Redes sociais revelam estrutura interna do Estado brasileiro
1. REDES SOCIAIS E PODER
NO ESTADO BRASILEIRO
Aprendizados a partir
das políticas urbanas*
Eduardo Cesar Marques
O Estado brasileiro é um dos principais ato- Um dos caminhos para a solução desse pro-
res políticos no cenário do país e cumpriu histo- blema é o desenvolvimento de análises detalhadas
ricamente papéis importantíssimos na economia e sobre os processos que estruturam internamente
na política nacionais. Inúmeras facetas do Estado e as organizações estatais, assim como as inserem
de suas políticas foram objeto de análise ao longo no ambiente político mais amplo. Em período
das últimas décadas. Entretanto, em uma situação recente, estudos sobre políticas do Estado utili-
contraditória, conhecemos muito pouco dos deta- zando análise de redes têm contribuído nesta dire-
lhes do seu funcionamento. Em especial temos ção, ao propor a existência de estruturas de médio
apenas escassa compreensão sobre os processos alcance constituídas por redes entre atores no inte-
que organizam a sua heterogeneidade e as suas rior de instituições específicas. Essas estruturas
dinâmicas internas. constituem um denso e complexo tecido relacio-
nal interno ao Estado que emoldura a dinâmica
política e influencia fortemente a formulação e a
* Trabalho originalmente apresentado no XXVIII
implementação das políticas públicas.
Encontro da Anpocs. Agradeço aos colegas, e em
A análise de redes sociais é um campo de
especial ao comentador da seção, Washington
estudo amplo e recente, embora pouco desenvol-
Bonfim, as observações que ajudaram a tornar o
texto mais claro e objetivo. Agradeço também os vido no Brasil até o momento. Os raros estudos
pertinentes e atenciosos comentários de Renata existentes, entretanto, têm explorado de forma
Bichir a versões preliminares deste artigo.
analiticamente inovadora certos fenômenos, em
especial as dinâmicas internas ao Estado e as rela-
Artigo recebido em fevereiro/2005
ções entre ele e a sociedade mais ampla, no inte-
Aprovado em dezembro/2005
RBCS Vol. 21 nº 60 fevereiro/2006
.
2. 16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
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rior de comunidades de política pública específi- tico em termos mais amplos, assim como a
cas. O presente artigo parte dos resultados obti- influência desse sobre as políticas desenvolvidas
dos em estudos desenvolvidos por mim sobre polí- pelo Estado brasileiro, permaneceram analisados
ticas urbanas em duas distintas metrópoles brasileiras de longe e de forma indireta.
(Marques, 2000, 2003). Os anos de 1980 marcaram o início efetivo
O artigo está estruturado em três partes, dos estudos de políticas públicas entre nós.
além dessa introdução e da conclusão. Na próxi- Também inseridos em seu contexto social e políti-
ma seção, discuto os principais elementos concei- co, inúmeros trabalhos esquadrinharam critica-
tuais mobilizados no trabalho a partir das literatu- mente as políticas públicas e analisaram o legado
ras pertinentes. Em seguida, apresento os principais histórico, em especial do Estado Novo e dos
achados no que diz respeito à estrutura interna ao governos militares, nas mais variadas áreas, como
Estado que denomino “tecido” do Estado. Na ter- o sistema de proteção social, saúde, previdência,
ceira parte, discuto os avanços trazidos pela pers- habitação etc., como Santos (1979), Draibe (1989),
pectiva para a compreensão dos padrões de inter- Oliveira e Teixeira (1985), Maricato (1987),
mediação de interesses e das relações entre Azevedo e Andrade (1981) e Melo (1989), por
público e privado no Brasil. Ao final, analiso o exemplo. Nesse momento, realizaram-se análises
impacto dos resultados para a compreensão da que trouxeram à luz características, interesses e
relação entre política e políticas públicas no processos presentes em cada política, apontando
Brasil, assim como para a complexa interação para o desenvolvimento de um substancial conhe-
entre duas das principais estruturas sociais – redes cimento sobre o padrão brasileiro de produção de
sociais e instituições políticas. políticas estatais, em especial sociais. Mesmo neste
conjunto de trabalhos, entretanto, raros foram os
casos em que as dinâmicas internas ao Estado e
Visões sobre o Estado e a associadas diretamente à constituição e ao proces-
contribuição das redes samento das políticas foram analisadas.
Em contrapartida, os anos de 1990 viram pro-
liferar uma literatura marcada por uma intensa
A literatura sobre o Estado no Brasil é ampla
fragmentação temática, disciplinar e analítica. Isto
e extensa. Apesar disso, pouco sabemos sobre o
se deveu em parte ao desdobramento dos estudos
seu funcionamento concreto, ou sobre os deta-
da década anterior, associados à especialização
lhes das dinâmicas que o cercam. Até o início dos
nos diversos setores de política. De uma maneira
anos de 1980, a literatura brasileira ateve-se à aná-
mais ampla, entretanto, isso ocorreu em virtude
lise das macro-características do Estado brasileiro
da ausência de diálogo com perspectivas teóricas
e ao seu papel no desenvolvimento da nação, de
mais amplas que lhe fornecessem balizamentos
uma ordem política moderna e de um certo capi-
sobre o funcionamento do Estado, resultando em
talismo de natureza periférica e dependente, em
uma baixa capacidade de abstração e uma exces-
estudos que vão desde os trabalhos clássicos de
siva fragmentação empírica, como destacado por
Oliveira Viana e Raimundo Faoro, até os trabalhos
Melo (1999). O problema foi agravado pelo fato
de Luciano Martins, Bresser Pereira e Fernando
de as políticas públicas representarem um local de
Henrique Cardoso, já nos anos de 1970, como por
encontro temático de tradições disciplinares muito
exemplo Cardoso (1970, 1975) e Martins (1985).
distintas, e mesmo externas às ciências sociais,
Essa ênfase em interpretações mais gerais era
compreensível no campo intelectual no qual os associadas a áreas específicas de pesquisa. O
autores se inseriam, assim como no contexto polí- resultado de toda essa trajetória é que o campo de
tico que os cercava. Este corpo de literatura legou- estudos sobre o Estado no Brasil se encontra
nos um conhecimento significativo sobre macro- esgarçado entre uma produção ampla com preo-
processos, que excelentes trabalhos posteriores cupações teóricas e macro-sociológicas e uma
como Nunes (1997) só vieram aprofundar. Por miríade de estudos de caso muito detalhados e
outro lado, o estudo do funcionamento do apare- específicos, oriundos em grande parte de áreas
lho estatal e de suas relações com o sistema polí- concretas de política.1
3. 17
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
perspectivas diferem principalmente com respeito
Acredito que uma das principais tarefas para
à ênfase e aos processos que conseguem ilumi-
superarmos tal problema está na construção de pon-
tes entre os modelos de interpretação do Estado e a nar, dadas as suas embocaduras teóricas, encer-
análise concreta de políticas específicas. Caminhos rando instrumentos analíticos cujo uso pode ser
possíveis para a execução dessa tarefa dizem res- mais ou menos apropriado (Santos, 1990).
peito à exploração sistemática das dinâmicas, dos Para os pluralistas, o conjunto de atores pre-
mecanismos ou das estruturas de médio alcance sente na política é muito dinâmico, e seus instru-
que cercam a produção das políticas, como estra- mentos de poder e interesses são instáveis (Dahl,
tégias, instituições e padrões de relação entre ato- 1961). Neste contexto, a própria idéia de perma-
res. Discuto aqui os avanços que nos traz a última nência política implícita no destaque ao Estado,
destas dimensões, relativa ao conjunto de relações para além dos governos, é objeto de estranheza,
entre atores estatais, e entre esses e agentes exter- sendo a ação dos grupos de interesse e as deci-
nos ao Estado, mas a ele ligados de inúmeras for- sões concretas os centros de toda análise política.
mas. Essa estratégia analítica explora o conheci- Os resultados das lutas políticas seriam em grande
mento detalhado dos padrões de organização no parte contigentes, embora a literatura tenha acei-
interior do Estado e da sua inserção no ambiente tado crescentemente a existência de grandes dis-
político e econômico que o cerca. paridades de poder entre os principais atores pre-
O destaque das relações, entretanto, não sentes em sociedades marcadas pela desigualdade
tem por objetivo sobrepujar a importância de outras econômica (Dahl, 2001). No bojo dessas lutas, a
dimensões e elementos já bastante discutidos pelas ocupação do governo via processo eleitoral expli-
literaturas internacional e nacional, embora no caso caria a maior parte das ações governamentais,
brasileiro esses tenham sido mais discutidos do que marcadas pela alternância de poder nas democra-
aplicados. Trata-se apenas de chamar atenção cias representativas. Evidentemente, a ênfase neste
para a presença das estruturas relacionais na polí- caso está na dinâmica e na mudança, sendo as
tica, integrando-as aos elementos já presentes no eventuais “coalizões políticas dominantes” efême-
debate. Mais especificamente, avançaremos se ras e contingentes (Mollenkopf, 1992).
conseguirmos reinserir os atores em seus contex- Para os adeptos da teoria das elites, ao con-
tos institucionais e relacionais, ou associar as trário, os atores políticos vencedores seriam quase
estruturas de poder aos contextos institucionais sempre os mesmos, e a política seria marcada por
em suas estruturas relacionais. Considerando a grandes desproporções de poder oriundas das desi-
importância desse ponto para os argumentos gualdades de riqueza, conhecimento e status pre-
desenvolvidos ao longo deste artigo, defino cada sentes na própria sociedade. Essa situação levaria à
um desses elementos a seguir a partir das litera- ocorrência dos mesmos resultados em quase todas
turas pertinentes. as situações sociais (Hunter, 1953). No que diz res-
peito ao Estado, essa desproporção de poder se
incrustaria nas instituições, levando à perenização
dos interesses da elite, mesmo que de forma indi-
Atores
reta e implícita (Domhnoff, 1979). O foco não esta-
ria apenas na análise de decisões, mas no estudo
Cada situação social conta com um conjunto
do processo político mais amplo, onde ocorreria a
de atores dotados de instrumentos de poder que
influência, como em Useem (1983). Para a teoria
disputam os resultados do processo político em
das elites, portanto, a ênfase no estudo do poder
termos da distribuição de benefícios escassos,
envolveria não apenas o conflito aberto (como gos-
assim como de poder político, que em última aná-
lise explica a possibilidade diferenciada de captu- tariam os pluralistas), mas também a falta de deci-
ra daqueles benefícios. As várias perspectivas sões, em um sentido similar ao construído na crítica
sobre o Estado e o poder diferem na maneira de Bachrach e Baratz (1963) ao pluralismo expresso
como tais elementos são combinados, assim como na categoria “mobilização de viés”. Em um sentido
sobre o que deve ser o centro de nossas preocu- amplo, uma parte importante da explicação da dinâ-
pações analíticas. Do meu ponto de vista, essas mica da política estaria nas mudanças que pode-
4. 18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
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riam vir a ocorrer na estrutura econômica que for- na cadeia de produção das políticas do Estado,
nece instrumentos de poder, assim como na com- ocupam uma posição de destaque em potencial,
posição dos atores presentes na cena, como nas e devem ser trabalhados como os demais atores
“linhas de poder” de Davis (1992). destacados anteriormente.
Sob o meu ponto de vista, parece ser Ao longo das últimas cinco décadas desen-
imprescindível considerar tanto as estratégias dos volveu-se uma tradição analítica associada mais
atores e a contingência dos resultados da política, diretamente ao estudo das políticas públicas, con-
como as desproporções de poder ancoradas nos formando o que alguns autores chamam de policy
instrumentos (mesmo que imateriais) de poder analysis (Ham e Hill, 1993). Não pretendo de
que introduzem fortes tendências à estabilidade. maneira alguma reproduzir aqui o longo e profí-
O resultado parece ser a criação de situações que, cuo debate realizado sobre o tema nas últimas
embora sejam contingentes, apresentam certos décadas, mas pontuar alguns elementos que nos
resultados como muito mais prováveis do que ajudam a localizar o avanço que a análise de redes
outros (Przeworski, 1990). Sem abusarmos da pre- permite com relação aos estudos mais tradicionais
visibilidade, portanto, podemos chamar de estrutu- de políticas públicas. Remetemos os leitores inte-
ra de poder a este conjunto articulado de atores, ressados em uma revisão mais sistemática a obras
posições relativas de poder e instrumentos para como Parsons (1995) e Ham e Hill (1993).
exercê-lo. Embora todas essas três dimensões O desenvolvimento da policy analysis ocor-
sejam dinâmicas e mutantes, apresentam inércia e reu paralelamente e em diálogo com as várias teo-
permanência substanciais. rias do Estado, mas sempre apresentou grande
proximidade com o pluralismo. Em termos gerais,
inclui estudos mais acadêmicos e outros com
preocupações muito orientadas para as políticas,
Instituições, organizações e políticas públicas
o que por vezes produziu algumas confusões
entre os aspectos normativos e analíticos das pes-
Como a literatura neo-institucionalista nos
quisas (Minogue, 1983). Desde as suas primeiras
ensinou já no início dos anos de 1980, os atores
formulações, o processo de produção de políticas
não atuam em um vácuo, onde contam apenas as
foi pensando como composto por etapas subse-
suas posições de poder. Os atores situam-se em
qüentes de um ciclo, como em Easton (1970),
contextos institucionais específicos compostos
embora os nomes e os conteúdos das etapas
por regras de funcionamento da política estabele-
tenham variado significativamente ao longo do
cidas em normas informais, no direito positivo e
tempo.2 A formulação mais disseminada do ciclo
em formatos organizacionais específicos (Skocpol,
o descreve como incluindo formação de agenda,
1985). O efeito desses três conjuntos de elementos
formulação de alternativas, decisão, implementa-
opera de forma similar, alterando resultados,
ção, avaliação e finalização, além da possibilida-
influenciando estratégias e alianças e modificando
de de retroalimentação (Parsons, 1995). Até os
até mesmo o comportamento e as preferências
anos de 1970, a maior parte dos autores conside-
dos agentes (Steinmo et al., 1992; Immergut,
rava o processo de decisão o momento-chave do
1998). No caso específico do desenvolvimento de
ciclo para a explicação das políticas. Neste, os
políticas públicas, a importância das normas
agentes públicos delimitariam os problemas a
legais e dos formatos institucionais e organizacio-
resolver, listariam as alternativas existentes e decidi-
nais é fundamental (Skocpol, 1992). Esse conjun-
riam racionalmente a melhor alternativa (Lindblom,
to de regras legais e desenhos organizacionais
1979). Críticas subseqüentes levaram à elaboração
compõem o contexto institucional em que ocorre
de modelos alternativos de análise mais sofisticados
uma determinada dinâmica política. Essa mesma
literatura também nos chamou atenção para a (Kingdon, 1984; Sabatier e Jenkins-Smith, 1993),
importância das organizações estatais como atores assim como à problematização de vários elemen-
políticos potenciais. Esses são dotados de interes- tos presentes nos modelos tradicionais. Entre
ses próprios e instrumentos de poder específicos. esses merecem destaque o papel da racionalidade
Na verdade, como esses agentes sempre se situam e/ou do incrementalismo nas decisões (Lindblom,
5. 19
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
informação e poder (Scott, 1992; Freeman, 2002).
1979; Smith e May, 1980; Gregory, 1989), a inter-
Para alguns autores, construiu-se a partir de então
penetração das fases do ciclo (Sabatier e Jenkins-
Smith, 1993), os processos (intrinsecamente polí- uma “sociologia relacional”, concentrada nas rela-
ticos) que influenciam a formação da agenda ções sociais e não em atributos de decisores indi-
(Kingdon, 1984), assim como das idéias (Sabatier viduais ou em estruturas concebidas previamente
e Jenkins-Smith, 1993; Hall, 1993) e o caráter não (Emirbayer, 1997). Essa perspectiva estaria situada
automático e extremamente complexo da imple- em um plano de análise intermediário, avançando
mentação de políticas (Hjern e Porter, 1981; na solução das dificuldades analíticas do trata-
Hogwood e Gun, 1984; Lipszky, 1980). Embora mento simultâneo da ação e da estrutura sociais.
não possamos discutir neste artigo os enormes O sentido de estrutura para a análise de redes,
avanços ocorridos no interior dessa tradição ao portanto, não é o mesmo das análises estruturalis-
longo das duas últimas décadas, vale destacar a tas anteriores, pois no caso das redes o formato e
crescente consideração da heterogeneidade inter- o conteúdo são levantados dedutivamente pelo
na ao Estado, assim como a reafirmação constan- trabalho empírico, no que Tilly (1992b) denomi-
te do aspecto político dos processos envolvidos nou estruturalismo a posteriori.
na produção das políticas públicas. No caso das dinâmicas políticas, a natureza
Para o que nos interessa centralmente aqui, intrinsecamente relacional do poder já sugere as
essa literatura destacou cada vez mais a importân- potencialidades trazidas pela perspectiva em estu-
cia do contexto e da interação entre agentes, não dos sobre movimentos sociais, políticas públicas,
apenas na formulação, mas também na implemen- partidos políticos, organizações, esfera dos negó-
tação de políticas. Para Hjern e Porter (1981), por cios e elites políticas, entre outros temas (Knoke,
exemplo, a implementação não seria realizada por 1990). As relações e as posições nas redes consti-
uma “organização focal” isoladamente, mas por tuem estruturas relacionais que constrangem
um agrupamento de atores, conformando o que escolhas, dão acesso diferenciado a bens e instru-
os autores denominam estruturas de implementa- mentos de poder, tornam certas alianças ou con-
ção – conjuntos de organizações que atuariam flitos mais ou menos prováveis e influenciam os
sobre um mesmo problema, participariam do pro- resultados da política. O estudo das redes permi-
cesso por auto-seleção e interviriam todas ao te integrar os atores em seus contextos relacionais
mesmo tempo sobre um certo conjunto de objetos. específicos sem necessariamente abandonar os
Esses autores, entretanto, não especificaram como pressupostos ligados à sua racionalidade, embora
seriam essas estruturas de implementação, como esta ganhe contornos bastante distintos dos con-
funcionariam e como influenciariam a política (e siderados comumente pelas literaturas de ciência
as políticas). Esse tema só começou a ser tratado política e economia (Granovetter, 2000). É inte-
quando uma parte da policy analysis incorporou a ressante observar que essa formulação aproxima
análise de redes sociais (Heclo, 1978), introduzin- a análise de redes em termos teóricos da com-
do matizes da teoria das elites nas cores predomi- preensão de formulações do neo-institucionalis-
nantemente pluralistas da tradição. mo, como é o caso de Immergut (1998).
A ciência política incorporou a análise de
redes principalmente em duas distintas linhas de tra-
balho, de inspiração das teorias das elites e plura-
Redes
lista. Na primeira, foram tematizadas as relações no
interior das elites, discutindo a interpenetração no
O ponto de partida da análise de redes é a
mundo das empresas e as suas conexões com a
consideração de que as redes sociais estruturam os
campos de diversas dimensões do social. A partir esfera política. Embora as preocupações se cen-
dos anos de 1960 e com mais vigor desde a déca- trassem na “estrutura do mundo dos negócios”, as
da de 1980, uma ampla literatura mostrou que os análises apresentaram evidentes contribuições
vínculos entre indivíduos, entidades e organiza- para o entendimento do poder em nossas socie-
ções estruturam as mais variadas situações sociais, dades, dialogando explícita e implicitamente com
influenciando o fluxo de bens materiais, idéias, as explicações marxista e elitista para os processos
6. 20 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
.
de reprodução social. Nessa tradição inscrevem-se cia, optando por entender os processos de deci-
desde o já clássico Mintz e Schwartz (1981) até são como ambíguos e incrementais (Laumann e
Mizruchi (1996) e Carroll e Fennema (2002), por Knoke, 1987).3
exemplo. As elites políticas também foram estuda- A utilização da análise de redes trouxe diver-
das em si, embora por trabalhos de menor fôlego sas contribuições importantes para o estudo das
como, por exemplo, Gil-Mendieta e Schmidt políticas. Em primeiro lugar, permitiu que se dis-
(1996) e Del Alcázar (2002). cutissem os efeitos da complexa interdependência
Uma segunda linha de trabalhos estudou presente na produção de políticas sobre a ação
diretamente as políticas públicas. Embora trabalhos social, considerando não apenas as ligações em
anteriores já tivessem explorado a relação entre torno dos atores (ou as suas interações indivi-
políticas e redes, o marco para o estudo das policy duais), mas também a estrutura dos vínculos e os
networks foi o livro The organizational state, de padrões gerais em que esses estão inseridos. Tais
Laumman e Knoke (1987). O estudo partia, em elementos exercem fortes efeitos sobre a ação
especial, de elementos presentes no pluralismo, individual e estratégica, influenciando a maneira
mas pretendia “desenvolver uma abordagem mais pela qual a racionalidade é limitada (Padget e
informada sociologicamente sobre a com- Ansell, 1993). Em um sentido mais geral, o uso das
portamento dos grupos de interesse” (Laumman e redes permitiu a incorporação do contexto em que
Knoke, 1987, p.7). Nesse sentido, para além do se dá o desenvolvimento de uma determinada
destaque às interelações entre interesses privados, política, levando à produção de interpretações
burocracias e classe política, já enfocadas pelo plu- mais sociológicas do comportamento dos atores,
ralismo por meio da idéia dos “triângulos de como destacaram Laumman e Knoke (1987).
ferro” (Fiorina, 1977), os estudos das policy net- Em segundo lugar, o estudo das redes permi-
works propõem que essas vinculações sejam con- tiu incorporar fenômenos e relações informais às
sideradas mais permanentes e menos orientadas análises (Heclo, 1978), elemento central para a
a resultados específicos, na conformação do que compreensão do padrão difuso e pouco institucio-
Heinz et al. (1997, p. 8) chamam de “atributos nalizado que caracteriza não apenas a influência
estruturais da influência”. Os canais dessa in- (Heinz et al., 1997), como também a própria coe-
fluência, entretanto, seriam baseados em relações são do Estado em muitas circunstâncias (Schneider,
entre organizações e não entre indivíduos 1991). As relações informais, nesse sentido, produ-
(Knoke et al., 1996). zem tanto permeabilidade, como coesão estatal,
Cada área de política seria tematizada como como veremos ao longo das próximas seções.
um policy domain – domínio de política –, sub- Por fim e de alcance mais amplo, a análise
sistema definido pelo reconhecimento mútuo dos de redes abriu novos horizontes para o estudo do
atores envolvidos com a formulação e a defesa da poder no Estado, indicando a existência de cons-
implementação de certas alternativas de política trangimentos e de permanência nos contextos que
relativas a um determinado problema (Knoke, cercam os atores. Como os padrões de vínculo e
2003). Esses atores seriam tanto internos ao Estado, as posições nas redes tornam mais ou menos pro-
como originários de fora dele, mas envolvidos váveis alianças e coalizões estratégicas, e dão aces-
com as políticas pela ação de lobby e busca de so diferenciado a informações e recursos, as estru-
influência (Heinz et al. 1997), pela conexão entre turas das redes de políticas influenciam de maneira
os mundos da política e dos negócios (Laumann importante as dinâmicas do poder no interior do
et al., 1992), associados ao funcionamento de Estado (Marques, 2000, 2003). A sua incorporação
arenas de representação como conselhos de polí- nas análises ajuda a superar a interpretação de que
ticas (Schneider et al., 2003), ou envolvidos com a ação e as estratégias políticas são efêmeras,
experiências de privatização (Jordana e Sancho, assim como a ênfase excessiva no processo de
2003). Essa literatura não discorda da natureza decisão, conforme sugerido pelos modelos plura-
racional dos cálculos individuais, mas destaca a listas de análise. Essas dimensões têm sido muito
pequena capacidade explicativa dessa concep- pouco enfocadas mesmo pela literatura interna-
ção, dado o contexto de grande interdependên- cional de policy networks.
7. 21
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
Em nosso caso específico, uma parte dos ele- O “tecido relacional” do Estado
mentos que se acumula no tempo e explica uma
parcela importante das dinâmicas políticas se Para a aplicação do método em nosso con-
texto específico, acredito que algumas especifici-
expressa no que chamo de tecido do Estado – os
dades precisam ser consideradas.5 Em primeiro
padrões de relação internos ao Estado e entre esse
lugar, no caso brasileiro os domínios da política
e seu entorno político imediato. O estudo das
tendem a ser mais centrados nos órgãos estatais,
redes permite analisar como as ações do Estado
dada a fragilidade das organizações da sociedade
combinam transformação e inércia. Por outro lado,
civil quando comparadas com as existentes em
a incorporação das redes permite superar a falsa
sistemas políticos de características mais pluralis-
dicotomia ainda tão comum em análises recentes
tas. Essas organizações estatais tendem ao mesmo
entre moderno e atraso nas gramáticas do poder
tempo a ser pouco institucionalizadas, assim como
presentes na política brasileira (Nunes, 1997).
a apresentar baixo insulamento e intensos proces-
As três estruturas discutidas ao longo dessa
sos de migração entre órgãos e com o setor priva-
seção – conjunto articulado de atores, instituições e
do. A literatura tende usualmente a interpretar
padrões de relação – influenciam-se mutuamente
essa dimensão como sinal de fraqueza do Estado,
de uma forma complexa ainda não compreendida,
mas acredito que não seja necessariamente assim.
em especial no que se refere às redes. Entretanto, Isso porque uma parte substancial dos vínculos
podemos dizer com certeza que a maneira pela que constitui o tecido do Estado foi construída
qual elas se associam varia de contexto para con- exatamente pelos processos de migração de fun-
texto, mediado pelos atores presentes, pelos instru- cionários entre órgãos. Assim, esse mesmo pro-
mentos de poder a que têm acesso, pelos padrões cesso pode construir condições de coordenação
de relações em que estão inseridos e, sobretudo, entre agências, tornando o tecido do Estado mais
pela própria dinâmica política, incluindo estraté- denso. A questão passa a ser quais condições
gias, ações e resultados. Todas essas estruturas são levam a cada um desses resultados, pergunta que
dinâmicas e historicamente construídas, visto que apenas a realização de inúmeros estudos empíri-
cos pode responder.
não apenas as estruturas de poder e as instituições
Em segundo lugar, diferentemente das análi-
se transformam continuamente (Davis, 1992), mas
ses das policy networks, parto do princípio de que
também as coalizões políticas (Mollenkopf, 1992)
a unidade básica das relações (e da ação) são os
e as redes dialogam sempre com a ação social
indivíduos, e não as organizações. Embora nas
(Pagget e Ansell, 1993). Apenas a realização de
redes sempre esteja presente uma dualidade entre
um conjunto significativo de estudos empíricos
pessoas e organizações (Breiger e Mohr, 2004), a
comparativos poderá permitir a compreensão dos
importância das relações pessoais e a baixa insti-
diferentes efeitos da associação desses elementos
tucionalização de inúmeros procedimentos no
entre si.
funcionamento da administração pública no Brasil,
A influência de tais estudos sobre a análise
quando comparado com os países centrais, torna-
de políticas públicas no Brasil até o momento é
ria artificial e potencialmente enganosa uma aná-
praticamente nula, exceto pelos trabalhos discuti-
lise baseada nas organizações.
dos aqui. Na verdade, são muito raras as análises
Além disso, considero que apenas uma parte
da sociologia e da ciência política de forma mais dos vínculos que organizam e explicam o tecido
geral que utilizam as redes como método, com a do Estado foi construído de forma intencional.
exceção de pesquisas recentes como de Louise Dado que a rede das políticas é apenas uma parte
Nazareno (2005) e do excelente trabalho de Toledo de redes mais amplas associadas à vida dos indi-
(2005) sobre o campo dos empresários em São víduos envolvidos com sua produção, a maior
Paulo. Quase sempre quando se fala em redes, o parte da rede foi produzida há bastante tempo
uso é meramente metafórico.4 O objetivo das com objetivos distintos dos mobilizados em um
seções que se seguem é auxiliar no preenchi- determinado momento, ou mesmo sem objetivo
mento dessa lacuna. algum. Isso ocorre embora os vínculos possam
8. 22 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
.
ser operados ou acionados intencionalmente em sos atores envolvidos com uma determinada polí-
circunstâncias específicas. Sob esse ponto de vista, tica, como técnicos do Estado, ou burocracias em
portanto, os atores imersos nas redes podem até um sentido mais geral, demandantes da política,
construir cálculos estratégicos auto-interessados, contratantes da política e políticos e gestores que
mas esses não apenas sofrem modificação pelas ocupam cargos eletivos e de livre indicação.
percepções e preferências influenciadas pela rede Os resultados de duas pesquisas recentes
(Granovetter, 2000), como também se caracteri- sobre políticas públicas utilizando redes sociais
zam por formas complexas de racionalidade limi- (Marques, 2000, 2003) permitem sustentar vários
tada no sentido dado por Elster (1994). Voltarei a processos sobre o tecido do Estado brasileiro.
esse ponto mais adiante, quando tratar da per- Antes de discuti-los, entretanto, é importante apre-
meabilidade do Estado. sentar as duas pesquisas em linhas gerais.6 O dese-
Portanto, os vínculos e as redes tendem a ser nho geral das duas investigações foi similar, de
mais resilientes e duráveis no tempo do que maneira a permitir a comparação posterior dos
usualmente se considera, especialmente em sua resultados. O primeiro estudo analisou as políti-
estrutura. As informações empíricas apresentadas cas de saneamento básico na região metropolita-
nas próximas seções confirmam essa hipótese. na do Rio de Janeiro, desenvolvidas por uma
Esse ponto de vista tende a colidir com uma parte empresa pública – a concessionária estadual dos
substancial da literatura nacional, em grande parte serviços entre 1975 e 1996 (Cedae). Essa empresa
baseada em uma leitura instrumentalista da cate- foi constituída a partir da fusão de três outras
goria “anéis burocráticos do poder” de Cardoso empresas públicas existentes no período anterior
(1970). Segundo essa leitura, os “círculos de inte- a 1975.7 A segunda pesquisa analisou uma outra
ressados” em determinadas políticas mobilizariam política territorialmente localizada – a de infra-
de forma intencional e relativamente transitória estrutura urbana, desenvolvida por um órgão da
vínculos com parcelas das burocracias estatais de administração direta do governo municipal de São
forma a obter determinados resultados em seu Paulo entre 1975 e 2000 (Secretaria de Vias
proveito. Proponho que o mecanismo seja consi- Públicas – SVP). Sob o ponto de vista do desenho
derado ao mesmo tempo mais duradouro e institucional, portanto, a primeira política foi
menos orientado a fins. Voltarei a esse ponto ao desenvolvida por uma empresa pública estadual e
final da segunda seção do artigo. tinha abrangência metropolitana e a segunda foi
O tecido do Estado é produzido e transfor- desenvolvida por um órgão da administração
mado pelas redes entre pessoas e organizações direta da prefeitura da capital e tinha abrangência
que estruturam internamente as organizações esta- municipal. Essas características são importantes,
tais e as inserem em seus ambientes mais amplos. pois as comparações ensinam não apenas com as
No funcionamento concreto da política (e das semelhanças entre os casos, mas também com
políticas), os contatos institucionais são canaliza- suas diferenças ante a variação das condições exis-
dos por contatos pessoais e institucionais que se tentes (Tilly, 1992a). Nesse sentido, como diversas
apóiam em padrões de relações preexistentes, dimensões e processos presentes nos governos
assim como ajudam a recriá-los. Essas estruturas locais também influenciam políticas de outros
de médio alcance canalizam informações, apoios, níveis de governo, a comparação permite discutir
alianças e a formação de projetos, visões e per- elementos mais gerais sobre o funcionamento do
cepções. Além disso, esses padrões de relação Estado no Brasil.
induzem visões de mundo (e da política), influen- Nas duas pesquisas foram realizados amplos
ciam a formação de preferências, constrangem levantamentos primários sobre os investimentos
com fonte direta dos avisos de contratação publi-
escolhas, estratégias e alianças e alteram resulta-
cados nos Diários Oficiais, de forma a que se
dos políticos. Em termos mais concretos, pode-
pudessem analisar as políticas no tempo e no espa-
mos dizer que o tecido do Estado é composto por
ço. Posteriormente foram feitos levantamentos
uma superposição de redes de relações temáticas
documentais e entrevistas para reproduzir as
que circunscrevem as comunidades ligadas a cada
redes de relações dos campos das duas políticas
uma de suas ações. Essas redes incluem os diver-
9. 23
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
públicas. Esses levantamentos permitiram recons- As redes estruturam o interior do Estado, mas
a sua maior ou menor mobilização ou influência é
truir analiticamente, usando as técnicas de análise
produto de decisões de governo. É isso que nos
de redes sociais, o conjunto de ligações entre indi-
ensina o caso de São Paulo, onde a rede da comu-
víduos, entidades e empresas privadas, incluindo
nidade tinha grande proximidade com um deter-
vários tipos de vínculo.8 Considerando o tipo de
minado grupo político (de direita).11 Em governos
rede analisada, as redes foram periodizadas por
de esquerda, optou-se por isolar a rede da políti-
governos.9
ca ao máximo, trazendo de fora do setor um con-
Em cada um dos estudos, foram cruzadas
junto significativo de técnicos, que tentaram ope-
inúmeras dinâmicas das políticas com a investiga-
rar a rede estabelecendo apenas alguns pontos de
ção detalhada das redes, usando medidas e visua-
contato considerados estratégicos na comunida-
lizações. Os resultados que apresento a seguir
de. Assim, embora as redes sejam fortemente iner-
retiram da comparação entre os dois casos lições
ciais e path dependent, as escolhas estratégicas
mais gerais sobre o funcionamento do Estado em
dos atores podem buscar formas de contorná-las,
nível local a partir dos padrões encontrados nas
se isso lhes parecer necessário para alcançar seus
duas redes e da importância dessas para a expli-
objetivos. Em suma, podemos afirmar que as redes
cação das políticas. Por conta do espaço restrito
representam estruturas sociais que introduzem
deste artigo, as evidências empíricas utilizadas são
estabilidades, embora essas não determinem os
apresentadas de maneira tópica, sendo o leitor
resultados da (na ou) política, razão pela qual
remetido para os trabalhos originais para maiores
devemos articular analiticamente as dimensões
detalhes, inclusive relativos aos pressupostos e às
ressaltadas na primeira seção – atores, instituições
técnicas utilizadas.
e redes.
Continuidade e ruptura no tecido do Estado
Construção institucional no tecido do Estado
De uma maneira geral, a presença das redes
Um outro elemento a destacar diz respeito à
fornece um elemento de importante estabilidade
relação entre pessoas e organizações. Como já
nos campos ou nas comunidades de políticas,10
afirmei, alguns autores optam explicitamente por
ajudando a manter ao longo do tempo as capaci-
trabalhar apenas com organizações (Laumann e
dades administrativas e a memória técnica. Na
Knoke, 1987), mas considerando as dinâmicas
verdade, sob esse ponto de vista, a construção de
social e política brasileiras, decidi por reconstruir
redes densas em setores de política é um dos ele-
as redes a partir de indivíduos. Assim, nos dois
mentos constitutivos dos processos de produção
casos em discussão as unidades básicas da ação
de burocracias capazes de implementar políticas,
reproduzidas como nós nas redes são pessoas. Se
como nos sugeriu Schneider (1991).
para uma parte da literatura nacional isso repre-
Embora esses processos estejam ligados à
senta a permanência do atraso na vida política
estabilidade, não se pretende sustentar a pequena
brasileira, parece-me mais proveitoso analitica-
importância dos processos políticos na construção de
mente considerar essa dimensão constitutiva de
dinâmica e transformação, mas exatamente o con-
nossa formação social e observar empiricamente
trário. Como os processos de produção de políticas
suas conseqüências. Quando o fazemos, somos
acontecem imersos nas redes que estruturam o
levados a crer que o que está em jogo não é ne-
Estado, há um grande potencial de influência das
cessariamente a irrelevância das instituições. Na
redes sobre as políticas, mas isso é mediado por
rede do Rio de Janeiro, por exemplo, foi possível
pelo menos dois outros elementos destacados na
observar uma importância cada vez maior dos vín-
primeira seção: as dinâmicas políticas e os forma-
culos institucionais e de trabalho (Gráfico 1). Isso
tos institucionais que cercam as políticas sob estu-
sugere que processos de construção institucional
do. Discuto o primeiro elemento a seguir e deixo
não são necessariamente incompatíveis com ambi-
o segundo elemento para ser analisado ao final
do artigo. entes baseados fortemente em relações pessoais.
10. 24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
.
Gráfico 1
Tipos de Vínculo ao Longo dos Governos – Rio de Janeiro
Fonte: Entrevistas com técnicos da comunidade.
Fonte: Entrevistas com técnicos da comunidade.
Mais do que isso, o caso do Rio de Janeiro e de convivência, mas ao longo do tempo se cons-
sugere, na verdade, que a rede pode ser um impor- tituiu uma única organização dotada de espírito de
tante elemento dos processos de construção insti- corpo, insulamento e cultura técnica própria. Os
tucional. Conforme já afirmado, a empresa encarre- resultados da pesquisa indicaram que a rede cum-
gada da política neste caso foi constituída a partir priu um papel significativo na estruturação da nova
da fusão de três outras organizações estatais pré- empresa. Na verdade, o processo paulatino de fusão
existentes. As entrevistas destacaram que o proces- das empresas implicou simultaneamente a fusão de
so de fusão foi bastante difícil em termos políticos suas redes respectivas (Tabela 1).
Tabela 1
Evolução dos Vínculos Segundo Origem – Rio de Janeiro
GOVERNOS
Marcelo
Antes de Chagas Brizola I Moreira Brizola II
VÍNCULOS Alencar
1975 (1975/1982) (1983/1986) (1987/1990) (1991/1994)
(1995/1998)
No 295 316 340 298 345 307
Com membros da
empresa original % 82 68 62 57 55 52
No 66 152 212 222 283 280
Com membros de outra
% 18 32 38 43 45 48
Total de Vínculos No 361 468 552 520 628 587
Total de nós No 111 127 153 153 154 151
Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.
11. 25
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
mas apenas um dos dois grupos que polarizaram a
Como se pode observar, ao longo do tempo
a participação relativa dos vínculos com indiví- rede no restante do período. O outro grupo que
duos que trabalharam na empresa de origem polarizou não tinha nenhuma relação com esses, e
tende a cair, e com ex-membros das outras empre- nasceu em associação com a ocupação de cargos
sas aumenta substantivamente. Mesmo assim, no institucionais e vínculos com políticos.
final do período, a rede mantinha uma proporção No caso de São Paulo, ilustrado pelo Gráfico
significativa de vínculos entre indivíduos oriundos 2, diferentemente, foi possível observar uma tran-
de suas empresas de origem, comprovando o sição geracional suave de um primeiro grupo for-
aspecto fortemente dependente da trajetória da mador e hegemônico no seu início para dois ou
comunidade e a relevância dos vínculos na cons- três outros grupos que surgem a partir daquele,
tituição da nova organização. mas se constituem como um conjunto articulado
de sub-grupos do centro mais denso e hegemôni-
co da rede. Para a análise do efeitos das gerações,
os técnicos foram classificados pelas gerações a
As transformações do tecido do Estado
que pertencem, considerando: geração 1 – gera-
ção mais antiga, com pessoas hoje na faixa dos 80
As redes de políticas estão em constante
anos, já aposentados, sem alguma participação
mudança, pelo lançamento e pela quebra de víncu-
ativa; geração 2 – funcionários aposentados, na
los, sendo as mudanças de governo momentos pro-
casa dos 70 anos, com alguns ainda em atividade;
pícios e concentrados para essa ocorrência.
geração 3 – pessoas em torno de 60 anos e em
Entretanto, há alguns processos sistemáticos de
vias de aposentadoria; geração 4 – pessoas em ati-
transformação em curso nas redes. O mais impor-
vidade, em torno dos 50 anos; geração 5 – pessoas
tante elemento temporal de longo prazo a destacar
mais jovens em atividade, na faixa dos 40 anos.
diz respeito à dinâmica geracional. Como seria de se
Como podemos ver, no caso de São Paulo, foi
esperar, a entrada e a saída de coortes na burocra-
possível observar uma inflexão parcial na composi-
cia e na política impacta as redes, causando trans-
ção geracional em um dado período, para além da
formações pela inclusão e exclusão de novos
tendência demográfica já observada. Nesse momen-
membros e pela criação ou desmontagem de gru-
to, que corresponde ao governo Maluf no início dos
pos de indivíduos e entidades no seu interior. Os
anos de 1990, muitos indivíduos das primeiras gera-
grupos são conjuntos de indivíduos e entidades
ções da política retornaram os centros de decisão
com intensos vínculos internos e similar padrão de
da política, o que indica que a dinâmica geracio-
relacionamento com o restante da rede. Sob o
nal nas políticas também está associada à dinâmi-
ponto de vista político, podem representar agre-
ca política e às decisões tomadas pelos ocupantes
gações de visões comuns sobre a política, ou
dos cargos institucionais.
mesmo unidades de ação coletiva. No interior das
Sob esse ponto de vista, portanto, embora
redes, há sempre grupos mais ou menos centrais
certos indivíduos possam representar os herdeiros
em termos de poder, não apenas pela localização
políticos e profissionais de outros, a passagem da
de quem ocupa cargos institucionais, mas também
centralidade na política implica na transmissão de
pela posição relativa dos grupos, que lhes garante
diversos “ativos”, alguns deles relacionais e liga-
maior ou menor acesso ao conjunto (ou a partes
dos às posições que ocupam nos padrões de víncu-
específicas) do tecido relacional.
lo internos às organizações e com o ambiente polí-
Com o declínio das coortes mais velhas e o
tico mais amplo. No caso de São Paulo, essa
aparecimento de mais novas há uma tendência
demográfica à troca dos grupos mais importantes. transmissão ocorreu, mas no caso do Rio de Janeiro,
No caso do Rio de Janeiro, isso significou uma não. Esse parece ser um importante elemento expli-
certa perda de hegemonia na rede, com o declínio cativo da estabilidade nas estruturas de poder em
do grupo que controlava a política no início do organizações e na política. Tal dimensão é visível
período estudado. Esse grupo teve um outro con- em trabalhos etnográficos de cunho relacional
junto de indivíduos como herdeiros, mas esses não sobre elites, mas que não utilizam as redes
mais representaram o grupo hegemônico na rede, metodologicamente, como Kuschnir (2000) e
12. 26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
.
Gráfico 2 - São Paulo
Geração dos Indivíduos na Rede por Governo
Fonte: Entrevistas com técnicos da comunidade.
Pedroso de Lima (2003), sobre a transferência dos agrupamentos, sugerindo que para uma gran-
de herança político-eleitoral e empresarial, res- de quantidade de redes (chamadas pelo autor de
pectivamente. small world), conectividades muito altas (ou dis-
Com relação às transformações nas redes, um tâncias médias pequenas) tendem a coexistir com
outro ponto merece destaque. Embora o assunto pequenos graus de aleatoriedade. Essas caracterís-
envolva alguma complexidade técnica, tentarei ticas tendem a se manter no tempo de forma
apresentá-lo da forma mais simples possível, pois pouco alterada.
reforça bastante o argumento da tendência à esta- A principal conseqüência prática dessa cons-
bilidade. Até recentemente, a literatura de redes tatação é que as redes tendem a mudar pouco não
sociais indicava como principais elementos pro- apenas pela pequena presença de mudanças ocor-
motores de estabilidade a grande quantidade de ridas em cada período, mas também porque há
vínculos e nós herdados de períodos anteriores, elementos na sua estrutura que tendem a manter
tornando o volume desses em um determinado as características gerais, mesmo em momentos de
período bastante pequeno em termos relativos. intensa transformação de vínculos. Em contrapar-
Recentemente, os influentes trabalhos de Watts tida, um pequeno grau de aleatoriedade tende a
(1999) e de Watts e Strogast (1998) abriram uma gerar aumentos muito grandes de conectividade.12
nova forma para interpretar a continuidade nas A aplicação dos resultados de Watts às redes
redes. Watts demonstrou que a introdução de alea- da engenharia urbana em São Paulo e à comuni-
toriedade nos vínculos de uma rede regular (como dade do saneamento no Rio de Janeiro sugere
uma treliça, em seu exemplo mais extremo) tende que estamos diante de dois casos de small world
a reduzir a presença de agrupamentos densos, ao networks. Uma rede é de tipo small world quan-
mesmo tempo em que eleva a conectividade média do a presença média de agrupamentos ainda é
(ou reduz a distância mais curta entre os pontos bastante elevada (se comparada a uma rede intei-
mais extremos). O principal achado do autor, entre- ramente aleatória de igual tamanho), mas a sua
tanto, está no fato de que, à medida em que se conectividade é bastante grande, ou a distância
introduz aleatoriedade nos vínculos (e a rede fica média entre os pontos mais extremos pelo cami-
mais longe da treliça), a conectividade tende a se nho mais curto é pequena (quando comparada
elevar muito mais rapidamente do que a queda com igual rede teórica). Portanto, se dividirmos
13. 27
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
indicadores dessas dimensões (agrupamento e políticas, sugerindo constrangimentos mais redu-
conectividade) da rede aleatória pelo de nossas zidos aos atores e uma menor inércia à mudança
redes empíricas, encontraremos um valor próxi- nas organizações e na política do que os empiri-
mo de 0 para o primeiro (visto que os agrupa- camente observados.
mentos da rede empírica são muito mais intensos
do que na rede teórica) e próximo de 1 para o
segundo (visto que a distância média máxima é As fronteiras das comunidades de política
relativamente igual entre elas). No nosso caso,
apenas para concretizar o argumento: Como vimos, embora as redes estejam sem-
pre se transformando, isto acontece em um con-
a) A relação entre o índice de agrupamento texto de elevada inércia e tendência à estabilida-
(cluster coefficient) da rede aleatória (teóri- de. De forma similar, as redes apresentam
ca) e de nossas redes é de: Cedae (primeiro contornos mutáveis no interior de comunidades
gov. Brizola) – 0,11; Cedae (gov. Marcelo ou campos, o que torna a delimitação de suas
Alencar) – 0,07; SVP (gov. Erundina) – 0,04; fronteiras uma outra dimensão extremamente
e SVP (gov. Pitta) – 0,05. importante. A rigor, se estamos tratando de con-
b) A relação entre as distâncias da rede aleató- juntos de vínculos de diversos tipos construídos
ria (teórica) e de nossas redes é de: Cedae ao longo da vida dos indivíduos, todo o âmbito
(primeiro gov. Brizola) – 0,74; Cedae (gov. social constitui-se em uma única rede com densi-
Marcelo Alencar) – 0,92; SVP (gov. dades e especializações temáticas nas suas distin-
Erundina) – 0,84; e SVP (gov. Pitta) – 0,86. tas partes, o que tornaria impossível implementar
um estudo centrado em redes. Por essa razão,
As principais conseqüências disso dizem res- precisamos delimitar a região da rede “total” que
peito às elevadas conectividades destas redes e às corresponde à sociedade inteira (ou à parte do
suas resistências à mudança, principalmente em tecido do Estado) no interior da qual um deter-
suas estruturas gerais. Quanto ao estudo do Estado, minado processo sob estudo ocorre. A solução
esses dados sugerem que o tecido do Estado tende para essa questão está nas escolhas analíticas do
a gerar um padrão intenso de conectividade e que pesquisador que deve ser coerente com os pon-
essa parece ser bastante resistente a mudanças. tos de partida teóricos adotados. Isso é funda-
Isso pode acrescentar novos argumentos na expli- mental, pois a análise de redes permite o desen-
cação da dificuldade encontrada por reformas em volvimento de estudos sem a delimitação prévia
áreas do Estado e em burocracias em diversas con- das fronteiras do campo e, em especial, sem a
dições sociais, assim como explicar uma parte da consideração de que as fronteiras institucionais
tendência à estabilidade das organizações. Além do Estado coincidam com as fronteiras analíticas
disso, mesmo que alterações importantes sejam do campo relevante para a compreensão das
introduzidas na rede de uma determinada comu- ações estatais.
nidade de políticas, as mudanças tenderão a ter Os resultados das pesquisas indicam que no
efeito principalmente local (em vez de estrutural). caso das políticas públicas existe uma vinculação
Tais mudanças podem ser suficientes para permi- entre os limites da rede e o tipo de desenho ins-
tir a alteração radical dos conteúdos das políticas titucional presente no órgão público. No caso do
implementadas, caso as mudanças sejam opera- Rio de Janeiro, onde a política era desenvolvida
das nos locais adequados, mas tendem a não se por uma empresa pública com padrão de carreira
reproduzir no tempo, e a situação tende a voltar específico, receitas próprias, espírito de corpo
à anterior quando os esforços externos cessarem. desenvolvido e elevado insulamento, a rede coin-
Como veremos, é isso que aconteceu no caso de cidia quase que completamente com os limites da
São Paulo. própria empresa. Mesmo as associações societá-
A desconsideração do tecido do Estado, rias presentes no setor eram pautadas pela empre-
como na maior parte da tradição da policy analy- sa estatal, tinham como seus principais membros
sis, leva à incompreensão dessa dimensão das funcionários ligados à empresa e repercutiam
14. 28 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
.
questões e dinâmicas oriundas do interior do associações do governo Erundina – com Jânio cai
órgão estatal. A fronteira nesse caso estava limita- de dez para três indivíduos, com Maluf cai de
da pelo próprio elemento institucional, ou por cinco para um, com Pitta cai de três para zero e
seu papel no funcionamento da política. com Covas cai de seis para cinco. A única outra
A situação encontrada em São Paulo não redução ocorreu entre os governos Jânio e Covas,
podia ser mais diversa. Neste caso, trata-se de um que passou de dez para nove indivíduos
órgão da administração direta sem carreira ou comuns.14
receita próprias e com baixo insulamento. As fron-
teiras da rede não coincidiam com o próprio
órgão, mas o transcendiam em muito. Na verdade, Os campos de política no tecido do Estado
as informações empíricas sugeriram que a rede
correspondia ao campo mais amplo da engenha- Como vimos, devemos construir analitica-
ria urbana em São Paulo, englobando técnicos mente as fronteiras e delimitar as redes no interior
que circulam por várias secretarias afins. Além dos campos, considerando o assunto em estudo.
disso, quando se observou a trajetória dos ocu- Observemos um pouco mais de perto os campos
pantes dos cargos mais importantes, constatou-se onde as redes se localizam, destacando sua con-
a existência de uma rede de gestores próximos ao formação, seu feitio e sua estrutura interna. Em
campo da direita do espectro político, que cruza- termos gerais, no interior do tecido do Estado
va transversalmente governos em vários órgãos (entendido amplamente) conformam-se campos
vinculados à área de engenharia urbana em geral. de política específicos, associados a redes centra-
Esse elemento é visível na Tabela 2, que apresen- das em determinadas temáticas políticas. Tais
ta os ocupantes de cargos importantes comuns a campos incluem conjuntos de atores que partici-
mais de um governo. Efeito praticamente idêntico pam de comunidades de políticas no interior das
verifica-se com os ocupantes de administrações quais se estabelecem conflitos, alianças e ação
regionais.13 social em termos gerais. A conformação desses
Como podemos ver, os únicos governos que campos influencia as dinâmicas, razão pela qual o
não apresentam um conjunto elevado de gestores estudo do tecido do Estado ajuda a compreender
comuns são as administrações Erundina e Covas. a política e as políticas a ela associadas.
A diferença fica ainda maior se eliminarmos os Sob esse ponto de vista, foram encontradas
indivíduos que permaneceram durante o primeiro mais uma vez duas situações distintas nas pesqui-
ano do governo seguinte. Eles têm uma presença sas realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo.
residual em quase todos os governos, menos nas No primeiro caso, os dados indicaram a existên-
Tabela 2
Indivíduos em Cargos Comuns na Engenharia Urbana – São Paulo (*)
GOVERNOS Setúbal % Reynaldo % Curiati % Covas % Jânio % Erundina % Maluf % Pitta %
Setúbal – – 10 4,6 8 3,6 1 0,5 1 0,5 – – 1 0,5 1 0,5
Reynaldo 10 4,6 – – 17 7,7 6 2,7 3 1,4 – – 1 0,5 1 0,5
Curiati 8 3,6 17 7,7 – – 6 2,7 3 1,4 – – 1 0,5 1 0,5
Covas 1 0,5 6 2,7 6 2,7 – 10 4,6 6 2,7 4 1,8 1 0,5
Jânio 1 0,5 3 1,4 3 1,4 10 4,6 – – 10 4,6 4 1,8 2 0,9
Erundina – – – – – – 6 2,7 10 4,6 – – 5 2,3 3 1,4
Maluf 1 0,5 1 0,5 1 0,5 4 1,8 4 1,8 5 2,3 – – 16 7,3
Pitta 1 0,5 1 0,5 1 0,5 1 0,5 2 0,9 3 1,4 16 7,3 – –
Total 22 10,0 38 17,3 36 16,4 34 15,5 33 15,0 24 10,9 32 14,6 25 11,4
(*) Foram considerados os principais cargos de SVP, Emurb e SSO.
Fonte: Fundação Seade e Diários Oficiais do Município de São Paulo.
15. 29
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
cia de uma rede bastante polarizada, com grupos Figura 2
fortes e importantes controlando regiões distintas Rede da Comunidade nos Governos
da rede e disputando poder entre si, polarizando Setúbal/Reynaldo/Curiati – São Paulo
a comunidade. Os dois grupos mais importantes
incluíam principalmente indivíduos oriundos das
duas principais empresas do período anterior. No
meio da rede localizavam-se grupos com peque-
na importância nas disputas pelo poder, mas tam-
bém indivíduos e grupos envolvidos com a
mediação política na comunidade.
No caso de São Paulo, a rede da comunida-
de apresentou polarização interna muito baixa,
tendo, na verdade, um único centro, associado a
um conjunto de gestores públicos de um mesmo
grupo, que se revezava no controle dos cargos
institucionais mais importantes da política. Essa
estruturação centrífuga da rede repetiu o padrão
do funcionamento da própria política e pôde ser
Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.
observada na complexidade da rede ao longo dos
governos. A rede de São Paulo também era bem
mais complexa do que a do Rio de Janeiro, como
pode ser visto nos sociogramas a seguir relativos O poder e o tecido do Estado
ao primeiro governo Brizola – 1982/1986 (Rio de
Janeiro) e ao governo Reynaldo de Barros – Como já foi discutido anteriormente, os gru-
1979/1981 (São Paulo).15 O padrão geral mantém- pos lutam pela hegemonia da política (e das polí-
se nos demais governos de cada cidade. ticas) no interior dos tecidos do Estado associados
às comunidades de políticas. Conseqüentemente,
Figura 1 ao longo dos governos os membros dos diversos
Rede da Comunidade no Governo Brizola grupos ocupam cargos de forma diferenciada,
(1982/1986) – Rio de Janeiro segundo o desenrolar das disputas políticas inter-
nas e de acordo com as relações que conseguem
estabelecer com os detentores do poder institu-
cional. Uma primeira dimensão da relação entre
as redes e o poder, portanto, diz respeito aos gru-
pos de afinidade e apoio, que na rede se apresen-
tam como conjuntos de indivíduos com relações
intensas entre si e inserção similar no conjunto da
rede.
Grupos, cargos e poder na rede
No caso analisado no Rio de Janeiro, onde a
política apresentava maior alternância política e a re-
de maior polarização, os cargos mais importantes
tenderam a oscilar entre os dois pólos da rede a
cada grande mudança política que se verificava
nos cargos-chave do executivo.16 Isso pode ser
visto nas figuras a seguir, que representam a rede
nos governos Leonel Brizola (1982/1986) e
Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.
16. 30 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº 60
.
Moreira Franco (1987/1990), com o destaque dos Na Figuras, os técnicos sem cargo aparecem
ocupantes dos cargos mais importantes. As figuras como pontos simples e os ocupantes de cargos
são sociogramas com os vínculos ocultados (para segundo os símbolos indicados na legenda. Como
permitir a visualização) e com os indivíduos loca- podemos observar, entre os dois governos, as
lizados segundo uma técnica estatística que reduz posições da diretoria e dos cargos de destaque
o viés do pesquisador na apresentação da rede.17 oscilam de um lado do campo ao outro. O mesmo
padrão se repete com os demais governos, e toda
Figura 3 a vez que ocorre uma mudança no grupo político
Rede da Comunidade com Grupos e Diretorias que ocupa o governo, a diretoria da empresa
Governo Brizola – 1983/1986 localiza-se no lado oposto à do governo anterior.
No caso de São Paulo, ao contrário, a locali-
zação das diretorias na rede praticamente não se
alterou ao longo do tempo, e o controle dos gru-
pos hegemônicos sobre os cargos mais importan-
tes foi muito significativo, exceto em governos de
esquerda, como podemos ver na Tabela 3.18
De acordo com a tabela, os mesmos grupos
ocupam os cargos mais importantes na maior
parte dos governos, controlando a política. As
exceções são os dois governos política e ideolo-
gicamente adversários do campo que exerce
hegemonia sobre a política local (e a rede) no
Governo Moreira Franco – 1995/1998 período – Covas e Erundina. Esse resultado refor-
ça a interpretação anterior da Tabela 2 e sugere
que esses dois governos escolheram não apoiar a
implementação de suas políticas na rede do setor,
importando pedaços inteiros da rede de fora e os
conectando apenas topicamente em locais especí-
ficos da comunidade, principalmente no grupo
dos técnicos. Se o argumento a respeito das small
world networks apresentado anteriormente estiver
correto, o efeito dessa estratégia sobre a rede
tende a ser apenas local. Isto quer dizer que a
estratégia ajuda a implementar políticas diferentes
do que a que seria defendida por partes impor-
tantes da comunidade de políticas, neutralizando
a burocracia localizada em posições mais centrais
Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.
Tabela 3
Participação dos Grupos em Cargos Importantes do Setor – São Paulo(*)
PREFEITOS
GRUPOS Setúbal Reynaldo Curiati Covas Jânio Erundina Maluf Pitta
HEGEMÔNICOS (3) No 6 8 7 6 9 6 13 17
% 50,0 67,0 64,0 43,0 56,0 27,0 76,0 81,0
DE (1) No 0 0 0 4 3 11 2 3
TÉCNICOS
% 0,0 0,0 0,0 29,0 19,0 50,0 12,0 14,0
(*) Foram considerados os cargos de secretário, chefe de gabinete, superintendente, diretor e presidente, quando se
aplicava nos seguintes órgãos: SVP, SSO, Emurb, Cohab.
Fonte: Fundação Seade, Diários Oficiais do Município de São Paulo e entrevistas.
17. 31
REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
no tecido do Estado, mas tende a ter influência oposto. Foi essa a dinâmica observada nos socio-
pequena sobre a transformação da comunidade gramas dos governos Leonel Brizola e Moreira Fran-
em si, gerando poucos impactos ao longo do co apresentados na seção anterior.
tempo quando os esforços externos cessam. No caso de São Paulo, diferentemente, os gru-
Como as redes estruturam o relacionamento pos que exerceram hegemonia sobre a política ao
entre agentes no tecido do Estado, a gestão das longo do período pesquisado apresentavam colora-
organizações estatais inclui uma constante nego- ções político-ideológicas nítidas, assim como rela-
ciação entre quem é de dentro (e controla conhe- ções políticas de longo curso com o grupo político
cimento, contatos e posições na rede) e quem vem que exerceu hegemonia sobre a política municipal
de fora. As diferenças na estruturação do campo na maior parte do período. Essas duas dimensões
das políticas associam-se com a maneira pela qual provavelmente foram reforçadas com o controle
as redes se integram nos ambientes políticos mais sucessivo da administração pelo mesmo grupo polí-
amplos. Há três atores políticos que potencialmen- tico e com a operação da política pública sendo
te influenciam as políticas de fora do Estado: continuada por um determinado grupo da rede.
demandantes das políticas, empresas privadas e Nesse caso, portanto, a ligação entre os
políticos (detentores de poder institucional e de detentores dos cargos institucionais mais impor-
comando formal sobre as organizações). Merece tantes no executivo e indivíduos e grupos na rede
destaque especialmente a relação entre os terceiros teve caráter mais permanente e estável, ocupando
e as redes.19 todo o centro da rede. Nos dois momentos em
Os detentores do poder institucional preci- que grupos políticos que se opunham ao hege-
sam de pontos de apoio no interior da comunida- mônico venceram as eleições majoritárias e pas-
de para implementar políticas segundo os seus saram a controlar o executivo municipal, optou-se
projetos. No caso do Rio de Janeiro, que como por trazer de fora da comunidade conjuntos intei-
vimos apresentava uma rede bastante insulada e ros de técnicos, conectados à rede de maneira
com elevada polarização interna, foi possível efêmera e tópica, usando uma das únicas regiões
observar uma associação também polarizada e não associada de forma direta à rede de gestores
oscilante entre os grupos políticos que controla- de direita a que me referi anteriormente. Essa
vam o poder executivo e a rede da comunidade. dimensão é confirmada se compararmos as medi-
No primeiro momento de contato entre um deter- das de centralidade dos secretários por governo
minado grupo político e a política pública consi- (Tabela 4). As centralidades médias de alcance
derada, seus membros estabeleceram contatos com são estatísticas simples das redes, sendo que
grupos no interior da rede não controlados previa- quanto maior a medida, mais elevada a centrali-
mente por seus adversários. Quando esse mesmo dade e maior é a região da rede alcançada pelos
grupo voltou ao poder, acionou novamente os mes- vínculos de um determinado indivíduo.
mos contatos e grupos na rede, resultando na vin- Portanto, se redes do tipo small world apre-
culação de cada grupo político a uma parte da rede. sentam elevada estabilidade em suas característi-
Como tanto a rede quanto a política local se mos- cas estruturais gerais, a relação entre o tecido do
traram polarizadas, a associação entre grupos políti- Estado e a dinâmica do poder pode variar bas-
cos e grupos na rede se deu de forma pendular de tante com mudanças relativamente pequenas,
um governo para outro, às vezes se instalando em possibilitando mudanças de vulto nas políticas.
um lado da rede e no governo seguinte, do lado Este efeito é extremamente importante, mas tende
Tabela 4
Centralidade de Alcance de Indivíduos Escolhidos – São Paulo
GOVERNOS
Reynaldo Covas Jânio Erundina Maluf Pitta
Do secretário 87 78 114 69 94 97
Do chefe de gabinete 80 80 112 67 94 99
Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.
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a ser local e não se reproduzir no tempo. No caso de São Paulo é muito complexa, ocultei os víncu-
paulistano, o efeito local esteve associado à ocu- los fracos nesses sociogramas.20
pação de posições centrais na rede pelos deten- As duas situações – do Rio de Janeiro e de
tores dos cargos mais importantes em governos São Paulo – podem ser retratadas por diferentes
de direita e de posições fortemente periféricas em configurações de uma mesma lógica, que denomi-
governos de esquerda. Isso pode ser observado nei troca de poderes (Marques, 2000). A gestão do
na comparação dos sociogramas dos governos Estado importa no controle de pelo menos dois
Erundina (PT) e Maluf (PDS/PPB) a seguir, em grandes tipos de poder distintos.21 O primeiro
que a diretoria do governo Erundina se associou advém da ocupação dos cargos institucionais, está
a um tramo periférico da rede, ao contrário do baseado na lei e nos ordenamentos administrati-
governo Maluf. Os demais governos seguem o vos e diz respeito à capacidade de dar ordens e
mesmo padrão ao longo do período. Como a rede comandos sobre a máquina pública. Esse tipo é fun-
damental para o exercício do poder, mas não é sufi-
Figura 4 ciente, pois uma parcela significativa da capacidade
Sociogramas por Governo com os Vínculos de operacionalização das políticas está nas mãos das
Fracos Ocultados – São Paulo agências estatais, das burocracias e dos técnicos do
(Regiões destacadas são ocupadas Estado, não apenas na implementação, mas tam-
por cargos importantes) bém na formulação de políticas. Isso nos leva a
uma outra forma de poder vinculada à ocupação
de determinadas posições nas redes do campo de
políticas. Denominei esse tipo poder posicional,
sustentando que ele se encontra inscrito nas redes
sociais que compõem os campos de política. Sob
o ponto de vista político,22 os chefes do executivo
trocam cargos institucionais (poder institucional)
por posições com os membros das burocracias
(poder posicional), o que significa para esses últi-
mos a obtenção de salários mais elevados, maior
status etc. Os técnicos do Estado, por sua vez,
emprestam suas posições e padrões de vínculo,
possibilitando a implementação das políticas pela
mobilização de regiões inteiras da rede no sentido
de implementar ações do Estado presentes no
Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.
“programa” dos detentores de cargos institucionais
mais expressivos. Mais adiante discuto a relação
desse programa (e dos políticos eleitos) com a
rede.
Afirmo que a dinâmica em curso nos dois
casos é a mesma, pois tanto no Rio de Janeiro
como em São Paulo os detentores dos cargos ele-
tivos dialogaram com grupos nas comunidades
específicas para a obtenção e a conquista de pon-
tos de apoio nas redes. Os diferentes resultados
desse processo nas duas cidades dizem respeito
às diferenças nas configurações das redes, nos
ambientes institucionais e nas estruturas de poder
local. Essas diferenças levaram a que, em um caso,
a rede fosse polarizada e a relação com o poder
institucional fosse pendular (Rio de Janeiro), no
Fonte: Entrevistas com membros da comunidade.
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REDES SOCIAIS E PODER NO ESTADO BRASILEIRO
outro, a rede estivesse muito associada a um Paulo diferem significativamente, mas quando le-
determinado grupo político e os outros grupos vamos em conta as diferenças institucionais, rela-
tivessem que operar quase que por fora da rede cionais e da configuração dos atores, é possível
(São Paulo). compor um quadro mais amplo que nos esclarece
Portanto, a realização de políticas pressupõe sobre os mecanismos de influência na relação entre
o controle, ou ao menos a forte consideração do público e privado veiculados pelas redes. Assim
tecido do Estado por parte dos atores. Esse ponto como as demais dimensões discutidas até o
é fundamental e foi negligenciado pela maior parte momento, os resultados guardam algo da especifi-
da tradição da policy analisys, assim como pelas cidade dos casos que nos estudos apresentados
principais teorias do Estado discutidas na primeira dizem respeito ao funcionamento do mercado local
seção. de obras públicas.
A grande maioria das obras realizadas na
implantação das políticas de infra-estrutura urba-
na é contratada com empresas privadas, sendo que
As redes na interface entre o público e o privado
a escolha das empresas vencedoras é realizada
Se as redes nos explicam muito sobre a con- segundo os procedimentos das licitações públicas.
formação do tecido do Estado, também ocupam Assim, uma forma bastante interessante de anali-
um importante papel na ligação entre ele e grupos sarmos a permeabilidade nesse tipo de política é
externos, vinculados tanto a interesses organizados investigando se o padrão de vitória de empreitei-
como a atores individuais isolados. Em outras pala- ras tem relação com as posições ocupadas por
vras, as redes explicam uma parte significativa das elas nas redes políticas, ou com outras variáveis
relações entre público e privado no Brasil, na con- não relacionais. Para isso, nos dois casos estuda-
formação do que denominei permeabilidade dos levantei todos os contratos assinados com
(Marques, 2000). Esse aspecto já foi tematizado por empreiteiras para a realização de obras e serviços
uma ampla literatura, que inclui inúmeros autores, de engenharia, cerca de 800 no Rio de Janeiro e
entre os quais Cardoso (1975) continua sendo uma pouco mais de 5.500 em São Paulo. Em seguida,
das mais importantes referências com suas idéias localizei a posição das empresas mais importantes
de “círculos de interessados” e de “anéis burocráti- nas redes de relações das duas comunidades em
cos do poder”. Não cabe aqui discutir detalhada- cada governo a partir de informações obtidas em
mente as categorias, mas acredito que uma descri- entrevistas, calculando para elas uma série de
ção geral da idéia de permeabilidade do Estado medidas de centralidade na rede. As medidas de
seja esclarecedora.23 Ao contrário dos conceitos de centralidade, os volumes de vitórias (sempre em
privatização do Estado e de anéis burocráticos, a volume de recursos) e outras variáveis não rela-
permeabilidade do Estado aponta para uma carac- cionais foram submetidos a análise quantitativa de
terística potencial, perene no tempo e presente em forma a testar a influência e as características da
todos os campos de ação do Estado. Na verdade, a permeabilidade.24
permeabilidade é apenas a especificação do efeito No caso do Rio de Janeiro, a análise estatís-
das redes presentes em todas as dimensões sociais tica dos resultados indicou que a distância na
para os locais onde ocorre o encontro (ou a super- rede entre uma determinada empresa e os deten-
posição) do Estado com o privado. O seu funcio- tores dos cargos institucionais não influenciava no
namento potencial apóia-se predominantemente padrão de vitória. De forma similar, o capital das
em vínculos não intencionais, construídos ao longo empresas não apresentou associação estatística
das trajetórias dos indivíduos e das organizações e relevante com os padrões de vitória. Nesse caso,
marcado por intensa dependência da trajetória, portanto, nem o porte da empresa, nem sua rela-
embora seja possível delimitar regiões específicas ção com políticos importavam. A exceção obser-
das redes produzidas de forma intencional e orien- vada disse respeito a um conjunto muito peque-
tada a lesar o Estado. no de contratos de valor muito elevado assinado
Sob o ponto de vista da permeabilidade, com empresas de grande capital societário. Para
novamente os casos do Rio de Janeiro e de São esse conjunto de outliers, a proximidade das em-