SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 34
Baixar para ler offline
João Francisco
E A EDUCAÇÃO: ~~QUÊ??
A Educação na Sociedade
e/ou a Sociedade na Educação
Departamento de Fundamentos Sociofilosójhos da Educação
NUPEP (Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação deJovens e
Adultos e em Educação Popular)
Centro de Educação
Universidade Federal de Pernambuco
Recife, Pernambuco, Brasil
Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional
Unidade de Educação de Adultos
Instituto de Educação e Psicologia
Universidade do Minha
Braga - Portugal
Janeiro 2004
EDIÇÔES
liB.~GAÇO
Recife • 2004
Copyright©2004, João Francisco de Souza
Capa e projeto gráfico
Edições Bagaço
Revisão
Rosário de Sá Barreto
S72ge
PeR-BPE
ISBN: 85-7409-780-2
Souza, João Francisco de, 1944-
E a educação: iiquê??; a educação na sociedade e/ou
a sociedade na educação / João Francisco de Souza. - Re-
cife: Bagaço, 2004.
360p.
1. EDUCAÇÃO 2. SOCIOLOGIA EDUCACIO-
NAL. 3.EDUCAÇÃO - FINS E OBJETIVOS. 4. EDU-
CAÇÃO DE ADULTOS. r. Título.
CDU 37
CDD 370
Produção Gráfica:
Edições Bagaço
Rua dos Arcos, 150 - Poço da Panela
CEP: 52061-180 Recife-PE
Tel: (81) 3441.0133 /3441.0134
E-mail: bagaco@bagaco.com.br
www.bagaco.com.br
Impresso no Brasil- 2004
"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa narúral,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural,
nada deve parecer impossível de mudar."
Bertold Bretch
(1898-1956)
profundas desigualdades econômico-sociais, inclusões perversas
e de hierarquias que a confrontação dos diferentes povos e
culturas provocou a partir daquele expancionismo europeu,
também, simultaneamente, geraram vida, liberdade,
epistemogêneses, aculturações, recriações, miscigenações, lutas
por relações mais igualitárias e horizontais, figurações e
configurações que hoje são a riqueza da pós-rnodernidade/
mundo. Foi desencadeado, portanto, um amplo processo de
transculturação "não só fundamental, mas permanente e
reiterado. Com altos e baixos, avanços e recuos, acomodações e
rupturas" (IANNI, 2000, p. 76) vem atravessando,
constituindo, construindo, reconfigurando e imprimindo outras
configurações à história humana e aos diferentes grupos que
vão se conformando e fazendo essa mesma história. O problema
que se apresenta é, pois, o da convivência democrática nessa
diversidade cultural, a través do diálogo entre as diferentes
expressões culturais, possibilitando a constituição de um espaço/
mundo rnulticultural.
Nessa direção, parecem necessárias algumas
considerações a mais sobre a configuração do contexto que
constitui a moldura e o conteúdo para o debate da diversidade
cultural e suas implicações nos processos educativos. Nessas
considerações, poderão ser evidenciadas as exigências da
educação necessária ao "tecido do novo clima cultural"
(FRElRE, 1967, p. 46) em que nos encontramos. Par-se-a,
então, uma necessária configuração do contexto da pós-
modernidade/mundo, ampliando as indicações feitas
anteriormente, mas, ainda, não exaustivas, apenas, para, em
seguida, identificar as exigências de uma educação no interior
dessa diversidade cultural, ou identificar os termos em que se
coloca a questão da educação na/para a pós-modernidade/
mundo, escolar e não-escolar.
64
3.1.1. O Debate Sociológico sobre a Diversidade
Cultural
As indicações que vimos fazendo são suficientes para se
caracterizar o atual contexto mundial como resultado dos
diversos e diferentes processos de transculturação
experimentados na Terra ao longo dos últimos 500 anos e, de
modo especial, nos últimos 50 anos (IANNI, 2000, p. 91-120),
expressos pela diversidade cultural conformada desde diferentes
recortes, como os étnico-raciais, religiosos, profissionais, de
classe, de gênero, de idades, entre outros tantos possíveis. _Esse_
contexto coloca como problem~~ais tanto as djfLculda.des-(j)
da convivência entre os diferentes, qua~do 7
--:,espeito às diferen~ e a urgência de _d~ruir não somente as
~remas de~gualdades econômico-sQ.ç:~ as incl'üS.§es
pcrversa~ o desempreg~eStl~ral, as hierarguias21rutoS daS-.
explorações, dominações e subordingções, ..mas t..a·mbé-m-a-s-
exclusões histórico-culturais.
A importante pergunta possível de ser formulada é sobre
'
as possibilidades do diálogo entre as diferentes culturas
(interculturalidade) que vão se conformando a partir de diversos
recortes, como os indicados, e outros possíveis. Neste trabalho
interessa, sobretudo, a composição do cenário para uma
posterior, rigorosa e minuciosa pesquisa sobre a questão da
educação, tanto escolar como não-escolar. A questão
ed.!:lcaci!-)J1al provoca, no interior de todas as configuraç~
Culturais dos diferentes grupos humanos, uma diferenciação (f)
substanti~ intragrupal, ta~ entr~ os indivíduos como entre
os subgrupos possíveiSi1o iíiteri()r de um-grupo cultural, além,
~ém, e especialmente, intergrupal no interior de uma
mesma cultura e entre culturas. --- -- -
65
As diferentes figuras, figurações, transfigurações e
configurações34, entre os grupos culturais e no interior dos
diversos grupos culturais, são caracterizadas pelos recortes de
classes, etn ias, regiões, religiões, profissões e nações. Esses
recortes vêm sendo construidos ao longo desses cinco séculos,
especificamente nos últimos cinqüenta anos, e exigem uma
intensa reflexão "sobre o ocidentalismo, o orientalismo, a
mundialização e a cultura, a cultura e o imperialismo, a
modernidade, o mundo e outros temas relativos a impasses e
perspectivas das culturas e civilizações" (IANNI, 2000, p. 76).
Caracterizam a nossa contemporaneidade como de uma
enorme diversidade cultural, provocando - no interior da
tentativa de certas forças econômico-sociais e culturais de
homogeneizar - os riscos de uma fragmentação da humanidade,
se já fragmentados não nos encontramos, em vez da construção
de uma humanidade multicultural. Os problemas, os desafios,
as possibilidades, as ameaças e as probabilidades engendradas
são, simultaneamente, enormes tanto do ponto de vista
intelectual quanto político. Amedrontam-nos, levam-nos a
novas perguntas e ações ao lado de muitos que se paralisam.
Seremos capazes de responder a esses desafios
positivamente? Essa resposta se expressaria por uma
humanização crescente de todos os seres humanos
evidenciada num m undollil term ul ticul tu r--ª.l...J:rí ricO::;
democrático, polifônico e multicolorido, no q~aC as
pessoas, em sua singularidade, conformariam uma
34 "São figuras e figurações vivas e vividas, ativas e empenhadas, cômicas e
trágicas, dramáticas e épicas. No limite, estão sempre vivificadas na trama
das relações sociais, no jogo das forças sociais, no conrraponto diversidade-
desigualdade, na dialética alienação-emancipação. Alguns se dedicam a tornar
os tipos e tipologias abstrações convenientes à reflexão sobre a sociedade.
Outros se dedicam a tomar os tipos e as ripologias como figuras e figurações
de movimentos e configurações da história" (IANNI, 2000, P: 282).
66
comunidade, ainda que com conflitos, mas sem violências
ou antagonismos, desigualdades econômico-sociais e
exclusões culturais exasperantes?
Ou vamos perder as batalhas e a guerra pela humanização
do ser humano em sua integral idade e a humanização de
todos os seres humanos da Terra?
A ampla tematização dessas problemáticas está a atrair
profundos olhares e a provocar ricos debates sobre a questão da
diversidade cultural, das probabilidades d~multiculturalidade J
e potencial idades dati.!:!!.~l.c.llrmalidade;t±specialmente sobre as
responsabilidades dos processos educativos, escolares ou não,
face a essas problemáticas. A diversidade cultu.Bb não sendo
um fenômeno social recente, tem hoje, no entanto, .urna
novidade que se situa no fato de esses temas terem se colocado
no centro da reflexão política e sociológica na última
década. Isso se explica, no nível internacional, pela queda
do socialismo realmente existente que possibilitou a
reinsurgência dos nacionalismos nas regiões em que
predominou de maneira soberana, impedindo -deexpressar-
se plenamente a diversidade desses países por causa de uma
definição política. (...). Em relação a nosso país, talvez um
dos primeiros elementos que tornou a colocar em evidência
o sentido da diversidade existente na América Latina e os
fenômenos sociais que ela tem encarnado historicamente,
gerou-se com os festejos comemorativos do V Centenário
da chegada de Cristóvão Colombo a nosso continente
(RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 111-112)35.
35 O autor se refere ao México, mas, talvez, o mesmo se possar afirmar sobre o
Brasil e o quinto centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral às terras que
~a ser o Brasil] A diversidade cultural, no entanto, com certeza, é um
patrimônio mundial e de cada uma de nossas nações, no concerto internacional
ainda desconsertado.
Adquiriram, assim, esses temas um status sociológico e
antropológico inquestionável e de suma importância para/na pós-
modernidade/mundo. A partir, portanto, das conflitivas,
ambíguas e arriscadas relações entre os países e, no interior de
cada país, entre seu Estado e suas nações ou classes sociais - nessas,
as relações entre os diferentes grupos étnico-sociais, classes,
lj1 I' , . . I d~ segmentos cu turais e as ternancas que suscitam -, tem-se co oca o
? o debate sob outros ângulos. Uma das importantes perspectivas
~ t~m sido as chances de diálogo entre as culturas ou entre :9.5
~ diversos traços de uma mesma cultura, se~esquecer as guerras,
f. as conquistas, dizimações, tensões e acomodações, mas relevando
~ --ª-Lpossíyeis transculturações, que vêm se dando, e as
probabilidades e possibilidades da inter/multiculturalidade crítica.
Esse debate com suas diversas perspectivas parece abrir
outros horizontes não apenas para explicação/compreensão mas
também para convivência e agradabilidade da existência
humana na Terra. Pois, "ao lado das justaposições, imitações,
paródias ou caricaturas, ocorrem tanto acomodações como
recriações, estas muitas vezes originais e surpreendentes"
(IANNI, 2000, p. 78). As recriações originais e surpreendentes
têm revelado que
A transculturação não nega a permanência ou a reiteração
de singularidades ou identidades. Ao contrário, muitas
situações de interdependência e tensão favorecem a
recriação dessas e outras particularidades. Acontece que
a transculturação pode propiciar a decantação de
elementos, traços ou potencialidades insuspeitados antes
do intercâmbio (IANNI, 2000, p. 77).
Esses traços ou potencialidades insuspeitados nos
mostram que algo novo sempre pode acontecer e alentam nossas
esperanças nas probabilidades e possibilidades de uma inter/
68
toI;-
~
x:
~
~
[
li
multiculturalidade crítica. Os cenários passam, pois, a ser
~aracterizados por um mosaico multicolorido de diferentes
traços ou um coral de múltiplas vozes. Surgem, portanto, vários
grupOS culturais baseados em diferentes recortes étnicos, de
classe, gênero, idades, orientações sexuais, políticas e opções
profissionais, entre outras possibilidades, no interior desse amplo
e profundo processo de transculturaçâo. Isso gera a diversidade
cultural não apenas entre as nações, mas no interior de cada
nação e mesmo no interior de um mesmo grupo cultural. Pode
nos dar argumentos para lutar por outras formas de convivência
entre os diferentes, mas embarcados numa mesma aventura de
construção de nossa humanidade individual e coletiva.
Essa configuração da sociedade hodierna leva a tentativas
de compreensão de nosso mundo, ainda que dominado pelo
capitalismo como modo de produção e processo civilizatório.
Percebe-se que esse domínio não é absoluto nem impede ações
de transformação com outras possibilidades de modos de pensar,
agir e emocionar-se. Esse mundo está permeado de tensões,
contradições, ambigüidades, portanto, eivado de possibilidades
de superar-se. Essas são decorrentes de uma.:mesc1a de
cristianismo, islarnismo, budismo e confucionismo, animismo,
além das diferentes ciências e tecnologias, bem como dos
múltiplos interesses expressos nos diversos modelos ideológico-
políticos de organização da economia, de exercício do poder e
produção/apropriação do saber.
Tudo isso tem provocado diversas implicações
socioculturais, econômicas, políticas, interpessoais e subjetivas,
conformando vários processos civilizatórios. "Eles se desenvolvem,
entrecruzam, tensionam, mutilam, fertilizam e transfiguram, em
geral tendo por referência o capitalismo, mas sempre produzindo
e reproduzindo ideologias, utopias e nostalgias" (IANNI, 2000,
p. 95). Por isso, podemos, como nos convida Ianni, fazer outra
leitura da existência dos povos na história.
69
A história dos povos e coletividades, das nações e
nacionalidades ou das culturas e civilizações pode ser lida
como uma intrincada, contínua, reiterada e contraditória
história de um vasto processo de transculruração, de par
com a ocidentalização, a orientalização, a africanização e a
indigenização. Um processo sempre permeado de
identidades e alteridades, tanto quanto de diversidades e
desigualdades, mas compreendendo sempre o contato e o
intercâmbio, a tensão e a luta, a acomodação e a mutilação,
a reiteração e a transfiguração (IANNI, 2000, p.99-100).
,...,.,.
Nessa perspectiva, cabe-nos examinar as possibilidades e
dificuldades da construção de outras probabilidades para a
existência humana na convivialidade (multiculturalidade) e seus
impactos específicos na formação do sujeito humano para assumir
suas diferentes singularidades (etnia, gênero, idade, profissão, sexo,
ideologia, geografia e história) num diálogo mais agradável
(inrerculruralidade), no qual todos possamos crescer humanamente
e inserir-nos no conjunto da humanidade a partir do debate da
diversidade cultural, da inter/multiculruralidade como provável
ituação, condição da pós-modernidade/mundo. Desde nossas
diferenças (identidades), é necessário perscrutar possibilidades de
convivência e crescimento conjunto para fazer face aos desafios
atuais, .tanto no interior de nossas nações como em suas inter-
relações (rnultilintercul turalidade- mundo pós-moderna).
)?J
(,-
L
r~
oI,
1"'
I-f
3.1.2. As Exigências do Contexto Sociológico
Talvez se possa, como fazem alguns, identificar a
configuração atual provocada pelas transculturações como uma
situação de eclosão de "uma revolução cultural nuclear" a partir
de três mudanças nodulares. Essas estão ocorrendo, para se colocar
70
um marco, desde 1968, no mundo inteiro: "mudanças de
atitudes diante da instituição pública, revisão da moral
individual, refação do estatuto da família" (COELHO, 2000,
p. 30)36. Trata-se de
uma revolução múltipla em seus aspectos, ao contrário
das anteriores, e ao mesmo tempo indivisível em seus
efeitos e objetivo final. (...).... é uma autêntica revolução
porque voltou atrás para recuperar a dimensão corporal
da existência negada pelo cristianismo " e por suas
versões materialistas. Mas suas contradições não são
maiores que as das outras revoluções culturais que a
precederam. E, como não unitária, fundamentalista ou
integrista, tem condições de ir mais longe. Existiu uma
revolução cultural em 'maio de 68' e a revolução se fez.
Não se fez do mesmo modo por toda parte, fez-se mais
num lugar do que em outro, mais ali do que aqui. Mas
se fez (COELHO, 2000, p. 33).
Essa revolução, permeada de contradições e ambigüidades
- mas, como afirma Coelho, nem maiores nem menores que as
contradições e ambigüidades das anteriores revoluções -, está a
desencadear
mudanças nos conceitos de identidade e de sujeito ...
aspectos de nossas identidades que surgem de nosso
"pertencimento" a culturas étnicas, raciais, lingüísticas,
36 Não esquecer de confrontar essas reflexões de Coelho com as feitas
anteriormente, P: 23-26: elementos contexrualizadores e exigências às
Ciênccias Humanas/Sociais.
37 Trata-se de algumas versões do cristianismo. Não creio, porém, que se possa
imputar à mensagem de Jesus Cristo o desprezo ao corpo que se desenvolveu
em algumas culturas do Ocidente.
71
religiosas e, acima de tudo, nacionais. '" as identidades
modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas
ou fragmentadas .... complexidades que a noção de
descentração, em sua forma mais simplificada,
desconsidera .... O próprio conceito com o qual estamos
lidando, "identidade", é demasiadamente complexo,
muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido
na ciência social contemporânea para ser definitivamente
posto à prova (HALL, 2000, p. 8).
Encontramo-nos no interior de situações muito
complexas e plurais. De um lado;' aponta para a globalização
do mundo; de outro, para a diversidade gerada pela
transculturação. Corremos, então, o risco de já nos
encontrarmos face à fragmentação da humanidade, em vez
de estarmos diante de uma multiculturalidade. ?or isso, não
tem sido fácil assumi-Ias do ponto de vista intelectual nem
político, entretant~ão podemos deixar de fazê-Io. Essas
situações se transfor~m em questões de sobrevivência, em
qualquer parte da pós-modernidade/mundo, mais
especialmente em países como os da América Latina, África e
Ásia. Neles, uma extrema concentração de renda se desenvolve
em meio a um mar crescente de misérias, de exclusões ou
inclusões' perversas no sistema mundo. Poder-se-ia formular
a questão nos termos em que o faz Rodriguez-Ledesma para
o caso do México. Não é fácil
assumir plenamente a pluralidade que conforma nosso
mundo, e no caso particular de nosso país, os diversos
elementos identitários que convivem aqui e agora em
uma sociedade marca da tanto pelo atraso econômico
como pela ausência total até muito pouco tempo, das
mínimas condições para o exercício de uma vida política
72
democrática; ambos elementos definitórios coexistem
dentro de uma conformação social caracterizada
historicamente pela existência de uma grande diversidade
cultural (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 111).
E como ainda insiste Rodríguez-Ledesma (1998, p. 112-
113):
A complexidade do problema significa, entre outras
coisas, um ponto cardeal: o reconhecimento e a aceitação
da existência de outro equiparável em valor e valores a
nós próprios. Mas este é tão somente um aspecto do tema.
O outro, talvez o mais problemático, é o conformado na
atual discussão sobre o pluralismo e a tolerância. (...).
Isso significa que, ao reconhecer o outro, estaremos
reconhecendo-nos a nós próprios. Conceber a existência
do outro é avançar na comprensão e admissão de nossa
própria historicidade. Se o outro existe e com ele certos
valores diante da vida, da morte, do amor, da educação,
do progresso, enfim, frente a tudo que é concebido como
sua existência, possibilita que nós próprios percebamos
os limites históricos, geográficos, políticos, numa palavra,
culturais do nosso próprio sistema de valores.
~ P/VO(1'Owr- l>-.r
.--J De fato, não é facil admitir que nosso próprio sistema de
valores é relativo. Nossa formação nos convenceu de que nossos
valores são os valores. Se não fora os valores, buscaríamos outros.
Guardadas todas as precauções, proporções e as especificidades
conjunturais, essa problemática se revela o terna para a nossa
existência pessoal, coletiva e acadêmica, especialmente, para
responder às exigências que possam ser identificadas para os
processos educativos na busca da formação humana do sujeito
humano (nosso projeto histórico).
73
É uma problemática muito complexa "que, praticamente,
contém tantas facetas como problemas de identidade e
diversidade cultural na sociedade, tanto no nível mundial como
no nacional, que, evidentemente, não é casual que se tenha
evidenciado nas últimas décadas" (RODRÍGUEZ-LEDESMA,
1998, p. 112). Nas Ciências Humanas/Sociais, de modo
particular na Antropologia, na Sociologia e na Pedagogia, torna-
se imprescindível assumir
e
a problemática constituída pelo tema da diversidade
cultural, isto é, da ampla gama de possíveis círculos
identitários existentes dentro de uma sociedade, para que
de forma racional, consciente e operativa assumam os
desafios que a aceitação da presença desse espectro imenso
de possibilidades representa para a vida social em geral, e
para os processos educativos, em particular
(RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 112).
É preciso, pois, examiná-Ia sob todos os ângulos e de
uma maneira distinta. Para isso, é preciso adotar, como propõe
lanni (2000, p. 95), uma "outra perspectiva na análise da
cultura": "cabe experimentar a perspectiva aberta pela idéia de
contato, intercâmbio, permuta, aculturação, assimilação,
hib ridação ", mestiçagem ou, mais propriamente,
transcultutação". Essa perspectiva se aproxima da proposta de
Rodríguez-Ledesma (1998, p. 112), para quem "falar de
definições culturais dos conceitos que, graças à hegemonia de
uma particular concepção do mundo ocidental e moderna, se
pretendem a-históricos, é começar a romper justamente essa
noção de universalidade".
f
É necessário realizar, portanto, sobre o termo cultura,
um processo de recognição que o apreenda em sua complexidade
38 Ver García-Canclini, 200 I.
74
e em seus interstícios mais recônditos, percebendo suas
dimensões pessoais, interpessoais, locais, regionais e universais.
Esse é o desafio acadêmico. É importante captá-Ias em suas
inter-relações dialéticas, escapando dos localismos asfixiantes e
universalismos estéreis.
Esse processo de recognição colocar-nos-á em outra rotação
para nos situar no contexto da pós-modernidade/mundo, pois
A valoração e a admissão da existência de diferentes
culturas, de diferentes grupos da sociedade que não
compartilham necessariamente nossa apreciação sobre
tudo o que nos define, é, apenas, iniciar a concepção e
compreensão dos temas que, desde duas décadas, estão
presentes com maior assiduidade na reflexão sociopolítica,
pluralidade, tolerância, interculturalidade e, no que
corresponde a essas reflexões, ao mais geral da democracia'
(RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 112).
A questão d{diversidade cultural eviden~ortanto, o
problema das (im)p.ossibilidades da convivência (inter/intra)
grupal das diferenças etno-culturais, de gênero, de religiões, de
erspectivas políticas, bem como da necessidade de urgentemente
eduzir as desigualdades econômico-sociais e superação das
exclusões histórico-culturais. No limite, tratar-se-á da construção
de uma democracia ou processo de democratização (SOUZA,
1999) cuja ex ressão seria uma sociedade inter/rnulticultural
crítica s problemas serem enfrentados diuturnamenre,
inclusive nos processos educativos, serão:
@' Como as singularidades individuais e grupais vão
conviver, sem ser essa convivência uma mera justaposição
(pluriculturalidade), mas a conformação de uma
comunidade humana em sua singularidade convivendo
75
G
pelo diálogo (interculturalidade) de tal maneira que todos
ganhem e possam se enriquecer material e culturalmente
(rnulriculturalidade) ?
• I Então, como conceber e manejar o problema das
identidades socioculrurais que, ao configurar as
singularidades, geram as diferenças e, muitas vezes, as
desigualdades econômico-sociais e as exclusões histórico-
culturais?
Identidade X Diversidade na Pós-modernidade/
Mundo
Inicialmente, é importante salientar que não se está a
buscar uma convivência sem conflitividade; mas entrar em uma
luta pela reduçã;'-;o máximo, das d~ des e exclusõ~s
(SÃfrrOS;T9 ,provoca oras de violências e antagonismos
que estão se tornando insuportáveis. Portanto, temos que pensar
uma ideiWêla~ cUlturãD seja de um indivíduo ou de uma
coletividade, não importa o tamanho, como uma construção a
pajtit.da.ccnvizência com as diferenças singlllarizadQras e não
~equalizadoras de todas~uaisquer naturezas. Não se trata,
na construção das identidades, de buscar
@
uma espécie de marca distintiva com a qual se nasce ou
como de uma roupa da qual não pudéssemos nos livrar
e que elimina a possibilidade de pertencer a outros
grupos identitários. Evidentemente, isso não é assim,
e, justamente, porque os indivíduos pertencem (ou
podem fazê-lo) simultaneamente a diversos âmbitos
identitários, a definição do sentido da identidade deve
fazer-se em função de características analíticas
sociológicas e políticas específicas (RODRÍGUEZ-
LEDESMA, 1998, p. 113).
76

Trata-se, po~ da construção efetiva de um sujeito social
-e individual capaz de administrar e organizar as diferentes
,) dimensões da experiência coletiva e das singularidades que essa
vai configurando. Segundo Dubet (1989, p. 536),
A identidade social não é dada nem é unidimensional,
mas resulta do trabalho de um sujeito que administra e
organiza as diversas dimensões de sua experiência social e
de suas identificações. O sujeito social é aquele que reúne
os diversos níveis da identidade de maneira que se produza
uma imagem subjetivamente unificada de si mesmo.
Ao citar Dubet, entende Rodríguez-Ledesma que a
identidade sociocultural é r~sultante da elaboração de um suje~to
individual ou coletivo que maneja sua diversificada experiência
~e múltiplas identificações. Por isso, conclui: "as
identidades se constroem, constiruem-se, a partir da
participação de uma série de características definidas
socialmente. Dessa forma, um único il}divíduo pode
compartilhar diversas formas identitárias" (I~ODRIGUEZ-
LEDESMA, 1998, p. 113).
Atualmente, todos nós e cada um de nós, individualmente,
compartilhamos, no interior dos processos de mudança, diversas
experiências que nos levam a viverldife~ntes formas identitáriasl
Essesprocessos de mudança - experimentados na pós-modernidadel
mundo, tomados em conjunto - representam transformações tão
fi.mdame.ntaise abrangentes q~e est~o a ~nrfigurar a própria pós-
modernldade/mundo. ArlaentIdad~ Ino seu processo de
conformação têm que manejar milhares de imagens, informações
e situações. Entretanto, esses mesmos processos que rompem os
antigos laços de pertença e enraizamento dão
lugar à busca de uma instância que integre os diversos
aspectos da vida social em uma identidade coletiva. Essa
77
busca já não se deixa expressar em termos de progresso
histórico ou de interesse de classe nem se reconhece no
discurso individualista-utilitário do mercado. Nutre-se
de desejos e temores que nos remetem às necessidades de
sociabilidade e segurança, amparo e certeza, enfim, de
sentimentos compartilhados (LECHNER, 1992, p. 22).
Essa busca de uma instância integradora da vida social
(identidades coletivas) - que se nutre de desejos e medos tecidos
pelas necessidades de sociabilidade e segurança, amparo e
certezas - nos leva à superação da perspectiva de análise herdada
do Iluminismo. Essa perspectiva analítica busca compreender
a identidade a partir de um núcleo ou essência do ser para
-1un.d . A • •• h-·- ~Erunnamenrar nossa existencra como sujeitos . umanos. ssa
posição, por sua vez, se baseava numa concepção de pessoa
humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado,
dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. Esse
indivíduo estava constituído por "centro" que conforma um
núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito
nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a si mesmo
- ao longo da sua existência. O centro essencial do eu era a
identidadede uma pessoa (HALL, 2000, p. 9-10).~
A essa noção filosófica de sujeito, a reflexão sociológica
desvela a crescente complexidade do mundo moderno e a
consciência de que este núcleo interior do sujeito não é autônomo
e auto-suficiente.Jli formado na relação com outras pessoas
importantes para ele, que medeiam para o sujeito os valores,
sentidos e símbolos - uma cultura - dos mundos que ele/ela habita.!
G. H. Mead, C. H. Cooleye os interacionistas simbólicos
são, na sociologia, de acordo com Hall (2000, p. 11), as figuras-
chaves que elaboraram esta concepção interativa da identidade
e do eu. De acordo com essa visão, que se tornou a concepção
78
socio~ quest~oridade é fo~~ ®inter:ação entre O eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior, que é o eu real, mas este é formado
e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
exteriores e as identidades que esses mundos oferecem.
Essas duas concepções de identidade/sujeito, ainda
segundo Hall (2000:12), estão sofrendo mudanças. O sujeito,
previamente vivido como detentor de uma identidade unificada
e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma
única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias
ou não resolvidas. Esse processo produz o sujeito pós-moderno,
conceituado como não tendo uma identidade fixa, essencial
ou permanente. Essas situações, constatações, figurações, levam
Rose (1998, p. 33) a afirmar que
1) 1C'1":" cll""n-r' c.J..~IG / ~d("Yd do-J
Essas novas formas de pensar e agir não dizem respeito
apenas às autoridades. Elas afetam cada um/a de nós,
nossas crenças pessoais, desejos e aspirações: em outras
palavras, nossa ética. As novas linguagens empregadas
na construção, compreensão e avaliação de nós mesmos
e dos outros têm transformado as formas pelas quais
interagimos com nossos chefes, empregadores, colegas
de trabalho, maridos, esposas, amantes, mães, pais, filhos/
as e amigos/as. Nossos mundos mentais têm sido
reconstruídos: nossas formas de pensar e falar sobre nossos
sentimentos pessoais, nossas esperanças secretas, nossas
ambições e decepções. Nossas técnicas para administrar
nossas emoções têm sido revolucionad~s. Nós nos
tornamos seres intensamente subjetivos.
Todos esses questionamentos/construções levam HaU
(2000, p. 9) a constatar que estarnos a participar de um tipo
diferente de mudança estrutural, consolidando, digo eu, uma
79
sociedade pós-moderna/mundo. Essa mesma sociedade, ainda
que predominantemente fragmentadora dos indivíduos e dos
grupos, pode apontar em outras direções. As
~
paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia,
raça e nacionalidade, ... , no passado, nos tinham
fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.
Estas transformações estão também mudando nossas
identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós
próprios como sujeitos integrados. Esta perda de sentido
-.de si estável é chamada, algllmas vezes, d~deslocamenl.o
ou descentração do sujei~1 (HALL, 2000, p. 9).
No interior dessa multidimensionalidade das transformações,
corre-se um risco de banalização da questão das identidades,
tornando-a um sLoganou um mero ornamento de discursos oficiais.
Isso leva Rodríguez-Lesma (1998, p. 115) a afirmar:
Atualmente, de forma lamentável, o problema das
identidades está correndo o risco de converter-se em um lugar
comum no interior da reflexão política em nosso país, isto é,
em um dos conceitos de moda nos discursos dos funcionários,
tal como aconteceu com os de "transição", "democracia" ou,
em determinado momento, "solidaridade".
De ·outro lado, a riqueza cultural - que representa a
existência das identidades e as possíveis relações entre essas
diferentes identidades - pode nos levar, se criarmos espaços de
interlocução dos diferentes, a superar os perigos da fragmentação
e de disputas intermináveis e oposições destruidoras, ou de
redução a uma celebração móvel das diferenças, pela atuação
no sentido de construir a inter/mulriculturalidade crítica.
Se formos capazes de avançar nessa construção, a
identidade será formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou
80
interpelados nos sistemas culturais que construímos, nos quais
vivemos e poderemos existir humanamente. Estaremos a fazer
uma importante construção de caráter histórico, e não biológico
das identidades individuais e sociais.
Em cada um de nós, há identificações contraditórias que
nos empurram em diferentes direções, de tal modo que nossas
identidades estão sendo continuamente deslocadas. No entanto,
não se foge da necessidade de uma narração que nos garanta o
sentimento de uma identidade uniflcada desde o nascimento
até a morte. Ainda que essa não seja uma cômoda estória sobre
nós mesmos, não pode deixar de ser uma confortadora narrativa
do eu.
Os sistemas de significação (significados e sentidos) e
representação cultural se multiplicam: somos confrontados por
uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades
possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar -
ao menos temp'orariamente -, mas psicologicamente não
podemos deixar de experimentar uma certa identidade que se
expressa pela narrativa do eu.
Certamente, encontramo-nos diante das-mais amplas
conseqüências da hipótese que Marx e Engels já haviam
aventado em O manzfesto comunista. Segundo eles, a
modernidade seria "o permanente revolucionar da produção,
o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza
e o movimento eternos". Essa revolução, não apenas econômica
e política mas, sobretudo, uma revolução cultural nuclear,
transforma "todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo
de vetustas representações e concepções", além de envelhecer
" dto as as relações recém-formadas ... antes de poderem ossificar-
se. Tudo que é sólido desmancha no ar".'
Por outro lado, essa situação leva à reivindicação do direito
à diferença (identidade) não apenas individual, mas grupal e
r colet~v~,como insiste Lechner, acima citado. Essa reivindicação
hdireito à diferença passa a significar "o reconhecimento e o
81
respeito de sua cultura, e o direito de seus membros a preservá-
Ia, a fazê-Ia florescer e desenvolvê-Ia de maneira criativa, e a
viver segundo os planos de vida que cada um eleja de acodo
com essa cultura, sem deixar por isso de participar na vida
nacional" (OLIVÉ, 1999, p. 15).11ssoimplica, ao mesmo tempo,
P a obrigação de reconhecer e respeitar o direito dos outros, na
medida, inclusive, em que somos os Outros para eles e queremos,
enquanto outros, ser reconhecidos e respeitados. Se eu tenho
direito, sou um eu, uma singularidade, o outro também é um
eu, uma identidade, com os mesmos direitos que eu.
Diversidade x Direitos Humanos na Pós-
modernidade/ mundo
~
No interior de todas as transformações, "existe uma
tendência crescente a universalizar de maneira efetiva os
direitos humanos, ao abrir-se a possibilidade de julgar
genocidas e crimes contra a humanidade em países distintos
daqueles em que foram cometidos" (OLIVÉ, 1999, p. 15).
Assim, a p6s-modernidade/mundo proporciona as condições
que podem permitir "a construção de uma sociedade
planetária na qual participem as diversas culturas do mundo,
em um processo no qual cada uma enriqueça a sociedade
global e ao mesmo tempo se beneficie do intercâmbio e da
ooperação com as outras" (Id: 16).
Essa multiculturalidade, entretanto, só será possível se
desenvolvermos a interculturalidade, ou seja, o diálogo entre
culturas que possibilite a sua confrOntação e, portanto, o
florescimento e o desenvolvimento criativo das diferentes
culturas em presença, inclusive das nacionalidades.
Não podemos deixar, no entanto, de perceber que essas
são apenas possibilidades que necessitam da ação individual e
coletiva, nessa direção, para efetivar-se. Por outro lado, os riscos
de não-concretização existem. Apesar de todas as ambigüidades
82
e incertezas em que nos encontramos, tanto do ponto de vista
intelectual quanto do político, essas mesmas ambigüidades e
incertezas não nos impedem de perceber que esse processo vai
conformando transformações culturais que podem, pelo seu
t
volume e densidade, bem como pela sua acumulação, começar
a configurar mudanças sociais significativas.
As transformações sociais que vão se dando pelas mais
diferentes ações com âmbitos e alcances muito diversificados,
inclusive projetos de intervenção social de apoio aos setores
populares, provocam o redirecionamento de processos sociais
que, no entanto, não têm os mesmos alcances nem atingem os
mesmos âmbito..JTambém não se situam todos no sentido da
Construção do diálogo entre culturas (interculturalidade) na
direção da uma multiculturalidade como característica das
instituições, comunidades e nações. Por isso, é possível
identificar transformações de curta, média e longa duração,
assim como de naturezas distintas (técnicas, culturais, éticas,
estéticas, ideológicas) em muitas divergentes direções.
De qualquer maneira, essas transformações sociais se
opõem à direção que muitos governos tentam imprimir à
t
construção e desenvolvimento da sociedade em seus países
"como um processo tendente a impor uma única cultura".
Por isso, já estão em curso, no interior das nações e no âmbito
internacional, outras ações e outros projetos que indicam e
ajudam a reconhecer que a nação é pluricultural, "e que seu
desenvolvimentO pode enriquecer-se com essa diversidade
se se apoia o florescimento de todas as culturas que a
compõem e se sentam bases sólidas para que todas cooperem
no projeto comum de desenvolvimento nacional" (OLIVÉ,
1999, 16-17).
O sonho é que "em um mundo multicultural, os direitos
h --- -
~ devem construir-se nainteração transcultural" (1d:
17). E, assim, podem ser criadas as
83
respeito de sua cultura, e o direito de seus membros a preservá-
Ia, a fazê-Ia florescer e desenvolvê-Ia de maneira criativa, e a
viver segundo os planos de vida que cada um eleja de acodo
com essa cultura, sem deixar por isso de participar na vida
nacional" (OLIVÉ, 1999, p. 15).11ssoimplica, ao mesmo tempo,
a obrigação de reconhecer e respeitar o direito dos ourros, na
medida, inclusive, em que somos os outros para eles e queremos,
enquanto outros, ser reconhecidos e respeitados. Se eu tenho
direito, sou um eu, uma singularidade, o Outro também é um
eu, uma identidade, com os mesmos direitos que eu.
Diversidade x Direitos Humanos na Pós-
modernidade/ mundo
([?)
No interior de todas as transformações, "existe uma
tendência crescente a universalizar de maneira efetiva os
direitos humanos, ao abrir-se a possibilidade de julgar
genocidas e crimes contra a humanidade em países distintos
daqueles em que foram cometidos" (OLIVÉ, 1999, p. 15).
Assim, a pós-modernidade/mundo proporciona as condições
que podem permitir "a construção de uma sociedade
planetária na qual participem as diversas culturas do mundo,
em um processo no qual cada uma enriqueça a sociedade
global e ao mesmo tempo se beneficie do intercâmbio e da
ooperação com as outras" (Id: 16).
Essa multiculturalidade, entretanto, só será possível se
desenvolvermos a interculturalidade, ou seja, o diálogo entre
culturas que possibilite a sua confrontação e, portanto, o
florescimento e o desenvolvimento criativo das diferentes
culturas em presença, inclusive das nacionalidades.
Não podemos deixar, no entanto, de perceber que essas
são apenas possibilidades que necessitam da ação individual e
coletiva, nessa direção, para efetivar-se. Por outro lado, os riscos
de não-concretização existem. Apesar de todas as ambigüidades
82
e incertezas em que nos encontramos, tanto do ponto de vista
intelectual quanto do político, essas mesmas ambigüidades e
incertezas não nos impedem de perceber que esse processo vai
conformando transformações culturais que podem, pelo seu
tvolume e densidade, bem como pela sua acumulação, começar
a configurar mudanças sociais significativas.
As transformações sociais que vão se dando pelas mais
diferentes ações com âmbitos e alcances muito diversificados,
inclusive projetos de intervenção social de apoio aos setores
populares, provocam o redirecionamento de processos sociais
que, no entanto, não têm os mesmos alcances nem atingem os
mesmos ârnbitos.Í'Iambérn não se situam todos no sentido da
construção do diálogo entre culturas (interculturalidade) na
direção da uma multiculturalidade como característica das
instituições, comunidades e nações. Por isso, é possível
identificar transformações de curta, média e longa duração,
assim como de naturezas distintas (técnicas, culturais, éticas,
estéticas, ideológicas) em muitas divergentes direções.
De qualquer maneira, essas transformações sociais se
opõem à direção que muitos governos tentam imprimir à
t
construção e desenvolvimento da sociedade em seus países
"como um processo tendente a impor uma única cultura".
Por isso, já estão em curso, no interior das nações e no âmbito
internacional, outras ações e outros projetos que indicam e
ajudam a reconhecer que a nação é pluricultural, "e que seu
desenvolvimento pode enriquecer-se com essa diversidade
se se apoia o f1orescimento de todas as culturas que a
compõem e se sentam bases sólidas para que todas cooperem
no projeto comum de desenvolvimento nacional" (OLIVÉ,
1999, 16-17).
O sonho é que "em um mundo m~lticultural, os ilir~itos
humanos devem construir-se ~terarão transcultural" (Id:
17)~ -x
. E, aSSIm,podem ser criadas as
83
condições para superar conflitos específicos entre culturas
concretas ... reconhecer o direito das outras culturas a
presevar-se, a florescer e evoluir, e devem admitir, ao
mesmo tempo, que isso é compatível com a participação
de todas na construção e o desenvolvimento de sociedades
mais amplas, de autênticas sociedades multiculturais _
nos âmbitos nacional e global (OLIVÉ, 1999, p. 18).
, Para a proposta da construção da inrer/rnulticulturalidade
crítica, tomo emprestada a hipótese de León Olivé (1999, p.
18): "a possibilidade de um autêntico diálogo, a cooperação e a
solidaridade entre as culturas, o respeito à identidade de cada
'lj J uma e seu direito à sobrevivência e ao florescimento, esse modelo
multicultural também defende o máximo respeito à autonomia
e à dignidade dos indivíduos"
Essa hipótese se baseia na suposição epistemológica de
que "a realidade 'se deixa' conhecer de muitas maneiras
diferentes. Mas não é qualquer coisa que pode passar por
conhecimento". Por Outro lado, há uma fundamentação ética
para um "modelo pluralista" que se alicerça
na tese de que não há normas morais de validez absoluta
para julgar como corretas ou incorretas as ações das
pessoas, nem há critérios absolutos para avaliar as normas
e os sistemas normativos. De saída, isso não significa que
qualquer ação possa justificar-se de um ponto de vista
moral. Em síntese, o modelo pluralista defende que há
uma diversidade de pontos de vista, de formas legítimas
de conhecer e interactuar com o mundo, e de conceber o
que é moralmente correto. Mas disso não se conclui que
tudo esteja permitido. Pelo contrário, veremos que, de
acordo com esse pluralismo, a realidade impõe
constrangimentos muito fortes em relação ao que é
84
correto crer e ao que é possível e correto fazer. Daí se
segue que, em certas circunstâncias, seja possível comparar,
por exemplo, conhecimentos e propostas para a ação e
que, em função de fins específicos sobre os quais se pode
entrar em um acordo membros de diferentes culturas, seja
razoável sustentar que algumas dessas propostas sejam
preferíveis a outras (OLIVÉ, 1999, p. 19).
Essa perspectiva ética implica um compromisso dos
diferentes grupos culturais que constituem um Estado, uma
nação, as nações, seus partidos políticos e o governo, assim como
as diferentes instituições econômicas e culturais com a
construção de múltiplas configurações da humanidade do ser
humano. Caso contrário, dificilmente se poderá avançar na
construção da multiculturalidade. Revela-se també~
fundamental a atuação das instituições, especificamente I'/'-~
educativas (escolares e sociais), na medida em que contribuem U
para a construção de subjetividades capazes de suportar outros
tipos de convivência com mentalidades 'ibertas e competentes
para o diálogo com os diferentes.
Os indivíduos e os diferentes grupos sociais estão I
desafiados a desenvolver atitudes capazes de aceitar "a diferença, 
(para que) sejam respeitosos das outras culturas e estejam
dispostos a cooperar no desenvolvimento de uma sociedade
. multicultral e a admitir a possibilidade de fazer as mudanças
necessárias em sua própria cultura para a convivência
harmoniosa com os outros" (OLIVÉ, 1999, p. 20). ...•...
Os problemas se configuram, pois, do ponto de vista da
pesquisa, da teoria social e da ação coletiva, nas questões das
relações entre as singularidades culturais (identidades grupais,
diferenças culturais), numa cultura nacional e na pós-
~odernidade/mundo; e nos problemas das relações entre as
Individualidades (identidades pessoais, diferenças individuais)
85
'",
'na convivência grupal e societal. Enfim, configuram-se nos
desafios que apresentam uma situação de diversidade cultural,
perrrieada pelos-problemas das relações de pod~
oportunizar as condições do diálogo entre culturas sem
dominações (interculruralidade: possibilidades de diálogo entre
as diferentes culturas ou traços culturais) e, portanto,
probabilidades/potencialidades de uma multiculturalidade
(convivência valorizadora das diferentes culturas, promovidas,
respeitadas, responsáveis, em desenvolvimento, florescentes) na
pós-modernidade/mu
VEm uma pergunta, talve~ se pudesse formular o problema
da seguinte maneira: a pluriculruralidade pode proporcionar a
interculruralidade e, a partir dessa, configurar sociedades
nacionais e uma sociedade internacional multiculrurais, nas
quais os indivíduos e os grupos desenvolvam ao máximo suas
identidades e o prazer da convivência dos diferentes,
enriquecendo a todos material e simbolicamente
ranscul ruralidade)?
3.2. Apresentando o Problema Pedagógico na Di-
versidade Cultural
A pergunta que conclui o item anterior revela e releva a
importância e a complexidade de g.ue se reve~te o debate
pedagógico e o posicionamento sobre os processos educarivos, •
escolares ou não, na diversidade culrural caracterizador,Lda_pós,
modernIdadelmLífléio"39. Torna-se imprescindível para todos ~ .
tematização das possibilidades e da transcendência de uma
educação que não apenas leve em conta essa problemática, mas .
39 As reflexões que seguem reproduzem resultados da análise que realizei de
pesquisas do CIIE (Centro de Investigação e Intervenção Educativas), linha
de pesquisa 11. 3, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade do Porto, Portugal (SOUZA, 2002, capítulo 4).
86
a transforme em conteúdos básicos de aprendizagem para
efetivar suas probabilidades de construção do humano
individual e coletivo. Está em causa, portanto, o problema da
oonstrução de formas de convivência que garantam uma
existência agradável e alegre à humanidade pela criação das
condições da multiculturalidade através da ampliação das
potencialidades da interculturalidade como condições de uma
construção humana do ser humano e de suas sociedades.
Diante desse possível cenário, os questionamenros que.
. têm sido a resentados pelos debates das chances de uma
educação interllllulJicultur~ cmIC (STOER; CORTESÃO,
1999) se revelam fundamentais; talvez mais: fundantes, porque
repõem o problema central da existência humana em outras
perspectivas históricas e culrurais.
Essas perspectivas implicam uma transformação radical
das sociedades e das escolas, no sentido assumido na obra de
Paulo Freire (1867, 1992, 1996), ou seja, as possibilidades da
construção de uma sociedade substantivamente democrática,
de uma escola como Centro de Culrura e de aulas~como Círculos
Culturais. O Centro de Cultura e os Círculos Culturais podem
~roporcionar condições da percepção e da ação humanas numa
ireção que maneje as singularidades ou identidades individuais
e grupais; portanto, as diferenças não somente como
desigualdades, diversidades, fragmentações, mas à maneira de
um coral de múltiplas vozes, polifônico, resultante de "processos
~ivilizatórios que são, simultaneamente, co ex iste n tes ,
JUstapostos, polarizados, adversos, interdependentes e
c~mplices, conforme o jogo das forças sociais GU a pompa e as
cIrcunstâncias" (IANNI, 2000, p. 90).
Trata-se, enfim, de relações de poder entre indivíduos,
grupos, classes, etnias, gêneros, idades, em suas diferentes
figurações, configurações e transfigurações culturais, na
economia, na política e nos saberes. Assim, problematizarn-se,
87
na ~-ão-de P-flu!oJreire, as chances de uma e_~
1iberdade para a-libensçãG-de rodos ew~mo possibilidade
de crescjmento bljwano e não obstáculo à convivência humana.--..
A hipótese é a de que a Educação, inclusive a escolar,
pode contribuir com a construção da humanidade do ser
humano. Essa hipótese se desdobra em duas outras, que lhe
são complementares e a concretizam, como apresentamos, na
Introdução deste livro, e a retomamos:
1. Os conhecimentos que educadores e educandos,
professores e alunos adquirem nos processos educativos
(escolares ou não-escolares), podem ser úteis para o
crescimento humano de todas as mulheres e de todos os
homens. Por isso, a educação, inclusive a escolar, é um
direi to inalienável de todos os seres humanos.
Crianças, adolescentes, jovens e adultos, homens e
mulheres, aprendemos com os conflitos sociocognitivos
gerados entre os saberes que cada um já possui e as
informações que podem ser recebidas nos diferentes
ambientes sociais e educativos (escolares, não-escolares).
Apenas no confron to de saberes, que conformam
processos de ressocialização (recognição e reinvenção),
aprendemos, construímos novos saberes e adquirimos
condições de construir novas formas de convivência.
~~
@
Se nos colarmos nessas perspectivas e assim organizarmos.
os Centros de Cultura e os Círculos Culturais, ampliam-se as
probabilidades de avançarmos na construção da in ter/
~ticulturalidade crítica. Os saberes assim produzidos "são
'J--Io ~ múltiplos e intrincados, ao mesmo tempo que surpreendentes
~. e fascinantes os processos socioculturais que se desenvolvem
pelo mundo, tanto atravessando territórios, fronteiras, mares e
oceanos como mesclando culturas e civilizações, ou modos de
88
ser, agir, sentir, pensar e imaginar" (Ian ni, 2000, p. 93),
permitindo-nos perceber que esses processos socioculturais são
dinâmicos, mutáveis e desafiantes ao tempo que realizadores
do humano do ser humano.
O debate pedagógico, nesse contexto, pode se orientar
no sentido de se perguntar sobre os manejos possíveis dos
processos socioculturais no interior de processos educativos não-
escolares ou de uma escola pública, a serem organizados como
um Centro Cultural nos quais se ampliem as possibilidades de
seus sujeitos como seres humanos e profissionais de um mundo
diferente.
O problema se caracteriza, avolurna-se e desafia-nos pela
presença - nos diferentes âmbitos educativos - de educandos que
"foram socializados noutros valores, de acordo com outras regras,
tiveram outro tipo de vivência, têm outros conhecimentos e
possuem outros interesses, outras inquietações, outras formas de
estar na vida" (CORTESÃO, 2000, p. 19). Os espaços educativos
ocasionam a presença simultânea de identidades diferentes. Como
garantir sua convivência sem que cada um necessite superar suas
singularidades? É importante garantir o cresci'fnento pessoal, dos
grupos culturais e das nacionalidades. Tornã-los florescentes e
mais ricos, material, espiritual e simbolicamente.
Parece não haver necessidade de superar as singularidades
pessoais, grupais e nacionais, mas de buscar ap;ofundá-~
constituindo comunidades humanas polifônicas e multicoloridas
(se as desejamos). Precisa-se perceber que, "a despeito das
,incursões nas relações políticas, econômicas, sociais e culturais
exteriores, predomina o empenho em esclarecer o que é, o que
pode ser ou o que deverá ser o nacional" (IANNI, 2000, p. 94) e
o pessoal. Poder-se-a, então, superar o caráter excludente que
tem tido a construção das singularidades ou das identidades, na
conformação de comunidades nas quais se possa viver a plenitude
das diferenças em suas inter-relações expansivas.
89
Evidencia-se que
o problema não é a identidade como uma realidade ou
convicção. O problema é que esse tema, muito presente
na literatura e na sociologia, assim como em outras
produções culturais, freqüentemente predomina sobre
outros temas, dilemas ou horizontes. Sendo assim, o
predomínio do nacional em muito do que é reflexão ou
fabulação pode representar uma limitação; inclusive no
que se refere à inteligência do que poderia ser o nacional
(IANNI, 2000, p. 94).
A questão situa-se não apenas na identidade nacional,
mas, também, similarmente, na pessoal e na comunitária. Como
podem o ser nacional, as identidades grupais e o ser pessoal,
desde diferentes critérios, não re resentar um obstáculo à idéia
de uma sociedade inter/ .cultural crític~( Como não
desprezar a guestão nacional e a identificação das pessoas com
uma nação? Trata-se de gerar uma outr~ direção para a
nacionalidade (sem naêionalísmos)que pode oferecer as
-condições do crescimento da ind~idUàlidade e da convivência
para a construção do ser pessoal no concerto comunitário, da
identidade comunitária na nacional e da nacional no concerto
da - u na pós-modernidade/rnundo.
6
A caracterização a pós-=mo erni a e/mundo como urm
diversidade cultural e o debate sobre as probabilidades de uma
sociedade mult~ultural pela constituição de relações intercultu~
têm, pois, que equacionar a questão das inter-relações nacionais
num mesmo Estado ou entre nações-Estados autônomos no
concerto mundial. Passa, então, a ser, juntamente como todos os
outros temas indicados até aqui, questões substantivas dos
conseúdos de todos os processos educativos (escolares ou não).
Como indica o mexicano Rodríguez Ledesma (1998, p. 113) "é
90
aqui onde, justamente, o sentido da educação e o sistema,,..
escolarizado deverão, uma vez mais, assumir o desafio da reflexãC,-'
e de colocar eQUJ.Jitiçª-as lógicas para que o discurso se converta
em..ação.práctica de incidência direta e geral", •
Ademais, como insiste Carlos Fuentes (1997, p. 125),
outro mexicano, Prêmio Nobel de Literatura,
Uma dimensão essencial do magistério é ensinar a cada
aluno que ele não está sozinho. Que ele está no mundo.
Que está com outros. O professor tem que ser agente
contra a discriminação e os preconceitos. Ao aluno, o
professor afirma: "tu existes. Tu es único". Mas, ao mesmo
tempo, ensina-lhe a reconhecer a existência e a qualidade
.do outro indíviduo. Inclusive, à criança, ao jovem, ao
aluno: "reconhe-te a ti mesmo para que reconheças a
teus companheiros, mas, também, com humanidade,
aqueles que não são nem pensam como tu".
Esse posicionamento de Fuentes pode ser aproximado
da proposta do pesquisador espanhol Ortega-Rufz Ü998, p.
70), da Universidad de Murcia. Ele analisa a questão do pOnto
de vista da educação em valores e, reconhecendo a diversidade
cultural como um valor a ser promovido, indica que
o problema é como realizar essa difícil simbiose entre
desenvolvimento tecnológico e identidade cultural; como
integrar ciência e tecnologia no mundo da vida, valores,
tradição e cultura de cada povo ou comunidade. (...). O
acelerado progresso no bem-estar que experimenta a
sociedade moderna é impensável sem a aportação da
ciência e da tecnologia. Mas tampouco pode-se
desconhecer o desenvolvimento tecnológico da cultura,
isto é, o desenvolvimento humano que necessariamente
o deve animar, porque, ao idolatrar-se uma técnica
91
efémera, entra-se inevitavelmente num processo de
desintegração do homem como ser cultural.
Insiste Ortega-Rufz (1998, p. 71) que é
nas estruturas de acolhida que se torna viável isso que
chamamos "ser humano", no fluxo de uma tradição
concreta. (...). As diversas formas de pensamento, crenças,
sentimentos, valorações constituem outras tantas formas
de vida, como interpretações diversas de realização da
existência humana. Nem pensamento, nem a ação dos
humanos jamais partem do zero. Pelo contrário,
encontram na tradição, em SUA tradição no espaço para
uma das modulações possíveis da natureza humana.
Se cada tradição representa um espaço para as modulações
possíveis da natureza humana, o risco é cada grupo social pensar
que apenas a sua é a única verdadeira tradição humana. Esse é
o problema dos valores: cada indivíduo e cada grupo humano
pensam que seus valores são os valores. Então, quando se
~) ~onfrontam, os conflitos são inevitáveis, mesmo porque, al~r.::.
dessas questões, também se apresentamos problemas de poder
e de hie.rarquias. Logo, parece que faz sentido o pressupos~;- de
Henri Giroux, norte-arnerica oria crítica da educação,
ao indicar ue a escol é uma arena de lutas esde que também
se pense em espaços educativ - sepm apenas o escolar,
mas também outros projetos e processos educativos. E,~
)
caso, como ele propõe, a Pedagogia adquire a dimensão de uma
forma política cultur~LjSegundo Giroux (1994, p. 95),
as escolas são formas sociais que ampliam as capacidades
humanas, a fim de habilitar as pessoas a intervirem na
formação de suas próprias subjetividades e a serem capazes
de exercer poder com vistas a transformar as condições
92
ideológicas e materiais de dominação em práticas que
promovam o fortalecimento do poder social e demonstrem
as possibilidades da democracia.
Essas disputas, presentes em quaisquer projetos e
processos educativos, escolares ou não, acirram-se quando
sujeitos populares neles se inserem, pois "a cultura popular
representa não só um contraditório terreno de luta, mas
também um importante espaço pedagógico onde são
levantadas relevantes questões sobre os elementos que
organizam a base da subjetividade e da experiência do aluno"
(Giroux, 1994, p. 96). Em relação a isso, ainda existem,
contudo, muitos preconceitos acadêmicos e, sobretudo,
disputa de espaços das outras formas culturais. Por isso, esses
preconceitos terão que ser enfrentados e superados, numa
síntese mais ampla e desafiadora. ,{oLv~t , (
I jl ,(
~
Trata-se, na verdade, da realização de confrontos entre as
diferentes culturas que conformam a diversidade cultural da pós- .!J
modernidade/mundo, em nível local, regional, nacional e
internacional. Especificamente no nível local, um espaço
privilegiado para esse confronto é ~)nclusive a educação
escolar. Nessa, os processos de enslOo-aprendizagem devem
estabelecer o confronto entre a cultura científica, a cultura de
massa e a cultura popular, na busca de construir novos saberes,
novas instituições e novas subjetividades, novas sociedades'".
Creio que a perspectiva em que me coloco pode ajudar
na realização de quaisquer processos cducativos, inclusive os
escolares, nomeadamente os não-escolares. A concepção de
educação como processos e experiências de 'ressocialização
(recognição e reinvenção), orientados a aumentar e consolidar
capacidades individuais e coletivas dos sujeitos populares
'I
40 Ver essa questão desenvolvida mais amplamente em Souza (2002).
93
mediante a recuperação e recriação de valores, a produção,
apropriação e aplicação de conhecimentos que permitam o
desenvolvimento de propostas mobilizadoras, se me apresenta
com um alto potencial intelectual e prático.
A ressocialização dos sujeitos populares ou subalternizados
(crianças, adolescentes, jovens e adultos) se dá a partir do
confronto das visões e das práticas pessoais e coletivas desses
sujeitos com outras visões e práticas. Numa palavra: a partir de
processos e experiências de recongição e reinvenção. Portanto,
a ressocialização ocorre pela aquisição de uma nova compreensão
da realidade que vai sendo, individual e coletivamente,
transformada e reconsrruída numa outra perspectiva,
adquirindo figuração ou configuração e interpretação diferentes.
Constitui-se, assim, em um processo de diálogo, de confronto,
conflitivo ou não, quase sempre tenso, entre culturas ou entre
traços culturais, no interior de uma mesma cultura. Na escola,
esse confronto se dará entre o que genericamente se poderia
denominar cultura popular (saberes dos educandos e de seus
grupos de referência) e os saberes científicos, ou entre saberes
informais e saberes formais (CORREIA, 1999).
Tal perspectiva exige, segundo Correia, pesquisador do
CIIE, outra concepção e outras formas de tratamento das
"relações entre os saberes formais e os saberes informais" (1999,
p. 129). Essa não é, porém, uma tarefa fácil a ser cumprida
pelas instituições escolares e por seus educadores. O habitus
desenvolvido é o de que
como fiel depositária dos interesses do Estado, a Escola
evitou a invasão dos saberes não escolares e a incursão do
mundo da vida através de mecanismos de exclusão à sua
entrada ideologicamente legitimados pelo interesse do
Estado que, paradoxalmente, incluíam os interesses dos
próprios excluídos (CORREIA, 1999, p. 130).
94
Esse habitus de impedir a invasão da escola pelos saberes
não escolares há que ser quebrado. Se não o for, torna impossível
ualquer renovação e inovação das escolas de educação básica.
q íd - d I-Tem, portanto, que ser construi a outra concepçao as re açoes
entre saberes informais e formais na busca do estabelecimento
de outro habitus. Isso exige outra concepção de conteúdos
básicos de aprendizagem. Os conteúdos básicos de
aprendizagem passam a ser o confronto entre os saberes
populares ou informais e os eruditos, formais ou científicos na
busca da construção de um novo saber escolar. Os dois tipos·
ou formas de saber passam a integrar os conteúdos educativos,
e não apenas o saber formal ou erudito é conteúdo a ser
trabalhado nos processos educativos escolares?'.
Diante dos temas, assuntos, problemas em estudo, tem
que se realizar o confronto entre os conhecimentos científicos
e os saberes populares ou do senso comum sobre esses temas
em estudo a fim de se construir um novo saber sobre eles.
Esse novo saber constituirá o conteúdo dos processos
educativos.
Por outro lado, parece que, caso se queira ~erconseqüente,
nesse confronto dos conhecimentos (dos educadores, dos
educandos e das ciências) face aos temas ou problemas em
estudo, não se deve validar um ou outro dos saberes em presença.
Ao contrário, deve-se buscar suas oposições, composições, na
construção de compreensões e posicionamentos novos em
relação aos temas e problemas em estudo. Sobre eles, enquanto
cidadãos, todos poderão intervir. A busca é a construção de
um novo conhecimento que supere as limitações dos dois
conhecimentos (formais e informais) em confronto, e que o
novo conhecimento consrruído seja útil à intervenção social
transformadora da escola, da educação em outros âmbitos, que
não o escolar, e das próprias relações sociais.
41 Ver um aprofundamenro dessa questão no irem 5.1 desre livro.
95
Correia (1999) propõe, para superar as possíveis posições
equivocadas, o paradigma da interpelação em oposição aos
paradigmas da exterioridade e da continuidade no qual "as lógicas
da exterioridade e da continuidade se subordinem às preocupações
relacionadas com a gestão de uma conílictualidade que não anule,
mas seja interpelante das diferenças" (p. 133). Para ele,
o diálogo entre os saberes formais e informais não pode
preocupar-se apenas com a eficácia cognitiva da acção da
escola, nem pode ser apenas limitado a uma relação
dialogante entre Escola e Família que melhore o clima de
aprendizagem mantendo intactos os fundamentos do
currículo escolar. O paradigma da interpelação subentende
por um lado que se reabilitem as potencialidades formativas
do conflito cognitivo e por outro lado que se reconheça
que a comunidade está sempre presente através dos alunos,
razão pela qual as relações que se estabelecem com a
comunidade derivam prioritariamente das relações
pedagógicas e sociais que ela estabelece com os alunos.
Essa perspectiva implica que a escola se pense como uma
cidade a construir, ou seja, que se pense não só como espaço
de formação de cidadão, mas principalmente como um
espaço de exercício de uma cidadania que não se limite à
aprendizagem da disciplina e das regras, mas que institua
uma cultura dos direitos e da participação democrática
(CORREIA, 1999, p. 133-134).
Defende, além da potencialidade formativa do conflito
cognitivo e da mudança dos fundamentos do currículo escolar,
como maneira de concretizar essa alternativa, a adoção de "um
pensamento reticular" que seja capaz de atribuir "uma atenção
acrescida à gramática das formas de vida e à erupção das
heterogeneidades e insira analiticamente a escola numa rede de
96
relações que a transcendem e que ela deve procurar qualificar,
contribuindo para sua diversificação, densificação e o
enriquecimento" (CORREIA; 1999, p. 134).
Esses processos e experiências de ressocialização podem
acontecer em diferentes práticas pedagógicas. Não é apenas na
educação escolar que elas podem se realizar. Elas podem ocorrer
a partir das religiões, da política e têm encontrado um espaço
privilegiado nos diversos movimentos sociais populares
(SOUZA, 1999). Além disso, é possível também se darem na
escola, desde que esta se oriente por um processo de reinvenção
de si mesma pela percepção de suas contradições, ambigüidades
e possibilidades. Creio que a tematização da diversidade cultural,
das possibilidades da interculturalidade e das probabilidades
da multiculturalidade será um bom conteúdo para essa
reinvenção e recognição da instituição escolar, bem como de
outras agências educativas.
Nesse sentido, é pertinente examinar o debate sobre as
probabilidades da multiculturalidade e as possibilidades da
interculturalidade a partir da diversidade cultural, c~·nfrontando-
o com o pensamento de Paulo Freire e identificando sua
contribuição a esse debate, na perspectiva da ressocialização como
versão de uma teoria da educação tendo em vista a construção da
escolaadequada às camadas da classetrabalhadora (SOUZA, 2000).
A suposição teórica da reflexão e da investigação empírica
para uma Sociologia da Educação (Escolar e Não-Escolar), sua
hipÓtese substantiva, é que a diversidade cultural pode
Eossibilitar o diálogo intercultural na construção de I2.I-.Q~s
~ucativos, inclusive esc;Gres, que garantam o êÚro acadêmi
~rie as CQndiçõe~ do sl:lce~~o social às camadas da ~
trab-ª.fuadora. Tal desbobramento contribuirá para a efetivação
da pós-modernidade/mundo como uma sociedade inter/
multicultural; numa palavra: em processo contínuo de
democratização, transcultural.
97
3.2.1. Pistas para uma Sociologia da Educação,
implicada pedagogicamente, na Diversidade Cultural
Educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender
algo desde a "sede do saber", até a "sede da ignorância"
para "salvar", com este saber, os que habitam nesta. Ao
contrário, educar e educar-se, na prática da liberdade, é
tarefa daqueles que sabem que pouco sabem - por isto
sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais
- em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam
que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar
que nada sabem em saber que pouco sabem, possam
igualmente saber mais (Freire, 1975, p. 25)42.
Quaisquer que sejam, as realidades sociais estão sempre
conformadas, constituídas, configuradas por diversidades,
exclusões e desigualdades (políticas, econômicas, culturais, étnicas,
lingüísticas, religiosas, de gênero, entre outras) que se expressam
de maneira emblemática, em proporções maiores e intensas, nas
megalópoles mundiais. Suas influências se estendem, entretanto.
sobre todas as outras situações socioculturais, condicionando-as.
Até mesmo sobre comunidades muito isoladas.
Essas formas de sociabilidade e suas inrer-relações, talvez,
possam ser percebidas mais adequadamente a partir dos debates
sobre a transculruração, sobre as fragilidades e potencial idades
da pluri/rnulti/inrer-culturalidade. Esses debates, como indica
lanni (2000, p. 134), podem permitir" taquigrafar características
e tendências das formas de sociabilidade, do jogo das relações
42 Obra publicada, em 1969, pelo Instituto de Capaciración e Invesrigación en
Reforma Agrária, sob o título iExtensión o Comunicación?, resultante das
reflexões de Freire, sobre o trabalho realizado nos Assentamentos de Reforma
Agrária do Chile no Governo Eduardo Frey, especialmente com e por
agrônomos.
98
ciais,das modalidades de produzir e reproduzir signos, símbolos
sOsi nificados, por meio dos quais os indivíduos e coletividades
e g ."
se expressam e se constituem .
Nesses debates não se pode, no entanto, esquecer as
ues
tões
nacionais, mas um ser nacional no concerto das nações.
Áfinal, a pós_modernidade/mundo se constitui de nacionalidades
e não há sinais que indiquem que elas tendam a desaparecer, e,
talvez,não seja desejável que desapareçam. Há, ao contrário, fortes
indícios de recrudescimentos de nacionalismos e fragmentações
de classe, gênero, religiões, de indivíduos e gtupOS sociais. A
superação desses nacionalismos e fragmentações é desejável. Não
das nacionalidades nem das singularidades forjadas a partir de
diversos recortes. É necessário, no entanto, reconhecer as
situações de fragmentação e nacionalismos para identificar suas
possibilidades de superação. Como reconhecem pesquisadores
do CIlE,
toda esta variedade de indivíduos, que integra a actual
sociedade, tem vindo a cruzar-se.:ainda entre si,
originando situações múltiplas de identidade que se vão
firmando e que, afinal, contrariam a anunciada
homogeneização que, aparentemente, se poderia esperar
ir dominar completamente, decorrente das situações de
globalização (CORTESÃO, 2000, p:18).
6Essa caracterização da pós-modernidade/mundo como
diversidade cultural, identificada pelas situações múltiplas de
identidades em presença, com seus riscos de fragmentação,
nacionalismos e fundamentalismos rornândo-se objeto do
debate sobre as probabilidades de uma multiculturalidade pela
constituição de relações interculturais. não apenas coloca vários
problemas para os processos educativos (escolares ou não) mas
também revela potencialidades como já indicado anteriormente.
99
Esses problemas podem provocar uma reflexão crltlca
pormenorizada, permanente, consistente e rigorosa sobre as
causas e não apenas sobre os sintomas dos riscos da fl-agmentação
mas também sobre as responsabilidades e as significações
(significados e sentidos) da educação e dos educadores, bem
como das instituições educativas, escolares ou não, na atuação
para superar os perigos dos divisionismos, construindo alguns
objetivos comuns aos diferentes grupos culturais que compõem
as nacionalidades e a pós-modernidade/mundo.
No âmbito do Cllf', as análises sobre a educação escolar
na diversidade cultural, segundo Stoer (2001, p. 246), partem
de uma constatação, diante do contexto acima referido, que é
a explosão recente de reflexões e textos sobre o inter e
multiculturalismo, a forte presença nas sociedades
ocidentais da questão (e manifestações) da diferença _da
problemática de género, de questões étnicas -, a procura
tremenda de informação e acesso à formação na área do
multiculturalismo e educação intercultural, o
aparecimento subitâneo de organizações oficiais e não
governamentais promovendo e preocupando-se com a
inter e multiculturalidade testemunham, neste fim do
sétulo XX, a emergência de uma dinâmica social cujas
ilações precisam de ser e/ucidadas, investigadas e
com preendidas.
Nessa mesma linha, mas especificando os cenanos
educacionais escolares, Carlinda Leite, também pesquisadora
do CrrE, esclarece que essas preocupações, investigações e
intervenções têm lugar, particularmente, no bojo da Reforma
do Sistema Educativo Português, no final dos anos 1980, cujo
espírito favorece
100
a emergência de um discurso de educação face à
multiculturalidade, questão até aí pouco (re)conhecida. No
entanto, este discurso nem sempre foi acompanhado pela
acção prática e pelo exercício, por parte dos professores, de
processos que se enquadrem numa lógica de
coexistencialism043
e de educação intercultural. De facto, nos
princípios dos anos 90, as iniciativas de intervenção nesta
especificidade educativa correspondiam a pequenos
grupos de académicos e investigadores ou a grupos sociais
que nos seus quotidianos conviviam com a necessidade
de agir face às situações de exclusão a que eram votados
membros das chamadas minorias presentes na sociedade
portuguesa (principalmente africanos das ex-colóriias
portuguesas e populações de etnia cigana) (LEITE, 2000,
p.138-139).
Tais preocupações e debates, no CIlE, se concretizam a
partir de um projeto de pesquisa e intervenção, coordenado
pela Prof- Luiza Cortesão, o PIC (Projecto de Educação Inter/
Multicultural), desenvolvido de 1989 a 1992, envolvendo "três
escolas do 10
ciclo do ensino básico 44 freq uen tadas po r um
significativo número de crianças ciganas ou de origem africana,
provenientes das antigas colónias portuguesas" (LEITE, 2000,
43 Refere-se a um dos três posicionarnentos possíveis das escolas na organização
do currículo idenrificados por Forquin (1989, p. 152-160) face à diversidade
cultural: isolacionismo, universalismo e coexisrcncialismo.
44 Corresponde aos anos iniciais (10 ao 40) do Ensino Fundamental na estrutura
escolar brasileira a partir da Lei 9394/96. A estrutura' da Educação Escolar
portuguesa de acordo a Lei de Bases do Sistema Educativo é: Ensino Básico
de 9 anos, conformado em três ciclos; Ensino Secundá tio e Ensino Superior.
No Brasil, a estrutura é Educação Básica e Educação Superior. A educação
básica está constituída pela Educação Infantil (O a 6 anos), Ensino
Fundamental (8 anos, a partir dos 7 anos de idade) e o Ensino Médio (3
anos). Daí, acesso à Educação Superior.
101
p. 141, nota 3; STOER; CORTESÃO, 1999, p. 37-38). Esse
projeto teve continuidade no PEDIC (Projecro Educação e
Diversidade Cultural: para uma sinergia de efeitos de
investigação), sob a coordenação de Stephen Stcer, de 1992 a
1995, "que, pretendendo obter uma sinergia de efeitos,
acrescentou ao grupo de escolas com quem se trabalhava uma
outra, C+S, do meio rural" (LEITE, 2000, p. 141)45. O
PEDIC, iniciado em janeiro de 1992, incorporara também,
além do PIC, o Projeto "Aprendizagem para o Trabalho:
Educação e Democracia num País da (Semi)periferia
Europeia" (1987-1991) (STOER; ARAÚJO, 2000). Para os
pesquisadores desses dois projetos, a sua junção
permi riria trabalhar a diversidade cultural na escola
portuguesa, cruzando algumas das diferentes culturas nela
presentes, a fim de produzir um efeito sinergético. Na
realidade, pensava-se que essa reunião iria possibilitar a
articulação de duas equipas de pesquisa, já constituídas
anteriormente, bem como a associação de trabalhos
realizados em qualquer uma delas. Para além disso, iria
introduzir as dimensões rural/urbano e o trabalho com
diferentes níveis de ensino às dimensões de diversidade
cultural já em análise em qualquer um dos projectos
inciais (CIIE, 1995:9).
Os projetos que deram origem ao PEDIC
anteciparam as preocupações com a diversidade que mais
recentemente foram emergindo, em diferentes situações,
no sistema educativo português. Na verdade, desde 1989
estes projectos começaram a trabalhar problemas de relação
cultura/culturas a nível da educação. Terminados estes
45 Cf CIIE, 1995; STOER; ARAÚJO, 2000; STOER; CORTESÃO, 1999.
102
projectos em que a pesquisa/formação e a intervenção
coexistiam e se inter-estirnulavam, seguiu-se um período
em que se sentiu a necessidade de aprofundar ainda mais e
alongar a reflexão teórica sobre toda a experiência, todos
os dados e todos os questionamentos que se tinham
recolhido e, em que, simultaneamente, começou a emergir
a consciência da importância de rentabilizar a reflexão feita
até então. Para além de trabalhos vários produzidos
(artigos e livros), um dos efeitos dessa rentabilização
materializou-se na proposta e desenvolvimento de um
t
mestrado _em Educação e Diversidade Cultural
(CORTESAO, 1998, p. 65).
Essas intervenções pedagógicas e investigativas, as análises
que proporcionam e os conteúdos dos Programas de Pós-
Graduação estão buscando
a compreensão necessária para produzir práticas capazes
de reduzir os constrangimentos, designadamente sócio-
económicos, actuando sobre estes grupos passa pela
compreensão, não só de sua relação direta com a produção
material e o mundo de trabalho, mas passa também pela
. .
maneira como estes grupos vivem e constroem as suas
vidas, isto é, com os seus processos de reprodução cultural
(STOER; CORTESÃO, 1999, p. 38).
Nessa p~tiva, definem como objetivo das atividades
da Linha 3 d~ intervenção no sentido de produzir práticas
pedagógicas transformadoras que levem em conta tanto os
aspectos estruturais da realidade como suas dimensões simbólicas,
compreendendo, portanto, os processos de produção e
reprodução culturais. Mas, por outro lado, não querem os
pesquisadores ver seus projetos ou propostas confundidos com o
103
que identificam, em suas análises, como práticas das/nas/com
questões culturais na educação que apenas visam amenizar as
situações. Essas práticas amenizadoras implicam, segundo os
pesquisadores do CrrE, um multiculturalisrno que denominam
de benigno. Afirmam que seu desejo é se demarcarem
do que parece ser uma tentativa de valorizar as diferenças
na escola para melhor justificar (e legitimar) a selecção
levada a cabo pela escola nestes novos tempos de produção
e consumo diversificados. Na nossa perspectiva isso seria
igual ao 'reforço' da escola e, assim, uma subversão do
ideal rnulticultural. Valorizar as diferenças na escola pode
querer dizer aumentar o valor dos recursos culturais (de
todos os grupos sociais, mas especialmente daqueles
subalrernizados), sem subestimar a importância daquilo
que nos liga uns aos outros (e que se pode exprimir através
de concretização do princípio de igualdade de
oportunidades de acesso e sucesso e a consolidação dos
direitos sociais e humanos (STOER, 1993, p. 51).
Nessa perspectiva e com essas utopias (ideal multicultural,
aumentar o valor dos recursos culturais, sobretudo, dos grupos
sociais subalrernizados, concretização do princípio de igualdade
de oportunidades de acesso e de sucesso, consolidação dos
direitos sociais e humanos), os objetivos do PEDIC são
formulados nos seguintes termos:
conhecer características, valores, hábitos, ritmos e
expectativas dos grupos sócio-culturais existentes na
escola; promover, através de uma metodologia de
investigação-acção, a preparação de professores para
diferenciar as suas ofertas de ensino-aprendizagem;
encarar, numa perspectiva não emocêntrica, os costumes,
104
valores, ritmos e expectativas de crianças com origens
culturais diferentes; construir, na base da investigação,
um currículo, ao nível da formação de professores do
ensino básico, para uma educação inter/rnulticulrural
(CIIE, 1995, p. 11).
A direção das pesquisas e das intervenções está, portanto,
demarcada pela indicação de que se tem ~ compreender a
cultura, tanto na esfera produtiva.como reprodutiva e, portanto,
"7ambém na forma como outros farares interferem na SIIa
~S'fOER; CORTESÃO, J999, p. 38-39). Isso deve
ocorrer a fim de aumentar o valor dos recursos culturais de
rodos os grupos sociais, mas especialmente dos setores
subalternizadOs, garantindo a igualdade de oportunidades de
acesso e de sucesso escolares que os equipem para êxitos sociais.
Enfim, a garantia da efetivação dos direitos humanos e sociais.
Numa palavra, a cu tura como pratica social. Deseja-se uma
"escolaonde crianças e Jovens e 1 erentes grupos' minoritários'
adquiram saberes e instrumentos que os ajudem a viver e intervir
numa sociedade" (hegemonicamente dominante), sem que isso
seja conseguido através da destruição da auto-imagem e da
cultura do seu grupo de pertença" (CIIE, 1995, p. 13).
Armados com esses desejos, os investigadores/
intervencionistas do CIIE fazem uma crítica a propostas de
educação, no interior da diversidade cultural, sobretudo nos
países centrais, que denominam, na esteira de Bullivant
(981)47, de pluralismo cul tural benigno (STOER;
CORTESÃO, 1999, p. 24, 26, 115), mas também reagem a
uma crítica neomarxista que continua dando ênfase apenas à
relação estrutural entre um currículo escolar diferenciado e um
mercado de trabalho segmentado (Id., 39).
46 '" que possui um setor. ..
47 "multiculturalismo benigno": "doce e simpática interpretação das diferenças"
(STOER; CORTESÃO, 1999, p. 115).
105
Em relação ao pluralismo cultural benigno dentro da
escola, Stoer (2001, p. 258) afirma que "se revela como i)
ingénuo face aos estatutos sociais desiguais dos diferentes grupos
culturais, e ii) desarmado perante um Estado que, apesar de
boas intenções, continua a promover uma política educativa
que justifica uma cidadania política pela negação dos
particularismos e das especificidades culturais".
Para esses pesquisadores, apenas "uma permanente
análise crítica permitirá ir mais longe tentando trabalhar a
nível das causas e não dos sintomas dos problemas
decorrentes da diversidade no processo educativo" (STOER;
CORTESÃO, 1999, p. 26). Infelizmente, não é nessa
perspectiva que se colocam muitas das propostas que desejam
trabalhar a questão das implicações da diversidade cultural
nos processos educativos.
Muitos projetos e, sobretudo, suas práticas procedem de
"forma redutora" face aos problemas que "frequentemente ...
se fazem sentir a nível da educação, particularmente do que
respeita ao papel e significados da actuação da escola e do
professor" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 13). Identificam
os problemas que a diversidade cultural apresenta à escola que,
no seu cotidiano, não considera nem valoriza as diferentes
culturas presentes nos processos de ensino-aprendizagem. A não-
consideração nem a valorização das diferenças culturais é,
supõem, uma das causas da maciça incidência do insucesso
escolar que acontece com crianças culturalmente mais distantes
da norma prestigiada na escola":
Um dos instrumentos que os pesquisadores do CrrE
apontam como podendo contribuir para superar essa situação
é a "investigação-acção" na construção de uma prática
pedagógica que possibilite oportunidades de sucesso a esses
48 Essa é uma das suposições que apresento no Projeto de Pesquisa da Licença
Sabática que deu origem ao livro Atualidade de Paulo Freire (SOUZA, 2002).
106
alunos49, bem como a construção de dispositivos de
diferenciação pedagógica" que permitam tratar as situações
culturais em suas singularidades e inter-relacioná-Ias,
potenciando a capacidade de aprendizagem dos alunos e
alunas.
No entanto, a superação da situação de interculturalidade
invertida, de multiculturismo benigno, pluralismo cultural
benigno implica uma compreensão, interpretação, explicação
dessasituação e, especialmente, uma intervenção. Nesse esforço,
em sua análise das questões da diversidade cultural da sociedade
hodierna, especificamente a portuguesa, e suas implicações para
o processo educativo, recorrem os pesquisadores do CIIE às
noções de desigualdades econômico-sociais (MARX) e exclusões
culturais (FOUCAULT), em suas interdependências, propostas
por Santos (1995), para compreender a situação da pós-
modernidade/mundo. A inter-relaçâo dessas noções vai ser
construída através do que Santos denomina de reflexão
hermenêutica diatópica, como uma ferramenta analítica,
caracterizada pela:
capacidade de identificar e se indignar com as injustiças;
- competência para a convivência e aceitação crítica das
diferenças;
compreensão de nossa própria incornplerude (STOER;
CORTESÃO, 1999, p. 25-26).
Para Santos, segundo os investigadores do CIIE (STOER;
CORTESÃO, 1999, p. 114), a hermenêutica diatópica é um
processo para abordar a incomensurabilidade das culturas.
Santos a fundamenta
49 Stoer; COrtesão, 1999, p.32-36; Ciie, 1995: 11; Cortesão, 1998; Stoer; Araújo,
2000.
50 Stoer; Cortesão, 1999, p. 53, 60, 77, 81; Cortesão, 2000, p. 63-80.
07
na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por mais
fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria
cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível
do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à
totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O
objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir
a cornplerude - um objecrivo inatingível - mas, pelo
contrário, ampliar ao máximo a consciência da
incornpletude mútua através de um diálogo que se
desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e
outro noutra. Nisto reside o seu carácter diatópico
(SANTOS, 1997, p. 23).
Diante da incomensurabilidade das culturas, do
inacabarnento de todas as culturas, da nossa própria inconclusão
como concluem os pesquisadores do CIIE, e de posse de um
instrumento que permita sua abordagem, apelam os
pesquisadores do CIIE para o reconhecimento da natureza
transgressiva e globalizante da problemática inter/rnulticulural
que faz com que essa questão interfira em/com toda a prática
social na qual se inclui a educativa. Segundo eles, há que se dar
atenção à riqueza das formas culturais que medeiam a relação
entre estrutura (classe social) e subjetividades (STOER;
CORTESÃO, 1999, p.40). "Assim, em vez de se deixar a
diversidade escapar entre os dedos, em vez de tratar a diversidade
como um símbolo de fraqueza e tomar uma atitude arrogante
em relação à tal diversidade que é ofensiva, dever-se-ia
confrontar a incomensurabilidade de culturas e combater a doce
e simpática interpretação da diferença" (STOER; CORTESÃO,
1999, p. 114).
Trata-se de aproveitar ao máximo a riqueza das formas
culturais que medeiam a relação entre estrutura (classe social) e
subjetividade, identificar a importância das lutas e das práticas
108
étnicas e de gênero, além de perceber a diversidade no interior dos
rópriosgrupOSétnicos e as dinâmicas inter-relacionadas de gênero
~ classesocial para potencializar suas possibilidades educativas.
propõem ainda os pesquisadores do CrIE, para isso, uma
abordagem não-sincrônica, baseados em McCarthy (1988),
que toma como ponto de partida o que se pode definir como
uma política da diferença a fim de que se consiga
operacionalizar as relações entre raça, ecnia, classe e gênero
no nível do cotidiano, que concebe essas mesmas relações
como sistematicamente contraditórias. Destina-se essa
abordagem a possibilitar a compreensão da complexidade do
que se passa no terreno das escolas e das comunidades
envolventes. Essa abordagem tem as seguintes características
(STOER E CORTESÃO, 1999, p. 41-42):
_ a promoção do 'ruído' (complexidade) da
multidimensionalidade, que garante a reintrodução da
variabilidade histórica e da subjetividade, ambas ausentes
das abordagens multicultural e neornarxisra;
- o reconhecimento da importância, na escola, das lógicas
e efeitos autónornos das dinámicas de etnia e de género e
a sua interacção necessária com classe social;
- a adoção de uma postura crítica face à tendência dos
teóricos da educação inrer/rnulticultural e da corrente
neomarxista de dividir a sociedade em domínios
separados de estrutura e cultura (esta tendência promove
explicações monocausais);
a defesa de uma concepção do conceito de raça (e etnia)
'não como uma categoria ou uma coisa' em si própria'
(Thompson, 1996), mas, antes, como"'um processo
social vital integralmente ligado a ou tros processos e
dinâmicas sociais da educação e da sociedade"
(McCARTHY, 1988, p. 272).
109
Em poucas palavras, poder-se-ia dizer que a abordagem
não-sincrônica -relacionando classe social, estrutura ,
subjetividades, história e cultura - tenta perceber as diferentes
racionalidades, presentes na escola e nas comunidades de
referência, para criar as condições de sua comunicação,
identificar as diferenças e o direito à diferença. Apostam os
pesquisadores do CIIE, por certo, na complementariedade entre
uma abordagem não-sincrôriica de McCarthy e a reflexão
herrnenêutica diatópica de Santos. Essas funcionarão, então,
como um procedimento metodológico.
O enfoque não-sincrônico, a reflexão hermenêurica
diatópica, a política da diferença, a investigação-ação, capazes
de garantir a multidimensionalidade e o interrelacionarnento
entre estrutura e cultura, serão assegurados, propõem os
pesquisadores do CIIE, na prática pedagógica, por meio dos
campos da recontextualização dos textos do sistema educativo
proposta por Bernstein (1990). Esses campos podem ser
caracterizados da seguinte maneira:
a recon textualização do campo oficial do discurso
educativo que determina "o quê" dos processos
pedagógicos pelas instâncias centrais do Estado
encarregadas da elaboração e irnplementação de políticas
educacionais;
a recontextualização dos textos educativos provenientes
do campo especificamente pedagógico que tentam
determinar "o como" dos processos educativos
configurado pelas publicações e mídia da educação, pelas
faculdades e departamentos de educação das
universidades e dos politécnicas e pelas instituições e
fundações de pesquisa e divulgação educacionais (STOER
E CORTESÃO, 1999, p. 43-44,78-79,83; Leite, 2000).
110
Argumentam, para isso, com a idéia de autonomia relativa
do discurso pedagógico, também. pr~posta "" ~ernstein em
a compreensão da recontextuallzaçao pedagógica dos textos
sdu sistema educativo. Segundo Bernstein, citado pelos
o -
pesquisadores do CIIE (STOERE CORTESAO, 1999, p. 79),
podemos definir a autonomia relativa do discurso
pedagógico na medida em que aos campos da
recontextualização pedagógica não só Ihes é permitido
ter existência, mas também afectar a prática pedagógica
oficial. (...). Onde existem campos da recontextualização
pedagógica que são efecuvos e gozam de uma autonomia
relativa, então torna-se possível para os activistas neste
campo recontextualizar textos que por si próprios podem
considerar-se ilegítimas, opostos, proporcionadores de
espaços contra-hegemónicos da produção de discursos
(BERNSTEIN, 1990, p. 198,202).
É possível encontrar ou inventar, na prática pedagógica,
espaços capazes de ressignificar os discursos ofi€iais da política
educativa de tal maneira que permitam processos educativos em
outras direcionalidades que não as que se quer impor a partir dos
discursos pedagógicos oficiais. O mesmo processo é possível com
os textos dos discursos, especificamente pedagógicos. Evidencia-
se,então, uma exigência ou possibilidade para a prática pedagógica
denominada de progressista. A recontextualização pedagógica
indica que os discursos, os textos, para cumprirem sua função
educativa, têm que assumir suas dimensões formativas a partir das
condições e situações dos educandos. E exige uma competência
dos educadores a ser desenvolvida tanto na formàção inicial quanto
Contínua para garantir a tarefa da recontextualização.
. No dia-a-dia da prática pedagógica, como afirma
Carlmda Leite (2000a, p. 12), "recontextualizar as mensagens
escolar " . ·c " I hes signmca va orizar o con ecimento e os processos
111
100....-
de comunicação entre as culturas presentes no espaço escolar".
Para os pesquisadores do CIIE, isso seria superar o daltonismo
cultural da escola e dos professores pela aquisição de uma
racionalidade transcul tural.
Insistem na importância de perceber que o daltonismo
cultural, além de ser um obstáculo à "percepção da diversidade,
é essencialmente adquirido através de uma socialização muito
frequentemente etnocêntrica e uniformizante". Não tem,
portanto, nada a ver, a não ser analogicamente, com o daltonismo
orgânico que, além de ser hereditário, pode afetar a visão. A
superação do daltonismo cultural dar-se-a pelo desenvolvimento
da racionalidade transcultural que "é crucial para o processo de
tradução das culturas e, portanto, para o aproveitamento da
diferença dentro da escola e, mais particularmente, dentro da
sala de aula" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 78).
3.2.2. Uma possível proposta pedagógica para a
diversidade cultural
Nessa perspectiva, temos, em Pernambuco, Brasil, por
meio da atuação do NUPEP (Núcleo de Ensino, Pesquisa e
Extensão em Educação de Jovens e Adultos e em Educação
Popular).do Centro de Educação da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), formulada (SOUZA, 2003, p. 4-7),
como abaixo segue, uma Proposta de Educação que afirmamos
ser para a Educação de Adultos, mas que parece servir para
quaisquer processos educativos.
Hoje, no âmbito do NUPEP/UFPE, trabalha-se com
uma proposta pedagógica que resulta da contribuição teórica
de Paulo Freire, confrontada com o debate pedagógico
hodierno, como indicada nos parágrafos acima. Seu
fundamento e nossa inspiração são uma concepção de educação
como atividade cultural e de desenvolvimento da cultura.
Proposta que perspectiva contribuir com a construção da
humanidade do ser humano em suas diferentes feições -
masculinas, femininàs, adultas, infantis, juvenis, idosas,
adolescentes, rurais e urbanas, rurbanas, negras, mestiças,
brancas -, no interior de suas orientações sexuais e ideopolíticas,
entre tantas outras possíveis identidades.
A hipótese substantiva do seu trabalho é que a diversidade
cultUral pode possibilitar um diálogo inter e intracultural na
construção de processos educativos com as camadas populares
ou setores subalternizados das sociedades nacionais e da
sociedade mundial que respondam aos desafios da pós-
modernidade/mundo. Construção de uma educação que,
compreendendo as diversas implicações da diversidade cultural,
trabalhe pelo diálogo entre as culturas (interculturalidade) por
meio de sua realização na prática pedagógica. Isso virá a
contribuir, a partir da experiência da interculturalidade nas
instituições educativas, com a construção da rnulticulruralidade.
Experiência que, certamente, repercutirá em todas ~s relações
sociais dos indivíduos e grupos que a tenham vivenci;-do. Nossa
aposta é que a multiculturalidade possa vir a ser a característica
fundamental de uma sociedade democrática expansiva.
Partimos do pressuposto de que a sociedade atual, em suas
feiçõeslocais, nacionais e internacional, ainda não é multiculrural,
nem predomina nela a interculturalidade. Daí a insistência com
que alguns pesquisadores chamam a nossa atenção para os
~roblemas do multiculturalismo benigno, da inrerculturalidade
I~vertida. Nesse sentido, a contribuição de Paulo Freire se torna
slgnificat' P . ,rva, or ISSO,para evitar esse mal-estar, trabalhamos com
oscon~trutos freireanos (aparato conceitual) que passo a explicitar.
A SOCIedadehodierna se caracteriza como uma diversidade
cultural ou I 'I lid dA' A • d. P UflCU tura I a e, s expenenclas e
Intercult Íid d '. ,.
-r- ura I a e e rnulticulturalidade são multo reduzidas.
trata-se
, pOrtanto, de expectativas,
112 lU
A posição de Freire dimensiona a seriedade e as
preocupações necessárias ao tratamento dessa problemática,
assumindo-se pós-moderno crítico. Esse posicionamento pós-
moderno crítico face à diversidade cultural na busca da construção
da interculturalidade e multiculturalidade é desafiante e necessita
de uma criteriosa análise e de uma prática conseqüente a fim de
que não se confunda justaposição de culturas, ou dominação de
uma cultura sobre várias, com uma situação rnulticultural, de
multiculturalismo ou de multiculturalidade construída pela
interculru ralidade.
A necessidade de retomada da radicalidade, da criticidade
e sua prática, a distinção entre uma pós-modernidade
progressista e uma conservadora, neoliberal - rejeitando essa
última -, a reafirmação da opção pelos excluídos, subordinados
(FREIRE, 1992) que orienta a crítica e lhe dá direcionalidade,
não dão margem a nenhuma dúvida. Como afirma inicialmente,
A Pedagogia da esperança: um reencontro com a
pedagogia do oprimido é um livro assim, escrito com
raiva, com amor, sem o que não há esperança. Uma defesa
da tolerância, que não se confunde com a conivência, da
radicalidade; uma crítica ao sectarismo, uma compreensão
d~ pós-modernidade progressista e uma recusa à
conservadora, neoliberal (FRElRE, 1992, p.12).
Nessa perspectiva, encontramo-nos atualmente em uma
situação de diversidade cultural ou pluriculturalismo, não ainda
em uma situação de multiculturalidade, enquanto uma
configuração social consolidada e caracterizadora da pós-
modernidade/ mundo.
Ele pensa que a multiculturalidade não pode existir
"como um fenômeno espontâneo", mas apenas se for "criado,
produzido politicamente, trabalhado, a duras penas, na história"
114
(FRElRE, 1992, p. 157). Estamos diante de um fato social: a
diversidade cultural ou a pluralidade de culturas
( luriculturalidade). Essa pode ser tomada como uma das
c~racterísticas da pós-modernidade/mundo, fruto dos processos
de globalização vividos, sobretudo, nos últimos cinqüenta anos,
os quais provocaram as diferentes e novas transculturações em
toda a Terra, mas que ainda não permitem caracterizar a
sociedade atual como multicultural produzida pela
interculturalidade. As diferentes culturas ou traços culturais de
uma mesma cultura nacional, ainda se encontram justapostas/
os ou em situações de dominação e subalternidades como
condição predominante. O desafio é transformar essa
pluriculturalidade ou diversidade cultural, através do diálogo
crítico entre as culturas e das culturas (inrerculruralidade), numa
multiculturalidade.
A multiculturalidade só acontecerá a partir de uma
construção desejada política, cultural e historicamente. É
diferente da pluriculturalidade que não é resultado de uma ação
intencional, voluntária e politicamente con stru ída. A
multiculturalidade, decorrente de um processo consciente de
diálogo entre culturas ou de traços culturais numa mesma
cultura (interculturalidade), se caracterizará como "invenção
da unidade na diversidade. Por isso é que o fato mesmo da
busca da unidade na diferença, a luta por ela, como processo,
significa já o começo da criação da multiculturalidade"
(FREIRE, 1992, p. 157).
As justaposições de culturas, resultantes dos processos de
globalização, que configuraram a pós-modernidade/mundo,
~ão caracterizam per se um mundo rnulticultural nem
lntercultural. Indicam apenas uma situação de diversidade
cultural ou uma pluriculruralidade. além de configurar um
desafio à convivência dessas diferentes culturas ou traços
culturais em presença. Segundo Freire (1992, p. 157),
115
A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade
A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade
A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade
A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade
A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...
RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...
RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...Débora Oyayomi Araujo
 
As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.
As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.
As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.Fábio Fernandes
 
Listas g ts. dia 15
Listas g ts. dia 15Listas g ts. dia 15
Listas g ts. dia 15GEMFILOSOFIA
 
Paper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuhPaper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuhcitacoesdosprojetos
 
Manual para o uso não-sexista da linguagem.
Manual para o uso não-sexista da linguagem.Manual para o uso não-sexista da linguagem.
Manual para o uso não-sexista da linguagem.Fábio Fernandes
 
Reflexões sobre o sexismo na linguagem.
Reflexões sobre o sexismo na linguagem.Reflexões sobre o sexismo na linguagem.
Reflexões sobre o sexismo na linguagem.Fábio Fernandes
 
Texto 3 -Educação intercultural
Texto 3 -Educação interculturalTexto 3 -Educação intercultural
Texto 3 -Educação interculturalVanubia_sampaio
 
A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...
A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...
A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...revistas - UEPG
 
Diversidade de Gênero na Gestão Escolar
Diversidade de Gênero na Gestão EscolarDiversidade de Gênero na Gestão Escolar
Diversidade de Gênero na Gestão EscolarLIMA, Alan Lucas de
 
Superar o racsimo na escola
Superar o  racsimo na escolaSuperar o  racsimo na escola
Superar o racsimo na escolacenpah
 
Texto 2 - Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...
Texto 2 -  Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...Texto 2 -  Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...
Texto 2 - Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...Vanubia_sampaio
 
Professor coautor na formacao da identidade nacional brasileira
Professor coautor na formacao da identidade nacional brasileiraProfessor coautor na formacao da identidade nacional brasileira
Professor coautor na formacao da identidade nacional brasileirahistoriapucgoias
 

Mais procurados (19)

RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...
RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...
RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DO ARTIGO 26A...
 
True (1)
True (1)True (1)
True (1)
 
As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.
As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.
As diretrizes curriculares para a educação das relações étnico raciais.
 
N21a03
N21a03N21a03
N21a03
 
Aula 7
Aula 7Aula 7
Aula 7
 
Listas g ts. dia 15
Listas g ts. dia 15Listas g ts. dia 15
Listas g ts. dia 15
 
Paper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuhPaper de dimas brasileiro veras na anpuh
Paper de dimas brasileiro veras na anpuh
 
Manual para o uso não-sexista da linguagem.
Manual para o uso não-sexista da linguagem.Manual para o uso não-sexista da linguagem.
Manual para o uso não-sexista da linguagem.
 
Reflexões sobre o sexismo na linguagem.
Reflexões sobre o sexismo na linguagem.Reflexões sobre o sexismo na linguagem.
Reflexões sobre o sexismo na linguagem.
 
Texto 3 -Educação intercultural
Texto 3 -Educação interculturalTexto 3 -Educação intercultural
Texto 3 -Educação intercultural
 
A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...
A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...
A voz e vez dos barqueiros: um diálogo crítico de reinvenção freireana frente...
 
Vol5afr
Vol5afrVol5afr
Vol5afr
 
Listas g ts. pdf
Listas g ts. pdfListas g ts. pdf
Listas g ts. pdf
 
Diversidade de Gênero na Gestão Escolar
Diversidade de Gênero na Gestão EscolarDiversidade de Gênero na Gestão Escolar
Diversidade de Gênero na Gestão Escolar
 
Superar o racsimo na escola
Superar o  racsimo na escolaSuperar o  racsimo na escola
Superar o racsimo na escola
 
Texto 2 - Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...
Texto 2 -  Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...Texto 2 -  Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...
Texto 2 - Currículo Intercultural e o processo de implantação da Lei 11. 645...
 
Superando o racismo na escola
Superando o racismo na escolaSuperando o racismo na escola
Superando o racismo na escola
 
Professor coautor na formacao da identidade nacional brasileira
Professor coautor na formacao da identidade nacional brasileiraProfessor coautor na formacao da identidade nacional brasileira
Professor coautor na formacao da identidade nacional brasileira
 
diversidade e currículo
 diversidade e currículo diversidade e currículo
diversidade e currículo
 

Semelhante a A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade

Multiculturalismo (1)
Multiculturalismo (1)Multiculturalismo (1)
Multiculturalismo (1)Luiz Dias
 
Reunião pedagógica 03 06 2016
Reunião pedagógica 03 06 2016Reunião pedagógica 03 06 2016
Reunião pedagógica 03 06 2016Fábio Peixoto
 
Multiculturalismo
MulticulturalismoMulticulturalismo
Multiculturalismoafermartins
 
TÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismo
TÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismoTÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismo
TÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismoIsrael serique
 
Ensino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica culturalEnsino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica culturalmontorri
 
Ensino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica culturalEnsino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica culturalmontorri
 
Seminário sobre etnia raça e gênero no contexto escolar
Seminário sobre etnia raça  e gênero no contexto escolarSeminário sobre etnia raça  e gênero no contexto escolar
Seminário sobre etnia raça e gênero no contexto escolarFabiane Silva dos Santos Apio
 
Pcn história
Pcn históriaPcn história
Pcn históriacmsrial13
 
Identidades brasileiras
Identidades brasileiras Identidades brasileiras
Identidades brasileiras Fabiana Vallina
 
A história na educação básica selva
A história na educação básica selvaA história na educação básica selva
A história na educação básica selvaCélia Barros
 
Povoado cruz contribuições aos estudos dos quilombos
Povoado cruz   contribuições aos estudos dos quilombosPovoado cruz   contribuições aos estudos dos quilombos
Povoado cruz contribuições aos estudos dos quilombosAlunos da UNEB
 
Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...
Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...
Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...Wellington Oliveira
 
Texto Da Prof. Regina
Texto Da Prof. ReginaTexto Da Prof. Regina
Texto Da Prof. Reginaculturaafro
 
3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdf
3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdf3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdf
3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdfLucasSouza869164
 

Semelhante a A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade (20)

As relações etnico raciais
As  relações etnico raciaisAs  relações etnico raciais
As relações etnico raciais
 
Multiculturalismo (1)
Multiculturalismo (1)Multiculturalismo (1)
Multiculturalismo (1)
 
Reunião pedagógica 03 06 2016
Reunião pedagógica 03 06 2016Reunião pedagógica 03 06 2016
Reunião pedagógica 03 06 2016
 
Multiculturalismo
MulticulturalismoMulticulturalismo
Multiculturalismo
 
Artigo de dimas brasileiro veras na anpuh em 2009
Artigo de dimas brasileiro veras na anpuh em 2009Artigo de dimas brasileiro veras na anpuh em 2009
Artigo de dimas brasileiro veras na anpuh em 2009
 
TÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismo
TÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismoTÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismo
TÓPICOS EM EDUCAÇÃO II: Resumo do 2º bimestre multicuralismo
 
Monografia Cintia Pedagogia 2011
Monografia Cintia Pedagogia 2011Monografia Cintia Pedagogia 2011
Monografia Cintia Pedagogia 2011
 
Ensino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica culturalEnsino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica cultural
 
Ensino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica culturalEnsino de história e diversidade étnica cultural
Ensino de história e diversidade étnica cultural
 
Seminário sobre etnia raça e gênero no contexto escolar
Seminário sobre etnia raça  e gênero no contexto escolarSeminário sobre etnia raça  e gênero no contexto escolar
Seminário sobre etnia raça e gênero no contexto escolar
 
Educacao ed1
Educacao ed1Educacao ed1
Educacao ed1
 
Pcn história
Pcn históriaPcn história
Pcn história
 
Pcn história
Pcn históriaPcn história
Pcn história
 
Identidades brasileiras
Identidades brasileiras Identidades brasileiras
Identidades brasileiras
 
Vladimir leni madeira cavalheiro
Vladimir leni madeira cavalheiroVladimir leni madeira cavalheiro
Vladimir leni madeira cavalheiro
 
A história na educação básica selva
A história na educação básica selvaA história na educação básica selva
A história na educação básica selva
 
Povoado cruz contribuições aos estudos dos quilombos
Povoado cruz   contribuições aos estudos dos quilombosPovoado cruz   contribuições aos estudos dos quilombos
Povoado cruz contribuições aos estudos dos quilombos
 
Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...
Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...
Multiculturalismo, diferença e identidade implicações no ensinoda história pa...
 
Texto Da Prof. Regina
Texto Da Prof. ReginaTexto Da Prof. Regina
Texto Da Prof. Regina
 
3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdf
3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdf3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdf
3_ANO_EM_CI_HUMANAS_PLANO_DE_CURSO_2024_ENSINO_MEDIO.pdf
 

Último

PLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptx
PLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptxPLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptx
PLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptxSamiraMiresVieiradeM
 
Portfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdf
Portfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdfPortfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdf
Portfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdfjanainadfsilva
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdfAula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdfFernandaMota99
 
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxJOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxTainTorres4
 
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.Mary Alvarenga
 
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreCIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreElianeElika
 
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptxSlides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
Libras Jogo da memória em LIBRAS Memoria
Libras Jogo da memória em LIBRAS MemoriaLibras Jogo da memória em LIBRAS Memoria
Libras Jogo da memória em LIBRAS Memorialgrecchi
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...azulassessoria9
 
Bullying - Texto e cruzadinha
Bullying        -     Texto e cruzadinhaBullying        -     Texto e cruzadinha
Bullying - Texto e cruzadinhaMary Alvarenga
 
GÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - Cartum
GÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - CartumGÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - Cartum
GÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - CartumAugusto Costa
 
Pedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptx
Pedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptxPedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptx
Pedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptxleandropereira983288
 
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptxSlides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
Bullying - Atividade com caça- palavras
Bullying   - Atividade com  caça- palavrasBullying   - Atividade com  caça- palavras
Bullying - Atividade com caça- palavrasMary Alvarenga
 
Rotas Transaarianas como o desrto prouz riqueza
Rotas Transaarianas como o desrto prouz riquezaRotas Transaarianas como o desrto prouz riqueza
Rotas Transaarianas como o desrto prouz riquezaronaldojacademico
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManuais Formação
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfLeloIurk1
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...Rosalina Simão Nunes
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdflucassilva721057
 

Último (20)

PLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptx
PLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptxPLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptx
PLANOS E EIXOS DO CORPO HUMANO.educacao física pptx
 
Portfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdf
Portfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdfPortfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdf
Portfolio_Trilha_Meio_Ambiente_e_Sociedade.pdf
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdfAula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
 
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxJOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
 
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
 
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreCIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
 
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptxSlides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
 
Libras Jogo da memória em LIBRAS Memoria
Libras Jogo da memória em LIBRAS MemoriaLibras Jogo da memória em LIBRAS Memoria
Libras Jogo da memória em LIBRAS Memoria
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
 
Bullying - Texto e cruzadinha
Bullying        -     Texto e cruzadinhaBullying        -     Texto e cruzadinha
Bullying - Texto e cruzadinha
 
GÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - Cartum
GÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - CartumGÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - Cartum
GÊNERO TEXTUAL - TIRINHAS - Charges - Cartum
 
Pedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptx
Pedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptxPedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptx
Pedologia- Geografia - Geologia - aula_01.pptx
 
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptxSlides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
 
Bullying - Atividade com caça- palavras
Bullying   - Atividade com  caça- palavrasBullying   - Atividade com  caça- palavras
Bullying - Atividade com caça- palavras
 
Rotas Transaarianas como o desrto prouz riqueza
Rotas Transaarianas como o desrto prouz riquezaRotas Transaarianas como o desrto prouz riqueza
Rotas Transaarianas como o desrto prouz riqueza
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
 

A educação e a diversidade cultural na pós-modernidade

  • 1. João Francisco E A EDUCAÇÃO: ~~QUÊ?? A Educação na Sociedade e/ou a Sociedade na Educação Departamento de Fundamentos Sociofilosójhos da Educação NUPEP (Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação deJovens e Adultos e em Educação Popular) Centro de Educação Universidade Federal de Pernambuco Recife, Pernambuco, Brasil Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional Unidade de Educação de Adultos Instituto de Educação e Psicologia Universidade do Minha Braga - Portugal Janeiro 2004 EDIÇÔES liB.~GAÇO Recife • 2004
  • 2. Copyright©2004, João Francisco de Souza Capa e projeto gráfico Edições Bagaço Revisão Rosário de Sá Barreto S72ge PeR-BPE ISBN: 85-7409-780-2 Souza, João Francisco de, 1944- E a educação: iiquê??; a educação na sociedade e/ou a sociedade na educação / João Francisco de Souza. - Re- cife: Bagaço, 2004. 360p. 1. EDUCAÇÃO 2. SOCIOLOGIA EDUCACIO- NAL. 3.EDUCAÇÃO - FINS E OBJETIVOS. 4. EDU- CAÇÃO DE ADULTOS. r. Título. CDU 37 CDD 370 Produção Gráfica: Edições Bagaço Rua dos Arcos, 150 - Poço da Panela CEP: 52061-180 Recife-PE Tel: (81) 3441.0133 /3441.0134 E-mail: bagaco@bagaco.com.br www.bagaco.com.br Impresso no Brasil- 2004 "Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa narúral, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar." Bertold Bretch (1898-1956)
  • 3. profundas desigualdades econômico-sociais, inclusões perversas e de hierarquias que a confrontação dos diferentes povos e culturas provocou a partir daquele expancionismo europeu, também, simultaneamente, geraram vida, liberdade, epistemogêneses, aculturações, recriações, miscigenações, lutas por relações mais igualitárias e horizontais, figurações e configurações que hoje são a riqueza da pós-rnodernidade/ mundo. Foi desencadeado, portanto, um amplo processo de transculturação "não só fundamental, mas permanente e reiterado. Com altos e baixos, avanços e recuos, acomodações e rupturas" (IANNI, 2000, p. 76) vem atravessando, constituindo, construindo, reconfigurando e imprimindo outras configurações à história humana e aos diferentes grupos que vão se conformando e fazendo essa mesma história. O problema que se apresenta é, pois, o da convivência democrática nessa diversidade cultural, a través do diálogo entre as diferentes expressões culturais, possibilitando a constituição de um espaço/ mundo rnulticultural. Nessa direção, parecem necessárias algumas considerações a mais sobre a configuração do contexto que constitui a moldura e o conteúdo para o debate da diversidade cultural e suas implicações nos processos educativos. Nessas considerações, poderão ser evidenciadas as exigências da educação necessária ao "tecido do novo clima cultural" (FRElRE, 1967, p. 46) em que nos encontramos. Par-se-a, então, uma necessária configuração do contexto da pós- modernidade/mundo, ampliando as indicações feitas anteriormente, mas, ainda, não exaustivas, apenas, para, em seguida, identificar as exigências de uma educação no interior dessa diversidade cultural, ou identificar os termos em que se coloca a questão da educação na/para a pós-modernidade/ mundo, escolar e não-escolar. 64 3.1.1. O Debate Sociológico sobre a Diversidade Cultural As indicações que vimos fazendo são suficientes para se caracterizar o atual contexto mundial como resultado dos diversos e diferentes processos de transculturação experimentados na Terra ao longo dos últimos 500 anos e, de modo especial, nos últimos 50 anos (IANNI, 2000, p. 91-120), expressos pela diversidade cultural conformada desde diferentes recortes, como os étnico-raciais, religiosos, profissionais, de classe, de gênero, de idades, entre outros tantos possíveis. _Esse_ contexto coloca como problem~~ais tanto as djfLculda.des-(j) da convivência entre os diferentes, qua~do 7 --:,espeito às diferen~ e a urgência de _d~ruir não somente as ~remas de~gualdades econômico-sQ.ç:~ as incl'üS.§es pcrversa~ o desempreg~eStl~ral, as hierarguias21rutoS daS-. explorações, dominações e subordingções, ..mas t..a·mbé-m-a-s- exclusões histórico-culturais. A importante pergunta possível de ser formulada é sobre ' as possibilidades do diálogo entre as diferentes culturas (interculturalidade) que vão se conformando a partir de diversos recortes, como os indicados, e outros possíveis. Neste trabalho interessa, sobretudo, a composição do cenário para uma posterior, rigorosa e minuciosa pesquisa sobre a questão da educação, tanto escolar como não-escolar. A questão ed.!:lcaci!-)J1al provoca, no interior de todas as configuraç~ Culturais dos diferentes grupos humanos, uma diferenciação (f) substanti~ intragrupal, ta~ entr~ os indivíduos como entre os subgrupos possíveiSi1o iíiteri()r de um-grupo cultural, além, ~ém, e especialmente, intergrupal no interior de uma mesma cultura e entre culturas. --- -- - 65
  • 4. As diferentes figuras, figurações, transfigurações e configurações34, entre os grupos culturais e no interior dos diversos grupos culturais, são caracterizadas pelos recortes de classes, etn ias, regiões, religiões, profissões e nações. Esses recortes vêm sendo construidos ao longo desses cinco séculos, especificamente nos últimos cinqüenta anos, e exigem uma intensa reflexão "sobre o ocidentalismo, o orientalismo, a mundialização e a cultura, a cultura e o imperialismo, a modernidade, o mundo e outros temas relativos a impasses e perspectivas das culturas e civilizações" (IANNI, 2000, p. 76). Caracterizam a nossa contemporaneidade como de uma enorme diversidade cultural, provocando - no interior da tentativa de certas forças econômico-sociais e culturais de homogeneizar - os riscos de uma fragmentação da humanidade, se já fragmentados não nos encontramos, em vez da construção de uma humanidade multicultural. Os problemas, os desafios, as possibilidades, as ameaças e as probabilidades engendradas são, simultaneamente, enormes tanto do ponto de vista intelectual quanto político. Amedrontam-nos, levam-nos a novas perguntas e ações ao lado de muitos que se paralisam. Seremos capazes de responder a esses desafios positivamente? Essa resposta se expressaria por uma humanização crescente de todos os seres humanos evidenciada num m undollil term ul ticul tu r--ª.l...J:rí ricO::; democrático, polifônico e multicolorido, no q~aC as pessoas, em sua singularidade, conformariam uma 34 "São figuras e figurações vivas e vividas, ativas e empenhadas, cômicas e trágicas, dramáticas e épicas. No limite, estão sempre vivificadas na trama das relações sociais, no jogo das forças sociais, no conrraponto diversidade- desigualdade, na dialética alienação-emancipação. Alguns se dedicam a tornar os tipos e tipologias abstrações convenientes à reflexão sobre a sociedade. Outros se dedicam a tomar os tipos e as ripologias como figuras e figurações de movimentos e configurações da história" (IANNI, 2000, P: 282). 66 comunidade, ainda que com conflitos, mas sem violências ou antagonismos, desigualdades econômico-sociais e exclusões culturais exasperantes? Ou vamos perder as batalhas e a guerra pela humanização do ser humano em sua integral idade e a humanização de todos os seres humanos da Terra? A ampla tematização dessas problemáticas está a atrair profundos olhares e a provocar ricos debates sobre a questão da diversidade cultural, das probabilidades d~multiculturalidade J e potencial idades dati.!:!!.~l.c.llrmalidade;t±specialmente sobre as responsabilidades dos processos educativos, escolares ou não, face a essas problemáticas. A diversidade cultu.Bb não sendo um fenômeno social recente, tem hoje, no entanto, .urna novidade que se situa no fato de esses temas terem se colocado no centro da reflexão política e sociológica na última década. Isso se explica, no nível internacional, pela queda do socialismo realmente existente que possibilitou a reinsurgência dos nacionalismos nas regiões em que predominou de maneira soberana, impedindo -deexpressar- se plenamente a diversidade desses países por causa de uma definição política. (...). Em relação a nosso país, talvez um dos primeiros elementos que tornou a colocar em evidência o sentido da diversidade existente na América Latina e os fenômenos sociais que ela tem encarnado historicamente, gerou-se com os festejos comemorativos do V Centenário da chegada de Cristóvão Colombo a nosso continente (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 111-112)35. 35 O autor se refere ao México, mas, talvez, o mesmo se possar afirmar sobre o Brasil e o quinto centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral às terras que ~a ser o Brasil] A diversidade cultural, no entanto, com certeza, é um patrimônio mundial e de cada uma de nossas nações, no concerto internacional ainda desconsertado.
  • 5. Adquiriram, assim, esses temas um status sociológico e antropológico inquestionável e de suma importância para/na pós- modernidade/mundo. A partir, portanto, das conflitivas, ambíguas e arriscadas relações entre os países e, no interior de cada país, entre seu Estado e suas nações ou classes sociais - nessas, as relações entre os diferentes grupos étnico-sociais, classes, lj1 I' , . . I d~ segmentos cu turais e as ternancas que suscitam -, tem-se co oca o ? o debate sob outros ângulos. Uma das importantes perspectivas ~ t~m sido as chances de diálogo entre as culturas ou entre :9.5 ~ diversos traços de uma mesma cultura, se~esquecer as guerras, f. as conquistas, dizimações, tensões e acomodações, mas relevando ~ --ª-Lpossíyeis transculturações, que vêm se dando, e as probabilidades e possibilidades da inter/multiculturalidade crítica. Esse debate com suas diversas perspectivas parece abrir outros horizontes não apenas para explicação/compreensão mas também para convivência e agradabilidade da existência humana na Terra. Pois, "ao lado das justaposições, imitações, paródias ou caricaturas, ocorrem tanto acomodações como recriações, estas muitas vezes originais e surpreendentes" (IANNI, 2000, p. 78). As recriações originais e surpreendentes têm revelado que A transculturação não nega a permanência ou a reiteração de singularidades ou identidades. Ao contrário, muitas situações de interdependência e tensão favorecem a recriação dessas e outras particularidades. Acontece que a transculturação pode propiciar a decantação de elementos, traços ou potencialidades insuspeitados antes do intercâmbio (IANNI, 2000, p. 77). Esses traços ou potencialidades insuspeitados nos mostram que algo novo sempre pode acontecer e alentam nossas esperanças nas probabilidades e possibilidades de uma inter/ 68 toI;- ~ x: ~ ~ [ li multiculturalidade crítica. Os cenários passam, pois, a ser ~aracterizados por um mosaico multicolorido de diferentes traços ou um coral de múltiplas vozes. Surgem, portanto, vários grupOS culturais baseados em diferentes recortes étnicos, de classe, gênero, idades, orientações sexuais, políticas e opções profissionais, entre outras possibilidades, no interior desse amplo e profundo processo de transculturaçâo. Isso gera a diversidade cultural não apenas entre as nações, mas no interior de cada nação e mesmo no interior de um mesmo grupo cultural. Pode nos dar argumentos para lutar por outras formas de convivência entre os diferentes, mas embarcados numa mesma aventura de construção de nossa humanidade individual e coletiva. Essa configuração da sociedade hodierna leva a tentativas de compreensão de nosso mundo, ainda que dominado pelo capitalismo como modo de produção e processo civilizatório. Percebe-se que esse domínio não é absoluto nem impede ações de transformação com outras possibilidades de modos de pensar, agir e emocionar-se. Esse mundo está permeado de tensões, contradições, ambigüidades, portanto, eivado de possibilidades de superar-se. Essas são decorrentes de uma.:mesc1a de cristianismo, islarnismo, budismo e confucionismo, animismo, além das diferentes ciências e tecnologias, bem como dos múltiplos interesses expressos nos diversos modelos ideológico- políticos de organização da economia, de exercício do poder e produção/apropriação do saber. Tudo isso tem provocado diversas implicações socioculturais, econômicas, políticas, interpessoais e subjetivas, conformando vários processos civilizatórios. "Eles se desenvolvem, entrecruzam, tensionam, mutilam, fertilizam e transfiguram, em geral tendo por referência o capitalismo, mas sempre produzindo e reproduzindo ideologias, utopias e nostalgias" (IANNI, 2000, p. 95). Por isso, podemos, como nos convida Ianni, fazer outra leitura da existência dos povos na história. 69
  • 6. A história dos povos e coletividades, das nações e nacionalidades ou das culturas e civilizações pode ser lida como uma intrincada, contínua, reiterada e contraditória história de um vasto processo de transculruração, de par com a ocidentalização, a orientalização, a africanização e a indigenização. Um processo sempre permeado de identidades e alteridades, tanto quanto de diversidades e desigualdades, mas compreendendo sempre o contato e o intercâmbio, a tensão e a luta, a acomodação e a mutilação, a reiteração e a transfiguração (IANNI, 2000, p.99-100). ,...,.,. Nessa perspectiva, cabe-nos examinar as possibilidades e dificuldades da construção de outras probabilidades para a existência humana na convivialidade (multiculturalidade) e seus impactos específicos na formação do sujeito humano para assumir suas diferentes singularidades (etnia, gênero, idade, profissão, sexo, ideologia, geografia e história) num diálogo mais agradável (inrerculruralidade), no qual todos possamos crescer humanamente e inserir-nos no conjunto da humanidade a partir do debate da diversidade cultural, da inter/multiculruralidade como provável ituação, condição da pós-modernidade/mundo. Desde nossas diferenças (identidades), é necessário perscrutar possibilidades de convivência e crescimento conjunto para fazer face aos desafios atuais, .tanto no interior de nossas nações como em suas inter- relações (rnultilintercul turalidade- mundo pós-moderna). )?J (,- L r~ oI, 1"' I-f 3.1.2. As Exigências do Contexto Sociológico Talvez se possa, como fazem alguns, identificar a configuração atual provocada pelas transculturações como uma situação de eclosão de "uma revolução cultural nuclear" a partir de três mudanças nodulares. Essas estão ocorrendo, para se colocar 70 um marco, desde 1968, no mundo inteiro: "mudanças de atitudes diante da instituição pública, revisão da moral individual, refação do estatuto da família" (COELHO, 2000, p. 30)36. Trata-se de uma revolução múltipla em seus aspectos, ao contrário das anteriores, e ao mesmo tempo indivisível em seus efeitos e objetivo final. (...).... é uma autêntica revolução porque voltou atrás para recuperar a dimensão corporal da existência negada pelo cristianismo " e por suas versões materialistas. Mas suas contradições não são maiores que as das outras revoluções culturais que a precederam. E, como não unitária, fundamentalista ou integrista, tem condições de ir mais longe. Existiu uma revolução cultural em 'maio de 68' e a revolução se fez. Não se fez do mesmo modo por toda parte, fez-se mais num lugar do que em outro, mais ali do que aqui. Mas se fez (COELHO, 2000, p. 33). Essa revolução, permeada de contradições e ambigüidades - mas, como afirma Coelho, nem maiores nem menores que as contradições e ambigüidades das anteriores revoluções -, está a desencadear mudanças nos conceitos de identidade e de sujeito ... aspectos de nossas identidades que surgem de nosso "pertencimento" a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, 36 Não esquecer de confrontar essas reflexões de Coelho com as feitas anteriormente, P: 23-26: elementos contexrualizadores e exigências às Ciênccias Humanas/Sociais. 37 Trata-se de algumas versões do cristianismo. Não creio, porém, que se possa imputar à mensagem de Jesus Cristo o desprezo ao corpo que se desenvolveu em algumas culturas do Ocidente. 71
  • 7. religiosas e, acima de tudo, nacionais. '" as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou fragmentadas .... complexidades que a noção de descentração, em sua forma mais simplificada, desconsidera .... O próprio conceito com o qual estamos lidando, "identidade", é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova (HALL, 2000, p. 8). Encontramo-nos no interior de situações muito complexas e plurais. De um lado;' aponta para a globalização do mundo; de outro, para a diversidade gerada pela transculturação. Corremos, então, o risco de já nos encontrarmos face à fragmentação da humanidade, em vez de estarmos diante de uma multiculturalidade. ?or isso, não tem sido fácil assumi-Ias do ponto de vista intelectual nem político, entretant~ão podemos deixar de fazê-Io. Essas situações se transfor~m em questões de sobrevivência, em qualquer parte da pós-modernidade/mundo, mais especialmente em países como os da América Latina, África e Ásia. Neles, uma extrema concentração de renda se desenvolve em meio a um mar crescente de misérias, de exclusões ou inclusões' perversas no sistema mundo. Poder-se-ia formular a questão nos termos em que o faz Rodriguez-Ledesma para o caso do México. Não é fácil assumir plenamente a pluralidade que conforma nosso mundo, e no caso particular de nosso país, os diversos elementos identitários que convivem aqui e agora em uma sociedade marca da tanto pelo atraso econômico como pela ausência total até muito pouco tempo, das mínimas condições para o exercício de uma vida política 72 democrática; ambos elementos definitórios coexistem dentro de uma conformação social caracterizada historicamente pela existência de uma grande diversidade cultural (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 111). E como ainda insiste Rodríguez-Ledesma (1998, p. 112- 113): A complexidade do problema significa, entre outras coisas, um ponto cardeal: o reconhecimento e a aceitação da existência de outro equiparável em valor e valores a nós próprios. Mas este é tão somente um aspecto do tema. O outro, talvez o mais problemático, é o conformado na atual discussão sobre o pluralismo e a tolerância. (...). Isso significa que, ao reconhecer o outro, estaremos reconhecendo-nos a nós próprios. Conceber a existência do outro é avançar na comprensão e admissão de nossa própria historicidade. Se o outro existe e com ele certos valores diante da vida, da morte, do amor, da educação, do progresso, enfim, frente a tudo que é concebido como sua existência, possibilita que nós próprios percebamos os limites históricos, geográficos, políticos, numa palavra, culturais do nosso próprio sistema de valores. ~ P/VO(1'Owr- l>-.r .--J De fato, não é facil admitir que nosso próprio sistema de valores é relativo. Nossa formação nos convenceu de que nossos valores são os valores. Se não fora os valores, buscaríamos outros. Guardadas todas as precauções, proporções e as especificidades conjunturais, essa problemática se revela o terna para a nossa existência pessoal, coletiva e acadêmica, especialmente, para responder às exigências que possam ser identificadas para os processos educativos na busca da formação humana do sujeito humano (nosso projeto histórico). 73
  • 8. É uma problemática muito complexa "que, praticamente, contém tantas facetas como problemas de identidade e diversidade cultural na sociedade, tanto no nível mundial como no nacional, que, evidentemente, não é casual que se tenha evidenciado nas últimas décadas" (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 112). Nas Ciências Humanas/Sociais, de modo particular na Antropologia, na Sociologia e na Pedagogia, torna- se imprescindível assumir e a problemática constituída pelo tema da diversidade cultural, isto é, da ampla gama de possíveis círculos identitários existentes dentro de uma sociedade, para que de forma racional, consciente e operativa assumam os desafios que a aceitação da presença desse espectro imenso de possibilidades representa para a vida social em geral, e para os processos educativos, em particular (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 112). É preciso, pois, examiná-Ia sob todos os ângulos e de uma maneira distinta. Para isso, é preciso adotar, como propõe lanni (2000, p. 95), uma "outra perspectiva na análise da cultura": "cabe experimentar a perspectiva aberta pela idéia de contato, intercâmbio, permuta, aculturação, assimilação, hib ridação ", mestiçagem ou, mais propriamente, transcultutação". Essa perspectiva se aproxima da proposta de Rodríguez-Ledesma (1998, p. 112), para quem "falar de definições culturais dos conceitos que, graças à hegemonia de uma particular concepção do mundo ocidental e moderna, se pretendem a-históricos, é começar a romper justamente essa noção de universalidade". f É necessário realizar, portanto, sobre o termo cultura, um processo de recognição que o apreenda em sua complexidade 38 Ver García-Canclini, 200 I. 74 e em seus interstícios mais recônditos, percebendo suas dimensões pessoais, interpessoais, locais, regionais e universais. Esse é o desafio acadêmico. É importante captá-Ias em suas inter-relações dialéticas, escapando dos localismos asfixiantes e universalismos estéreis. Esse processo de recognição colocar-nos-á em outra rotação para nos situar no contexto da pós-modernidade/mundo, pois A valoração e a admissão da existência de diferentes culturas, de diferentes grupos da sociedade que não compartilham necessariamente nossa apreciação sobre tudo o que nos define, é, apenas, iniciar a concepção e compreensão dos temas que, desde duas décadas, estão presentes com maior assiduidade na reflexão sociopolítica, pluralidade, tolerância, interculturalidade e, no que corresponde a essas reflexões, ao mais geral da democracia' (RODRÍGUEZ-LEDESMA, 1998, p. 112). A questão d{diversidade cultural eviden~ortanto, o problema das (im)p.ossibilidades da convivência (inter/intra) grupal das diferenças etno-culturais, de gênero, de religiões, de erspectivas políticas, bem como da necessidade de urgentemente eduzir as desigualdades econômico-sociais e superação das exclusões histórico-culturais. No limite, tratar-se-á da construção de uma democracia ou processo de democratização (SOUZA, 1999) cuja ex ressão seria uma sociedade inter/rnulticultural crítica s problemas serem enfrentados diuturnamenre, inclusive nos processos educativos, serão: @' Como as singularidades individuais e grupais vão conviver, sem ser essa convivência uma mera justaposição (pluriculturalidade), mas a conformação de uma comunidade humana em sua singularidade convivendo 75
  • 9. G pelo diálogo (interculturalidade) de tal maneira que todos ganhem e possam se enriquecer material e culturalmente (rnulriculturalidade) ? • I Então, como conceber e manejar o problema das identidades socioculrurais que, ao configurar as singularidades, geram as diferenças e, muitas vezes, as desigualdades econômico-sociais e as exclusões histórico- culturais? Identidade X Diversidade na Pós-modernidade/ Mundo Inicialmente, é importante salientar que não se está a buscar uma convivência sem conflitividade; mas entrar em uma luta pela reduçã;'-;o máximo, das d~ des e exclusõ~s (SÃfrrOS;T9 ,provoca oras de violências e antagonismos que estão se tornando insuportáveis. Portanto, temos que pensar uma ideiWêla~ cUlturãD seja de um indivíduo ou de uma coletividade, não importa o tamanho, como uma construção a pajtit.da.ccnvizência com as diferenças singlllarizadQras e não ~equalizadoras de todas~uaisquer naturezas. Não se trata, na construção das identidades, de buscar @ uma espécie de marca distintiva com a qual se nasce ou como de uma roupa da qual não pudéssemos nos livrar e que elimina a possibilidade de pertencer a outros grupos identitários. Evidentemente, isso não é assim, e, justamente, porque os indivíduos pertencem (ou podem fazê-lo) simultaneamente a diversos âmbitos identitários, a definição do sentido da identidade deve fazer-se em função de características analíticas sociológicas e políticas específicas (RODRÍGUEZ- LEDESMA, 1998, p. 113). 76 Trata-se, po~ da construção efetiva de um sujeito social -e individual capaz de administrar e organizar as diferentes ,) dimensões da experiência coletiva e das singularidades que essa vai configurando. Segundo Dubet (1989, p. 536), A identidade social não é dada nem é unidimensional, mas resulta do trabalho de um sujeito que administra e organiza as diversas dimensões de sua experiência social e de suas identificações. O sujeito social é aquele que reúne os diversos níveis da identidade de maneira que se produza uma imagem subjetivamente unificada de si mesmo. Ao citar Dubet, entende Rodríguez-Ledesma que a identidade sociocultural é r~sultante da elaboração de um suje~to individual ou coletivo que maneja sua diversificada experiência ~e múltiplas identificações. Por isso, conclui: "as identidades se constroem, constiruem-se, a partir da participação de uma série de características definidas socialmente. Dessa forma, um único il}divíduo pode compartilhar diversas formas identitárias" (I~ODRIGUEZ- LEDESMA, 1998, p. 113). Atualmente, todos nós e cada um de nós, individualmente, compartilhamos, no interior dos processos de mudança, diversas experiências que nos levam a viverldife~ntes formas identitáriasl Essesprocessos de mudança - experimentados na pós-modernidadel mundo, tomados em conjunto - representam transformações tão fi.mdame.ntaise abrangentes q~e est~o a ~nrfigurar a própria pós- modernldade/mundo. ArlaentIdad~ Ino seu processo de conformação têm que manejar milhares de imagens, informações e situações. Entretanto, esses mesmos processos que rompem os antigos laços de pertença e enraizamento dão lugar à busca de uma instância que integre os diversos aspectos da vida social em uma identidade coletiva. Essa 77
  • 10. busca já não se deixa expressar em termos de progresso histórico ou de interesse de classe nem se reconhece no discurso individualista-utilitário do mercado. Nutre-se de desejos e temores que nos remetem às necessidades de sociabilidade e segurança, amparo e certeza, enfim, de sentimentos compartilhados (LECHNER, 1992, p. 22). Essa busca de uma instância integradora da vida social (identidades coletivas) - que se nutre de desejos e medos tecidos pelas necessidades de sociabilidade e segurança, amparo e certezas - nos leva à superação da perspectiva de análise herdada do Iluminismo. Essa perspectiva analítica busca compreender a identidade a partir de um núcleo ou essência do ser para -1un.d . A • •• h-·- ~Erunnamenrar nossa existencra como sujeitos . umanos. ssa posição, por sua vez, se baseava numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. Esse indivíduo estava constituído por "centro" que conforma um núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a si mesmo - ao longo da sua existência. O centro essencial do eu era a identidadede uma pessoa (HALL, 2000, p. 9-10).~ A essa noção filosófica de sujeito, a reflexão sociológica desvela a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não é autônomo e auto-suficiente.Jli formado na relação com outras pessoas importantes para ele, que medeiam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos - uma cultura - dos mundos que ele/ela habita.! G. H. Mead, C. H. Cooleye os interacionistas simbólicos são, na sociologia, de acordo com Hall (2000, p. 11), as figuras- chaves que elaboraram esta concepção interativa da identidade e do eu. De acordo com essa visão, que se tornou a concepção 78 socio~ quest~oridade é fo~~ ®inter:ação entre O eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior, que é o eu real, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. Essas duas concepções de identidade/sujeito, ainda segundo Hall (2000:12), estão sofrendo mudanças. O sujeito, previamente vivido como detentor de uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceituado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. Essas situações, constatações, figurações, levam Rose (1998, p. 33) a afirmar que 1) 1C'1":" cll""n-r' c.J..~IG / ~d("Yd do-J Essas novas formas de pensar e agir não dizem respeito apenas às autoridades. Elas afetam cada um/a de nós, nossas crenças pessoais, desejos e aspirações: em outras palavras, nossa ética. As novas linguagens empregadas na construção, compreensão e avaliação de nós mesmos e dos outros têm transformado as formas pelas quais interagimos com nossos chefes, empregadores, colegas de trabalho, maridos, esposas, amantes, mães, pais, filhos/ as e amigos/as. Nossos mundos mentais têm sido reconstruídos: nossas formas de pensar e falar sobre nossos sentimentos pessoais, nossas esperanças secretas, nossas ambições e decepções. Nossas técnicas para administrar nossas emoções têm sido revolucionad~s. Nós nos tornamos seres intensamente subjetivos. Todos esses questionamentos/construções levam HaU (2000, p. 9) a constatar que estarnos a participar de um tipo diferente de mudança estrutural, consolidando, digo eu, uma 79
  • 11. sociedade pós-moderna/mundo. Essa mesma sociedade, ainda que predominantemente fragmentadora dos indivíduos e dos grupos, pode apontar em outras direções. As ~ paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, ... , no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de sentido -.de si estável é chamada, algllmas vezes, d~deslocamenl.o ou descentração do sujei~1 (HALL, 2000, p. 9). No interior dessa multidimensionalidade das transformações, corre-se um risco de banalização da questão das identidades, tornando-a um sLoganou um mero ornamento de discursos oficiais. Isso leva Rodríguez-Lesma (1998, p. 115) a afirmar: Atualmente, de forma lamentável, o problema das identidades está correndo o risco de converter-se em um lugar comum no interior da reflexão política em nosso país, isto é, em um dos conceitos de moda nos discursos dos funcionários, tal como aconteceu com os de "transição", "democracia" ou, em determinado momento, "solidaridade". De ·outro lado, a riqueza cultural - que representa a existência das identidades e as possíveis relações entre essas diferentes identidades - pode nos levar, se criarmos espaços de interlocução dos diferentes, a superar os perigos da fragmentação e de disputas intermináveis e oposições destruidoras, ou de redução a uma celebração móvel das diferenças, pela atuação no sentido de construir a inter/mulriculturalidade crítica. Se formos capazes de avançar nessa construção, a identidade será formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou 80 interpelados nos sistemas culturais que construímos, nos quais vivemos e poderemos existir humanamente. Estaremos a fazer uma importante construção de caráter histórico, e não biológico das identidades individuais e sociais. Em cada um de nós, há identificações contraditórias que nos empurram em diferentes direções, de tal modo que nossas identidades estão sendo continuamente deslocadas. No entanto, não se foge da necessidade de uma narração que nos garanta o sentimento de uma identidade uniflcada desde o nascimento até a morte. Ainda que essa não seja uma cômoda estória sobre nós mesmos, não pode deixar de ser uma confortadora narrativa do eu. Os sistemas de significação (significados e sentidos) e representação cultural se multiplicam: somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temp'orariamente -, mas psicologicamente não podemos deixar de experimentar uma certa identidade que se expressa pela narrativa do eu. Certamente, encontramo-nos diante das-mais amplas conseqüências da hipótese que Marx e Engels já haviam aventado em O manzfesto comunista. Segundo eles, a modernidade seria "o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos". Essa revolução, não apenas econômica e política mas, sobretudo, uma revolução cultural nuclear, transforma "todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e concepções", além de envelhecer " dto as as relações recém-formadas ... antes de poderem ossificar- se. Tudo que é sólido desmancha no ar".' Por outro lado, essa situação leva à reivindicação do direito à diferença (identidade) não apenas individual, mas grupal e r colet~v~,como insiste Lechner, acima citado. Essa reivindicação hdireito à diferença passa a significar "o reconhecimento e o 81
  • 12. respeito de sua cultura, e o direito de seus membros a preservá- Ia, a fazê-Ia florescer e desenvolvê-Ia de maneira criativa, e a viver segundo os planos de vida que cada um eleja de acodo com essa cultura, sem deixar por isso de participar na vida nacional" (OLIVÉ, 1999, p. 15).11ssoimplica, ao mesmo tempo, P a obrigação de reconhecer e respeitar o direito dos outros, na medida, inclusive, em que somos os Outros para eles e queremos, enquanto outros, ser reconhecidos e respeitados. Se eu tenho direito, sou um eu, uma singularidade, o outro também é um eu, uma identidade, com os mesmos direitos que eu. Diversidade x Direitos Humanos na Pós- modernidade/ mundo ~ No interior de todas as transformações, "existe uma tendência crescente a universalizar de maneira efetiva os direitos humanos, ao abrir-se a possibilidade de julgar genocidas e crimes contra a humanidade em países distintos daqueles em que foram cometidos" (OLIVÉ, 1999, p. 15). Assim, a p6s-modernidade/mundo proporciona as condições que podem permitir "a construção de uma sociedade planetária na qual participem as diversas culturas do mundo, em um processo no qual cada uma enriqueça a sociedade global e ao mesmo tempo se beneficie do intercâmbio e da ooperação com as outras" (Id: 16). Essa multiculturalidade, entretanto, só será possível se desenvolvermos a interculturalidade, ou seja, o diálogo entre culturas que possibilite a sua confrOntação e, portanto, o florescimento e o desenvolvimento criativo das diferentes culturas em presença, inclusive das nacionalidades. Não podemos deixar, no entanto, de perceber que essas são apenas possibilidades que necessitam da ação individual e coletiva, nessa direção, para efetivar-se. Por outro lado, os riscos de não-concretização existem. Apesar de todas as ambigüidades 82 e incertezas em que nos encontramos, tanto do ponto de vista intelectual quanto do político, essas mesmas ambigüidades e incertezas não nos impedem de perceber que esse processo vai conformando transformações culturais que podem, pelo seu t volume e densidade, bem como pela sua acumulação, começar a configurar mudanças sociais significativas. As transformações sociais que vão se dando pelas mais diferentes ações com âmbitos e alcances muito diversificados, inclusive projetos de intervenção social de apoio aos setores populares, provocam o redirecionamento de processos sociais que, no entanto, não têm os mesmos alcances nem atingem os mesmos âmbito..JTambém não se situam todos no sentido da Construção do diálogo entre culturas (interculturalidade) na direção da uma multiculturalidade como característica das instituições, comunidades e nações. Por isso, é possível identificar transformações de curta, média e longa duração, assim como de naturezas distintas (técnicas, culturais, éticas, estéticas, ideológicas) em muitas divergentes direções. De qualquer maneira, essas transformações sociais se opõem à direção que muitos governos tentam imprimir à t construção e desenvolvimento da sociedade em seus países "como um processo tendente a impor uma única cultura". Por isso, já estão em curso, no interior das nações e no âmbito internacional, outras ações e outros projetos que indicam e ajudam a reconhecer que a nação é pluricultural, "e que seu desenvolvimentO pode enriquecer-se com essa diversidade se se apoia o florescimento de todas as culturas que a compõem e se sentam bases sólidas para que todas cooperem no projeto comum de desenvolvimento nacional" (OLIVÉ, 1999, 16-17). O sonho é que "em um mundo multicultural, os direitos h --- - ~ devem construir-se nainteração transcultural" (1d: 17). E, assim, podem ser criadas as 83
  • 13. respeito de sua cultura, e o direito de seus membros a preservá- Ia, a fazê-Ia florescer e desenvolvê-Ia de maneira criativa, e a viver segundo os planos de vida que cada um eleja de acodo com essa cultura, sem deixar por isso de participar na vida nacional" (OLIVÉ, 1999, p. 15).11ssoimplica, ao mesmo tempo, a obrigação de reconhecer e respeitar o direito dos ourros, na medida, inclusive, em que somos os outros para eles e queremos, enquanto outros, ser reconhecidos e respeitados. Se eu tenho direito, sou um eu, uma singularidade, o Outro também é um eu, uma identidade, com os mesmos direitos que eu. Diversidade x Direitos Humanos na Pós- modernidade/ mundo ([?) No interior de todas as transformações, "existe uma tendência crescente a universalizar de maneira efetiva os direitos humanos, ao abrir-se a possibilidade de julgar genocidas e crimes contra a humanidade em países distintos daqueles em que foram cometidos" (OLIVÉ, 1999, p. 15). Assim, a pós-modernidade/mundo proporciona as condições que podem permitir "a construção de uma sociedade planetária na qual participem as diversas culturas do mundo, em um processo no qual cada uma enriqueça a sociedade global e ao mesmo tempo se beneficie do intercâmbio e da ooperação com as outras" (Id: 16). Essa multiculturalidade, entretanto, só será possível se desenvolvermos a interculturalidade, ou seja, o diálogo entre culturas que possibilite a sua confrontação e, portanto, o florescimento e o desenvolvimento criativo das diferentes culturas em presença, inclusive das nacionalidades. Não podemos deixar, no entanto, de perceber que essas são apenas possibilidades que necessitam da ação individual e coletiva, nessa direção, para efetivar-se. Por outro lado, os riscos de não-concretização existem. Apesar de todas as ambigüidades 82 e incertezas em que nos encontramos, tanto do ponto de vista intelectual quanto do político, essas mesmas ambigüidades e incertezas não nos impedem de perceber que esse processo vai conformando transformações culturais que podem, pelo seu tvolume e densidade, bem como pela sua acumulação, começar a configurar mudanças sociais significativas. As transformações sociais que vão se dando pelas mais diferentes ações com âmbitos e alcances muito diversificados, inclusive projetos de intervenção social de apoio aos setores populares, provocam o redirecionamento de processos sociais que, no entanto, não têm os mesmos alcances nem atingem os mesmos ârnbitos.Í'Iambérn não se situam todos no sentido da construção do diálogo entre culturas (interculturalidade) na direção da uma multiculturalidade como característica das instituições, comunidades e nações. Por isso, é possível identificar transformações de curta, média e longa duração, assim como de naturezas distintas (técnicas, culturais, éticas, estéticas, ideológicas) em muitas divergentes direções. De qualquer maneira, essas transformações sociais se opõem à direção que muitos governos tentam imprimir à t construção e desenvolvimento da sociedade em seus países "como um processo tendente a impor uma única cultura". Por isso, já estão em curso, no interior das nações e no âmbito internacional, outras ações e outros projetos que indicam e ajudam a reconhecer que a nação é pluricultural, "e que seu desenvolvimento pode enriquecer-se com essa diversidade se se apoia o f1orescimento de todas as culturas que a compõem e se sentam bases sólidas para que todas cooperem no projeto comum de desenvolvimento nacional" (OLIVÉ, 1999, 16-17). O sonho é que "em um mundo m~lticultural, os ilir~itos humanos devem construir-se ~terarão transcultural" (Id: 17)~ -x . E, aSSIm,podem ser criadas as 83
  • 14. condições para superar conflitos específicos entre culturas concretas ... reconhecer o direito das outras culturas a presevar-se, a florescer e evoluir, e devem admitir, ao mesmo tempo, que isso é compatível com a participação de todas na construção e o desenvolvimento de sociedades mais amplas, de autênticas sociedades multiculturais _ nos âmbitos nacional e global (OLIVÉ, 1999, p. 18). , Para a proposta da construção da inrer/rnulticulturalidade crítica, tomo emprestada a hipótese de León Olivé (1999, p. 18): "a possibilidade de um autêntico diálogo, a cooperação e a solidaridade entre as culturas, o respeito à identidade de cada 'lj J uma e seu direito à sobrevivência e ao florescimento, esse modelo multicultural também defende o máximo respeito à autonomia e à dignidade dos indivíduos" Essa hipótese se baseia na suposição epistemológica de que "a realidade 'se deixa' conhecer de muitas maneiras diferentes. Mas não é qualquer coisa que pode passar por conhecimento". Por Outro lado, há uma fundamentação ética para um "modelo pluralista" que se alicerça na tese de que não há normas morais de validez absoluta para julgar como corretas ou incorretas as ações das pessoas, nem há critérios absolutos para avaliar as normas e os sistemas normativos. De saída, isso não significa que qualquer ação possa justificar-se de um ponto de vista moral. Em síntese, o modelo pluralista defende que há uma diversidade de pontos de vista, de formas legítimas de conhecer e interactuar com o mundo, e de conceber o que é moralmente correto. Mas disso não se conclui que tudo esteja permitido. Pelo contrário, veremos que, de acordo com esse pluralismo, a realidade impõe constrangimentos muito fortes em relação ao que é 84 correto crer e ao que é possível e correto fazer. Daí se segue que, em certas circunstâncias, seja possível comparar, por exemplo, conhecimentos e propostas para a ação e que, em função de fins específicos sobre os quais se pode entrar em um acordo membros de diferentes culturas, seja razoável sustentar que algumas dessas propostas sejam preferíveis a outras (OLIVÉ, 1999, p. 19). Essa perspectiva ética implica um compromisso dos diferentes grupos culturais que constituem um Estado, uma nação, as nações, seus partidos políticos e o governo, assim como as diferentes instituições econômicas e culturais com a construção de múltiplas configurações da humanidade do ser humano. Caso contrário, dificilmente se poderá avançar na construção da multiculturalidade. Revela-se també~ fundamental a atuação das instituições, especificamente I'/'-~ educativas (escolares e sociais), na medida em que contribuem U para a construção de subjetividades capazes de suportar outros tipos de convivência com mentalidades 'ibertas e competentes para o diálogo com os diferentes. Os indivíduos e os diferentes grupos sociais estão I desafiados a desenvolver atitudes capazes de aceitar "a diferença, (para que) sejam respeitosos das outras culturas e estejam dispostos a cooperar no desenvolvimento de uma sociedade . multicultral e a admitir a possibilidade de fazer as mudanças necessárias em sua própria cultura para a convivência harmoniosa com os outros" (OLIVÉ, 1999, p. 20). ...•... Os problemas se configuram, pois, do ponto de vista da pesquisa, da teoria social e da ação coletiva, nas questões das relações entre as singularidades culturais (identidades grupais, diferenças culturais), numa cultura nacional e na pós- ~odernidade/mundo; e nos problemas das relações entre as Individualidades (identidades pessoais, diferenças individuais) 85
  • 15. '", 'na convivência grupal e societal. Enfim, configuram-se nos desafios que apresentam uma situação de diversidade cultural, perrrieada pelos-problemas das relações de pod~ oportunizar as condições do diálogo entre culturas sem dominações (interculruralidade: possibilidades de diálogo entre as diferentes culturas ou traços culturais) e, portanto, probabilidades/potencialidades de uma multiculturalidade (convivência valorizadora das diferentes culturas, promovidas, respeitadas, responsáveis, em desenvolvimento, florescentes) na pós-modernidade/mu VEm uma pergunta, talve~ se pudesse formular o problema da seguinte maneira: a pluriculruralidade pode proporcionar a interculruralidade e, a partir dessa, configurar sociedades nacionais e uma sociedade internacional multiculrurais, nas quais os indivíduos e os grupos desenvolvam ao máximo suas identidades e o prazer da convivência dos diferentes, enriquecendo a todos material e simbolicamente ranscul ruralidade)? 3.2. Apresentando o Problema Pedagógico na Di- versidade Cultural A pergunta que conclui o item anterior revela e releva a importância e a complexidade de g.ue se reve~te o debate pedagógico e o posicionamento sobre os processos educarivos, • escolares ou não, na diversidade culrural caracterizador,Lda_pós, modernIdadelmLífléio"39. Torna-se imprescindível para todos ~ . tematização das possibilidades e da transcendência de uma educação que não apenas leve em conta essa problemática, mas . 39 As reflexões que seguem reproduzem resultados da análise que realizei de pesquisas do CIIE (Centro de Investigação e Intervenção Educativas), linha de pesquisa 11. 3, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal (SOUZA, 2002, capítulo 4). 86 a transforme em conteúdos básicos de aprendizagem para efetivar suas probabilidades de construção do humano individual e coletivo. Está em causa, portanto, o problema da oonstrução de formas de convivência que garantam uma existência agradável e alegre à humanidade pela criação das condições da multiculturalidade através da ampliação das potencialidades da interculturalidade como condições de uma construção humana do ser humano e de suas sociedades. Diante desse possível cenário, os questionamenros que. . têm sido a resentados pelos debates das chances de uma educação interllllulJicultur~ cmIC (STOER; CORTESÃO, 1999) se revelam fundamentais; talvez mais: fundantes, porque repõem o problema central da existência humana em outras perspectivas históricas e culrurais. Essas perspectivas implicam uma transformação radical das sociedades e das escolas, no sentido assumido na obra de Paulo Freire (1867, 1992, 1996), ou seja, as possibilidades da construção de uma sociedade substantivamente democrática, de uma escola como Centro de Culrura e de aulas~como Círculos Culturais. O Centro de Cultura e os Círculos Culturais podem ~roporcionar condições da percepção e da ação humanas numa ireção que maneje as singularidades ou identidades individuais e grupais; portanto, as diferenças não somente como desigualdades, diversidades, fragmentações, mas à maneira de um coral de múltiplas vozes, polifônico, resultante de "processos ~ivilizatórios que são, simultaneamente, co ex iste n tes , JUstapostos, polarizados, adversos, interdependentes e c~mplices, conforme o jogo das forças sociais GU a pompa e as cIrcunstâncias" (IANNI, 2000, p. 90). Trata-se, enfim, de relações de poder entre indivíduos, grupos, classes, etnias, gêneros, idades, em suas diferentes figurações, configurações e transfigurações culturais, na economia, na política e nos saberes. Assim, problematizarn-se, 87
  • 16. na ~-ão-de P-flu!oJreire, as chances de uma e_~ 1iberdade para a-libensçãG-de rodos ew~mo possibilidade de crescjmento bljwano e não obstáculo à convivência humana.--.. A hipótese é a de que a Educação, inclusive a escolar, pode contribuir com a construção da humanidade do ser humano. Essa hipótese se desdobra em duas outras, que lhe são complementares e a concretizam, como apresentamos, na Introdução deste livro, e a retomamos: 1. Os conhecimentos que educadores e educandos, professores e alunos adquirem nos processos educativos (escolares ou não-escolares), podem ser úteis para o crescimento humano de todas as mulheres e de todos os homens. Por isso, a educação, inclusive a escolar, é um direi to inalienável de todos os seres humanos. Crianças, adolescentes, jovens e adultos, homens e mulheres, aprendemos com os conflitos sociocognitivos gerados entre os saberes que cada um já possui e as informações que podem ser recebidas nos diferentes ambientes sociais e educativos (escolares, não-escolares). Apenas no confron to de saberes, que conformam processos de ressocialização (recognição e reinvenção), aprendemos, construímos novos saberes e adquirimos condições de construir novas formas de convivência. ~~ @ Se nos colarmos nessas perspectivas e assim organizarmos. os Centros de Cultura e os Círculos Culturais, ampliam-se as probabilidades de avançarmos na construção da in ter/ ~ticulturalidade crítica. Os saberes assim produzidos "são 'J--Io ~ múltiplos e intrincados, ao mesmo tempo que surpreendentes ~. e fascinantes os processos socioculturais que se desenvolvem pelo mundo, tanto atravessando territórios, fronteiras, mares e oceanos como mesclando culturas e civilizações, ou modos de 88 ser, agir, sentir, pensar e imaginar" (Ian ni, 2000, p. 93), permitindo-nos perceber que esses processos socioculturais são dinâmicos, mutáveis e desafiantes ao tempo que realizadores do humano do ser humano. O debate pedagógico, nesse contexto, pode se orientar no sentido de se perguntar sobre os manejos possíveis dos processos socioculturais no interior de processos educativos não- escolares ou de uma escola pública, a serem organizados como um Centro Cultural nos quais se ampliem as possibilidades de seus sujeitos como seres humanos e profissionais de um mundo diferente. O problema se caracteriza, avolurna-se e desafia-nos pela presença - nos diferentes âmbitos educativos - de educandos que "foram socializados noutros valores, de acordo com outras regras, tiveram outro tipo de vivência, têm outros conhecimentos e possuem outros interesses, outras inquietações, outras formas de estar na vida" (CORTESÃO, 2000, p. 19). Os espaços educativos ocasionam a presença simultânea de identidades diferentes. Como garantir sua convivência sem que cada um necessite superar suas singularidades? É importante garantir o cresci'fnento pessoal, dos grupos culturais e das nacionalidades. Tornã-los florescentes e mais ricos, material, espiritual e simbolicamente. Parece não haver necessidade de superar as singularidades pessoais, grupais e nacionais, mas de buscar ap;ofundá-~ constituindo comunidades humanas polifônicas e multicoloridas (se as desejamos). Precisa-se perceber que, "a despeito das ,incursões nas relações políticas, econômicas, sociais e culturais exteriores, predomina o empenho em esclarecer o que é, o que pode ser ou o que deverá ser o nacional" (IANNI, 2000, p. 94) e o pessoal. Poder-se-a, então, superar o caráter excludente que tem tido a construção das singularidades ou das identidades, na conformação de comunidades nas quais se possa viver a plenitude das diferenças em suas inter-relações expansivas. 89
  • 17. Evidencia-se que o problema não é a identidade como uma realidade ou convicção. O problema é que esse tema, muito presente na literatura e na sociologia, assim como em outras produções culturais, freqüentemente predomina sobre outros temas, dilemas ou horizontes. Sendo assim, o predomínio do nacional em muito do que é reflexão ou fabulação pode representar uma limitação; inclusive no que se refere à inteligência do que poderia ser o nacional (IANNI, 2000, p. 94). A questão situa-se não apenas na identidade nacional, mas, também, similarmente, na pessoal e na comunitária. Como podem o ser nacional, as identidades grupais e o ser pessoal, desde diferentes critérios, não re resentar um obstáculo à idéia de uma sociedade inter/ .cultural crític~( Como não desprezar a guestão nacional e a identificação das pessoas com uma nação? Trata-se de gerar uma outr~ direção para a nacionalidade (sem naêionalísmos)que pode oferecer as -condições do crescimento da ind~idUàlidade e da convivência para a construção do ser pessoal no concerto comunitário, da identidade comunitária na nacional e da nacional no concerto da - u na pós-modernidade/rnundo. 6 A caracterização a pós-=mo erni a e/mundo como urm diversidade cultural e o debate sobre as probabilidades de uma sociedade mult~ultural pela constituição de relações intercultu~ têm, pois, que equacionar a questão das inter-relações nacionais num mesmo Estado ou entre nações-Estados autônomos no concerto mundial. Passa, então, a ser, juntamente como todos os outros temas indicados até aqui, questões substantivas dos conseúdos de todos os processos educativos (escolares ou não). Como indica o mexicano Rodríguez Ledesma (1998, p. 113) "é 90 aqui onde, justamente, o sentido da educação e o sistema,,.. escolarizado deverão, uma vez mais, assumir o desafio da reflexãC,-' e de colocar eQUJ.Jitiçª-as lógicas para que o discurso se converta em..ação.práctica de incidência direta e geral", • Ademais, como insiste Carlos Fuentes (1997, p. 125), outro mexicano, Prêmio Nobel de Literatura, Uma dimensão essencial do magistério é ensinar a cada aluno que ele não está sozinho. Que ele está no mundo. Que está com outros. O professor tem que ser agente contra a discriminação e os preconceitos. Ao aluno, o professor afirma: "tu existes. Tu es único". Mas, ao mesmo tempo, ensina-lhe a reconhecer a existência e a qualidade .do outro indíviduo. Inclusive, à criança, ao jovem, ao aluno: "reconhe-te a ti mesmo para que reconheças a teus companheiros, mas, também, com humanidade, aqueles que não são nem pensam como tu". Esse posicionamento de Fuentes pode ser aproximado da proposta do pesquisador espanhol Ortega-Rufz Ü998, p. 70), da Universidad de Murcia. Ele analisa a questão do pOnto de vista da educação em valores e, reconhecendo a diversidade cultural como um valor a ser promovido, indica que o problema é como realizar essa difícil simbiose entre desenvolvimento tecnológico e identidade cultural; como integrar ciência e tecnologia no mundo da vida, valores, tradição e cultura de cada povo ou comunidade. (...). O acelerado progresso no bem-estar que experimenta a sociedade moderna é impensável sem a aportação da ciência e da tecnologia. Mas tampouco pode-se desconhecer o desenvolvimento tecnológico da cultura, isto é, o desenvolvimento humano que necessariamente o deve animar, porque, ao idolatrar-se uma técnica 91
  • 18. efémera, entra-se inevitavelmente num processo de desintegração do homem como ser cultural. Insiste Ortega-Rufz (1998, p. 71) que é nas estruturas de acolhida que se torna viável isso que chamamos "ser humano", no fluxo de uma tradição concreta. (...). As diversas formas de pensamento, crenças, sentimentos, valorações constituem outras tantas formas de vida, como interpretações diversas de realização da existência humana. Nem pensamento, nem a ação dos humanos jamais partem do zero. Pelo contrário, encontram na tradição, em SUA tradição no espaço para uma das modulações possíveis da natureza humana. Se cada tradição representa um espaço para as modulações possíveis da natureza humana, o risco é cada grupo social pensar que apenas a sua é a única verdadeira tradição humana. Esse é o problema dos valores: cada indivíduo e cada grupo humano pensam que seus valores são os valores. Então, quando se ~) ~onfrontam, os conflitos são inevitáveis, mesmo porque, al~r.::. dessas questões, também se apresentamos problemas de poder e de hie.rarquias. Logo, parece que faz sentido o pressupos~;- de Henri Giroux, norte-arnerica oria crítica da educação, ao indicar ue a escol é uma arena de lutas esde que também se pense em espaços educativ - sepm apenas o escolar, mas também outros projetos e processos educativos. E,~ ) caso, como ele propõe, a Pedagogia adquire a dimensão de uma forma política cultur~LjSegundo Giroux (1994, p. 95), as escolas são formas sociais que ampliam as capacidades humanas, a fim de habilitar as pessoas a intervirem na formação de suas próprias subjetividades e a serem capazes de exercer poder com vistas a transformar as condições 92 ideológicas e materiais de dominação em práticas que promovam o fortalecimento do poder social e demonstrem as possibilidades da democracia. Essas disputas, presentes em quaisquer projetos e processos educativos, escolares ou não, acirram-se quando sujeitos populares neles se inserem, pois "a cultura popular representa não só um contraditório terreno de luta, mas também um importante espaço pedagógico onde são levantadas relevantes questões sobre os elementos que organizam a base da subjetividade e da experiência do aluno" (Giroux, 1994, p. 96). Em relação a isso, ainda existem, contudo, muitos preconceitos acadêmicos e, sobretudo, disputa de espaços das outras formas culturais. Por isso, esses preconceitos terão que ser enfrentados e superados, numa síntese mais ampla e desafiadora. ,{oLv~t , ( I jl ,( ~ Trata-se, na verdade, da realização de confrontos entre as diferentes culturas que conformam a diversidade cultural da pós- .!J modernidade/mundo, em nível local, regional, nacional e internacional. Especificamente no nível local, um espaço privilegiado para esse confronto é ~)nclusive a educação escolar. Nessa, os processos de enslOo-aprendizagem devem estabelecer o confronto entre a cultura científica, a cultura de massa e a cultura popular, na busca de construir novos saberes, novas instituições e novas subjetividades, novas sociedades'". Creio que a perspectiva em que me coloco pode ajudar na realização de quaisquer processos cducativos, inclusive os escolares, nomeadamente os não-escolares. A concepção de educação como processos e experiências de 'ressocialização (recognição e reinvenção), orientados a aumentar e consolidar capacidades individuais e coletivas dos sujeitos populares 'I 40 Ver essa questão desenvolvida mais amplamente em Souza (2002). 93
  • 19. mediante a recuperação e recriação de valores, a produção, apropriação e aplicação de conhecimentos que permitam o desenvolvimento de propostas mobilizadoras, se me apresenta com um alto potencial intelectual e prático. A ressocialização dos sujeitos populares ou subalternizados (crianças, adolescentes, jovens e adultos) se dá a partir do confronto das visões e das práticas pessoais e coletivas desses sujeitos com outras visões e práticas. Numa palavra: a partir de processos e experiências de recongição e reinvenção. Portanto, a ressocialização ocorre pela aquisição de uma nova compreensão da realidade que vai sendo, individual e coletivamente, transformada e reconsrruída numa outra perspectiva, adquirindo figuração ou configuração e interpretação diferentes. Constitui-se, assim, em um processo de diálogo, de confronto, conflitivo ou não, quase sempre tenso, entre culturas ou entre traços culturais, no interior de uma mesma cultura. Na escola, esse confronto se dará entre o que genericamente se poderia denominar cultura popular (saberes dos educandos e de seus grupos de referência) e os saberes científicos, ou entre saberes informais e saberes formais (CORREIA, 1999). Tal perspectiva exige, segundo Correia, pesquisador do CIIE, outra concepção e outras formas de tratamento das "relações entre os saberes formais e os saberes informais" (1999, p. 129). Essa não é, porém, uma tarefa fácil a ser cumprida pelas instituições escolares e por seus educadores. O habitus desenvolvido é o de que como fiel depositária dos interesses do Estado, a Escola evitou a invasão dos saberes não escolares e a incursão do mundo da vida através de mecanismos de exclusão à sua entrada ideologicamente legitimados pelo interesse do Estado que, paradoxalmente, incluíam os interesses dos próprios excluídos (CORREIA, 1999, p. 130). 94 Esse habitus de impedir a invasão da escola pelos saberes não escolares há que ser quebrado. Se não o for, torna impossível ualquer renovação e inovação das escolas de educação básica. q íd - d I-Tem, portanto, que ser construi a outra concepçao as re açoes entre saberes informais e formais na busca do estabelecimento de outro habitus. Isso exige outra concepção de conteúdos básicos de aprendizagem. Os conteúdos básicos de aprendizagem passam a ser o confronto entre os saberes populares ou informais e os eruditos, formais ou científicos na busca da construção de um novo saber escolar. Os dois tipos· ou formas de saber passam a integrar os conteúdos educativos, e não apenas o saber formal ou erudito é conteúdo a ser trabalhado nos processos educativos escolares?'. Diante dos temas, assuntos, problemas em estudo, tem que se realizar o confronto entre os conhecimentos científicos e os saberes populares ou do senso comum sobre esses temas em estudo a fim de se construir um novo saber sobre eles. Esse novo saber constituirá o conteúdo dos processos educativos. Por outro lado, parece que, caso se queira ~erconseqüente, nesse confronto dos conhecimentos (dos educadores, dos educandos e das ciências) face aos temas ou problemas em estudo, não se deve validar um ou outro dos saberes em presença. Ao contrário, deve-se buscar suas oposições, composições, na construção de compreensões e posicionamentos novos em relação aos temas e problemas em estudo. Sobre eles, enquanto cidadãos, todos poderão intervir. A busca é a construção de um novo conhecimento que supere as limitações dos dois conhecimentos (formais e informais) em confronto, e que o novo conhecimento consrruído seja útil à intervenção social transformadora da escola, da educação em outros âmbitos, que não o escolar, e das próprias relações sociais. 41 Ver um aprofundamenro dessa questão no irem 5.1 desre livro. 95
  • 20. Correia (1999) propõe, para superar as possíveis posições equivocadas, o paradigma da interpelação em oposição aos paradigmas da exterioridade e da continuidade no qual "as lógicas da exterioridade e da continuidade se subordinem às preocupações relacionadas com a gestão de uma conílictualidade que não anule, mas seja interpelante das diferenças" (p. 133). Para ele, o diálogo entre os saberes formais e informais não pode preocupar-se apenas com a eficácia cognitiva da acção da escola, nem pode ser apenas limitado a uma relação dialogante entre Escola e Família que melhore o clima de aprendizagem mantendo intactos os fundamentos do currículo escolar. O paradigma da interpelação subentende por um lado que se reabilitem as potencialidades formativas do conflito cognitivo e por outro lado que se reconheça que a comunidade está sempre presente através dos alunos, razão pela qual as relações que se estabelecem com a comunidade derivam prioritariamente das relações pedagógicas e sociais que ela estabelece com os alunos. Essa perspectiva implica que a escola se pense como uma cidade a construir, ou seja, que se pense não só como espaço de formação de cidadão, mas principalmente como um espaço de exercício de uma cidadania que não se limite à aprendizagem da disciplina e das regras, mas que institua uma cultura dos direitos e da participação democrática (CORREIA, 1999, p. 133-134). Defende, além da potencialidade formativa do conflito cognitivo e da mudança dos fundamentos do currículo escolar, como maneira de concretizar essa alternativa, a adoção de "um pensamento reticular" que seja capaz de atribuir "uma atenção acrescida à gramática das formas de vida e à erupção das heterogeneidades e insira analiticamente a escola numa rede de 96 relações que a transcendem e que ela deve procurar qualificar, contribuindo para sua diversificação, densificação e o enriquecimento" (CORREIA; 1999, p. 134). Esses processos e experiências de ressocialização podem acontecer em diferentes práticas pedagógicas. Não é apenas na educação escolar que elas podem se realizar. Elas podem ocorrer a partir das religiões, da política e têm encontrado um espaço privilegiado nos diversos movimentos sociais populares (SOUZA, 1999). Além disso, é possível também se darem na escola, desde que esta se oriente por um processo de reinvenção de si mesma pela percepção de suas contradições, ambigüidades e possibilidades. Creio que a tematização da diversidade cultural, das possibilidades da interculturalidade e das probabilidades da multiculturalidade será um bom conteúdo para essa reinvenção e recognição da instituição escolar, bem como de outras agências educativas. Nesse sentido, é pertinente examinar o debate sobre as probabilidades da multiculturalidade e as possibilidades da interculturalidade a partir da diversidade cultural, c~·nfrontando- o com o pensamento de Paulo Freire e identificando sua contribuição a esse debate, na perspectiva da ressocialização como versão de uma teoria da educação tendo em vista a construção da escolaadequada às camadas da classetrabalhadora (SOUZA, 2000). A suposição teórica da reflexão e da investigação empírica para uma Sociologia da Educação (Escolar e Não-Escolar), sua hipÓtese substantiva, é que a diversidade cultural pode Eossibilitar o diálogo intercultural na construção de I2.I-.Q~s ~ucativos, inclusive esc;Gres, que garantam o êÚro acadêmi ~rie as CQndiçõe~ do sl:lce~~o social às camadas da ~ trab-ª.fuadora. Tal desbobramento contribuirá para a efetivação da pós-modernidade/mundo como uma sociedade inter/ multicultural; numa palavra: em processo contínuo de democratização, transcultural. 97
  • 21. 3.2.1. Pistas para uma Sociologia da Educação, implicada pedagogicamente, na Diversidade Cultural Educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a "sede do saber", até a "sede da ignorância" para "salvar", com este saber, os que habitam nesta. Ao contrário, educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem - por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais - em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais (Freire, 1975, p. 25)42. Quaisquer que sejam, as realidades sociais estão sempre conformadas, constituídas, configuradas por diversidades, exclusões e desigualdades (políticas, econômicas, culturais, étnicas, lingüísticas, religiosas, de gênero, entre outras) que se expressam de maneira emblemática, em proporções maiores e intensas, nas megalópoles mundiais. Suas influências se estendem, entretanto. sobre todas as outras situações socioculturais, condicionando-as. Até mesmo sobre comunidades muito isoladas. Essas formas de sociabilidade e suas inrer-relações, talvez, possam ser percebidas mais adequadamente a partir dos debates sobre a transculruração, sobre as fragilidades e potencial idades da pluri/rnulti/inrer-culturalidade. Esses debates, como indica lanni (2000, p. 134), podem permitir" taquigrafar características e tendências das formas de sociabilidade, do jogo das relações 42 Obra publicada, em 1969, pelo Instituto de Capaciración e Invesrigación en Reforma Agrária, sob o título iExtensión o Comunicación?, resultante das reflexões de Freire, sobre o trabalho realizado nos Assentamentos de Reforma Agrária do Chile no Governo Eduardo Frey, especialmente com e por agrônomos. 98 ciais,das modalidades de produzir e reproduzir signos, símbolos sOsi nificados, por meio dos quais os indivíduos e coletividades e g ." se expressam e se constituem . Nesses debates não se pode, no entanto, esquecer as ues tões nacionais, mas um ser nacional no concerto das nações. Áfinal, a pós_modernidade/mundo se constitui de nacionalidades e não há sinais que indiquem que elas tendam a desaparecer, e, talvez,não seja desejável que desapareçam. Há, ao contrário, fortes indícios de recrudescimentos de nacionalismos e fragmentações de classe, gênero, religiões, de indivíduos e gtupOS sociais. A superação desses nacionalismos e fragmentações é desejável. Não das nacionalidades nem das singularidades forjadas a partir de diversos recortes. É necessário, no entanto, reconhecer as situações de fragmentação e nacionalismos para identificar suas possibilidades de superação. Como reconhecem pesquisadores do CIlE, toda esta variedade de indivíduos, que integra a actual sociedade, tem vindo a cruzar-se.:ainda entre si, originando situações múltiplas de identidade que se vão firmando e que, afinal, contrariam a anunciada homogeneização que, aparentemente, se poderia esperar ir dominar completamente, decorrente das situações de globalização (CORTESÃO, 2000, p:18). 6Essa caracterização da pós-modernidade/mundo como diversidade cultural, identificada pelas situações múltiplas de identidades em presença, com seus riscos de fragmentação, nacionalismos e fundamentalismos rornândo-se objeto do debate sobre as probabilidades de uma multiculturalidade pela constituição de relações interculturais. não apenas coloca vários problemas para os processos educativos (escolares ou não) mas também revela potencialidades como já indicado anteriormente. 99
  • 22. Esses problemas podem provocar uma reflexão crltlca pormenorizada, permanente, consistente e rigorosa sobre as causas e não apenas sobre os sintomas dos riscos da fl-agmentação mas também sobre as responsabilidades e as significações (significados e sentidos) da educação e dos educadores, bem como das instituições educativas, escolares ou não, na atuação para superar os perigos dos divisionismos, construindo alguns objetivos comuns aos diferentes grupos culturais que compõem as nacionalidades e a pós-modernidade/mundo. No âmbito do Cllf', as análises sobre a educação escolar na diversidade cultural, segundo Stoer (2001, p. 246), partem de uma constatação, diante do contexto acima referido, que é a explosão recente de reflexões e textos sobre o inter e multiculturalismo, a forte presença nas sociedades ocidentais da questão (e manifestações) da diferença _da problemática de género, de questões étnicas -, a procura tremenda de informação e acesso à formação na área do multiculturalismo e educação intercultural, o aparecimento subitâneo de organizações oficiais e não governamentais promovendo e preocupando-se com a inter e multiculturalidade testemunham, neste fim do sétulo XX, a emergência de uma dinâmica social cujas ilações precisam de ser e/ucidadas, investigadas e com preendidas. Nessa mesma linha, mas especificando os cenanos educacionais escolares, Carlinda Leite, também pesquisadora do CrrE, esclarece que essas preocupações, investigações e intervenções têm lugar, particularmente, no bojo da Reforma do Sistema Educativo Português, no final dos anos 1980, cujo espírito favorece 100 a emergência de um discurso de educação face à multiculturalidade, questão até aí pouco (re)conhecida. No entanto, este discurso nem sempre foi acompanhado pela acção prática e pelo exercício, por parte dos professores, de processos que se enquadrem numa lógica de coexistencialism043 e de educação intercultural. De facto, nos princípios dos anos 90, as iniciativas de intervenção nesta especificidade educativa correspondiam a pequenos grupos de académicos e investigadores ou a grupos sociais que nos seus quotidianos conviviam com a necessidade de agir face às situações de exclusão a que eram votados membros das chamadas minorias presentes na sociedade portuguesa (principalmente africanos das ex-colóriias portuguesas e populações de etnia cigana) (LEITE, 2000, p.138-139). Tais preocupações e debates, no CIlE, se concretizam a partir de um projeto de pesquisa e intervenção, coordenado pela Prof- Luiza Cortesão, o PIC (Projecto de Educação Inter/ Multicultural), desenvolvido de 1989 a 1992, envolvendo "três escolas do 10 ciclo do ensino básico 44 freq uen tadas po r um significativo número de crianças ciganas ou de origem africana, provenientes das antigas colónias portuguesas" (LEITE, 2000, 43 Refere-se a um dos três posicionarnentos possíveis das escolas na organização do currículo idenrificados por Forquin (1989, p. 152-160) face à diversidade cultural: isolacionismo, universalismo e coexisrcncialismo. 44 Corresponde aos anos iniciais (10 ao 40) do Ensino Fundamental na estrutura escolar brasileira a partir da Lei 9394/96. A estrutura' da Educação Escolar portuguesa de acordo a Lei de Bases do Sistema Educativo é: Ensino Básico de 9 anos, conformado em três ciclos; Ensino Secundá tio e Ensino Superior. No Brasil, a estrutura é Educação Básica e Educação Superior. A educação básica está constituída pela Educação Infantil (O a 6 anos), Ensino Fundamental (8 anos, a partir dos 7 anos de idade) e o Ensino Médio (3 anos). Daí, acesso à Educação Superior. 101
  • 23. p. 141, nota 3; STOER; CORTESÃO, 1999, p. 37-38). Esse projeto teve continuidade no PEDIC (Projecro Educação e Diversidade Cultural: para uma sinergia de efeitos de investigação), sob a coordenação de Stephen Stcer, de 1992 a 1995, "que, pretendendo obter uma sinergia de efeitos, acrescentou ao grupo de escolas com quem se trabalhava uma outra, C+S, do meio rural" (LEITE, 2000, p. 141)45. O PEDIC, iniciado em janeiro de 1992, incorporara também, além do PIC, o Projeto "Aprendizagem para o Trabalho: Educação e Democracia num País da (Semi)periferia Europeia" (1987-1991) (STOER; ARAÚJO, 2000). Para os pesquisadores desses dois projetos, a sua junção permi riria trabalhar a diversidade cultural na escola portuguesa, cruzando algumas das diferentes culturas nela presentes, a fim de produzir um efeito sinergético. Na realidade, pensava-se que essa reunião iria possibilitar a articulação de duas equipas de pesquisa, já constituídas anteriormente, bem como a associação de trabalhos realizados em qualquer uma delas. Para além disso, iria introduzir as dimensões rural/urbano e o trabalho com diferentes níveis de ensino às dimensões de diversidade cultural já em análise em qualquer um dos projectos inciais (CIIE, 1995:9). Os projetos que deram origem ao PEDIC anteciparam as preocupações com a diversidade que mais recentemente foram emergindo, em diferentes situações, no sistema educativo português. Na verdade, desde 1989 estes projectos começaram a trabalhar problemas de relação cultura/culturas a nível da educação. Terminados estes 45 Cf CIIE, 1995; STOER; ARAÚJO, 2000; STOER; CORTESÃO, 1999. 102 projectos em que a pesquisa/formação e a intervenção coexistiam e se inter-estirnulavam, seguiu-se um período em que se sentiu a necessidade de aprofundar ainda mais e alongar a reflexão teórica sobre toda a experiência, todos os dados e todos os questionamentos que se tinham recolhido e, em que, simultaneamente, começou a emergir a consciência da importância de rentabilizar a reflexão feita até então. Para além de trabalhos vários produzidos (artigos e livros), um dos efeitos dessa rentabilização materializou-se na proposta e desenvolvimento de um t mestrado _em Educação e Diversidade Cultural (CORTESAO, 1998, p. 65). Essas intervenções pedagógicas e investigativas, as análises que proporcionam e os conteúdos dos Programas de Pós- Graduação estão buscando a compreensão necessária para produzir práticas capazes de reduzir os constrangimentos, designadamente sócio- económicos, actuando sobre estes grupos passa pela compreensão, não só de sua relação direta com a produção material e o mundo de trabalho, mas passa também pela . . maneira como estes grupos vivem e constroem as suas vidas, isto é, com os seus processos de reprodução cultural (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 38). Nessa p~tiva, definem como objetivo das atividades da Linha 3 d~ intervenção no sentido de produzir práticas pedagógicas transformadoras que levem em conta tanto os aspectos estruturais da realidade como suas dimensões simbólicas, compreendendo, portanto, os processos de produção e reprodução culturais. Mas, por outro lado, não querem os pesquisadores ver seus projetos ou propostas confundidos com o 103
  • 24. que identificam, em suas análises, como práticas das/nas/com questões culturais na educação que apenas visam amenizar as situações. Essas práticas amenizadoras implicam, segundo os pesquisadores do CrrE, um multiculturalisrno que denominam de benigno. Afirmam que seu desejo é se demarcarem do que parece ser uma tentativa de valorizar as diferenças na escola para melhor justificar (e legitimar) a selecção levada a cabo pela escola nestes novos tempos de produção e consumo diversificados. Na nossa perspectiva isso seria igual ao 'reforço' da escola e, assim, uma subversão do ideal rnulticultural. Valorizar as diferenças na escola pode querer dizer aumentar o valor dos recursos culturais (de todos os grupos sociais, mas especialmente daqueles subalrernizados), sem subestimar a importância daquilo que nos liga uns aos outros (e que se pode exprimir através de concretização do princípio de igualdade de oportunidades de acesso e sucesso e a consolidação dos direitos sociais e humanos (STOER, 1993, p. 51). Nessa perspectiva e com essas utopias (ideal multicultural, aumentar o valor dos recursos culturais, sobretudo, dos grupos sociais subalrernizados, concretização do princípio de igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso, consolidação dos direitos sociais e humanos), os objetivos do PEDIC são formulados nos seguintes termos: conhecer características, valores, hábitos, ritmos e expectativas dos grupos sócio-culturais existentes na escola; promover, através de uma metodologia de investigação-acção, a preparação de professores para diferenciar as suas ofertas de ensino-aprendizagem; encarar, numa perspectiva não emocêntrica, os costumes, 104 valores, ritmos e expectativas de crianças com origens culturais diferentes; construir, na base da investigação, um currículo, ao nível da formação de professores do ensino básico, para uma educação inter/rnulticulrural (CIIE, 1995, p. 11). A direção das pesquisas e das intervenções está, portanto, demarcada pela indicação de que se tem ~ compreender a cultura, tanto na esfera produtiva.como reprodutiva e, portanto, "7ambém na forma como outros farares interferem na SIIa ~S'fOER; CORTESÃO, J999, p. 38-39). Isso deve ocorrer a fim de aumentar o valor dos recursos culturais de rodos os grupos sociais, mas especialmente dos setores subalternizadOs, garantindo a igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso escolares que os equipem para êxitos sociais. Enfim, a garantia da efetivação dos direitos humanos e sociais. Numa palavra, a cu tura como pratica social. Deseja-se uma "escolaonde crianças e Jovens e 1 erentes grupos' minoritários' adquiram saberes e instrumentos que os ajudem a viver e intervir numa sociedade" (hegemonicamente dominante), sem que isso seja conseguido através da destruição da auto-imagem e da cultura do seu grupo de pertença" (CIIE, 1995, p. 13). Armados com esses desejos, os investigadores/ intervencionistas do CIIE fazem uma crítica a propostas de educação, no interior da diversidade cultural, sobretudo nos países centrais, que denominam, na esteira de Bullivant (981)47, de pluralismo cul tural benigno (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 24, 26, 115), mas também reagem a uma crítica neomarxista que continua dando ênfase apenas à relação estrutural entre um currículo escolar diferenciado e um mercado de trabalho segmentado (Id., 39). 46 '" que possui um setor. .. 47 "multiculturalismo benigno": "doce e simpática interpretação das diferenças" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 115). 105
  • 25. Em relação ao pluralismo cultural benigno dentro da escola, Stoer (2001, p. 258) afirma que "se revela como i) ingénuo face aos estatutos sociais desiguais dos diferentes grupos culturais, e ii) desarmado perante um Estado que, apesar de boas intenções, continua a promover uma política educativa que justifica uma cidadania política pela negação dos particularismos e das especificidades culturais". Para esses pesquisadores, apenas "uma permanente análise crítica permitirá ir mais longe tentando trabalhar a nível das causas e não dos sintomas dos problemas decorrentes da diversidade no processo educativo" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 26). Infelizmente, não é nessa perspectiva que se colocam muitas das propostas que desejam trabalhar a questão das implicações da diversidade cultural nos processos educativos. Muitos projetos e, sobretudo, suas práticas procedem de "forma redutora" face aos problemas que "frequentemente ... se fazem sentir a nível da educação, particularmente do que respeita ao papel e significados da actuação da escola e do professor" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 13). Identificam os problemas que a diversidade cultural apresenta à escola que, no seu cotidiano, não considera nem valoriza as diferentes culturas presentes nos processos de ensino-aprendizagem. A não- consideração nem a valorização das diferenças culturais é, supõem, uma das causas da maciça incidência do insucesso escolar que acontece com crianças culturalmente mais distantes da norma prestigiada na escola": Um dos instrumentos que os pesquisadores do CrrE apontam como podendo contribuir para superar essa situação é a "investigação-acção" na construção de uma prática pedagógica que possibilite oportunidades de sucesso a esses 48 Essa é uma das suposições que apresento no Projeto de Pesquisa da Licença Sabática que deu origem ao livro Atualidade de Paulo Freire (SOUZA, 2002). 106 alunos49, bem como a construção de dispositivos de diferenciação pedagógica" que permitam tratar as situações culturais em suas singularidades e inter-relacioná-Ias, potenciando a capacidade de aprendizagem dos alunos e alunas. No entanto, a superação da situação de interculturalidade invertida, de multiculturismo benigno, pluralismo cultural benigno implica uma compreensão, interpretação, explicação dessasituação e, especialmente, uma intervenção. Nesse esforço, em sua análise das questões da diversidade cultural da sociedade hodierna, especificamente a portuguesa, e suas implicações para o processo educativo, recorrem os pesquisadores do CIIE às noções de desigualdades econômico-sociais (MARX) e exclusões culturais (FOUCAULT), em suas interdependências, propostas por Santos (1995), para compreender a situação da pós- modernidade/mundo. A inter-relaçâo dessas noções vai ser construída através do que Santos denomina de reflexão hermenêutica diatópica, como uma ferramenta analítica, caracterizada pela: capacidade de identificar e se indignar com as injustiças; - competência para a convivência e aceitação crítica das diferenças; compreensão de nossa própria incornplerude (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 25-26). Para Santos, segundo os investigadores do CIIE (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 114), a hermenêutica diatópica é um processo para abordar a incomensurabilidade das culturas. Santos a fundamenta 49 Stoer; COrtesão, 1999, p.32-36; Ciie, 1995: 11; Cortesão, 1998; Stoer; Araújo, 2000. 50 Stoer; Cortesão, 1999, p. 53, 60, 77, 81; Cortesão, 2000, p. 63-80. 07
  • 26. na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a cornplerude - um objecrivo inatingível - mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência da incornpletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra. Nisto reside o seu carácter diatópico (SANTOS, 1997, p. 23). Diante da incomensurabilidade das culturas, do inacabarnento de todas as culturas, da nossa própria inconclusão como concluem os pesquisadores do CIIE, e de posse de um instrumento que permita sua abordagem, apelam os pesquisadores do CIIE para o reconhecimento da natureza transgressiva e globalizante da problemática inter/rnulticulural que faz com que essa questão interfira em/com toda a prática social na qual se inclui a educativa. Segundo eles, há que se dar atenção à riqueza das formas culturais que medeiam a relação entre estrutura (classe social) e subjetividades (STOER; CORTESÃO, 1999, p.40). "Assim, em vez de se deixar a diversidade escapar entre os dedos, em vez de tratar a diversidade como um símbolo de fraqueza e tomar uma atitude arrogante em relação à tal diversidade que é ofensiva, dever-se-ia confrontar a incomensurabilidade de culturas e combater a doce e simpática interpretação da diferença" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 114). Trata-se de aproveitar ao máximo a riqueza das formas culturais que medeiam a relação entre estrutura (classe social) e subjetividade, identificar a importância das lutas e das práticas 108 étnicas e de gênero, além de perceber a diversidade no interior dos rópriosgrupOSétnicos e as dinâmicas inter-relacionadas de gênero ~ classesocial para potencializar suas possibilidades educativas. propõem ainda os pesquisadores do CrIE, para isso, uma abordagem não-sincrônica, baseados em McCarthy (1988), que toma como ponto de partida o que se pode definir como uma política da diferença a fim de que se consiga operacionalizar as relações entre raça, ecnia, classe e gênero no nível do cotidiano, que concebe essas mesmas relações como sistematicamente contraditórias. Destina-se essa abordagem a possibilitar a compreensão da complexidade do que se passa no terreno das escolas e das comunidades envolventes. Essa abordagem tem as seguintes características (STOER E CORTESÃO, 1999, p. 41-42): _ a promoção do 'ruído' (complexidade) da multidimensionalidade, que garante a reintrodução da variabilidade histórica e da subjetividade, ambas ausentes das abordagens multicultural e neornarxisra; - o reconhecimento da importância, na escola, das lógicas e efeitos autónornos das dinámicas de etnia e de género e a sua interacção necessária com classe social; - a adoção de uma postura crítica face à tendência dos teóricos da educação inrer/rnulticultural e da corrente neomarxista de dividir a sociedade em domínios separados de estrutura e cultura (esta tendência promove explicações monocausais); a defesa de uma concepção do conceito de raça (e etnia) 'não como uma categoria ou uma coisa' em si própria' (Thompson, 1996), mas, antes, como"'um processo social vital integralmente ligado a ou tros processos e dinâmicas sociais da educação e da sociedade" (McCARTHY, 1988, p. 272). 109
  • 27. Em poucas palavras, poder-se-ia dizer que a abordagem não-sincrônica -relacionando classe social, estrutura , subjetividades, história e cultura - tenta perceber as diferentes racionalidades, presentes na escola e nas comunidades de referência, para criar as condições de sua comunicação, identificar as diferenças e o direito à diferença. Apostam os pesquisadores do CIIE, por certo, na complementariedade entre uma abordagem não-sincrôriica de McCarthy e a reflexão herrnenêutica diatópica de Santos. Essas funcionarão, então, como um procedimento metodológico. O enfoque não-sincrônico, a reflexão hermenêurica diatópica, a política da diferença, a investigação-ação, capazes de garantir a multidimensionalidade e o interrelacionarnento entre estrutura e cultura, serão assegurados, propõem os pesquisadores do CIIE, na prática pedagógica, por meio dos campos da recontextualização dos textos do sistema educativo proposta por Bernstein (1990). Esses campos podem ser caracterizados da seguinte maneira: a recon textualização do campo oficial do discurso educativo que determina "o quê" dos processos pedagógicos pelas instâncias centrais do Estado encarregadas da elaboração e irnplementação de políticas educacionais; a recontextualização dos textos educativos provenientes do campo especificamente pedagógico que tentam determinar "o como" dos processos educativos configurado pelas publicações e mídia da educação, pelas faculdades e departamentos de educação das universidades e dos politécnicas e pelas instituições e fundações de pesquisa e divulgação educacionais (STOER E CORTESÃO, 1999, p. 43-44,78-79,83; Leite, 2000). 110 Argumentam, para isso, com a idéia de autonomia relativa do discurso pedagógico, também. pr~posta "" ~ernstein em a compreensão da recontextuallzaçao pedagógica dos textos sdu sistema educativo. Segundo Bernstein, citado pelos o - pesquisadores do CIIE (STOERE CORTESAO, 1999, p. 79), podemos definir a autonomia relativa do discurso pedagógico na medida em que aos campos da recontextualização pedagógica não só Ihes é permitido ter existência, mas também afectar a prática pedagógica oficial. (...). Onde existem campos da recontextualização pedagógica que são efecuvos e gozam de uma autonomia relativa, então torna-se possível para os activistas neste campo recontextualizar textos que por si próprios podem considerar-se ilegítimas, opostos, proporcionadores de espaços contra-hegemónicos da produção de discursos (BERNSTEIN, 1990, p. 198,202). É possível encontrar ou inventar, na prática pedagógica, espaços capazes de ressignificar os discursos ofi€iais da política educativa de tal maneira que permitam processos educativos em outras direcionalidades que não as que se quer impor a partir dos discursos pedagógicos oficiais. O mesmo processo é possível com os textos dos discursos, especificamente pedagógicos. Evidencia- se,então, uma exigência ou possibilidade para a prática pedagógica denominada de progressista. A recontextualização pedagógica indica que os discursos, os textos, para cumprirem sua função educativa, têm que assumir suas dimensões formativas a partir das condições e situações dos educandos. E exige uma competência dos educadores a ser desenvolvida tanto na formàção inicial quanto Contínua para garantir a tarefa da recontextualização. . No dia-a-dia da prática pedagógica, como afirma Carlmda Leite (2000a, p. 12), "recontextualizar as mensagens escolar " . ·c " I hes signmca va orizar o con ecimento e os processos 111
  • 28. 100....- de comunicação entre as culturas presentes no espaço escolar". Para os pesquisadores do CIIE, isso seria superar o daltonismo cultural da escola e dos professores pela aquisição de uma racionalidade transcul tural. Insistem na importância de perceber que o daltonismo cultural, além de ser um obstáculo à "percepção da diversidade, é essencialmente adquirido através de uma socialização muito frequentemente etnocêntrica e uniformizante". Não tem, portanto, nada a ver, a não ser analogicamente, com o daltonismo orgânico que, além de ser hereditário, pode afetar a visão. A superação do daltonismo cultural dar-se-a pelo desenvolvimento da racionalidade transcultural que "é crucial para o processo de tradução das culturas e, portanto, para o aproveitamento da diferença dentro da escola e, mais particularmente, dentro da sala de aula" (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 78). 3.2.2. Uma possível proposta pedagógica para a diversidade cultural Nessa perspectiva, temos, em Pernambuco, Brasil, por meio da atuação do NUPEP (Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação de Jovens e Adultos e em Educação Popular).do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), formulada (SOUZA, 2003, p. 4-7), como abaixo segue, uma Proposta de Educação que afirmamos ser para a Educação de Adultos, mas que parece servir para quaisquer processos educativos. Hoje, no âmbito do NUPEP/UFPE, trabalha-se com uma proposta pedagógica que resulta da contribuição teórica de Paulo Freire, confrontada com o debate pedagógico hodierno, como indicada nos parágrafos acima. Seu fundamento e nossa inspiração são uma concepção de educação como atividade cultural e de desenvolvimento da cultura. Proposta que perspectiva contribuir com a construção da humanidade do ser humano em suas diferentes feições - masculinas, femininàs, adultas, infantis, juvenis, idosas, adolescentes, rurais e urbanas, rurbanas, negras, mestiças, brancas -, no interior de suas orientações sexuais e ideopolíticas, entre tantas outras possíveis identidades. A hipótese substantiva do seu trabalho é que a diversidade cultUral pode possibilitar um diálogo inter e intracultural na construção de processos educativos com as camadas populares ou setores subalternizados das sociedades nacionais e da sociedade mundial que respondam aos desafios da pós- modernidade/mundo. Construção de uma educação que, compreendendo as diversas implicações da diversidade cultural, trabalhe pelo diálogo entre as culturas (interculturalidade) por meio de sua realização na prática pedagógica. Isso virá a contribuir, a partir da experiência da interculturalidade nas instituições educativas, com a construção da rnulticulruralidade. Experiência que, certamente, repercutirá em todas ~s relações sociais dos indivíduos e grupos que a tenham vivenci;-do. Nossa aposta é que a multiculturalidade possa vir a ser a característica fundamental de uma sociedade democrática expansiva. Partimos do pressuposto de que a sociedade atual, em suas feiçõeslocais, nacionais e internacional, ainda não é multiculrural, nem predomina nela a interculturalidade. Daí a insistência com que alguns pesquisadores chamam a nossa atenção para os ~roblemas do multiculturalismo benigno, da inrerculturalidade I~vertida. Nesse sentido, a contribuição de Paulo Freire se torna slgnificat' P . ,rva, or ISSO,para evitar esse mal-estar, trabalhamos com oscon~trutos freireanos (aparato conceitual) que passo a explicitar. A SOCIedadehodierna se caracteriza como uma diversidade cultural ou I 'I lid dA' A • d. P UflCU tura I a e, s expenenclas e Intercult Íid d '. ,. -r- ura I a e e rnulticulturalidade são multo reduzidas. trata-se , pOrtanto, de expectativas, 112 lU
  • 29. A posição de Freire dimensiona a seriedade e as preocupações necessárias ao tratamento dessa problemática, assumindo-se pós-moderno crítico. Esse posicionamento pós- moderno crítico face à diversidade cultural na busca da construção da interculturalidade e multiculturalidade é desafiante e necessita de uma criteriosa análise e de uma prática conseqüente a fim de que não se confunda justaposição de culturas, ou dominação de uma cultura sobre várias, com uma situação rnulticultural, de multiculturalismo ou de multiculturalidade construída pela interculru ralidade. A necessidade de retomada da radicalidade, da criticidade e sua prática, a distinção entre uma pós-modernidade progressista e uma conservadora, neoliberal - rejeitando essa última -, a reafirmação da opção pelos excluídos, subordinados (FREIRE, 1992) que orienta a crítica e lhe dá direcionalidade, não dão margem a nenhuma dúvida. Como afirma inicialmente, A Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido é um livro assim, escrito com raiva, com amor, sem o que não há esperança. Uma defesa da tolerância, que não se confunde com a conivência, da radicalidade; uma crítica ao sectarismo, uma compreensão d~ pós-modernidade progressista e uma recusa à conservadora, neoliberal (FRElRE, 1992, p.12). Nessa perspectiva, encontramo-nos atualmente em uma situação de diversidade cultural ou pluriculturalismo, não ainda em uma situação de multiculturalidade, enquanto uma configuração social consolidada e caracterizadora da pós- modernidade/ mundo. Ele pensa que a multiculturalidade não pode existir "como um fenômeno espontâneo", mas apenas se for "criado, produzido politicamente, trabalhado, a duras penas, na história" 114 (FRElRE, 1992, p. 157). Estamos diante de um fato social: a diversidade cultural ou a pluralidade de culturas ( luriculturalidade). Essa pode ser tomada como uma das c~racterísticas da pós-modernidade/mundo, fruto dos processos de globalização vividos, sobretudo, nos últimos cinqüenta anos, os quais provocaram as diferentes e novas transculturações em toda a Terra, mas que ainda não permitem caracterizar a sociedade atual como multicultural produzida pela interculturalidade. As diferentes culturas ou traços culturais de uma mesma cultura nacional, ainda se encontram justapostas/ os ou em situações de dominação e subalternidades como condição predominante. O desafio é transformar essa pluriculturalidade ou diversidade cultural, através do diálogo crítico entre as culturas e das culturas (inrerculruralidade), numa multiculturalidade. A multiculturalidade só acontecerá a partir de uma construção desejada política, cultural e historicamente. É diferente da pluriculturalidade que não é resultado de uma ação intencional, voluntária e politicamente con stru ída. A multiculturalidade, decorrente de um processo consciente de diálogo entre culturas ou de traços culturais numa mesma cultura (interculturalidade), se caracterizará como "invenção da unidade na diversidade. Por isso é que o fato mesmo da busca da unidade na diferença, a luta por ela, como processo, significa já o começo da criação da multiculturalidade" (FREIRE, 1992, p. 157). As justaposições de culturas, resultantes dos processos de globalização, que configuraram a pós-modernidade/mundo, ~ão caracterizam per se um mundo rnulticultural nem lntercultural. Indicam apenas uma situação de diversidade cultural ou uma pluriculruralidade. além de configurar um desafio à convivência dessas diferentes culturas ou traços culturais em presença. Segundo Freire (1992, p. 157), 115