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370 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO
do bem comum. É claro que a rivalidade burocrática ocorre também em
democracias, mas em um sistema em que os poderes político e econômico se
concentram em agências estatais, com uma concomitante ausência de forças
de mercado para contrabalançar, o departamentalismo se torna a principal
arena da luta política. Conforme observado em capítulo anterior, Kruschev
tentou lidar com o problema abolindo a maioria dos ministérios centrais
e criando, no lugar deles, conselhos econômicos regionais. Mas descobríu
que o departamentalismo foi substituído rapidamente pelo "Ioc~lis~o". O
padrão de comportamento burocrático que ele deplorava no centro foi logo
reproduzido nas localidades. ,
Se as conquistas na saúde e na educação ajudaram a sustentar o apoio
ao sistema existente' em Cuba, um aliado involuntário do regime de Fidel
têm sido os Estados Unidos. Quanto mais contato pessoas de sociedades
relativamente fechadas têm com pessoas de sociedades abertas, mais difícil
é para esses regimes fechados manter seu controle autoritário. Ao impor um
embargo econômico a Cuba, e ao dificultar as visitas de cidadãos americanos
à ilha, o governo dos EUA não apenas ajudou a liderança cubana susten-
tando a ameaça externa, e reforçando, assim, o patriotismo cubano, como
reduziu as oportunidades de uma interação em que cada um dos dois lados
pode~ia ter aprendido alguma coisa com o outro. Provavelmente, porém,
um SIstema que impõe controles a consultas livres seria mais corrosivo do
que um sistema em que ideias liberais, conservadoras e mesmo Comunistas
estejam prontamente acessíveis, embora o auge nada impressionante do
Partido Comunista dos Estados Unidos já tivesse passado antes de Fidel
Castro chegar ao poder.
17
China: das "Cem Hores" à "Revolução Cultural"
A chegada ao poder dos Comunistas chineses foi discutida no capítulo 11,
em um relato que termina em 1953, o ano da morte de Stalin. Este capítulo
cobre um período não menos tumultuado - de 1953 até o falecimento de
Mao Zedong, em 1976. Foi um período de enorme significado tanto para
a China quanto por suas implicações para o resto do mundo Comunista.
Tão importantes quanto os anos da guerra civil e da revolução na China
foram os quatro principais acontecimentos que abordo neste capítulo: a
campanha das "Cem Flores" e a repressão que se seguiu; o "Grande Salto
para Frente", que acabou sendo um desastre; a ruptura sino-soviética, que
foi um divisor de águas na história do Movimento Comunista Internacio-
nal; e a "Grande Revolução Cultural Proletária" da última década de Mao
como governante chinês, um movimento que causou imenso sofrimento e
teve importantes consequências não intencionais.
Até meados dos anos 1950, a política dos Comunistas chineses no poder
se baseava fortemente na experiência soviética. Um plano de cinco anos
executado de 1953 a 1957 teve o objetivo de dobrar a produção industrial
e aumentar em um quarto a produção agrícola.' Embora não tenha sido
grande em termos financeiros, a ajuda soviética foi significativa por prover
especialistas. Engenheirose tecnologistas russos sem dúvida tiveram um
papel importante ao ajudarem a desenvolver a infraestrutura industrial da
China nos anos 1950. A política industrial obteve resultados melhores do
que a tentativa de coletivizar a agricultura - embora os chineses tenham
tentado evitar os excessos da coletivização compulsória de Stalin no fim
dos anos 1920 e início dos anos 1930 na União Soviética. Cooperativas
de Produtores Agrícolas foram criadas, envolvendo todos os moradores de
vilarejos. Esperava-se que estas se expandissem gradualmente - passando
de algumas dezenas de famílias para centenas em cada cooperativa. O
crescimento da produção agrícola foi, porém, muito mais lento do que o
previsto e surgiram divergências no Partido Comunista entre aqueles que
372 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO
de~endiam um processo mais gradual (incluindo a manutenção de terras
pflvad~s e alguns mercados livres) e os linha-dura, liderados por Mao, que
defendiam uma socialização mais rápida." Mas em 1956 a transferência
básica dos meios de produção da posse privada para a propriedade estatal
ou coletiva havia sido concluída na economia chinesa, de um modo geral.'
Como em outros países Comunistas, houve um progresso substancial
na e~ucação. Nos .níveis mais elevados, houve perdas - principalrriente,e
crucialrnente, da liberdade intelectual nas ciências humanas e sociais-(em~
bora Ma.o achasse que havia muito pouca doutrinação ideológica). Mas
a disserninação da educação básica ocorreu em enorme escala. O número
de crianças que frequentavam escolas primárias aumentou de 24 milhões
em 1949, para 64 milhões em 1957.4
No mesmo período, os números no
ensino su~erior dobraram. Continuava havendo, porém, grandes diferenças
entre as cidades e o interior, com poucas boas escolas fora das cidades bem
como grandes disparidades entre homens e mulheres. Mesmo nas escolas
primá~ias: a p~oporção de meninos para meninas era de dois para uma."
Na primeira decada de poder dos Comunistas, houve melhorias substan-
~iai.s na saúde pública. Isso trouxe benefícios, mas também problemas. O
índice de mortalidade diminuiu muito mais do que o índice de natalidade
e um aumento populacional de dois por cento causou mais pressão sobre
os recursos escassos.s
A experiência soviética e os acontecimentos mais recentes na União
Soviética continuavam a influenciar a política chinesa. Assim, no VIII
Congresso. do Partido Comunista Chinês, em setembro de 1956, o papel
de Mao fOI menos enfatizado do que no Congresso anterior, em 1945. O
Pensamento de Mao Zedong foi removido (por enquanto) dos estatutos do
partido e foi dada uma forte ênfase à liderança coletiva. Essas mudanças
foram, pelo menos em parte, consequência do destronamento de Stalin no
XX Congresso do Partido Comunista Soviético e do ataque mais geral ao
"cult? à personalidade" ali.? O cerne da liderança do partido chinês foi
mantido no VIII Congresso, embora uma promoção significativa à cúpula
ten?a. sido a de Deng Xiaoping, que mais tarde se tornaria uma das figuras
rnars Importantes da história chinesa do século XX. Em conversa com O
líder soviético Nikita Kruschev em 1957, Mao apontou para Deng e disse:
"Está vendo aquele homenzinhó ali? Ele é muito inteligente e tem um grande
futuro pela frente.?" A observação parece particularmente apropriada em
retrospec.to~ mas c?mo o futuro de Deng envolveu a reversão de grande parte
do que fOIdito e feito por Mao Zedong, dificilmente era isso o que Mao tinha
CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇAO CULTURAL" 373
em mente. O VIII Congresso parecia marcar uma nova estabilidade na vida
política, com diversos interesses burocráticos - especialmente ministérios
econômicos e organizações do partido nas províncias - fazendo com que
suas reivindicações fossem ouvidas." Acabou representando, porém, apenas
uma calmaria antes de uma série de tempestades.
As Cem Flores
Por um breve período, pareceu que o Congresso seria, inesperadamente,
seguido de um pluralismo crescente. Para muitas pessoas na China e no
exterior, parecia que Mao Zedong inaugurara uma nova fase de desenvol-
vimento pós-revolucionário ao incentivar as pessoas a ter um olhar mais
crítico sobre o que fora alcançado até então. O que se tornou conhecido
como o movimento das Cem Flores, em 1956-57, derivava da observação
de Mao: "Que cem flores desabrochem, que cem escolas de pensamento se
enfrentem."!" Embora inaugurada em 1956, a campanha foi intensificada
na primeira metade de 1957. Mao incentivou as críticas ao que fora reali-
zado desde 1949, embora tivesse em mente a identificação de deficiências
específicas, e não críticas a tudo. Em geral, ele assumiu uma visão positiva
do conflito, sustentando que membros do partido deveriam criticar não
apenas eles próprios, mas um ao outro. Estipulou um limite, porém, para
as críticas a ele próprio ou ao sistema Comunista. Mas foram externadas
algumas críticas aos fundamentos. Estas incluíam até questionamentos ao
direito do Partido Comunista Chinês de governar sem qualquer verificação
de seu poder ou sem prestar contas sobre suas decisões. Quando Mao emitiu
uma instrução aos altos funcionários do partido para que eles deixassem
as críticas continuarem, em maio de 1957, seus motivos eram suspeitos. Na
época - se não antes - ele estava tentando fazer com que seus inimigos
e aqueles que se opunham ao sistema se mostrassem. Isso permitira a ele
- assim como a Lenin em 1921 - "pôr a tampa na oposição", ou, nas
palavas do próprio Mao (que continuava a usar metáforas horticulturais),
extrair "as sementes venenosas".'!
A liderança soviética ficara alarmada com a conversa chinesa sobre per-
mitir que cem flores desabrochassem, já que isso aumentava a pressão por
uma liberdade de expressão maior na União Soviética e no Leste Europeu.
Em retrospecto, pelo menos, Kruschev acreditava que a afirmação "que
cem flores desabrochem" não passava de uma provocação: "Mao fingiu
374 ASCENSAo E QU EDA DO COMUNISMO
estar abrindo as comportas da democracia e da Iiberdade de expressão. Ele
queria estimular as pessoas a expressar seus pensamentos mais Íntimos,
tanto oralmente quanto em publicações, para poder destruir aqueles cujos
pensamentos considerasse nocivos.?'? A liberalização parcial que permitira,
ainda que brevemente, uma exposição de ideias heterodoxas significou, en-
tretanto, que a posição de Mao havia sido temporariamente enfraquecida.
A campanha prejudicou sua autoridade e revelou diferenças de opinião
acentuadas dentro do partido governante. A resposta de Mao foi lançar uma
"campanha antidireitista" e reenfatizar a importância da luta de classes."
Não apenas intelectuais de histórico "burguês", mas também estudantes
que haviam recebido educação superior no período Comunista estavam entre
aqueles que expressaram seu descontentamento, alguns deles questionando
a competência do partido. Tudo isso indicava uma crescente alienação de
muitos segmentos mais instruídos da sociedade em relação ao sistema. 4 O
ataque aos "direitistas" que se seguiu atingiu duramente os intelectuais. Mais
de meio milhão deles foram tachados de "direitistas" e sofreram grande pres-
são ideológica, o que levou a inúmeros suicídios. Muitos intelectuais foram
designados para trabalhos braçais. Uma das ironias dos sistemas Comunistas
- o mesmo aconteceria na Tchecoslováquia depois da repressão à Primavera
de Praga e, em momentos diversos, em outros Estados Comunistas - é que,
embora os trabalhadores braçais constituíssem a classe dominante oficial,
o padrão de punição aos intelectuais considerados culpados por escritos
não ortodoxos ou por atividades politicamente suspeitas era retirá-Ios de
suas profissões que exigiam curso superior e torná-Ios operários. Assim,
paradoxalmente, eles eram "rebaixados" à "classe dominante".
Os líderes chineses eram sensíveis ao que acontecia em outros lugares do
mundo Comunista. Haviam apreciado de certa forma o Discurso Secreto de
Kruschev no XX Congresso do PCUS em 1956, embora Mao fizesse sérias
reservas à sua conveniência e tenha ficado furioso por não ter sido avisado
de antemão sobre uma mudança de linha tão radical. Estavam também bas-
tante preocupados com o papel político desempenhado por intelectuais na
Polônia e na Hungria no mesmo ano. A lição que Mao e seus aliados mais
próximos aprenderam com o movimento das Cem Flores foi que os inte-
lectuais chineses também haviam mostrado que não eram ideologicamente
confiáveis. A liderança do partido permaneceu consciente de que precisava
da habilidade de profissionais de níveis mais elevados. Consequentemente,
enfatizou que a campanha anridireitista, que se seguiu ao fracasso - do
ponto de vista deles- da iniciativa das Cem Flores, não tinha como alvo a
CHINA: DAS "CEM FLORES· A "REVOLUçAO CULTURAL· 375
maioria dos intelectuais chineses. Entretanto, o ataque àqueles que haviam
sido corajosos, ou ingênuos, o bastante para acreditar piamente na ideia
de uma disputa aberta entre diferentes escolas de pensamento conteria, em
vez de estimular, o entusiasmo já decrescente de muitos intelectuais pelos
objetivos do partido.
o Grande Salto para Frente
Ao visitar Moscou em outubro de 1957, Mao demonstrou admiração pelas
conquistas soviéticas, especialmente à luz do recente feito da URSS de se tor-
nar o primeiro país do mundo a pôr uma espaçonave em órbita. No conflito
entre o Leste e o Oeste, declarou ele, o vento leste prevalecia sobre o vento
oeste." Entretanto, apenas um ano depois, Mao e seus aliados estavam se
afastando do modelo soviético de desenvolvimento que haviam seguido, em
essência, até então. A ideia do Grande Salto para Frente, que defenderam,
era um programa de mobilização em massa em que o entusiasmo e a força
de vontade do povo seriam totalmente utilizados. Mao pretendia aproximar
mais gerentes, técnicos e operários, rejeitando a abordagem mais tecnocrá-
tica e hierárquica dos assessores soviéticos. Os engenheiros e tecnologistas
soviéticos foram largamente excluídos, assim como as agências burocráticas
do governo central chinês. Para que o interior pudesse se tornar mais autos-
suficiente em todos os aspectos, cada localidade foi incentivada a estabelecer
tecnologias em pequena escala, de modo a complementar a indústria de larga
escala já construída. Mao chamou isso de "caminhar sobre duas pernas".
Significou, entre outras coisas, a criação de fornalhas de fundo de quintal
que eram um desperdício de trabalho e economicamente inúteis. O Grande
Salto para Frente proclamou uma redistribuição de energia. Nas províncias,
entregou a iniciativa de dirigentes centrais e gerentes a generalistas políticos
cuja tarefa era inspirar os trabalhadores ideologicamente."
Enquanto protegia zelosamente seu poder pessoal, Mao também levava
as ideias a sério, e estava ansioso para avançar a comunização da sociedade
chinesa. Em particular, isso significava transformar as Cooperativas de
Produtores Agrícolas em "comunas do povo" muito maiores. Muito mais
mulheres foram levadas para a força de trabalho quando as fazendas maciças
foram criadas, enquanto os homens trabalhavam frequentemente longe de
suas vilas nativas. O utopismo do Grande Salto para Frente pode ter sido
inspirador no início, mas seus resultados foram desastrosos. O desprezo
376 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO
"I
por obstáculos materiais e pela especialização profissional levou ao caos
no interior e, com isso, a uma fome devastadora. Os falsos relatos sobre o
aumento da produção de grãos contrastavam com a dura realidade de uma
queda drástica na produção. Os transportes rurais foram interrompidos e
os equipamentos agrícolas negligenciados. A situação piorou com enchen-
tes e secas em 1959 e 1960. A melhor estimativa do número de mortes
resultantes do tumulto econômico criado pelo Grande Salto entre 1955e
1961 - as "mortes em excesso", em termos estatísticos, naquele per-íodo
- é da ordem de 30 milhões de pessoas. Isso significa que uma pessoa em
cada vinte do interior chinês foi vítima fatal desse desastre provocado em
grande parte pelo homem.'?
No Tibete, que fora incorporado à República Popular da China (RPC)
em 1950, a ameaça do tipo de mudança estabelecida pelo Grande Salto foi
suficiente para criar uma séria agitação em 1959. Os tibetanos representam
um dos 55 grupos étnicos diferentes reconhecidos oficialmente pela RPC,
embora os chineses han sejam, em número, esmagadoramente dominantes
na China como um todo, formando mais de 90 por cento da população.
A revolta de 1959 foi reprimida por tropas chinesas e o líder espiritual dos
tibetanos, o Dalai Lama, buscou refúgio na índia. Embora as autoridades
chinesas tenham conseguido manter o controle sobre o Tibete nos anos que
se seguiram, a questão da autonomia religiosa e política da população nativa
do Tibete continua sendo até hoje uma questão Internacional controversa."
No fim dos anos 1950 e início dos anos 1960, enquanto ficava cada vez
mais claro para algumas pessoas da liderança chinesa que v Grande Salto
havia sido um erro monumental- na verdade, um passo gigante para trás
- vieram a público tensões que, em alguns casos, estavam ali sob a super-
fície há anos. Entre aqueles que criticaram Mao pelo fiasco do Grande Salto
para Frente, sobressaiu-se Peng Dehuai, que se destacara como general no
comando das forças chinesas na Guerra da Coreia. Peng defendia relações
próximas com a União Soviética e, como ministro da Defesa, queria que
as forças armadas da China seguissem o modelo do exército soviético. Sem
qualquer prova real, Mao suspeitou que Peng coordenava ataques a ele com
críticas que logo viriam de Moscou. Peng foi prontamente demitido de seu
cargo, mas a posição um tanto enfraquecida de Mao se refletiu em sua de-
cisão de desistir do cargo de chefe de Estado em 1959, embora mantivesse
o cargo mais importante de presidente do Partido Comunista Chinês.
Deng Xiaoping se tornara secretário-geral do partido e, como tal, exercia
grande autoridade no secretariado. Mas enquanto Maoestava vivo, o cargo
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CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇÃO CULTURAL' 377
de secretário-geral não era o mais importante - o que é incomum em um
Partido Comunista. A presidência do partido era o principal cargo, uma
vez que Mao o ocupava. Na ocasião em que Mao elogiou Deng Xiaoping
a Kruschev, em 1957, Deng ainda era um forte aliado do presidente do
partido, mas isso mudou durante o Grande Salto para Frente. Ele passou a
ter menos consideração por Mao, que mais tarde - durante a Revolução
Cultural- reclamou que Deng "não lhe dava ouvidos desde 1959".19 O
sucessor de Mao como chefe de Estado, Liu Shaoqi, anunciou em 1961 que,
não obstante as graves enchentes ocorridas em inúmeras províncias chinesas,
70 por cento da fome que atingia o país se devia a erros humanos, e não a
desastres naturais. 2U Liu não declarou isso como uma acusação a Mao, mas,
principalmente em retrospecto, sua atitude pode ser vista como uma crítica
velada ao líder. Foram Liu e Deng que juntos desenvolveram as políticas de
1961 a meados dos anos 1960, que puseram a economia chinesa de novo
em um rumo mais sensato-oO conhecimento especializado foi novamente
reconhecido e foram tomadas medidas para fortalecer o aparelho do partido
como um órgão disciplinado."
A Ruptura Sino-Soviética
A ruptura sino-soviética tem sua origem em 1956, com o discurso de
Kruschev no XX Congresso, o qual incomodou os chineses, uma vez que
eles davam a Stalin um apoio público sem críticas até então." Aquele tam-
bém foi o ano em que, com a iniciativa das Cem Flores, Mao começou a
promover políticas fortemente divergentes dos governantes Comunistas da
União Soviética e do Leste Europeu - e potencialmente constrangedoras
para eles. Em 1957, vieram à tona inúmeras diferenças. O resultado da
crise do Grupo Antipartido é um bom exemplo. Mao discordou da decisão
de Kruschev de afastar da liderança soviética antigos bolcheviques, como
Molotov, embora uma década depois ele próprio trataria seus antigos com-
panheiros com ainda menos respeito.P
Na esteira da crise na liderança soviética em 1957 - que se seguiu aos
acontecimentos muito mais'turbulentos na Polônia e na Hungria, no ano
anterior - o Partido Comunista Soviético começou a tentar restaurar e
reforçar a unidade do Movimento Comunista Internacional. Em novembro
de 1957 foi realizada em Moscou uma conferência de líderes de partidos
Comunistas, na qual foi feito um esforço para reunir todos os principais
378
ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO
partidos. Isso significava, em particular, garantir a participação de Mao e
Tito. Mao apareceu, mas Tiro não. O líder iugoslavo se opusera a uma versão
preliminar de uma declaração que se referia ao "campo socialista" -termo
do qual não gostava, já que podia colocar em questão a liberdade de ação
da !~go~lávia. Ele também se opôs à frase "luta contra o dogmarismo e o
revisiorusmo'', O termo "dogmatismo" se referia às políticas stalinistas de •
linha-dura e seria cada vez mais aplicado à China. "Revisionism~"~ra há ..
muito tempo o termo relativo a abusos no Movimento Comunista Internacio-
nal para desvios na direção oposta - concessões ao mercado ou tolerância·
política. Desde a expulsão da Iugoslávia do Cominform, o termo "revisio-
nista" era um dos epítetos aplicados à Iugoslávia por outros Comunistas.
Em 1961-62, a Iugoslávia já não estava proscrita do Movimento Comu-
nista Internacional como estivera nos últimos anos de vida de Stalin. Mas
naqu~les anos, o,termo "revisionista" foi repetidamente aplicado ao país
pela liderança chinesa. A essa altura, porém, Iugoslávia se tornara um co-
dinome para a União Soviética. Isso aconteceu em um período um pouco
antes de os Comunistas chineses começarem a atacar publicamente Kruschev
e a liderança soviética, chamando-os de "revisionistas". E assim como os
c~ineses inicialmente direcionaram sua discussão aberta para Belgrado, e
nao para Moscou, a União Soviética criticou publicamente o "dogmatis-
mo" dos "albaneses" (em substituição aos chineses) que, sob a liderança
de Enver Hoxha, haviam transferido sua lealdade de Moscou para Beijing
em 1960. Houve relutância na União Soviética, em particular, em revelar
para todo mundo que os dois mais importantes Estados Comunistas do
mundo estavam divergindo. Analistas sérios do mundo Comunista tiveram
pouc~ dificuldade, porém, para entender a profundidade da desavença entre
a China e a União Soviética. Durante o ano de 1962, esse fato ficou cada
vez mais claro, embora alguns políticos ocidentais obtusos, principalmente
nos Est~dos Unidos, tenham optado por acreditar durante os anos seguintes
que a disputa sino-soviética era uma artimanha arquitetada para enganar
O "mundo livre".
As diferenças entre a China e a União Soviética estavam vindo à tona
aos poucos, mas Mao chocou muitos de seus ouvintes quando, em um dis-
curso durante sua visita a Moscou em novembro de 1957 considerou com
tranquilidade a possibilidade de uma guerra nuclear. Talv:z 700 milhões de
pessoas fossem mortas (aproximadamente um terço da população mundial
na época), ou, p~ssivelme~te, metade da população do planeta. Mas logo
essas pessoas seriam subStituídas, disse Mao, e os ganhos seriam enormes.
CHINA: DAS "CEM FLORES" À "REVOLUÇÃO CULTURAL" 379
O imperialismo seria esmagado e o mundo inteiro "se tornaria socialista't."
Nem Kruschev em sua fase mais impetuosa (no início da crise dos mísseis
em Cuba) jamais pensou, e muito menos disse, algo remotamente tão ir-
responsável. A reação dos Comunistas tchecos e poloneses fo_ide horror.
Mao podia se dizer preparado para perder metade da populaçao da China
em uma guerra nuclear - o que no fim dos anos 1950 significaria a morte
de 300 milhões de chineses - mas, como disse o líder Comunista tcheco
Antonín Novotny a Kruschev, a Tchecoslováquia perderia "até a última
alma" em uma guerra assim.P
Quando Kruschev visitou a China em 1958, encontrou Mao altamente
resistente à ideia de permitir que submarinos soviéticos usassem portos
chineses ou uma estação de rádio localizada em território chinês para se
comunicar com a frota soviética. Mao ofendeu Kruschev ao comparar
seu desejo de fazer esse uso do território chinês com as atividades da
Grã-Bretanha e do Japão no passado. Ele não usou a palavra "imperia-
lista", mas a implicação era clara. Também fez o que pôde para humilhar
Kruschev de outras maneiras. Mao era um exímio nadador. Em 1966, aos
72 anos, juntou-se aos cinco mil participantes de uma travessia anual no
rio Amarelo e, ajudado por uma forte corrente, cobriu a distância de 16
quilômetros." Kruschev, em contraste, nadava tão mal quanto dançava.
Se Stalin o havia constrangido mandando-o uançar o gopak, o método de
Mao para demonstrar superioridade foi realizar discussões poíincas em uma
piscina, Enquanto Mao nadava sem esforço, expondo opiniões que eram
imediatamente traduzidas, Kruschev tinha que balbuciar suas respostas
com a boca cheia de água. "É claro que eu não podia competir com Mao
na piscina", comentou ele em suas memórias. "Como todo mundo sabe,
ele bateu um recorde mundial tanto em velocidade quanto em distância.t' "
Sinais de reaproximação entre a União Soviética e os Estados Unidos
foram um anátema para Mao, que desaprovou a visita de Kruschev aos EUA
em setembro de 1959. Três meses antes, Moscou quebrara uma promessa de
fornecer aos chineses a bomba atômica (que logo eles desenvolveriam por
si próprios). A liderança chinesa supôs que o recuo ocorrera para agradar
aos americanos embora na verdade, os soviéticos temessem que os Estados
" ',' 28
Unidos retaliassem fornecendo armas nucleares a Alemanha OCidental.
(Não há fundamento factual algum para essa suposição, mas em 1959 as
lembranças da Segunda Guerra Mundial eram frescas o bastante para os
alemães ainda serem vistos como o principal inimigo em potencial da União
Soviética na Europa, Foi com a eleição de Willy Brandt como chanceler da
380 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO
Alemanha Ocidental uma década depois - e com a política de seu governo
de envolvimento construtivo com a União Soviética e os países do Leste
Europeu - que as percepções sobre a Alemanha na Rússia e no Leste Eu-
ropeu passaram por uma grande mudança.)
Quando Kruschev fez sua terceira e última visita à China, em oútubro
de 1959, as tensões entre os dois países haviam aumentado muito ~ bem
como a irritabilidade entre seus dois líderes. Conflitos na fronteira entre
China e índia eram um constrangimento para a União Soviética. Embora a
mediação diplomática não fosse o seu forte, Kruschev aconselhou conten-
ção. A URSS gozava de boas relações com a Índi~ de Nehru e continuava
sendo, pelo menos oficialmente, o aliado Comunista fraterno da China.
Kruschev não agradou a seus anfitriões ao cumprir a promessa que fizera
ao presidente Eisenhower de levantar a questão dos cinco americanos que
eram mantidos presos na China. Tanto Mao quanto Zhou Enlai trataram
desse e de outros comentários de Kruschev como se ele fosse um porta-voz
dos EUA. Quando Mao reclamou sobre os Estados Unidos terem enviado
uma frota para perto da costa chinesa, Kruschev respondeu francamente:
"Deve-se ter em mente que não estamos isentos de pecados. Fomos nós que
a~r.aímos os americanos à Coreia do Sul" - em uma referência à responsa-
bilidade de Stalin pelo início da Guerra da Coreia.?? Quando a conversa se
voltou para o Tibete, foi a vez de Kruschev atacar. Mao disse que a intenção
deles havia sido "adiar a transformação do Tibete por quatro anos", ao que
Kruschev respondeu: "E esse foi o seu erro." Mao também foi forçado a se
defender do fracasso da China por não impedir que o Dalai Lama deixasse
o T!~ete. ~ruschev deixou claro que considerava isso uma incompetência
política, dizendo. "Quanto à fuga do Dalai Lama do Tibete, se fôssemos
nós, não teríamos deixado que ele escapasse. Seria melhor que ele estivesse
em um caixão. E agora ele está na Índia, e talvez vá para os EUA. Seria isso
uma vantagem para os países socialistas?" Mao respondeu que a fronteira
com a lndia era muito extensa e que o Dalai Lama poderia tê-Ia cruzado
em qualquer ponto. 30
. Em julho de 1960, líderes Comunistas chineses, em sua comunicação
Interna, estavam se referindo à luta entre "marxismo e oportunismo" no
Movimento Comunista Internacional. Nessa luta, é claro que eles eram os
marxistas e Kruschev era o "oportunista" número um, além de um "ma-
quinador".» A disputa foi além das palavras quando, naquele mesmo mês
a União Soviética informou a Beijing que estava retirando imediatament:
seus cerca de 1.400 especialistas que trabalhavam na China. Em uma carta
CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇÃO CULTURAL'
confidencial, o lado soviético apresentou motivos para essa ação repentina.
Esses incluíam a alegação de que haviam sido feitas críticas ao trabalho
dos especialistas na China, desconsiderando a ajuda deles (embora fosse a
rejeição chinesa à ajuda política soviética, e não à ajuda técnica, que pesasse
mais) e, principalmente, a propaganda do Partido Comunista Chinês contra
o PCUS.1
2 Entretanto, qualquer que fosse a desilusão com Kruschev e a
liderança soviética, os chineses reconheceram a ajuda prática que os enge-
nheiros e tecnologistas soviéticos haviam dado. Em meados de agosto de
1960, em um jantar de despedida em homenagem aos especialistas soviéticos
que partiam, Zhou Enlai agradeceu a contribuição que eles haviam dado à
construção do "socialismo" na China." Entretanto, para piorar as relações
entre as duas maiores potências Comunistas, naquele mesmo ano o comér-
cio soviético-chinês praticamente acabou, aumentando as dificuldades da
economia chinesa em meio aos problemas com o Grande Salto para Frente.
Os ch ineses tentaram propagar dentro da Rússia sua posição ideológica
e sua opinião sobre a disputa com a União Soviética, entregando a institutos
de pesquisa de Moscou documentos que mostravam o lado chinês da histó-
ria. A liderança soviética reagiu expulsando três diplomatas e outros dois
cidadãos chineses. Estes voltaram para Beijing no início de julho de 1963,
tendo uma recepção de heróis, da qual Zhou Enlai participou. 34 Aquele foi o
mês em que a disputa se tornou pública. Em 14 de julho, o Pravda publicou
em carta aberta a resposta do Comitê Central do PCUS a propostas que
os chineses haviam feito um mês antes." Na época, os chineses estavam
atacando abertamente o "revisionisrno" soviético. Os anos de 1963-64
foram um divisor de águas no Movimento Comunista Internacional. Os
dois maiores partidos Comunistas do mundo se envolveram em discussões
abertas, vivendo claramente uma relação de antagonismo. A ideia do Co-
munismo como ideologia que unia revolucionários e "anti-imperialistas"
no mundo inteiro sofreu um golpe do qual jamais poderia se recuperar
totalmente. Acostumada como estava à ideia de que o Partido Comunista
da União Soviética tinha um papel importante, se não dominante, no Mo-
vimento Comunista Internacional, a liderança soviética procurou manter
uma unidade, mas não à custa de se render ideologicamente à posição dos
chineses. Mao, porém, estava contente por manter a polêmica, em parte
por temer o "revisionismo" em seu país, bem como dentro do movimento
como um todo. Ao se colocar como chefe do ataque à apostasia soviética,
ele estava fortalecendo sua posição para um ataque aos apóstatas internos.
Alguns líderes chineses, como Deng Xiaoping e Liu Shaoqi, que haviam
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382 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO CHINA: DAS ·CEM FLORES" À "REVOLUÇAO CULTURAL" 383
brigado assiduamente com seus colegas soviéticos em apoio à linha de Mao
descobririam que acusações semelhantes de "revisionisrno" -e em termo'
. f . ,s
mais orres, de que estavam buscando o capitalismo - seriam feitas COntra
eles próprios na Revolução Cultural."
Quando Kruschev foi derrubado por seus colegas, em outubro de 1963
~ao teve ~sperança por um breve momento de que a liderança soviérícn
tivesse acenado suas críticas às políticas de Kruschev. Também por PbLi~O
tempo, os líderes soviéticos imaginaram que o afastamento do nada di-
plomático ~ruschev t~rnaria mais fácil para eles resolver suas diferenças
com o PartJd~ Comunista Chinês. Porém, a disputa era muito mais do que .:
pess~a.l. Havia profundas questões políticas e ideológicas em jogo. Zhou
Enlai h~erou uma delegação nas comemorações do aniversário da revolução
bolchevique, em 7 de novembro de 1964, apenas três semanas depois do
afas,tamento de Kruschev. Em seu discurso oficial na ocasião, Leonid Brejnev
pediu uma nova reunião internacional de países Comunistas fraternos. Esta
obse~vação ~oirecebida com aplausos estrondosos dos quais, porém, Zhou
Enlai conspicuamente não participou. Em uma recepção mais tarde no
~esmo dia, o ministro, ~a Defesa soviético, marechal Rodion Malinov~ky,
disse a um me~~ro militar da delegação chinesa que eles deveriam seguir
~ exemplo sovienco e se livrar de Mao, assim como os soviéticos haviam se
livrado de Kruschev. 37 Malinovsky estava um tanto bêbado no momento
~as a tentat~~a de Brejnev de convencer o ultrajado chinês de que aquel;
nao era a política oficial, mas sim o resultado da embriaguez de Malinovsky,
I~vou Zhou a responder que o álcool simplesmente permitira a Malinovsky
dizer o que ele achava." Como a observação de Malinovsky seria relatada
a Mao, Zh~u teria tido terríveis problemas em Beijing se tivesse reagido de
outra maneira que não fosse denunciando-a veementemente.
Incidentes na fronteira soviético-chinesa aumentaram as tensões entre os
dois lado~. Mais ta~de, "" 1969, resultariam em muitas mortes em regiões
da fronteira dos dOISpaises e causariam o temor de uma guerra em escala
total entre ~s,lo~s g;games Comunista~. Entretanto, as disputas territoriais,
em~~~a reais, nac :oram fundamentais para Orompimento entre a União
SO:'letlca e a Chiria <.sdiferenças ideológicas é que o foram. Na época, os
chineses estavam mais cor- »ometidos com a revolução mundial e a U '-
S '" niao
, oVletlc~ se tornara toleravelmente satisfeita com o status quo europeu e
mterna~lOnal, ~omamo que ocupasse um dos dois lugares mais importan-
tes da hierarquia mundial, ao lado dos Estados Unidos. A União Soviética
defendia a "coexistência pacífica", o que significava que queria, de fato,
evitar uma guerra, embora se opusesse resolutamente à coexistência ideo-
lógica. (As autoridades soviéticas, assim como os governantes Comunistas
de outros lugares, tentavam firmemente evitar a disseminação de ideias não
Comunistas no país, ao mesmo tempo que faziam de tudo para promover
sua ideologia no mundo.) Em contraste com a ênfase soviética na coexis-
tência pacífica, Mao parecia disposto a considerar a guerra uma maneira
de fazer o Comunismo avançar, embora na prática fosse mais cauteloso na
arena internacional do que sua retórica poderia indicar."
Havia também discordância entre as duas lideranças em suas atitudes
em relação a Stalin. Esta se tornou menos pronunciada depois de outubro
de 1964, porque os sucessores de Kruschev logo decidiram que as críticas
a Stalin eao stalinismo eram potencialmente desestabilizadoras e puseram
fim a elas em seu país. Embora na elite política soviética algumas pessoas
quisessem reabilitar Stalin, isso não aconteceu. Entre a queda de Kruschev,
em 1964, e a morte de Mao, em 1976, Stalin foi muito mais enaltecido em
Pequim do que em Moscou. Além disso, em diversas de suas ações - tanto
quanto em sua vitória (muito cara) sobre as autoridades do partido, que foi
o cerne da Revolução Cu/tural- Mao parecia estar seguindo os passos de
Stalin. Na "Grande Revolução Cultural Proletária" da China, certamente
houve ecos dos expurgos de Stalin no fim dos anos 1930, nos quais muitos
membros antigos do partido foram eliminados. Havia discordâncias entre
as lideranças dos dois Estados Comunistas em relação ao modo como a
economia deveria ser administrada. Mao desprezava a natureza altamente
burocratizada do Estado soviético e se preocupou em combater essas tendên-
cias em seu país. Além das reais diferenças ideológicas, deve ser considerada
a ambição pessoal de Mao de ser o principal teórico do mundo Comunista e
sua aspiração a fazer uma transição para o comunismo, no sentido utópico
do termo, antes da União Soviética. Depois da queda de Kruschev, líderes
soviéticos fizeram apenas ocasionais declarações da boca para fora sobre a
noção deste estágio supostamente final de desenvolvimento da sociedade,
de modo que Mao teve este campo para ele
A Revolução Cultural
Com o colapso do Grande Salto para Frente, o governo chinês se tornara
mais disciplinado e cada vez mais institucionalizado na primeira metade
dos anos 1960. Embora Mao Zedong estivesse no topo da hierarquia polí-
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384 ASCENSAO E QUEDA DO COMUNISMO
CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUçAo CULTURAL" 385
tica, diversas instituições detinham poder e autoridade verdadeiros. Essas
incluíam o Politburo do Comitê Central do PCC; O Secretariado do Comitê
Central, liderado por Deng Xiaoping; organizações regionais e municipais
do partido, principalmente a de Beijing, chefiada por Peng Zhen; o Con-
selho do Estado, que incluía a rede ministerial, chefiada por Zhou Enlai;
e a chefia oficial do Estado, cargo ocupado por Liu Shaoqi, que _ mais'
importante que isso - tinha uma base forte na máquinadoEs~ad~; Ele'
era o número dois no Politburo, e era identificado como sucessor de Mao.
No início dos anos 1950, o slogan "A União Soviética de hoje somos nós
amanhã" havia sido visto como uma feliz previsão de um progresso eco~
nômico rápido e como motivo de otimismo. Nos anos 1960, Mao, com sua
visão cada vez mais indigesta dos acontecimentos na União Soviética, viu
esse slogan como uma terrível advertência.e? Se a China não adotaria um
modelo de burocracia e revisionismo, o sistema precisava passar por outra
modificação fundamental.
Assim, Mao estava suscetível às pressões daqueles que achavam que
eram tolhidos pela velha guarda que comandava as principais instituições
do país. Foi influenciado, não menos, pela facção liderada por sua esposa,
Jiang Qing, que tinha um olho clínico especialmente para qualquer distan-
ciamento em relação à retidão revolucionária no campo cultural. No sentido
mais pleno do termo, a Revolução Cultural durou da primavera de 1966 à
primavera de 1969. Como, porém, nunca foi formalmente declarada como
encerrada enquanto Mao viveu, de maneira mais branda ela durou até sua
morte, em 1976. Juntamente com Chen Boda, o intelectual do Partido Co-
munista (embora um homem de origem camponesa humilde) mais próximo
de Mao, Jiang Qing liderou o que ficou conhecido como o Pequeno Grupo
da Revolução Cultural. Inicialmente, faltou ao grupo uma base de poder
firme no partido. Mas com o apoio crucial de Mao, o grupo se tornou uma
das três organizações com as quais ele mais interagiu durante a Revolução
Cultural, sendo as outras duas o Exército de Libertação Popular (ELP), che-
fiado pelo ministro da Defesa, Lin Biao, e o Conselho do Estado, liderado
por Zhou Enlai." Em parte porque não haviam se disposto a levar Jiang
Qing a sério como voz política, Peng Zhen e Liu Shaoqi estavam entre as
primeiras vítimas da Revolução Cultural. Zhou Enlai sobreviveu assumindo
posições que eram "radicais o bastante para evitar a destruição, enquanto
trabalhava para minirnizar o caos"."
Embora fosse acabar se tornando uma vítima da Revolução Cultural,
Lin Biao foi um aliado crucial de Mao durante a maior parte da revolução.
Apesar de algumas semelhanças com o Grande Expurgo, Mao chegou muito
mais perto de destruir o partido do que Stalin, que permaneceu consciente de
que precisava dele. Outra diferença notável foi o papel desempenhado pelos
exércitos soviético e ch inês. No final dos anos 1930, o exército soviético foi
dizimado por Stalin e seus seguidores, e ficou muito longe de exercer um
papel importante na política interna. Em contraste, quando as organizações
do partido chinês e da rede ministerial foram atacadas, o ELP se tornou o
principal baluarte instirucional, no qual Mao Zedong pôde confiar entre
1966 e 1969. Mao também foi apoiado entusiasticamente pelos jovens, os
Guardas Vermelhos, introduzidos como uma nova força da política chinesa.
Mas o ELP, por ser um exército, era muito mais disciplinado. Livres de regras
e desprezando a hierarquia, os Guardas Vermelhos acabaram assustando
até mesmo o presidente do PCc. Embora Mao estivesse psicologicamente
preparado para iniciar um conflito dentro do partido e da sociedade, e
para restabelecer o domínio de suas opiniões, foi Jiang Qing quem, com a
aprovação do marido, desferiu o primeiro golpe. Ela argumentou que uma
peça de teatro de um historiador, Wu Han, chamada Hai Rui demitido do
governo e apresentada em Beijing em 1961, era um ataque velado às políticas
de Mao. Além de sua experiência acadêmica, Wu Han era vice-prefeito de
Beijing. Assim, gozava da proteção do primeiro-secretário do partido na
capital, Peng Zhen. Consequentemente, Jiang Qing não conseguiu encontrar
em Beijing um autor que pudesse escrever um artigo polêmico contra Wu
Han - uma boa indicação do poder exercido pelo chefe do partido na ci-
dade. Sem se deixar intimidar, ela foi a Xangai, onde o primeiro-secretário
local, consciente de que Mao aprovara a iniciativa da esposa, designou dois
propagandistas para a tarefa de desmascarar Wu Han. Obedientemente,
eles descreveram a peça como "uma intervenção reacionária na grande luta
. b . I' d "43de classes entre a urguesia e o pro etana o .
A publicação da denúncia contra Wu Han (o texto do artigo foi editado
pessoalmente por Mao) lançou a Revolução Cultural. Desse momento em
diante, tornou-se muito mais significativo falar em maoismo e maoistas,
porque era o presidente quem definia o que era a autêntica doutrina revo-
lucionária, distinguindo-a do que fora aceito até então. Ele usou sua auto-
ridade e a fabricação de um culto à sua personalidade que alcançou níveis
elevados para substituir, um após o outro, membros importantes do sistema
político e cultural chinês. Wu Han e Peng Zhen estavam entre os primeiro~
que foram expulsos. Lin Biao, cujo ELP dera um apoio crucial a Mao, fOI
um dos últimos. Em 1971, ele foi acusado de conspirar, juntamente com
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386 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO
seu filho, um oficial do ELP, para assassinar Mao. Com a mulher e esse
filho, Lin Biao seguiu às pressas para um aeroporto, no meio da noite, e
confiscou um avião. Eles tentaram voar para a União Soviética, mas o avião
se acidentou na Mongólia, muito provavelmente por falta de combustivel.v'
Em um período anterior da Revolução Cultural, Lin Biao assumira alugar
de Liu Shaoqi como aparente herdeiro de Mao, mas essa sempre fora urria
posição perigosa para se ocupar. Muitos anos depois de sua morteç Lirr
ainda era denunciado em reuniões orquestradas na China. O próprio Liu
Shaoqi havia sido o alvo mais importante da primeira e mais maníaca fase
da Revolução Cultural, entre 1966 e 1969. Afastado do governo em 1967, ele
morreu em prisão domiciliar, em 1969. Havia sido denunciado formalmente
como "traidor, renegado e desprezível". Sua esposa, Wang Guangmei, ficou
12 anos presa. Depois da morte de Mao, Liu foi postumamente reabilitado,
sendo todas as acusações contra ele consideradas sem fundamento.
Morreram muito menos pessoas durante a "Grande Revolução Proletária
Cultural" do que durante o Grande Salto para Frente. Isso, em parte porque
a Revolução Cultural afetou principalmente a população urbana, quando a
maioria das pessoas - cerca de 620 milhões no fim dos anos 1960 - ainda
vivia no interior." Mas estima-se que pelo menos meio milhão das cerca de
137 milhões de pessoas que moravam nas cidades morreram como resultado
direto da Revolução Cultural." O expurgo político de dirigentes foi, em
termos percentuais, ainda maior do que aquele realizado por Stalin entre
1936 e 1938, embora na China uma proporção menor tenha sido executa-
da ou presa. Entre 60 e 70 por cento dos dirigentes de órgãos centrais do
Partido Comunista foram afastados. Dos 13 membros do Secretariado
do Comitê Central em 1966, apenas quatro ainda estavam ali em 1969, e
apenas 54 dos 167 membros do Comitê Central mantinham seus cargos.
Metade dos ministros do Conselho do Estado perdeu seu cargo. Muitos
desses dirigentes afastados do governo e de órgãos centrais e regionais do
partido foram enviados para "escolas de oficiais" no interior, onde tiveram
que se submeter a uma reeducação ideológica intercalada com duro trabalho
físico. Alguns, porém, tiveram um tratamento pior, sendo espancados até a
morte ~u torturados. Wu Han, o escritor cuja desgraça Jiang Qing organi-
zou, fOI um dos que tentaram se suicidar." Deng Xiaoping foi denunciado
como "capitalista infiltrado" (descrição que era um exagero grosseiro na
época, mas que poderia ser considerada como tendo uma fração de verdade
quando ele deteve o poder supremo, uma década e meia depois) e demitido
de todos os seus cargos. Foi enviado para trabalhar como montador em
CHINA: DAS ·CEM FLORES· À "REVOLUÇÃO CULTURAL" 387
uma fábrica, função para a qual tinha qualificação, ainda que ultrapassada,
já que durante seus estudos na França, quarenta anos antes, ele trabalhara
em meio expediente fazendo isso em uma fábrica da Renault. O filho mais
velho de Deng ficou inválido para o resto da vida ao pular da janela de um
dormitório em um andar superior da Universidade de Beijing, na tentativa
de fugir de Guardas Vermelhos que o perseguiam."
Na verdade, foram as escolas e universidades que sofreram os piores
efeitos da Revolução Cultural. Milhões de professores foram ridicularizados
publicamente e universidades ficaram fechadas vários anos, a partir de 1966,
de modo que os estudantes podiam participar do processo revolucionário
como Guardas Vermelhos. De início, a maioria dos jovens que participou
acreditava realmente que acontecia uma "purificação" da revolução e, com
uma fé implícita, acreditava na sabedoria de Mao Zedong. A destilação dos
pensamentos de Mao no onipresente Pequeno Livro Vermelho se tornou
uma leitura obrigatória, e não apenas para os estudantes. (Lembro-me bem
que no ano acadêmico que passei na Universidade do Estado de Moscou,
em 1967-68, vi diplomatas da embaixada chinesa caminhando em fila in-
diana, com uniforme de estilo Mao, cada um deles lendo o Pequeno Livro
Vermelho enquanto caminhava.) Os tumultos no sistema educacional chinês
continuaram na primeira metade dos anos 1970, e muitos ex-Guardas Ver-
melhos transferidos para o interior tiveram, com sua educação interrompida
por mais de uma década, bastante tempo para se arrepender de seu fervor
revolucionário na juventude.
CONSEQUÊNCIAS NÃO INTENCIONAIS NA CHINA
Mesmo quando Mao Zedong ainda era vivo, houve uma reavaliação parcial
da Revolução Cultural. Em 1975, Mao estava usando a fórmula de que ela
havia sido 70 por cento um sucesso e 30 por cento um fracasso." Depois
de ele se pronunciar, era preciso coragem para discordar. Deng Xiaoping,
que fora levado de volta à liderança como vice-prernier, viu-se, porém, sob
ataque, devido à sua compreensível relutância em concordar que a Revolução
Cultural era - considerando tudo - uma história de sucesso. Deng teve
que fazer uma aurocrítica, mas o que disse estava longe de satisfazer Mao.
Foi afastado mais uma vez, depois de atribuir seus erros a "uma profunda
incapacidade de compreender o que era a Revolução Cultural't.ê"
Em 1975, além de insistir que a Revolução Cultural fora bem-sucedida,
Mao criticou 0 íacciosismo dentro do Partido Comunista, inclusive a fac-
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388 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO
V"0'
CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇÃO CULTURAL" 389
çã.o mais fanaticamente envolvida na revolução, da qual sua mulher, Jiang
Qing, era membro. Mao descreveu os círculos internos do partido como
a "?angue dos Quatro" - expressão que depois de sua morte se tornaria
m_ulto m~ls !a~osa do que ele pretendia. (A relação de Jiang com Mao
nao era tao mtima quanto seu status de esposa sugeria. Uma das funções
do c~efe de segurança de Mao, general Wang Dongxing; era garantir um,
s.upnmento constante de mulheres jovens, cujos serviços' sexuais 'er~m ~ii-
lizados pelo "Grande Timoneiro". Elas eram eufemisticari1ent~ conh~'cidas
como a "Trupe do Trabalho Culrural't}" Além de Jiang Qing, compunham
a ?a~gue dos Quatro Wang Hongwen, um líder trabalhista radical nos
pnmelfo,s anos da Revolução Cultural, e que nos anos 1970 era considerado
um possl.vel.sucessor de Mao; Yao Wenyan, crítico literário de Xangai que
fora? .pnnclpal autor do ataque (por ordem de Jiang Qing) à peça Hai Rui
demltz~o do governo; e Zhang Chunquiao, um veterano propagandista de
~an~a.1 que em meados dos anos 1970 era presidente do Comitê Revolu-
cionario de Xangai e vice-premier do Conselho do Estado.
A Revolução Cultural foi um desastre pessoal para milhões de chine-
s~s.. Quanto mais instruídos eles eram, mais provavelmente se tornavam
vltJ~as. Em quase t~dos os aspectos, aquela foi também uma Revolução
AntlCultural, na medida em que envolveu a injustificável destruição, pelos
Guardas Verm~lhos (frequentemente agindo por iniciativa própria), de ar-
t:~atos .cu!t~rals~ fossem livros, pinturas, obras de museus, cemitérios ou
~ltlOs~lstoncos.)2 Já em 1966 os Guardas Vermelhos haviam sido, porém,
IncentIvados a atacar os "Quatro Velhos". Os velhos pensamentos, a velha
cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos tinham que ser eliminados.r'
Aparentem~nte, u~a das coisas que motivou Mao a lançar a Revolução
Cult.ural fOIo de~eJ~de garantir seu legado. Ele queria ser seguido e reve-
renciado p~r radicais, e não por "revisionistas".54 Entretanto, o desastre
da Revoluçao Cultural, que rapidamente se seguiu ao desastre ainda maior
do ~rande Salto para Frente, ajudou a assegurar o triunfo do que ele teria
considerad., um revisionismo extremo.
, De fato, a Revolu?ãO Cultural teve consequências não intencionais que
acabaram sendo benéficas para a China, por mais trágico que tenha sido o
preço. alto p~go pel~ ressu~gimento do bom-senso. Um motivo importante
pel~_qual f?,1~uas~ Impossível realizar uma reforma econômica radical na
Unz~o SOVte~l~a ~o~a força dos grupos de interesse - a começar pela buro-
cracia ~os mllllstenos_econômicos e das organizações regionais do partido.
"Na Chma, a Revoluçao Cultural rompeu totalmente essas estruturas, que
nunca recuperaram completamente sua antiga coerência e dominação. As-
sim, a resistência burocrática à reforma do mercado foi muito mais fraca do
que teria sido quando a inovação econômica foi empreendida seriamente,
depois da morte de Mao Zedong. Além disso, a campanha contra O "revi-
sionismo" levara a extremos tão irracionais, que os fanáticos da Revolução
Cultural logo se viram na defensiva quando seu mentor e protetor, Mao, já
não estava ali. A Gangue dos Quatro foi detida em 6 de outubro de 1976,
menos de um mês depois da morte de Mao, e mantida presa durante quatro
anos, até ser levada a julgamento em 1980. Foi acusada de causar a morte
de quase 35 mil pessoas. Dois de seus membros - a viúva de Mao, Jiang
Qing, e Zhang - foram condenados à morte, pena que mais tarde seria
comutada.v A publicidade dada aos crimes do grupo ajudou a desacreditar
ainda mais o extremismo da Revolução Cultural e a reabilitar funcionários,
incluindo aqueles de tendência reformista, que haviam sido perseguidos
naqueles anos. A liderança do partido não pôde se permitir desacreditar
Mao de maneira abrangente, porque ele era o Lenin e também o Stalin de-
les. Uma parte grande demais da legitimidade do regime Comunista teria
sido perdida se eles tivessem feito isso. Entretanto, uma "Resolução sobre
a História do Partido", feita pelo Comitê Central, não se furtou a atribuir
a Mao a responsabilidade final pela década desastrosa de meados dos
anos 1960 a meados dos anos 1970, sem chegar ao ponto de transformar
a Gangue dos Quatro na Gangue dos Cinco. O documento observou: "A
'Revolução Cultural', que durou de maio de 1966 a outubro de 1976, foi
responsável pelos reveses mais sérios e pelas perdas mais pesadas sofridos
pelo Partido, O Estado e o povo desde a fundação da República Popular.
Foi iniciada e liderada pelo Camarada Mao Zedong."56
A influência da ideologia Comunista jamais poderia voltar a ser a mes-
ma na China. Nem o marxismo-leninismo, nem o Pensamento de Mao
Zedong - embora a retórica sobre eles continuasse - dominavam a mente
das pessoas como acontecera antes e, de maneira extrema, nas' primeiras
fases da Revolução Cultural. O utopismo estava fora, o pragmatismo estava
dentro. Na verdade, quase tudo o que Mao quisera destruir para sempre,
e que constituíra sua principal motivação para lançar e continuar a Revo-
lução Cultural, recebeu um novo impulso na reação contra o tumulto e a
arbitrariedade da "Última Revolução de Mao",57 Os antigos dirigentes que
recuperaram seus cargos, depois de sofrerem em graus diversos nas mãos
dos fanáticos revolucionários de sua própria geração, e ainda mais com o
fanatismo jovem dos Guardas Vermelhos, uniram-se em sua determinação
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390 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO CHINA: DAS "CEM FLORES' À "REVOLUÇÃO CULTURAL' 391
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de nunca mais se sujeitar a tamanho extremismo e insubordinação. (Experi-
ências recentes sobre o que os jovens poderiam fazer quando aparentemente
recebessem liberdade para fazer o que quisessem não serviram, porém,
para levar aqueles que foram reintegrados a se inclinar para a democracia
política.) Embora muitos chineses continuassem a acreditar que Mao, ao
longo de sua extensa carreira de revolucionário e governante, tivesse feito
mais bem do que mal, ele deixou de ser endeusado. Tanto MaQ quanto o
Pensamento de Mao Zedong haviam sido secularizados.
muito tempo um absurdo que o país já não estivesse ali. O maior obstáculo
eram os Estados Unidos - daí as tentativas de abertura chinesa junto ao
governo Nixon, às quais o presidente Richard Nixon e seu ~ecretário de
Estado, Henry Kissinger, responderam. Embora o reconhecimento ame-
ricano à China tenha sido pouco mais do que um tardio reconhecimento
do óbvio, e apesar de o encontro de Nixon com Mao Zedong em 1972 ter
sido menos importante do que Nixon e Kissinger fizeram parecer, o fato
de um presidente republicano - e que durante o período do macartismo
perseguira os Comunistas - ter tomado a iniciativa mudou os contornos
da diplomacia internacional.t"
Desse momento em diante, os Estados Unidos puderam tentar jogar a
"carta da China" contra a União Soviética, embora isso fosse acabar não
tendo qualquer importância na época em que as relações entre os EUA e a
União Soviética melhoraram de maneira mais significativa - na segunda
metade dos anos 1980. Historicamente, a ruptura sino-soviética foi um
aconJecimento muito mais importante do que o desenvolvimento da relação
1e ·tr~balho sino-americana. Esta estava atrasada e fazia sentido. Muitas
iezes, porém, envolveu hipocrisia dos dois lados, sendo a União Soviética
muito mais castigada - durante os governos de vários sucessores de Nixon
_ do que a China por seu desempenho em direitos humanos. Isso, embora
o currículo da China de repressão e intolerância fosse - principalmente
no período de Mao - muito pior até mesmo que o de Brejnev na Rússia.
CONSEQUÊNClAS NÃO INTENCIONAIS INTERNACIONAIS
Mesmo durante o período de Mao Zedong, houve um recuo em relação a
algumas das desordens violentas produzidas pela Revolução Cu ltural. Mao
teve que recorrer aos serviços do ELP para conter os excessos mais ferozes
dos Guardas Vermelhos. Mas foi na política externa que ele reverteu o curso
de maneira mais espetacular. Depois de criticar e ridicularizar a liderança
soviética por ser branda em sua atitude com a potência arqui-imperialista, os
Estados Unidos, Mao começou, em 1970-71, a enviar sinais a Washington
de que uma relação menos antagonista seria bem-vinda. Em 1969, a China
chegara mais perto do que nunca de uma guerra contra a União Soviética, e
ter relações igualmente ruins com as duas superpotências parecia desacon-
selhável. A Revolução Cultural exacerbara o conflito sino-soviético. Unira
a maior parte do sistema soviético - fosse'm Comunistas reformistas ou
conservadores - contra a China, que os fazia lembrar do Grande Terror
dos anos 1930. De fato, uma das consequências não intencionais dos acon-
tecimentos na China para a política soviética foi que, em uma época em que
a liderança de Brejnev interrompera as críticas a Stalin, diversos escritores
soviéticos antistalinistas - totalmente "revisionistas" - publicaram livros
e artigos aparentemente sobre Mao e a China, mas que seus leitores mais
perspicazes perceberam que eram sobre Stalin e a União Soviética. Assim
como a "Iugoslávia" serviu por algum tempo como União Soviética, na
polêmica com a China, e a "Albânia", nas respostas soviéticas, substituiu
a China, Mao se tornou um substituto de Stalin e os escritos sobre ele se
tornaram uma maneira de pressionar por moderação, reformas e um Estado
de direito na URSS.5~
Consciente de seu isolamento internacional no início dos anos 1970,
a liderança chinesa começou a demonstrar um novo interesse em receber
um lugar nas Nações Unidas. Na maior parte do mundo, considerava-se há

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  • 1. 370 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO do bem comum. É claro que a rivalidade burocrática ocorre também em democracias, mas em um sistema em que os poderes político e econômico se concentram em agências estatais, com uma concomitante ausência de forças de mercado para contrabalançar, o departamentalismo se torna a principal arena da luta política. Conforme observado em capítulo anterior, Kruschev tentou lidar com o problema abolindo a maioria dos ministérios centrais e criando, no lugar deles, conselhos econômicos regionais. Mas descobríu que o departamentalismo foi substituído rapidamente pelo "Ioc~lis~o". O padrão de comportamento burocrático que ele deplorava no centro foi logo reproduzido nas localidades. , Se as conquistas na saúde e na educação ajudaram a sustentar o apoio ao sistema existente' em Cuba, um aliado involuntário do regime de Fidel têm sido os Estados Unidos. Quanto mais contato pessoas de sociedades relativamente fechadas têm com pessoas de sociedades abertas, mais difícil é para esses regimes fechados manter seu controle autoritário. Ao impor um embargo econômico a Cuba, e ao dificultar as visitas de cidadãos americanos à ilha, o governo dos EUA não apenas ajudou a liderança cubana susten- tando a ameaça externa, e reforçando, assim, o patriotismo cubano, como reduziu as oportunidades de uma interação em que cada um dos dois lados pode~ia ter aprendido alguma coisa com o outro. Provavelmente, porém, um SIstema que impõe controles a consultas livres seria mais corrosivo do que um sistema em que ideias liberais, conservadoras e mesmo Comunistas estejam prontamente acessíveis, embora o auge nada impressionante do Partido Comunista dos Estados Unidos já tivesse passado antes de Fidel Castro chegar ao poder. 17 China: das "Cem Hores" à "Revolução Cultural" A chegada ao poder dos Comunistas chineses foi discutida no capítulo 11, em um relato que termina em 1953, o ano da morte de Stalin. Este capítulo cobre um período não menos tumultuado - de 1953 até o falecimento de Mao Zedong, em 1976. Foi um período de enorme significado tanto para a China quanto por suas implicações para o resto do mundo Comunista. Tão importantes quanto os anos da guerra civil e da revolução na China foram os quatro principais acontecimentos que abordo neste capítulo: a campanha das "Cem Flores" e a repressão que se seguiu; o "Grande Salto para Frente", que acabou sendo um desastre; a ruptura sino-soviética, que foi um divisor de águas na história do Movimento Comunista Internacio- nal; e a "Grande Revolução Cultural Proletária" da última década de Mao como governante chinês, um movimento que causou imenso sofrimento e teve importantes consequências não intencionais. Até meados dos anos 1950, a política dos Comunistas chineses no poder se baseava fortemente na experiência soviética. Um plano de cinco anos executado de 1953 a 1957 teve o objetivo de dobrar a produção industrial e aumentar em um quarto a produção agrícola.' Embora não tenha sido grande em termos financeiros, a ajuda soviética foi significativa por prover especialistas. Engenheirose tecnologistas russos sem dúvida tiveram um papel importante ao ajudarem a desenvolver a infraestrutura industrial da China nos anos 1950. A política industrial obteve resultados melhores do que a tentativa de coletivizar a agricultura - embora os chineses tenham tentado evitar os excessos da coletivização compulsória de Stalin no fim dos anos 1920 e início dos anos 1930 na União Soviética. Cooperativas de Produtores Agrícolas foram criadas, envolvendo todos os moradores de vilarejos. Esperava-se que estas se expandissem gradualmente - passando de algumas dezenas de famílias para centenas em cada cooperativa. O crescimento da produção agrícola foi, porém, muito mais lento do que o previsto e surgiram divergências no Partido Comunista entre aqueles que
  • 2. 372 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO de~endiam um processo mais gradual (incluindo a manutenção de terras pflvad~s e alguns mercados livres) e os linha-dura, liderados por Mao, que defendiam uma socialização mais rápida." Mas em 1956 a transferência básica dos meios de produção da posse privada para a propriedade estatal ou coletiva havia sido concluída na economia chinesa, de um modo geral.' Como em outros países Comunistas, houve um progresso substancial na e~ucação. Nos .níveis mais elevados, houve perdas - principalrriente,e crucialrnente, da liberdade intelectual nas ciências humanas e sociais-(em~ bora Ma.o achasse que havia muito pouca doutrinação ideológica). Mas a disserninação da educação básica ocorreu em enorme escala. O número de crianças que frequentavam escolas primárias aumentou de 24 milhões em 1949, para 64 milhões em 1957.4 No mesmo período, os números no ensino su~erior dobraram. Continuava havendo, porém, grandes diferenças entre as cidades e o interior, com poucas boas escolas fora das cidades bem como grandes disparidades entre homens e mulheres. Mesmo nas escolas primá~ias: a p~oporção de meninos para meninas era de dois para uma." Na primeira decada de poder dos Comunistas, houve melhorias substan- ~iai.s na saúde pública. Isso trouxe benefícios, mas também problemas. O índice de mortalidade diminuiu muito mais do que o índice de natalidade e um aumento populacional de dois por cento causou mais pressão sobre os recursos escassos.s A experiência soviética e os acontecimentos mais recentes na União Soviética continuavam a influenciar a política chinesa. Assim, no VIII Congresso. do Partido Comunista Chinês, em setembro de 1956, o papel de Mao fOI menos enfatizado do que no Congresso anterior, em 1945. O Pensamento de Mao Zedong foi removido (por enquanto) dos estatutos do partido e foi dada uma forte ênfase à liderança coletiva. Essas mudanças foram, pelo menos em parte, consequência do destronamento de Stalin no XX Congresso do Partido Comunista Soviético e do ataque mais geral ao "cult? à personalidade" ali.? O cerne da liderança do partido chinês foi mantido no VIII Congresso, embora uma promoção significativa à cúpula ten?a. sido a de Deng Xiaoping, que mais tarde se tornaria uma das figuras rnars Importantes da história chinesa do século XX. Em conversa com O líder soviético Nikita Kruschev em 1957, Mao apontou para Deng e disse: "Está vendo aquele homenzinhó ali? Ele é muito inteligente e tem um grande futuro pela frente.?" A observação parece particularmente apropriada em retrospec.to~ mas c?mo o futuro de Deng envolveu a reversão de grande parte do que fOIdito e feito por Mao Zedong, dificilmente era isso o que Mao tinha CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇAO CULTURAL" 373 em mente. O VIII Congresso parecia marcar uma nova estabilidade na vida política, com diversos interesses burocráticos - especialmente ministérios econômicos e organizações do partido nas províncias - fazendo com que suas reivindicações fossem ouvidas." Acabou representando, porém, apenas uma calmaria antes de uma série de tempestades. As Cem Flores Por um breve período, pareceu que o Congresso seria, inesperadamente, seguido de um pluralismo crescente. Para muitas pessoas na China e no exterior, parecia que Mao Zedong inaugurara uma nova fase de desenvol- vimento pós-revolucionário ao incentivar as pessoas a ter um olhar mais crítico sobre o que fora alcançado até então. O que se tornou conhecido como o movimento das Cem Flores, em 1956-57, derivava da observação de Mao: "Que cem flores desabrochem, que cem escolas de pensamento se enfrentem."!" Embora inaugurada em 1956, a campanha foi intensificada na primeira metade de 1957. Mao incentivou as críticas ao que fora reali- zado desde 1949, embora tivesse em mente a identificação de deficiências específicas, e não críticas a tudo. Em geral, ele assumiu uma visão positiva do conflito, sustentando que membros do partido deveriam criticar não apenas eles próprios, mas um ao outro. Estipulou um limite, porém, para as críticas a ele próprio ou ao sistema Comunista. Mas foram externadas algumas críticas aos fundamentos. Estas incluíam até questionamentos ao direito do Partido Comunista Chinês de governar sem qualquer verificação de seu poder ou sem prestar contas sobre suas decisões. Quando Mao emitiu uma instrução aos altos funcionários do partido para que eles deixassem as críticas continuarem, em maio de 1957, seus motivos eram suspeitos. Na época - se não antes - ele estava tentando fazer com que seus inimigos e aqueles que se opunham ao sistema se mostrassem. Isso permitira a ele - assim como a Lenin em 1921 - "pôr a tampa na oposição", ou, nas palavas do próprio Mao (que continuava a usar metáforas horticulturais), extrair "as sementes venenosas".'! A liderança soviética ficara alarmada com a conversa chinesa sobre per- mitir que cem flores desabrochassem, já que isso aumentava a pressão por uma liberdade de expressão maior na União Soviética e no Leste Europeu. Em retrospecto, pelo menos, Kruschev acreditava que a afirmação "que cem flores desabrochem" não passava de uma provocação: "Mao fingiu
  • 3. 374 ASCENSAo E QU EDA DO COMUNISMO estar abrindo as comportas da democracia e da Iiberdade de expressão. Ele queria estimular as pessoas a expressar seus pensamentos mais Íntimos, tanto oralmente quanto em publicações, para poder destruir aqueles cujos pensamentos considerasse nocivos.?'? A liberalização parcial que permitira, ainda que brevemente, uma exposição de ideias heterodoxas significou, en- tretanto, que a posição de Mao havia sido temporariamente enfraquecida. A campanha prejudicou sua autoridade e revelou diferenças de opinião acentuadas dentro do partido governante. A resposta de Mao foi lançar uma "campanha antidireitista" e reenfatizar a importância da luta de classes." Não apenas intelectuais de histórico "burguês", mas também estudantes que haviam recebido educação superior no período Comunista estavam entre aqueles que expressaram seu descontentamento, alguns deles questionando a competência do partido. Tudo isso indicava uma crescente alienação de muitos segmentos mais instruídos da sociedade em relação ao sistema. 4 O ataque aos "direitistas" que se seguiu atingiu duramente os intelectuais. Mais de meio milhão deles foram tachados de "direitistas" e sofreram grande pres- são ideológica, o que levou a inúmeros suicídios. Muitos intelectuais foram designados para trabalhos braçais. Uma das ironias dos sistemas Comunistas - o mesmo aconteceria na Tchecoslováquia depois da repressão à Primavera de Praga e, em momentos diversos, em outros Estados Comunistas - é que, embora os trabalhadores braçais constituíssem a classe dominante oficial, o padrão de punição aos intelectuais considerados culpados por escritos não ortodoxos ou por atividades politicamente suspeitas era retirá-Ios de suas profissões que exigiam curso superior e torná-Ios operários. Assim, paradoxalmente, eles eram "rebaixados" à "classe dominante". Os líderes chineses eram sensíveis ao que acontecia em outros lugares do mundo Comunista. Haviam apreciado de certa forma o Discurso Secreto de Kruschev no XX Congresso do PCUS em 1956, embora Mao fizesse sérias reservas à sua conveniência e tenha ficado furioso por não ter sido avisado de antemão sobre uma mudança de linha tão radical. Estavam também bas- tante preocupados com o papel político desempenhado por intelectuais na Polônia e na Hungria no mesmo ano. A lição que Mao e seus aliados mais próximos aprenderam com o movimento das Cem Flores foi que os inte- lectuais chineses também haviam mostrado que não eram ideologicamente confiáveis. A liderança do partido permaneceu consciente de que precisava da habilidade de profissionais de níveis mais elevados. Consequentemente, enfatizou que a campanha anridireitista, que se seguiu ao fracasso - do ponto de vista deles- da iniciativa das Cem Flores, não tinha como alvo a CHINA: DAS "CEM FLORES· A "REVOLUçAO CULTURAL· 375 maioria dos intelectuais chineses. Entretanto, o ataque àqueles que haviam sido corajosos, ou ingênuos, o bastante para acreditar piamente na ideia de uma disputa aberta entre diferentes escolas de pensamento conteria, em vez de estimular, o entusiasmo já decrescente de muitos intelectuais pelos objetivos do partido. o Grande Salto para Frente Ao visitar Moscou em outubro de 1957, Mao demonstrou admiração pelas conquistas soviéticas, especialmente à luz do recente feito da URSS de se tor- nar o primeiro país do mundo a pôr uma espaçonave em órbita. No conflito entre o Leste e o Oeste, declarou ele, o vento leste prevalecia sobre o vento oeste." Entretanto, apenas um ano depois, Mao e seus aliados estavam se afastando do modelo soviético de desenvolvimento que haviam seguido, em essência, até então. A ideia do Grande Salto para Frente, que defenderam, era um programa de mobilização em massa em que o entusiasmo e a força de vontade do povo seriam totalmente utilizados. Mao pretendia aproximar mais gerentes, técnicos e operários, rejeitando a abordagem mais tecnocrá- tica e hierárquica dos assessores soviéticos. Os engenheiros e tecnologistas soviéticos foram largamente excluídos, assim como as agências burocráticas do governo central chinês. Para que o interior pudesse se tornar mais autos- suficiente em todos os aspectos, cada localidade foi incentivada a estabelecer tecnologias em pequena escala, de modo a complementar a indústria de larga escala já construída. Mao chamou isso de "caminhar sobre duas pernas". Significou, entre outras coisas, a criação de fornalhas de fundo de quintal que eram um desperdício de trabalho e economicamente inúteis. O Grande Salto para Frente proclamou uma redistribuição de energia. Nas províncias, entregou a iniciativa de dirigentes centrais e gerentes a generalistas políticos cuja tarefa era inspirar os trabalhadores ideologicamente." Enquanto protegia zelosamente seu poder pessoal, Mao também levava as ideias a sério, e estava ansioso para avançar a comunização da sociedade chinesa. Em particular, isso significava transformar as Cooperativas de Produtores Agrícolas em "comunas do povo" muito maiores. Muito mais mulheres foram levadas para a força de trabalho quando as fazendas maciças foram criadas, enquanto os homens trabalhavam frequentemente longe de suas vilas nativas. O utopismo do Grande Salto para Frente pode ter sido inspirador no início, mas seus resultados foram desastrosos. O desprezo
  • 4. 376 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO "I por obstáculos materiais e pela especialização profissional levou ao caos no interior e, com isso, a uma fome devastadora. Os falsos relatos sobre o aumento da produção de grãos contrastavam com a dura realidade de uma queda drástica na produção. Os transportes rurais foram interrompidos e os equipamentos agrícolas negligenciados. A situação piorou com enchen- tes e secas em 1959 e 1960. A melhor estimativa do número de mortes resultantes do tumulto econômico criado pelo Grande Salto entre 1955e 1961 - as "mortes em excesso", em termos estatísticos, naquele per-íodo - é da ordem de 30 milhões de pessoas. Isso significa que uma pessoa em cada vinte do interior chinês foi vítima fatal desse desastre provocado em grande parte pelo homem.'? No Tibete, que fora incorporado à República Popular da China (RPC) em 1950, a ameaça do tipo de mudança estabelecida pelo Grande Salto foi suficiente para criar uma séria agitação em 1959. Os tibetanos representam um dos 55 grupos étnicos diferentes reconhecidos oficialmente pela RPC, embora os chineses han sejam, em número, esmagadoramente dominantes na China como um todo, formando mais de 90 por cento da população. A revolta de 1959 foi reprimida por tropas chinesas e o líder espiritual dos tibetanos, o Dalai Lama, buscou refúgio na índia. Embora as autoridades chinesas tenham conseguido manter o controle sobre o Tibete nos anos que se seguiram, a questão da autonomia religiosa e política da população nativa do Tibete continua sendo até hoje uma questão Internacional controversa." No fim dos anos 1950 e início dos anos 1960, enquanto ficava cada vez mais claro para algumas pessoas da liderança chinesa que v Grande Salto havia sido um erro monumental- na verdade, um passo gigante para trás - vieram a público tensões que, em alguns casos, estavam ali sob a super- fície há anos. Entre aqueles que criticaram Mao pelo fiasco do Grande Salto para Frente, sobressaiu-se Peng Dehuai, que se destacara como general no comando das forças chinesas na Guerra da Coreia. Peng defendia relações próximas com a União Soviética e, como ministro da Defesa, queria que as forças armadas da China seguissem o modelo do exército soviético. Sem qualquer prova real, Mao suspeitou que Peng coordenava ataques a ele com críticas que logo viriam de Moscou. Peng foi prontamente demitido de seu cargo, mas a posição um tanto enfraquecida de Mao se refletiu em sua de- cisão de desistir do cargo de chefe de Estado em 1959, embora mantivesse o cargo mais importante de presidente do Partido Comunista Chinês. Deng Xiaoping se tornara secretário-geral do partido e, como tal, exercia grande autoridade no secretariado. Mas enquanto Maoestava vivo, o cargo , I 1 ll-;1 'i 'I j CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇÃO CULTURAL' 377 de secretário-geral não era o mais importante - o que é incomum em um Partido Comunista. A presidência do partido era o principal cargo, uma vez que Mao o ocupava. Na ocasião em que Mao elogiou Deng Xiaoping a Kruschev, em 1957, Deng ainda era um forte aliado do presidente do partido, mas isso mudou durante o Grande Salto para Frente. Ele passou a ter menos consideração por Mao, que mais tarde - durante a Revolução Cultural- reclamou que Deng "não lhe dava ouvidos desde 1959".19 O sucessor de Mao como chefe de Estado, Liu Shaoqi, anunciou em 1961 que, não obstante as graves enchentes ocorridas em inúmeras províncias chinesas, 70 por cento da fome que atingia o país se devia a erros humanos, e não a desastres naturais. 2U Liu não declarou isso como uma acusação a Mao, mas, principalmente em retrospecto, sua atitude pode ser vista como uma crítica velada ao líder. Foram Liu e Deng que juntos desenvolveram as políticas de 1961 a meados dos anos 1960, que puseram a economia chinesa de novo em um rumo mais sensato-oO conhecimento especializado foi novamente reconhecido e foram tomadas medidas para fortalecer o aparelho do partido como um órgão disciplinado." A Ruptura Sino-Soviética A ruptura sino-soviética tem sua origem em 1956, com o discurso de Kruschev no XX Congresso, o qual incomodou os chineses, uma vez que eles davam a Stalin um apoio público sem críticas até então." Aquele tam- bém foi o ano em que, com a iniciativa das Cem Flores, Mao começou a promover políticas fortemente divergentes dos governantes Comunistas da União Soviética e do Leste Europeu - e potencialmente constrangedoras para eles. Em 1957, vieram à tona inúmeras diferenças. O resultado da crise do Grupo Antipartido é um bom exemplo. Mao discordou da decisão de Kruschev de afastar da liderança soviética antigos bolcheviques, como Molotov, embora uma década depois ele próprio trataria seus antigos com- panheiros com ainda menos respeito.P Na esteira da crise na liderança soviética em 1957 - que se seguiu aos acontecimentos muito mais'turbulentos na Polônia e na Hungria, no ano anterior - o Partido Comunista Soviético começou a tentar restaurar e reforçar a unidade do Movimento Comunista Internacional. Em novembro de 1957 foi realizada em Moscou uma conferência de líderes de partidos Comunistas, na qual foi feito um esforço para reunir todos os principais
  • 5. 378 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO partidos. Isso significava, em particular, garantir a participação de Mao e Tito. Mao apareceu, mas Tiro não. O líder iugoslavo se opusera a uma versão preliminar de uma declaração que se referia ao "campo socialista" -termo do qual não gostava, já que podia colocar em questão a liberdade de ação da !~go~lávia. Ele também se opôs à frase "luta contra o dogmarismo e o revisiorusmo'', O termo "dogmatismo" se referia às políticas stalinistas de • linha-dura e seria cada vez mais aplicado à China. "Revisionism~"~ra há .. muito tempo o termo relativo a abusos no Movimento Comunista Internacio- nal para desvios na direção oposta - concessões ao mercado ou tolerância· política. Desde a expulsão da Iugoslávia do Cominform, o termo "revisio- nista" era um dos epítetos aplicados à Iugoslávia por outros Comunistas. Em 1961-62, a Iugoslávia já não estava proscrita do Movimento Comu- nista Internacional como estivera nos últimos anos de vida de Stalin. Mas naqu~les anos, o,termo "revisionista" foi repetidamente aplicado ao país pela liderança chinesa. A essa altura, porém, Iugoslávia se tornara um co- dinome para a União Soviética. Isso aconteceu em um período um pouco antes de os Comunistas chineses começarem a atacar publicamente Kruschev e a liderança soviética, chamando-os de "revisionistas". E assim como os c~ineses inicialmente direcionaram sua discussão aberta para Belgrado, e nao para Moscou, a União Soviética criticou publicamente o "dogmatis- mo" dos "albaneses" (em substituição aos chineses) que, sob a liderança de Enver Hoxha, haviam transferido sua lealdade de Moscou para Beijing em 1960. Houve relutância na União Soviética, em particular, em revelar para todo mundo que os dois mais importantes Estados Comunistas do mundo estavam divergindo. Analistas sérios do mundo Comunista tiveram pouc~ dificuldade, porém, para entender a profundidade da desavença entre a China e a União Soviética. Durante o ano de 1962, esse fato ficou cada vez mais claro, embora alguns políticos ocidentais obtusos, principalmente nos Est~dos Unidos, tenham optado por acreditar durante os anos seguintes que a disputa sino-soviética era uma artimanha arquitetada para enganar O "mundo livre". As diferenças entre a China e a União Soviética estavam vindo à tona aos poucos, mas Mao chocou muitos de seus ouvintes quando, em um dis- curso durante sua visita a Moscou em novembro de 1957 considerou com tranquilidade a possibilidade de uma guerra nuclear. Talv:z 700 milhões de pessoas fossem mortas (aproximadamente um terço da população mundial na época), ou, p~ssivelme~te, metade da população do planeta. Mas logo essas pessoas seriam subStituídas, disse Mao, e os ganhos seriam enormes. CHINA: DAS "CEM FLORES" À "REVOLUÇÃO CULTURAL" 379 O imperialismo seria esmagado e o mundo inteiro "se tornaria socialista't." Nem Kruschev em sua fase mais impetuosa (no início da crise dos mísseis em Cuba) jamais pensou, e muito menos disse, algo remotamente tão ir- responsável. A reação dos Comunistas tchecos e poloneses fo_ide horror. Mao podia se dizer preparado para perder metade da populaçao da China em uma guerra nuclear - o que no fim dos anos 1950 significaria a morte de 300 milhões de chineses - mas, como disse o líder Comunista tcheco Antonín Novotny a Kruschev, a Tchecoslováquia perderia "até a última alma" em uma guerra assim.P Quando Kruschev visitou a China em 1958, encontrou Mao altamente resistente à ideia de permitir que submarinos soviéticos usassem portos chineses ou uma estação de rádio localizada em território chinês para se comunicar com a frota soviética. Mao ofendeu Kruschev ao comparar seu desejo de fazer esse uso do território chinês com as atividades da Grã-Bretanha e do Japão no passado. Ele não usou a palavra "imperia- lista", mas a implicação era clara. Também fez o que pôde para humilhar Kruschev de outras maneiras. Mao era um exímio nadador. Em 1966, aos 72 anos, juntou-se aos cinco mil participantes de uma travessia anual no rio Amarelo e, ajudado por uma forte corrente, cobriu a distância de 16 quilômetros." Kruschev, em contraste, nadava tão mal quanto dançava. Se Stalin o havia constrangido mandando-o uançar o gopak, o método de Mao para demonstrar superioridade foi realizar discussões poíincas em uma piscina, Enquanto Mao nadava sem esforço, expondo opiniões que eram imediatamente traduzidas, Kruschev tinha que balbuciar suas respostas com a boca cheia de água. "É claro que eu não podia competir com Mao na piscina", comentou ele em suas memórias. "Como todo mundo sabe, ele bateu um recorde mundial tanto em velocidade quanto em distância.t' " Sinais de reaproximação entre a União Soviética e os Estados Unidos foram um anátema para Mao, que desaprovou a visita de Kruschev aos EUA em setembro de 1959. Três meses antes, Moscou quebrara uma promessa de fornecer aos chineses a bomba atômica (que logo eles desenvolveriam por si próprios). A liderança chinesa supôs que o recuo ocorrera para agradar aos americanos embora na verdade, os soviéticos temessem que os Estados " ',' 28 Unidos retaliassem fornecendo armas nucleares a Alemanha OCidental. (Não há fundamento factual algum para essa suposição, mas em 1959 as lembranças da Segunda Guerra Mundial eram frescas o bastante para os alemães ainda serem vistos como o principal inimigo em potencial da União Soviética na Europa, Foi com a eleição de Willy Brandt como chanceler da
  • 6. 380 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO Alemanha Ocidental uma década depois - e com a política de seu governo de envolvimento construtivo com a União Soviética e os países do Leste Europeu - que as percepções sobre a Alemanha na Rússia e no Leste Eu- ropeu passaram por uma grande mudança.) Quando Kruschev fez sua terceira e última visita à China, em oútubro de 1959, as tensões entre os dois países haviam aumentado muito ~ bem como a irritabilidade entre seus dois líderes. Conflitos na fronteira entre China e índia eram um constrangimento para a União Soviética. Embora a mediação diplomática não fosse o seu forte, Kruschev aconselhou conten- ção. A URSS gozava de boas relações com a Índi~ de Nehru e continuava sendo, pelo menos oficialmente, o aliado Comunista fraterno da China. Kruschev não agradou a seus anfitriões ao cumprir a promessa que fizera ao presidente Eisenhower de levantar a questão dos cinco americanos que eram mantidos presos na China. Tanto Mao quanto Zhou Enlai trataram desse e de outros comentários de Kruschev como se ele fosse um porta-voz dos EUA. Quando Mao reclamou sobre os Estados Unidos terem enviado uma frota para perto da costa chinesa, Kruschev respondeu francamente: "Deve-se ter em mente que não estamos isentos de pecados. Fomos nós que a~r.aímos os americanos à Coreia do Sul" - em uma referência à responsa- bilidade de Stalin pelo início da Guerra da Coreia.?? Quando a conversa se voltou para o Tibete, foi a vez de Kruschev atacar. Mao disse que a intenção deles havia sido "adiar a transformação do Tibete por quatro anos", ao que Kruschev respondeu: "E esse foi o seu erro." Mao também foi forçado a se defender do fracasso da China por não impedir que o Dalai Lama deixasse o T!~ete. ~ruschev deixou claro que considerava isso uma incompetência política, dizendo. "Quanto à fuga do Dalai Lama do Tibete, se fôssemos nós, não teríamos deixado que ele escapasse. Seria melhor que ele estivesse em um caixão. E agora ele está na Índia, e talvez vá para os EUA. Seria isso uma vantagem para os países socialistas?" Mao respondeu que a fronteira com a lndia era muito extensa e que o Dalai Lama poderia tê-Ia cruzado em qualquer ponto. 30 . Em julho de 1960, líderes Comunistas chineses, em sua comunicação Interna, estavam se referindo à luta entre "marxismo e oportunismo" no Movimento Comunista Internacional. Nessa luta, é claro que eles eram os marxistas e Kruschev era o "oportunista" número um, além de um "ma- quinador".» A disputa foi além das palavras quando, naquele mesmo mês a União Soviética informou a Beijing que estava retirando imediatament: seus cerca de 1.400 especialistas que trabalhavam na China. Em uma carta CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇÃO CULTURAL' confidencial, o lado soviético apresentou motivos para essa ação repentina. Esses incluíam a alegação de que haviam sido feitas críticas ao trabalho dos especialistas na China, desconsiderando a ajuda deles (embora fosse a rejeição chinesa à ajuda política soviética, e não à ajuda técnica, que pesasse mais) e, principalmente, a propaganda do Partido Comunista Chinês contra o PCUS.1 2 Entretanto, qualquer que fosse a desilusão com Kruschev e a liderança soviética, os chineses reconheceram a ajuda prática que os enge- nheiros e tecnologistas soviéticos haviam dado. Em meados de agosto de 1960, em um jantar de despedida em homenagem aos especialistas soviéticos que partiam, Zhou Enlai agradeceu a contribuição que eles haviam dado à construção do "socialismo" na China." Entretanto, para piorar as relações entre as duas maiores potências Comunistas, naquele mesmo ano o comér- cio soviético-chinês praticamente acabou, aumentando as dificuldades da economia chinesa em meio aos problemas com o Grande Salto para Frente. Os ch ineses tentaram propagar dentro da Rússia sua posição ideológica e sua opinião sobre a disputa com a União Soviética, entregando a institutos de pesquisa de Moscou documentos que mostravam o lado chinês da histó- ria. A liderança soviética reagiu expulsando três diplomatas e outros dois cidadãos chineses. Estes voltaram para Beijing no início de julho de 1963, tendo uma recepção de heróis, da qual Zhou Enlai participou. 34 Aquele foi o mês em que a disputa se tornou pública. Em 14 de julho, o Pravda publicou em carta aberta a resposta do Comitê Central do PCUS a propostas que os chineses haviam feito um mês antes." Na época, os chineses estavam atacando abertamente o "revisionisrno" soviético. Os anos de 1963-64 foram um divisor de águas no Movimento Comunista Internacional. Os dois maiores partidos Comunistas do mundo se envolveram em discussões abertas, vivendo claramente uma relação de antagonismo. A ideia do Co- munismo como ideologia que unia revolucionários e "anti-imperialistas" no mundo inteiro sofreu um golpe do qual jamais poderia se recuperar totalmente. Acostumada como estava à ideia de que o Partido Comunista da União Soviética tinha um papel importante, se não dominante, no Mo- vimento Comunista Internacional, a liderança soviética procurou manter uma unidade, mas não à custa de se render ideologicamente à posição dos chineses. Mao, porém, estava contente por manter a polêmica, em parte por temer o "revisionismo" em seu país, bem como dentro do movimento como um todo. Ao se colocar como chefe do ataque à apostasia soviética, ele estava fortalecendo sua posição para um ataque aos apóstatas internos. Alguns líderes chineses, como Deng Xiaoping e Liu Shaoqi, que haviam
  • 7. ·'i ,! t: ~t 382 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO CHINA: DAS ·CEM FLORES" À "REVOLUÇAO CULTURAL" 383 brigado assiduamente com seus colegas soviéticos em apoio à linha de Mao descobririam que acusações semelhantes de "revisionisrno" -e em termo' . f . ,s mais orres, de que estavam buscando o capitalismo - seriam feitas COntra eles próprios na Revolução Cultural." Quando Kruschev foi derrubado por seus colegas, em outubro de 1963 ~ao teve ~sperança por um breve momento de que a liderança soviérícn tivesse acenado suas críticas às políticas de Kruschev. Também por PbLi~O tempo, os líderes soviéticos imaginaram que o afastamento do nada di- plomático ~ruschev t~rnaria mais fácil para eles resolver suas diferenças com o PartJd~ Comunista Chinês. Porém, a disputa era muito mais do que .: pess~a.l. Havia profundas questões políticas e ideológicas em jogo. Zhou Enlai h~erou uma delegação nas comemorações do aniversário da revolução bolchevique, em 7 de novembro de 1964, apenas três semanas depois do afas,tamento de Kruschev. Em seu discurso oficial na ocasião, Leonid Brejnev pediu uma nova reunião internacional de países Comunistas fraternos. Esta obse~vação ~oirecebida com aplausos estrondosos dos quais, porém, Zhou Enlai conspicuamente não participou. Em uma recepção mais tarde no ~esmo dia, o ministro, ~a Defesa soviético, marechal Rodion Malinov~ky, disse a um me~~ro militar da delegação chinesa que eles deveriam seguir ~ exemplo sovienco e se livrar de Mao, assim como os soviéticos haviam se livrado de Kruschev. 37 Malinovsky estava um tanto bêbado no momento ~as a tentat~~a de Brejnev de convencer o ultrajado chinês de que aquel; nao era a política oficial, mas sim o resultado da embriaguez de Malinovsky, I~vou Zhou a responder que o álcool simplesmente permitira a Malinovsky dizer o que ele achava." Como a observação de Malinovsky seria relatada a Mao, Zh~u teria tido terríveis problemas em Beijing se tivesse reagido de outra maneira que não fosse denunciando-a veementemente. Incidentes na fronteira soviético-chinesa aumentaram as tensões entre os dois lado~. Mais ta~de, "" 1969, resultariam em muitas mortes em regiões da fronteira dos dOISpaises e causariam o temor de uma guerra em escala total entre ~s,lo~s g;games Comunista~. Entretanto, as disputas territoriais, em~~~a reais, nac :oram fundamentais para Orompimento entre a União SO:'letlca e a Chiria <.sdiferenças ideológicas é que o foram. Na época, os chineses estavam mais cor- »ometidos com a revolução mundial e a U '- S '" niao , oVletlc~ se tornara toleravelmente satisfeita com o status quo europeu e mterna~lOnal, ~omamo que ocupasse um dos dois lugares mais importan- tes da hierarquia mundial, ao lado dos Estados Unidos. A União Soviética defendia a "coexistência pacífica", o que significava que queria, de fato, evitar uma guerra, embora se opusesse resolutamente à coexistência ideo- lógica. (As autoridades soviéticas, assim como os governantes Comunistas de outros lugares, tentavam firmemente evitar a disseminação de ideias não Comunistas no país, ao mesmo tempo que faziam de tudo para promover sua ideologia no mundo.) Em contraste com a ênfase soviética na coexis- tência pacífica, Mao parecia disposto a considerar a guerra uma maneira de fazer o Comunismo avançar, embora na prática fosse mais cauteloso na arena internacional do que sua retórica poderia indicar." Havia também discordância entre as duas lideranças em suas atitudes em relação a Stalin. Esta se tornou menos pronunciada depois de outubro de 1964, porque os sucessores de Kruschev logo decidiram que as críticas a Stalin eao stalinismo eram potencialmente desestabilizadoras e puseram fim a elas em seu país. Embora na elite política soviética algumas pessoas quisessem reabilitar Stalin, isso não aconteceu. Entre a queda de Kruschev, em 1964, e a morte de Mao, em 1976, Stalin foi muito mais enaltecido em Pequim do que em Moscou. Além disso, em diversas de suas ações - tanto quanto em sua vitória (muito cara) sobre as autoridades do partido, que foi o cerne da Revolução Cu/tural- Mao parecia estar seguindo os passos de Stalin. Na "Grande Revolução Cultural Proletária" da China, certamente houve ecos dos expurgos de Stalin no fim dos anos 1930, nos quais muitos membros antigos do partido foram eliminados. Havia discordâncias entre as lideranças dos dois Estados Comunistas em relação ao modo como a economia deveria ser administrada. Mao desprezava a natureza altamente burocratizada do Estado soviético e se preocupou em combater essas tendên- cias em seu país. Além das reais diferenças ideológicas, deve ser considerada a ambição pessoal de Mao de ser o principal teórico do mundo Comunista e sua aspiração a fazer uma transição para o comunismo, no sentido utópico do termo, antes da União Soviética. Depois da queda de Kruschev, líderes soviéticos fizeram apenas ocasionais declarações da boca para fora sobre a noção deste estágio supostamente final de desenvolvimento da sociedade, de modo que Mao teve este campo para ele A Revolução Cultural Com o colapso do Grande Salto para Frente, o governo chinês se tornara mais disciplinado e cada vez mais institucionalizado na primeira metade dos anos 1960. Embora Mao Zedong estivesse no topo da hierarquia polí-
  • 8. I ' I, I',1 fr II 1 1 ',; ( / iii !, 384 ASCENSAO E QUEDA DO COMUNISMO CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUçAo CULTURAL" 385 tica, diversas instituições detinham poder e autoridade verdadeiros. Essas incluíam o Politburo do Comitê Central do PCC; O Secretariado do Comitê Central, liderado por Deng Xiaoping; organizações regionais e municipais do partido, principalmente a de Beijing, chefiada por Peng Zhen; o Con- selho do Estado, que incluía a rede ministerial, chefiada por Zhou Enlai; e a chefia oficial do Estado, cargo ocupado por Liu Shaoqi, que _ mais' importante que isso - tinha uma base forte na máquinadoEs~ad~; Ele' era o número dois no Politburo, e era identificado como sucessor de Mao. No início dos anos 1950, o slogan "A União Soviética de hoje somos nós amanhã" havia sido visto como uma feliz previsão de um progresso eco~ nômico rápido e como motivo de otimismo. Nos anos 1960, Mao, com sua visão cada vez mais indigesta dos acontecimentos na União Soviética, viu esse slogan como uma terrível advertência.e? Se a China não adotaria um modelo de burocracia e revisionismo, o sistema precisava passar por outra modificação fundamental. Assim, Mao estava suscetível às pressões daqueles que achavam que eram tolhidos pela velha guarda que comandava as principais instituições do país. Foi influenciado, não menos, pela facção liderada por sua esposa, Jiang Qing, que tinha um olho clínico especialmente para qualquer distan- ciamento em relação à retidão revolucionária no campo cultural. No sentido mais pleno do termo, a Revolução Cultural durou da primavera de 1966 à primavera de 1969. Como, porém, nunca foi formalmente declarada como encerrada enquanto Mao viveu, de maneira mais branda ela durou até sua morte, em 1976. Juntamente com Chen Boda, o intelectual do Partido Co- munista (embora um homem de origem camponesa humilde) mais próximo de Mao, Jiang Qing liderou o que ficou conhecido como o Pequeno Grupo da Revolução Cultural. Inicialmente, faltou ao grupo uma base de poder firme no partido. Mas com o apoio crucial de Mao, o grupo se tornou uma das três organizações com as quais ele mais interagiu durante a Revolução Cultural, sendo as outras duas o Exército de Libertação Popular (ELP), che- fiado pelo ministro da Defesa, Lin Biao, e o Conselho do Estado, liderado por Zhou Enlai." Em parte porque não haviam se disposto a levar Jiang Qing a sério como voz política, Peng Zhen e Liu Shaoqi estavam entre as primeiras vítimas da Revolução Cultural. Zhou Enlai sobreviveu assumindo posições que eram "radicais o bastante para evitar a destruição, enquanto trabalhava para minirnizar o caos"." Embora fosse acabar se tornando uma vítima da Revolução Cultural, Lin Biao foi um aliado crucial de Mao durante a maior parte da revolução. Apesar de algumas semelhanças com o Grande Expurgo, Mao chegou muito mais perto de destruir o partido do que Stalin, que permaneceu consciente de que precisava dele. Outra diferença notável foi o papel desempenhado pelos exércitos soviético e ch inês. No final dos anos 1930, o exército soviético foi dizimado por Stalin e seus seguidores, e ficou muito longe de exercer um papel importante na política interna. Em contraste, quando as organizações do partido chinês e da rede ministerial foram atacadas, o ELP se tornou o principal baluarte instirucional, no qual Mao Zedong pôde confiar entre 1966 e 1969. Mao também foi apoiado entusiasticamente pelos jovens, os Guardas Vermelhos, introduzidos como uma nova força da política chinesa. Mas o ELP, por ser um exército, era muito mais disciplinado. Livres de regras e desprezando a hierarquia, os Guardas Vermelhos acabaram assustando até mesmo o presidente do PCc. Embora Mao estivesse psicologicamente preparado para iniciar um conflito dentro do partido e da sociedade, e para restabelecer o domínio de suas opiniões, foi Jiang Qing quem, com a aprovação do marido, desferiu o primeiro golpe. Ela argumentou que uma peça de teatro de um historiador, Wu Han, chamada Hai Rui demitido do governo e apresentada em Beijing em 1961, era um ataque velado às políticas de Mao. Além de sua experiência acadêmica, Wu Han era vice-prefeito de Beijing. Assim, gozava da proteção do primeiro-secretário do partido na capital, Peng Zhen. Consequentemente, Jiang Qing não conseguiu encontrar em Beijing um autor que pudesse escrever um artigo polêmico contra Wu Han - uma boa indicação do poder exercido pelo chefe do partido na ci- dade. Sem se deixar intimidar, ela foi a Xangai, onde o primeiro-secretário local, consciente de que Mao aprovara a iniciativa da esposa, designou dois propagandistas para a tarefa de desmascarar Wu Han. Obedientemente, eles descreveram a peça como "uma intervenção reacionária na grande luta . b . I' d "43de classes entre a urguesia e o pro etana o . A publicação da denúncia contra Wu Han (o texto do artigo foi editado pessoalmente por Mao) lançou a Revolução Cultural. Desse momento em diante, tornou-se muito mais significativo falar em maoismo e maoistas, porque era o presidente quem definia o que era a autêntica doutrina revo- lucionária, distinguindo-a do que fora aceito até então. Ele usou sua auto- ridade e a fabricação de um culto à sua personalidade que alcançou níveis elevados para substituir, um após o outro, membros importantes do sistema político e cultural chinês. Wu Han e Peng Zhen estavam entre os primeiro~ que foram expulsos. Lin Biao, cujo ELP dera um apoio crucial a Mao, fOI um dos últimos. Em 1971, ele foi acusado de conspirar, juntamente com
  • 9. i • ! I l, I, ~ 386 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO seu filho, um oficial do ELP, para assassinar Mao. Com a mulher e esse filho, Lin Biao seguiu às pressas para um aeroporto, no meio da noite, e confiscou um avião. Eles tentaram voar para a União Soviética, mas o avião se acidentou na Mongólia, muito provavelmente por falta de combustivel.v' Em um período anterior da Revolução Cultural, Lin Biao assumira alugar de Liu Shaoqi como aparente herdeiro de Mao, mas essa sempre fora urria posição perigosa para se ocupar. Muitos anos depois de sua morteç Lirr ainda era denunciado em reuniões orquestradas na China. O próprio Liu Shaoqi havia sido o alvo mais importante da primeira e mais maníaca fase da Revolução Cultural, entre 1966 e 1969. Afastado do governo em 1967, ele morreu em prisão domiciliar, em 1969. Havia sido denunciado formalmente como "traidor, renegado e desprezível". Sua esposa, Wang Guangmei, ficou 12 anos presa. Depois da morte de Mao, Liu foi postumamente reabilitado, sendo todas as acusações contra ele consideradas sem fundamento. Morreram muito menos pessoas durante a "Grande Revolução Proletária Cultural" do que durante o Grande Salto para Frente. Isso, em parte porque a Revolução Cultural afetou principalmente a população urbana, quando a maioria das pessoas - cerca de 620 milhões no fim dos anos 1960 - ainda vivia no interior." Mas estima-se que pelo menos meio milhão das cerca de 137 milhões de pessoas que moravam nas cidades morreram como resultado direto da Revolução Cultural." O expurgo político de dirigentes foi, em termos percentuais, ainda maior do que aquele realizado por Stalin entre 1936 e 1938, embora na China uma proporção menor tenha sido executa- da ou presa. Entre 60 e 70 por cento dos dirigentes de órgãos centrais do Partido Comunista foram afastados. Dos 13 membros do Secretariado do Comitê Central em 1966, apenas quatro ainda estavam ali em 1969, e apenas 54 dos 167 membros do Comitê Central mantinham seus cargos. Metade dos ministros do Conselho do Estado perdeu seu cargo. Muitos desses dirigentes afastados do governo e de órgãos centrais e regionais do partido foram enviados para "escolas de oficiais" no interior, onde tiveram que se submeter a uma reeducação ideológica intercalada com duro trabalho físico. Alguns, porém, tiveram um tratamento pior, sendo espancados até a morte ~u torturados. Wu Han, o escritor cuja desgraça Jiang Qing organi- zou, fOI um dos que tentaram se suicidar." Deng Xiaoping foi denunciado como "capitalista infiltrado" (descrição que era um exagero grosseiro na época, mas que poderia ser considerada como tendo uma fração de verdade quando ele deteve o poder supremo, uma década e meia depois) e demitido de todos os seus cargos. Foi enviado para trabalhar como montador em CHINA: DAS ·CEM FLORES· À "REVOLUÇÃO CULTURAL" 387 uma fábrica, função para a qual tinha qualificação, ainda que ultrapassada, já que durante seus estudos na França, quarenta anos antes, ele trabalhara em meio expediente fazendo isso em uma fábrica da Renault. O filho mais velho de Deng ficou inválido para o resto da vida ao pular da janela de um dormitório em um andar superior da Universidade de Beijing, na tentativa de fugir de Guardas Vermelhos que o perseguiam." Na verdade, foram as escolas e universidades que sofreram os piores efeitos da Revolução Cultural. Milhões de professores foram ridicularizados publicamente e universidades ficaram fechadas vários anos, a partir de 1966, de modo que os estudantes podiam participar do processo revolucionário como Guardas Vermelhos. De início, a maioria dos jovens que participou acreditava realmente que acontecia uma "purificação" da revolução e, com uma fé implícita, acreditava na sabedoria de Mao Zedong. A destilação dos pensamentos de Mao no onipresente Pequeno Livro Vermelho se tornou uma leitura obrigatória, e não apenas para os estudantes. (Lembro-me bem que no ano acadêmico que passei na Universidade do Estado de Moscou, em 1967-68, vi diplomatas da embaixada chinesa caminhando em fila in- diana, com uniforme de estilo Mao, cada um deles lendo o Pequeno Livro Vermelho enquanto caminhava.) Os tumultos no sistema educacional chinês continuaram na primeira metade dos anos 1970, e muitos ex-Guardas Ver- melhos transferidos para o interior tiveram, com sua educação interrompida por mais de uma década, bastante tempo para se arrepender de seu fervor revolucionário na juventude. CONSEQUÊNCIAS NÃO INTENCIONAIS NA CHINA Mesmo quando Mao Zedong ainda era vivo, houve uma reavaliação parcial da Revolução Cultural. Em 1975, Mao estava usando a fórmula de que ela havia sido 70 por cento um sucesso e 30 por cento um fracasso." Depois de ele se pronunciar, era preciso coragem para discordar. Deng Xiaoping, que fora levado de volta à liderança como vice-prernier, viu-se, porém, sob ataque, devido à sua compreensível relutância em concordar que a Revolução Cultural era - considerando tudo - uma história de sucesso. Deng teve que fazer uma aurocrítica, mas o que disse estava longe de satisfazer Mao. Foi afastado mais uma vez, depois de atribuir seus erros a "uma profunda incapacidade de compreender o que era a Revolução Cultural't.ê" Em 1975, além de insistir que a Revolução Cultural fora bem-sucedida, Mao criticou 0 íacciosismo dentro do Partido Comunista, inclusive a fac-
  • 10. ii t t f,l. :1 ! t 388 ASCENSAo E QUEDA DO COMUNISMO V"0' CHINA: DAS "CEM FLORES" A "REVOLUÇÃO CULTURAL" 389 çã.o mais fanaticamente envolvida na revolução, da qual sua mulher, Jiang Qing, era membro. Mao descreveu os círculos internos do partido como a "?angue dos Quatro" - expressão que depois de sua morte se tornaria m_ulto m~ls !a~osa do que ele pretendia. (A relação de Jiang com Mao nao era tao mtima quanto seu status de esposa sugeria. Uma das funções do c~efe de segurança de Mao, general Wang Dongxing; era garantir um, s.upnmento constante de mulheres jovens, cujos serviços' sexuais 'er~m ~ii- lizados pelo "Grande Timoneiro". Elas eram eufemisticari1ent~ conh~'cidas como a "Trupe do Trabalho Culrural't}" Além de Jiang Qing, compunham a ?a~gue dos Quatro Wang Hongwen, um líder trabalhista radical nos pnmelfo,s anos da Revolução Cultural, e que nos anos 1970 era considerado um possl.vel.sucessor de Mao; Yao Wenyan, crítico literário de Xangai que fora? .pnnclpal autor do ataque (por ordem de Jiang Qing) à peça Hai Rui demltz~o do governo; e Zhang Chunquiao, um veterano propagandista de ~an~a.1 que em meados dos anos 1970 era presidente do Comitê Revolu- cionario de Xangai e vice-premier do Conselho do Estado. A Revolução Cultural foi um desastre pessoal para milhões de chine- s~s.. Quanto mais instruídos eles eram, mais provavelmente se tornavam vltJ~as. Em quase t~dos os aspectos, aquela foi também uma Revolução AntlCultural, na medida em que envolveu a injustificável destruição, pelos Guardas Verm~lhos (frequentemente agindo por iniciativa própria), de ar- t:~atos .cu!t~rals~ fossem livros, pinturas, obras de museus, cemitérios ou ~ltlOs~lstoncos.)2 Já em 1966 os Guardas Vermelhos haviam sido, porém, IncentIvados a atacar os "Quatro Velhos". Os velhos pensamentos, a velha cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos tinham que ser eliminados.r' Aparentem~nte, u~a das coisas que motivou Mao a lançar a Revolução Cult.ural fOIo de~eJ~de garantir seu legado. Ele queria ser seguido e reve- renciado p~r radicais, e não por "revisionistas".54 Entretanto, o desastre da Revoluçao Cultural, que rapidamente se seguiu ao desastre ainda maior do ~rande Salto para Frente, ajudou a assegurar o triunfo do que ele teria considerad., um revisionismo extremo. , De fato, a Revolu?ãO Cultural teve consequências não intencionais que acabaram sendo benéficas para a China, por mais trágico que tenha sido o preço. alto p~go pel~ ressu~gimento do bom-senso. Um motivo importante pel~_qual f?,1~uas~ Impossível realizar uma reforma econômica radical na Unz~o SOVte~l~a ~o~a força dos grupos de interesse - a começar pela buro- cracia ~os mllllstenos_econômicos e das organizações regionais do partido. "Na Chma, a Revoluçao Cultural rompeu totalmente essas estruturas, que nunca recuperaram completamente sua antiga coerência e dominação. As- sim, a resistência burocrática à reforma do mercado foi muito mais fraca do que teria sido quando a inovação econômica foi empreendida seriamente, depois da morte de Mao Zedong. Além disso, a campanha contra O "revi- sionismo" levara a extremos tão irracionais, que os fanáticos da Revolução Cultural logo se viram na defensiva quando seu mentor e protetor, Mao, já não estava ali. A Gangue dos Quatro foi detida em 6 de outubro de 1976, menos de um mês depois da morte de Mao, e mantida presa durante quatro anos, até ser levada a julgamento em 1980. Foi acusada de causar a morte de quase 35 mil pessoas. Dois de seus membros - a viúva de Mao, Jiang Qing, e Zhang - foram condenados à morte, pena que mais tarde seria comutada.v A publicidade dada aos crimes do grupo ajudou a desacreditar ainda mais o extremismo da Revolução Cultural e a reabilitar funcionários, incluindo aqueles de tendência reformista, que haviam sido perseguidos naqueles anos. A liderança do partido não pôde se permitir desacreditar Mao de maneira abrangente, porque ele era o Lenin e também o Stalin de- les. Uma parte grande demais da legitimidade do regime Comunista teria sido perdida se eles tivessem feito isso. Entretanto, uma "Resolução sobre a História do Partido", feita pelo Comitê Central, não se furtou a atribuir a Mao a responsabilidade final pela década desastrosa de meados dos anos 1960 a meados dos anos 1970, sem chegar ao ponto de transformar a Gangue dos Quatro na Gangue dos Cinco. O documento observou: "A 'Revolução Cultural', que durou de maio de 1966 a outubro de 1976, foi responsável pelos reveses mais sérios e pelas perdas mais pesadas sofridos pelo Partido, O Estado e o povo desde a fundação da República Popular. Foi iniciada e liderada pelo Camarada Mao Zedong."56 A influência da ideologia Comunista jamais poderia voltar a ser a mes- ma na China. Nem o marxismo-leninismo, nem o Pensamento de Mao Zedong - embora a retórica sobre eles continuasse - dominavam a mente das pessoas como acontecera antes e, de maneira extrema, nas' primeiras fases da Revolução Cultural. O utopismo estava fora, o pragmatismo estava dentro. Na verdade, quase tudo o que Mao quisera destruir para sempre, e que constituíra sua principal motivação para lançar e continuar a Revo- lução Cultural, recebeu um novo impulso na reação contra o tumulto e a arbitrariedade da "Última Revolução de Mao",57 Os antigos dirigentes que recuperaram seus cargos, depois de sofrerem em graus diversos nas mãos dos fanáticos revolucionários de sua própria geração, e ainda mais com o fanatismo jovem dos Guardas Vermelhos, uniram-se em sua determinação L
  • 11. 390 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO CHINA: DAS "CEM FLORES' À "REVOLUÇÃO CULTURAL' 391 i i!. I I, [, ' t: r, I1 ., r, " " de nunca mais se sujeitar a tamanho extremismo e insubordinação. (Experi- ências recentes sobre o que os jovens poderiam fazer quando aparentemente recebessem liberdade para fazer o que quisessem não serviram, porém, para levar aqueles que foram reintegrados a se inclinar para a democracia política.) Embora muitos chineses continuassem a acreditar que Mao, ao longo de sua extensa carreira de revolucionário e governante, tivesse feito mais bem do que mal, ele deixou de ser endeusado. Tanto MaQ quanto o Pensamento de Mao Zedong haviam sido secularizados. muito tempo um absurdo que o país já não estivesse ali. O maior obstáculo eram os Estados Unidos - daí as tentativas de abertura chinesa junto ao governo Nixon, às quais o presidente Richard Nixon e seu ~ecretário de Estado, Henry Kissinger, responderam. Embora o reconhecimento ame- ricano à China tenha sido pouco mais do que um tardio reconhecimento do óbvio, e apesar de o encontro de Nixon com Mao Zedong em 1972 ter sido menos importante do que Nixon e Kissinger fizeram parecer, o fato de um presidente republicano - e que durante o período do macartismo perseguira os Comunistas - ter tomado a iniciativa mudou os contornos da diplomacia internacional.t" Desse momento em diante, os Estados Unidos puderam tentar jogar a "carta da China" contra a União Soviética, embora isso fosse acabar não tendo qualquer importância na época em que as relações entre os EUA e a União Soviética melhoraram de maneira mais significativa - na segunda metade dos anos 1980. Historicamente, a ruptura sino-soviética foi um aconJecimento muito mais importante do que o desenvolvimento da relação 1e ·tr~balho sino-americana. Esta estava atrasada e fazia sentido. Muitas iezes, porém, envolveu hipocrisia dos dois lados, sendo a União Soviética muito mais castigada - durante os governos de vários sucessores de Nixon _ do que a China por seu desempenho em direitos humanos. Isso, embora o currículo da China de repressão e intolerância fosse - principalmente no período de Mao - muito pior até mesmo que o de Brejnev na Rússia. CONSEQUÊNClAS NÃO INTENCIONAIS INTERNACIONAIS Mesmo durante o período de Mao Zedong, houve um recuo em relação a algumas das desordens violentas produzidas pela Revolução Cu ltural. Mao teve que recorrer aos serviços do ELP para conter os excessos mais ferozes dos Guardas Vermelhos. Mas foi na política externa que ele reverteu o curso de maneira mais espetacular. Depois de criticar e ridicularizar a liderança soviética por ser branda em sua atitude com a potência arqui-imperialista, os Estados Unidos, Mao começou, em 1970-71, a enviar sinais a Washington de que uma relação menos antagonista seria bem-vinda. Em 1969, a China chegara mais perto do que nunca de uma guerra contra a União Soviética, e ter relações igualmente ruins com as duas superpotências parecia desacon- selhável. A Revolução Cultural exacerbara o conflito sino-soviético. Unira a maior parte do sistema soviético - fosse'm Comunistas reformistas ou conservadores - contra a China, que os fazia lembrar do Grande Terror dos anos 1930. De fato, uma das consequências não intencionais dos acon- tecimentos na China para a política soviética foi que, em uma época em que a liderança de Brejnev interrompera as críticas a Stalin, diversos escritores soviéticos antistalinistas - totalmente "revisionistas" - publicaram livros e artigos aparentemente sobre Mao e a China, mas que seus leitores mais perspicazes perceberam que eram sobre Stalin e a União Soviética. Assim como a "Iugoslávia" serviu por algum tempo como União Soviética, na polêmica com a China, e a "Albânia", nas respostas soviéticas, substituiu a China, Mao se tornou um substituto de Stalin e os escritos sobre ele se tornaram uma maneira de pressionar por moderação, reformas e um Estado de direito na URSS.5~ Consciente de seu isolamento internacional no início dos anos 1970, a liderança chinesa começou a demonstrar um novo interesse em receber um lugar nas Nações Unidas. Na maior parte do mundo, considerava-se há