Resenha da acadêmica Sintea Rause para a disciplina de Antropologia & cosmovisão, contrastando os textos de François Laplantine e Adalberto Dias Carvalho.
1. CARVALHO, Adalberto Dias de. A antropologia filosófica na encruzilhada das ciências
humanas. Porto: Universidade do Porto, Revista da Faculdade de Letras: Filosofia, 05-06,
1988-1989, p.7-28. Disponível em < http://repositorio-
aberto.up.pt/bitstream/10216/8759/2/1686.pdf > acesso em 28/05/2012.
LAPLANTINE, François. O campo e a abordagem antropológicos. In: LAPLANTINE,
François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007.
Resenha
Resenhista: Sintea Reuse
No capítulo de introdução de seu livro, o pesquisador francês de renome internacional,
professor da Universidade de Lyon, François Laplantine busca uma explicação que abranja a
abordagem e o campo de atuação da antropologia. Para tanto, apresenta uma breve linha do
tempo percorrida pelos antropólogos para definir e situar a antropologia. O autor subdivide a
antropologia em dois níveis: o estudo do homem inteiro; e o estudo do homem em sua
diversidade. O antropólogo e etnólogo apresenta ainda algumas dificuldades que surgiram ao
tentar definir e situar a antropologia em relação a outras ciências e em relação a si mesma.
Por outro lado, o professor catedrático da Universidade do Porto, Adalberto Dias de
Carvalho, inicia o seu texto propondo três itens para a reflexão, os quais ele utiliza para
orientar o entendimento da relação entre antropologia filosófica e as ciências humanas. Os
três pontos de vista apresentados pelo autor português, e discutidos ao longo do texto são: a) a
definição de antropologia como reflexão sobre o homem o que, consequentemente, leva à
afirmação de que a antropologia é uma disciplina filosófica por excelência; b) a antropologia
só será verdadeira se for científica; c) a antropologia filosófica é totalizante e integra, de
forma coesa e transdisciplinar, os discursos científicos sobre o homem.
Nesse sentido, podemos encontrar pontos de convergência e divergência entre os dois
autores que em função de sua formação e área de pesquisa defendem aspectos diversos ao
longo de suas colocações. As semelhanças e diferenças de abordagens serão colocadas lado a
lado, levando a uma reflexão mais crítica, por ter dois autores em um diálogo provocado pela
aproximação desses textos.
Num primeiro momento, é possível perceber, no início do capítulo de Laplantine, a
afirmação de que o ser humano sempre se interrogou sobre a sua existência, e que essa
reflexão ocorreu desde os primórdios e em todos os continentes. Tal declaração exemplifica a
primeira das três questões levantadas por Carvalho, pois foi um momento inicial da história
humana e da filosofia em que iniciou a construção da antropologia filosófica, como afirma o
filósofo português.
Num segundo momento, Laplantine, em sua cronologia, ressalta que o surgimento da
ciência do homem, entendida como antropologia, ocorreu apenas no final do século XVIII. O
pesquisador francês ressalta que antes disso, o saber sobre o ser humano, ao invés de ser
científico, era apenas mitológico, artístico, teológico e filosófico. Essa constatação vai ao
encontro do segundo item apresentado por Carvalho, como forma de desconstrução daquilo
que havia sido elaborado anteriormente, gerando subdivisões da antropologia em ramos
específicos conforme o conteúdo a ser pesquisado. Para o autor português, essas antropologias
positivas afirmaram-se à custa do apagamento da antropologia filosófica.
O pesquisador francês afirma que em meados do século XIX, surgiram os primeiros
estudos de sociedades, cujo objeto de investigação eram grupos considerados “primitivos” em
relação às áreas de civilização da Europa e da América do Norte. Essa escolha foi feita devido
2. à separação que deveria haver entre observador e objeto, ou seja, na antropologia, a distância
entre o sujeito da observação e o objeto observado ocorreu, nessa época, de forma geográfica.
Definiu-se, assim, o objeto de estudo da antropologia: as populações não pertencentes à
civilização ocidental. Com o tempo, porém, percebeu-se que esse objeto de estudo, as
sociedades “primitivas” estava desaparecendo, o que ocasionou uma crise de identidade da
antropologia. Diante disso, surgiram várias respostas, dentre as quais o autor destaca três: a
aceitação da morte da antropologia e a consequente volta à outras ciências humanas; a busca
de outra área de investigação, como, por exemplo, o homem do campo; a confirmação da
especificidade da prática antropológica que consiste no estudo do homem inteiro e em todas
as sociedades, lugares e épocas. É a este último aspecto levantado por Laplantine (o do estudo
total e completo do ser humano) que Carvalho se refere ao dizer que uma terceira forma de
antropologia filosófica emergente (ou talvez a reconstrução das duas antropologias anteriores)
é a tentativa de totalizar o que foi fragmentado no momento precedente, sem, todavia, deixar
de lado nem a ciência e nem a filosofia. Em outras palavras, segundo a abordagem de
Carvalho, neste momento a antropologia filosófica voltou para integrar as antropologias
positivas.
Laplantine ressalta que a antropologia busca integrar e relacionar campos de
investigação que geralmente são separados. Nesse sentido, o estudioso cita e explica as cinco
áreas de trabalho antropológico que estão estreitamente relacionadas entre si, também citadas
por Carvalho que as chama de antropologias positivas: a antropologia biológica, a
antropologia pré-histórica, a antropologia linguística, a antropologia psicológica e a
antropologia social e cultural, também conhecida como etnologia.
Carvalho indica alguns aspectos que geraram conflitos ao longo da história da definição do
objeto de estudo e da abordagem da antropologia filosófica, tais como a objetividade e a
subjetividade, o solipsismo e a alteridade, a identidade pessoal (criada num grupo) e a
identidade individual (antes da vivência interpessoal), entre outros. Para tanto, o autor
português afirma que “o sujeito pessoal é uma emergência da pessoa enquanto relação e não a
sua condição ou essência” (1988-1989, p. 13). Assim, é possível perceber que a abordagem de
Carvalho defende um ponto de vista da Humanidade, ou seja, visão de todo, integral do ser
humano, uma vez que Laplantine expressa um posicionamento relativo às humanidades, ou
seja, vários grupos de seres humanos.
Além disso, alguns desses aspectos problematizados por Carvalho são também
apontados por Laplantine como dificuldades da atualidade. Para o antropólogo e etnólogo
francês, apesar de existir uma unidade entre os antropólogos em reconhecer que a prática da
antropologia reside, atualmente, no estudo da alteridade do ser humano, existem algumas
dificuldades, das quais ele cita as cinco principais: nomenclatura (etnologia ou antropologia?);
objetividade (antropologia deve ser tratada como ciência da natureza (Radcliffe-Brown) ou
como símbolo/arte (Evans-Pritchard)?); definição do campo do saber (distância entre
Antropologia e História); subjetividade (questão da interferência do pesquisador na realidade
estudada ou não); abrangência e alcance da antropologia.
Laplantine acrescenta que as formas de comportamento e de vida em sociedade, que já
foram vistas como inatas, são, na verdade, o resultado de escolhas culturais. A partir de tal
constatação, o antropólogo e etnólogo conclui que o que há em comum entre os seres
humanos é a habilidade de se diferenciar uns dos outros, de criar diferentes formas de
culturas. Carvalho ilustra como nas pesquisas iniciais a observação das culturas era
imperfeita, uma vez que o observador considerava relevantes ou indignos alguns dados
fazendo um julgamento baseado em sua própria cultura. Nesse sentido, Laplantine elucida que
o conhecimento da pluralidade, ao longo do tempo, gerou a compreensão do outro dentro de
sua realidade, ou seja, a antropologia proporcionou a descentralização, ou relativismo,
levando em conta que uma cultura não pode ser julgada a partir dos parâmetros de outra.
3. O rompimento com a filosofia clássica e as grandes religiões, se torna necessário,
segundo Laplantine, no sentido de que estas nunca tomaram como objetivo pensar a diferença,
mas, ao contrário, muitas vezes tentaram lidar com o diferente tornando-o “igual”. O autor
francês chama a atenção para a cegueira diante das diferenças e aponta para o fato de que
ainda não enxergamos perfeitamente, apesar de já termos superado muitos obstáculos. Para
Laplantine (2007, p. 24), “a dúvida e a crítica de si mesmo só são cientificamente
fundamentadas se forem acompanhadas de interpelação crítica de outrem”.
Carvalho assegura que a renovação do olhar da filosofia poderá ser renovado no
horizonte da antropologia transdisciplinar. Para o estudioso português, a transdisciplinaridade
vai além da interdisciplinaridade tão falada atualmente. Além disso, Carvalho alerta pra o fato
de que junto com a transdisciplinaridade da antropologia virão todas as questões referentes à
transcientificidade, o que o autor considera como fundamental para a tão desejada
desfragmentação ou totalização da antropologia filosófica.
Se, por um lado, o capítulo supracitado, desenvolvido por Laplantine, possui
linguagem de fácil compreensão, por outro lado, o texto de Carvalho exige maior
concentração devido a sua densidade e profundidade. Como já foi comentado anteriormente, a
riqueza dos textos consiste na sua diferença, uma vez que um enriquece o outro naquilo que
lhe falta.
Sendo uma boa opção de leitura, os textos acima, podem ser recomendados a todos
que tiverem interesse pelo assunto, pois sua leitura proporciona um novo horizonte de
pensamento, principalmente para quem é leigo no assunto. A leitura de um texto isolado pode
não gerar muito esclarecimento, mas poderá ser um ótimo complemento se acompanhado de
outras leituras sobre o tema em questão.