima semana]
i João Batista do Lago é maranhense de Itapecuru Mirim. É jornalista, escritor e poeta. Pertence a Academia Poética
Brasileira. É autor dos livros “Eu Pescador de Ilusões”, “Áporo”, “Cânticos Viscerais” e “50 Tons de Palavras”.

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  • 2. mantenedor do corpo que amanhã será abatido para ser oferecido como disfarce às narinas da elite enternecida. * * * * * Caríssimas leitoras ou caríssimos leitores, já o título deste texto é uma provocação. Sim, uma provocação ao nosso acomodado status quo — nos mais diversos aspectos ou perspectivas que isso possa representar. É certo asseverar que vivemos dias insalutíferos, nebulosos, trevásticos mesmo. Não à toa tomei a liberdade de epigrafar este escrito com dois poemas de minha autoria, com os quais pretendo metadialogar1 (seja na forma direta ou indiretamente). A escolha deste problema, ou seja, A Modernidade das Trevas, decorre das minhas inquietações político-econômico- socioculturais mas, também e sobretudo, porque é uma das problemáticas mais referenciadas e problematizadas pela filosofia, pela sociologia, pela psicologia, pela psicanálise e, até mesmo, pela esquizoanálise2 , em contextos muito diversos e dispersos entre os mais diferenciados escritores que em algum momento de suas obras se referiram ao tema. Isto posto, permitam-me leitoras e leitores, convidá-las/los para fazer uma viagem imaginativa. Contudo, desde sempre, sugiro a todas e todos que esvaziem suas mentes de quaisquer conceitos, ou pre-conceitos, já instituídos ou dados, segundo a Moral (ou moralismos) imposta pela sociedade vigente. Apenas imaginem-se! Sei que não é fácil, pois já estamos demasiadamente (de alguma maneira, infelizmente) “convencidos” dessas pretensas verdades absolutas plenas e/ou seculares. Sugiro pois, ainda, que sejamos passageiros solitários neste primeiro trecho desta viagem imaginária e que apenas o “Si” que habita em cada um de nós estabeleça um diálogo com nossos corpos e nossas mentes. Parece difícil (e é!), mas façamos como nos sugere Clarice Lispector: “Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa”3 . 1 “Um metadiálogo é uma conversa acerca dum assunto problemático. Esta conversa dever ser tal que não só o problema seja discutido pelos participantes; mas a estrutura da conversa como um todo seja também relevante para o mesmo problema.” (Gregory Bateson, ‘Metadiálogos”, pg 7) 2 A esquizoanálise é um campo de práticas e saberes inaugurado pela obra conjunta do filósofo Gilles Delleuze e o psicanalista Félix Guattari e foi formulada pela primeira vez no livro O Anti-Édipo. A esquizoanálise é antes um conjunto de filosofias que uma prática clínica; sua intenção é romper com as barreiras da estrutura linguistica dos saberes instituídos em troca de saberes ramificados ao qual Delleuze e Guattari chamam de rizoma. 3 https://site.claricelispector.ims.com.br/2021/10/14/o-simbolo-e-a-coisa/
  • 3. Apossemo-nos, então, nesta viagem imaginária, do “é da coisa” clariciano, ou seja, vejamos A Modernidade das Trevas como “o símbolo e a coisa. A coisa, a física e o símbolo, a metafísica; a coisa, a imanência, e o símbolo a transcendência; a coisa, o corpo, e o símbolo, a linguagem; a coisa, a existência, e o símbolo, o dizer; a coisa o acontecimento, e o símbolo a forma de dar a ler a não-simbolizável coisa. (…) o símbolo da coisa na própria coisa. (…) Símbolo é o liame que entrelaça as coisas, e que se situa entre elas. Ele originalmente designa o jogo de encaixe de duas metades, que os latinos chamavam de tessera. No jogo das duas metades, uma é o símbolo e a outra, o que ele simboliza, significado, referente, realidade, coisa. A coisa, a res, é o objeto lançado diante (o ob-jectum), que está na raiz de realidade. (…) “Eu quero a coisa em si”, diz ela (…)”4 . Que seja, então, a coisa e o símbolo ou o símbolo e a coisa, nossa única bagagem intelectual. Nosso único campo de memória. Nosso único corpo. Nossa única mente. Nosso único “é da coisa”. * * * * * Embarquemos agora, cara leitora ou caro leitor. Imaginemo-nos (simplesmente imagine-se!), um Sujeito nascido em quaisquer das periferias de grandes metrópoles brasileiras. Mas não só isso: imagine-se nascido preta ou preto (negra ou negro, se assim desejarem). Para além disso, imagine- se crescendo sob o manto da miséria ou da pobreza estrutural, absorvendo durante todo o processo de crescimento fisiológico, todas as mazelas inerentes à condição de classe subalterna, e por conta dessa realidade, subjetivada no sujeito em-si, de-si e para-si, produzindo violência, desde as mais singelas às mais hediondas. Imagine-se convivendo entre duas forças estruturadas de violência: 1) as forças policiais; 2) as forças do tráfico. Imagine-se convivendo e vivenciando suas experiências (de qualquer natureza) nas comunidades, mocambos, palafitas ou favelas. Imagine-se “apartado” de benefícios ou serviços públicos como saúde e educação, por exemplo. Imagine-se sob ataque grosseiro e violento, mas, também, estruturados das religiões neopentecostais. Imagine-se sem trabalho… Enfim, prezada leitora ou prezado leitor, imagine tudo o mais que aqui não foi mencionado ou relatado, ou configurado, mas que faz parte da sua visão (crítica) de mundo. Feito isso convoco-os, leitora e leitor, para processarem tudo (isso ou aquilo!) no que vós tendes de mais puro, sublime e sagrado: o si de-si para-si, isto é: o sui, ou seja, corpo/mente ou 4 https://site.claricelispector.ims.com.br/2021/10/14/o-simbolo-e-a-coisa/
  • 4. mente/corpo. É exatamente aqui que irás encontrar “o é da coisa”. Noutras palavras: é a partir desse entendimento ou desse ‘sujeito do conhecimento’ que terás o corpus de símbolos e coisas/coisas e símbolos. A partir de então descobrirás duas metades da mesmíssima cidade: i) a cidade maravilhosa5 ; ii) a cidade da miséria, da pobreza, dos deserdados e dos condenados… Como discursa o Sujeito que perpassa o poema CAPATAZES DO ASFALTO (de João Batista do Lago): A maravilhosa metrópole continua linda! À beira do mar, seus machos e fêmeas desfilam suas estéticas: tanquinhos e bundas — todos sarados e esculturados pelo sol. Do outro lado, no subúrbio da maravilhosa cidade, o sol que brilha sobre a carne negra é o luminoso raio do estanho, que explode no corpo que dorme o pesadelo de existir. O que diria teu poeta, Ó Princesinha!? Certamente não aprovaria o pelotão de abutres — assassinos vorazes e contumazes — capatazes da velha (e eterna) capitania, que sob o manto da ordem e do progresso sugerem impor a Justiça sob o hino da bala… — “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Qual a simbologia estampada no tecido ou na tessitura, ou ainda, na urdidura do poema? A conotação primordial é que as metades são de uma mesma “coisa” mas, elas não são sequer similares ou semelhantes. Há um buraco negro que gera uma força infinita e descomunal em prol, ou seja, em favor da metade que é simbolizada como sendo “maravilhosa” — a minoria branca, que deseja engolir ou beber, ou comer a outra metade, constituída pelos pretos, negros, pobres (ainda que brancos), etc. —, para posteriormente poder excretar por intermédio das forças reacionárias ou forças do “preconceito primordial”, como sugere e aponta o sociólogo Jessé Souza (ao longo de sua obra: a) A Elite do Atraso, e b) A Classe Média no Espelho, por exemplo) para bem distante do seu “maravilhosismo”. Paradoxo: esse buraco negro, esse maravilhosismo da classe média brasileira enternecida e enternecedora. Essa dicotomia introjetada no imaginário do maravilhosismo coletivo da classe média do Brasil, por si só, é a mais pura e cristalina enganação intelectual, emanada ou produzida por aquelas ou aqueles, humanos nacionais!, tanto à direita quanto à esquerda, sob um caldo de cientificidade — 5 (NA) Alusão à cidade do Rio de Janeiro (com pesar e constrangimento).
  • 5. seja no locus das ciências humanas, sociais ou culturais. O mesmo se dá no métier da economia e da política. Como diz o sujeito que fala no poema ELITE ENTERNECIDA, de João Batista do Lago: “(...) é o troféu a ser exibido nos salões da Vieira Souto, onde se inspira o necrocapitalismo mantenedor do corpo que amanhã será abatido para ser oferecido como disfarce às narinas da elite enternecida.” Esse distanciamento, esse apagamento ou “cancelamento”, ou ainda, essa morte estrutural das classes populares [entenda-se: pessoas pretas e pretos, brancos pobres, trabalhadores da construção civil, trabalhadores avulsos, trabalhadores assalariados, trabalhadores domésticos, agricultores familiares, micro e pequeno empresário, entre outros] manifestada numa suposta subjetividade da classe média brasileira, tem sua origem numa espécie de “culturalismo”, conforme o pensamento crítico do sociólogo Jessé Souza, em seu livro “A Guerra Contra o Brasil”. Aos meus olhos é este mesmo “culturalismo” o locus, isto é, o estado psíquico e cognitivo do sujeito cuja manifestação pode ocorrer tanto no âmbito individual quanto no coletivo, fazendo com que esse sujeito tome conhecimento dos objetos externos a partir de referenciais próprios. E digo mais: o sujeito coletivo (ou a elite adestrada, servil e dócil) é o mais perigoso por razões óbvias… [Finda-se aqui a primeira parte deste artigo. A segunda e última parte será publicada na próxima semana]
  • 6. i João Batista do Lago é maranhense de Itapecuru Mirim. É jornalista, escritor e poeta. Pertence a Academia Poética Brasileira. É autor dos livros “Eu Pescador de Ilusões”, “Áporo”, “Cânticos Viscerais” e “50 Tons de Palavras”.