Muitos de nós perdemos o sentido de nos maravilharmos com o perfume da flor, a amizade da árvore, a melodia do pássaro, a frescura do riacho, a beleza da paisagem natural, a subtileza de alguns seres ou a familiaridade de um animal doméstico. Criamos invólucros artificiais que nos afastam das inúmeras vidas que habitam os bosques, contribuindo para que raposas, lobos, linces, veados, coelhos, esquilos ou até carvalhos, bétulas, azevinhos, pilriteiros ou ainda os chapins, os rouxinóis, as corujas ou os guarda-rios sejam imaginados como habitantes de algum conto de fadas. Quando se trata de intervir na floresta, só o lucro interessa. Toda a vida que dá vida, toda a beleza que encanta, toda a harmonia que embala a alma é simplesmente esquecida, como de um conto maravilhoso de um livro infantil se tratasse, mas que na realidade não existe. Não! Existe sim! Esse mundo maravilhoso habitado por animais, plantas, rochas e rios existe, com toda a magia natural e precisamos de voltar à inocência para vê-lo como ele realmente é.
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Opinião
AMBIENTE E ENERGIAS RENOVÁVEIS
O mundo da criança é cheio de frescura, de
novidade, de beleza, povoado de maravilhas e
entusiasmo. É uma pena que, para a maioria
de nós, essa visão de olhar límpido, esse
verdadeiro instinto que inclina ao belo e inspira
reverência e respeito, se esbata e mesmo se
perca antes de chegarmos à idade adulta. Se
eu tivesse alguma influência sobre a fada boa
que se julga presidir ao batismo de todas as
crianças que viessem ao mundo, seria uma
capacidade de maravilhamento tão indestru-
tível que duraria toda a vida, como antídoto
infalível contra o aborrecimento e o desencan-
to da idade adulta, as preocupações estéreis
com as coisas artificiais, o alheamento que
nos afasta das fontes da nossa força.
Este é o desejo que Rachel Carson nos deixa
no livro “Maravilhar-se” e que subscrevo na ín-
tegra. Efetivamente, muitos de nós perdemos
o sentido de nos maravilharmos com o per-
fume da flor, a amizade da árvore, a melodia
do pássaro, a frescura do riacho, a beleza da
paisagem natural, a subtileza de alguns seres
ou a familiaridade de um animal doméstico.
Criamos invólucros artificiais que nos afastam
das inúmeras vidas que habitam os bosques,
contribuindo para que raposas, lobos, linces,
veados, coelhos, esquilos ou até carvalhos,
bétulas, azevinhos, pilriteiros ou ainda os cha-
pins, os rouxinóis, as corujas ou os guarda-rios
sejam imaginados como habitantes de algum
conto de fadas. Quando se trata de intervir na
floresta, só o lucro interessa. Toda a vida que
dá vida, toda a beleza que encanta, toda a
harmonia que embala a alma é simplesmente
esquecida, como de um conto maravilhoso de
um livro infantil se tratasse, mas que na reali-
dade não existe. Não! Existe sim! Esse mundo
maravilhoso habitado por animais, plantas,
rochas e rios existe, com toda a magia natural
e precisamos de voltar à inocência para vê-lo
O Sentido de Maravilhar-se
Texto e Fotos_Jorge Moreira
[Ambientalista e Investigador]
«Maravilhar-se» relembra-nos o mistério da existência. O facto de o mais importante já nos ter
sido dado, como uma graça, em sentido teológico. Não admira que o primeiro impulso religioso
tenha sido naturalista e panteísta, pois a Natureza será sempre a face de Deus, para os que
Nele acreditam, e o sinal de um mistério que importa preservar para as gerações futuras, para os
outros, os que continuam à procura
Viriato Soromenho-Marques
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como ele realmente é. E Carson dá-nos uma
ajuda: Explorar a natureza como uma criança
resume-se em grande parte a sermos receti-
vos a tudo o que nos rodeia. A reaprender a
usar os nossos olhos, os ouvidos, as narinas,
as pontas dos dedos, desobstruindo os aban-
donados e mal usados canais das impressões
dos sentidos. Para a maioria, o conhecimento
do nosso mundo vem-nos sobretudo da vista,
porém olhamos o que nos cerca com olhos
tão incapazes de ver que nos tornamos par-
cialmente cegos. Uma forma de abrirmos os
olhos à beleza despercebida é perguntarmos
a nós próprios: «E se eu nunca tivesse visto
isto antes? E se soubesse que nunca mais
o voltaria a ver?». Talvez esta reflexão faça
toda a diferença na maneira como podemos
começar a olhar o mundo e valorizar a beleza
intrínseca da Natureza. Mas há aqui, ainda,
um outro problema ontológico que sobressai:
se nós nunca tivéssemos sentido o perfume
de um bosque antigo, a frescura da água
cristalina que se solta de um penhasco para
alimentar a nossa imaginação e a nossa sede
numa tarde de verão ou se nunca tivéssemos
ouvido em direto a polifonia celestial do pis-
co-de-peito-ruivo, como poderíamos alguma
vez pensar em defender algo que desconhe-
cemos? Dificilmente poderíamos! Sabemos
que defendemos mais rapidamente aquilo
que conhecemos, que estamos ligados, que
nos é próximo. Sem essa experiência, sem
esse contato com a Natureza, dificilmente
conseguiríamos sentir a Sua presença dentro
de nós, para termos o cuidado e o respeito
necessários para a sua preservação e real
valorização. Por conseguinte, precisamos de
voltar a emergir no mundo natural, de olhar
com os olhos de uma criança para a borbo-
leta, que voa sem destino e cujo seu destino é
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uma flor, ou maravilhados com as roupas das
árvores cobertas de líquens. Não... as árvores
não precisam de roupa. Os líquens, para além
da sua função ecológica, vestem as árvores e
as rochas para as tornar mais bonitas. Não é?
Maria José Varandas, no seu mais recente
livro “A Natureza: Solo de conjunção da Ética e
da Estética”, fala-nos de algumas experiências
gratificantes que teve em miúda, nomeada-
mente o contato com a serrania agreste que o
Mondego serpenteava e a abóbada cintilante
que maravilhava o céu de então. Estas expe-
riências vividas em casa dos avós durante as
férias davam-lhe um vivo sentimento de unida-
de cósmica. A sublimidade dessa visão juntou-
-se ao maravilhamento ante a beleza cénica de
paisagens naturais, campestres ou marítimas,
que, nas deambulações infantis, foram des-
pertando em mim a sensibilidade à natureza e
abrindo-me a mente ao transcendente numa
reverência feita de amor e respeito. Arrisco a
dizer que tais experiências vibrantes de luz,
cor e sentido, talvez tivessem feito mais pelo
ser que sou do que as lições que fui colhendo
ao longo da vida, formativas sem dúvida, mas
sem a profundidade ontológica daquelas.
Quem sabe se estas experiências em miúda
não foram determinantes para se ter tornado,
em adulta, numa das mais importantes filóso-
fas da ética ambiental em Portugal e da sua
importância no debate para a preservação
da Natureza? Com as escolas fechadas em
paredes à experimentação do mundo natural
e a sociedade sem grande conexão com o
mundo vivo para lá do humano, perde-se
este sentido do maravilhamento infantil, esta
sensibilidade de ligação, de unidade com a
fonte da vida, tão importante na formação do
indivíduo. Sem estas experiências, sem este
contato mágico com o mundo natural, muito
dificilmente teremos adultos a olhar para a
Natureza com admiração. Teremos adultos
com um déficit de perceção da realidade,
separados, egocentrados, antropocentrados,
cujas ações estão destituídas de uma ética
alargada. Cocordo com Mary Oliver quando
diz que precisamos de incluir as árvores,
as montanhas e os rios em todas as ideias
importantes.
Damos muitas vezes mais valor a uma obra de
arte inerte, do que a subtileza de um mundo
vivo.Emboraaartehumanacontagieamentee
até a alma pelo símbolo ou pela beleza, ela não
é mais bela que a criação que encontramos na
Natureza. A Natureza em si é a Arte, a Beleza e
o Significado, que o humano tenta representar
na sua arte. Peter Singer disse: Contemplei
quadros de Louvre e em muitas grandes ga-
lerias da Europa e dos Estados Unidos. Creio
que tenho um razoável sentido de apreciação
das belas-artes. Contudo, não tive em museu
algum experiências que tivessem preenchido
o meu sentido estético a tal ponto realizantes
como quando caminho por um cenário natural
e faço uma pausa para admirar do alto de um
pico rochoso a paisagem de um vale coberto
de floresta (...) Creio não ser o único a sentir
tal exaltação; para muita gente, a Natureza
constitui a fonte dos mais altos sentimentos
de emoção estética, elevando-se a uma inten-
sidade quase espiritual. Há algo de profundo
subjacente na Natureza. Rachel diz-nos que
Aqueles que habitam, como cientistas ou
leigos, por entre as belezas e os mistérios da
terra nunca se sentirão sós ou enfastiados da
vida. Sejam quais forem as contrariedades ou
as preocupações da sua vida pessoal, os seus
pensamentos podem encontrar caminhos
que conduzem ao contentamento interior e
a um renovado entusiasmo de viver. Aqueles
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que contemplam as belezas da terra encon-
tram reservas de força que resistirão enquanto
durar a vida. Existe beleza tanto simbólica
como real na migração das aves, no fluxo e
refluxo das marés, no botão fechado pronto
para a eclosão da primavera. Há nos refrões
repetidos da natureza algo infinitamente
capaz de curar – a certeza de que a aurora se
seguirá à noite, e a primavera ao inverno. Sinto
o mesmo que Varandas, quando diz que há
um elemento de fusão presente na apreciação
estética na Natureza. Uma paisagem biodiver-
sa e harmoniosa é uma estética que toca o
espírito, que, sem qualquer interferência direta
da mente, faz-nos compreender diretamente
a realidade mais profunda que liga todos os
seres numa teia viva. Por esse motivo, a Natu-
reza silvestre é uma fonte de espiritualidade e
recomenda-se a sua fruição para o bem-estar
do indivíduo. Esta vivência, esta consciência
da unidade, este maravilhamento que flui da
estética natural é o que o ser humano mais
precisa. Nele não existe guerra contra nós
próprios, contra os outros ou contra a Natu-
reza. Nele não existe tu e eu, eu e a Natureza.
Tudo é mais simples e perfeito. Eu sou tu e
a Natureza. Eu sou a árvore e a floresta, a
chuva e o rio, a rocha e a montanha, todos os
seres vivos e inanimados, toda a Manifestação
está em mim e eu Nela. Tal como aspirava
Paulo Borges: Ah, se nos pudéssemos todos
converter ao espanto e ao maravilhamento!
Ao espanto e maravilhamento por tudo e
pela mínima coisa. Já não haveria lugar para
a ignorância de querer conhecer definindo,
julgando e classificando, já não haveria lugar
para a agressão nem para a ganância. No
maravilhado espanto tudo isso se suspende.
No maravilhado espanto regressamos ao
Paraíso da consciência desperta, aberta,
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deslumbrada. No maravilhado espanto somos
Paraíso. Sem saber o que isso seja. Diria que
no maravilhado espanto somos o que somos,
a mente acalma-se, deixa de ser catalogadora
e separatista, silencia-se e abre-se ao Uno.
As desgraças que nos chegavam ainda
recentemente pareciam vir de muito longe,
como de um mau sonho se tratasse. A perda
da biodiversidade, o desaparecimento das
espécies ou as alterações climáticas eram
coisas que pareciam existir num mundo oní-
rico, surreal. Um mundo cruel dominado por
uma espécie monstruosa que explorava,
expulsava, envenenava, escravizava e mata-
va as outras espécies. Um inferno especista.
O ecocídio era a expressão máxima desse
mundo. Afinal, parece que esse mundo é
real e somos nós o terror das outras espé-
cies. Estamos agora a acordar para esse
facto, porque a dimensão dos estragos
que causamos à Natureza, colocaram-na
doente, e a sua doença está a afetar-nos.
Estamos a levar com as incongruências da
embriaguez que vivemos. Os incêndios e as
inundações são apocalípticas, os furacões
mais numerosos e violentos e muitos locais
deixaram de suportar a vida. Foi um dispa-
rate pensarmos que podíamos dominar a
Natureza ou que não precisávamos dela ou
que somos separados dela. Quanto mais
danificamos a Natureza, mais nos agre-
dimos e mais tristes seres nos tornamos.
Cada parte da Natureza que morre, desapa-
rece também uma parte de nós. A dimensão
da tragédia, a crise ecológica que vivemos
foi possível porque deixamos de olhar para
a Natureza com os olhos maravilhados de
uma criança que aprende os mistérios da
vida, e crescemos hipnotizados por uma
máquina artificial que alienava a verdade e
transformava a beleza natural em bens, mas
deixava, entretanto, um rasto de morte e
destruição. A insensibilidade de uma mente
fria, ego e antropocentrada não nos deixava
ver a desgraça que causavámos à nossa
volta e a nós próprios. Os antidepressivos
adormeciam a nossa dor interior, mas a cura
só é possível com o regresso à nossa ver-
dadeira natureza, que está intrinsecamente
ligada ao mundo natural. Não é por acaso
que há imensos estudos que associam o
bem-estar e a melhoria das condições físi-
cas e mentais ao contato com a Natureza.
É imperativo melhorar a nossa perceção
do mundo e munir as nossas crianças das
experiências mais gratificantes da vida:
amor e sentir a Natureza. Carson diz-nos: E
as vozes das coisas vivas. Nenhuma criança
deveria crescer sem se aperceber do coro
da alvorada dos pássaros na primavera. (...)
Ouvimos nesse coro da madrugada, a pul-
sação da própria vida. Precisamos de ouvir
e dar a ouvir a pulsação da própria vida.